28 de agosto de 2015

FECHOU A LELLO / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 28-8-2015




Fiquei perplexo, quando li a notícia do recente encerramento definitivo da livraria Lello de Luanda. Era uma situação expectável porque os “mujimbos” eram mais que muitos, sobre o encerramento de uma das mais emblemáticas lojas da nossa cidade capital.
Por causa do capital na cidade, é que há muito o “Palácio da Palmeira” estava na mira dos que se vão encarregando de aumentar a bolha imobiliária, e quando rebentar serão os angolanos a pagar por estes desmandos de grande calibre!
Um dos edifícios mais nobres da baixa luandense, o seu nome refere-se à característica palmeira estilizada na grade que protege as escadas, do edifício na praça Rainha N’ZINGA, em frente, à outrora mais majestática Sonangol. Há muito que se sabia que era um espaço cobiçado, como é qualquer canteiro em determinada zona da cidade, mas os anos foram passando e lá se ia mantendo com o ar vetusto, a lembrar tempos do antanho em que o popular e Angola se confundiam num quotidiano político, que deixa saudades a muitos de nós.
Foi adquirido por uma daquelas sociedades que compram coisas, que não se sabem a quem pertence e quando aparece alguém a colocar nomes dos societários é uma inquietação a todo o tamanho para muita gente. Compraram o edifício para o deitar abaixo, é um dado mais que adquirido, e já estou a ver os olhos raiados de cifrões de alguns, a verem surgir mais um megatério, de uma sordidez visual e conceptual que nada tem a ver com uma urbe, com cada vez menos pessoas e com cada vez um maior número de habitantes.
Não vou voltar ao estafado tema da degradação continuada que estão a fazer ao coração da cidade, o que me deixa muito triste, mas neste momento o que interessa é mesmo é o encerramento da Lello.
A Lello já lá estava há umas décadas quando eu vim ao mundo há sessenta anos, na Casa de Saúde de Luanda (Augusto Ngangula). Curiosamente o primeiro livro que recebi foi lá comprado, conforme a minha mãe anotou num “livro do bebé”, algo habitual nos nascimentos desse tempo no seio da burguesia colonial!
Na Lello foram-me comprando livros infantis, de colorir, de pano, escolares e tantos outros que me aborreciam um pouco no desafio continuado por parte dos meus vizinhos para as brincadeiras de rua.
Apesar de muitas vezes desejar que não optassem por livros nas datas em que era habitual dar prendas, a verdade é que gostava muito de os ir lendo, e lembro-me de ter lido toda a coleção do Tintin em francês, o Ben-Hur, o Marco Polo, o Simbad, os irmãos Grimm, Charles Perrot, Hans Cristian Anderson, a Enid Blyon com os famosos “Cinco”, o Nodi e os “Sete”, enfim “varri” tudo e a Lello era um dos maiores “filões” na pachorrenta e algo provinciana Luanda colonial, de um tempo em que o ar condicionado era para uns poucos e que o calor se mantinha dia e noite.
Durante os anos 50 e 60 Luanda tinha para além da Lello, a “Lusitana”, acima do hotel Globo, a “Minerva”, hoje em ruinas, a ABC, quase em frente ao “esqueleto” do que foi em tempos o garboso edifício da Biker, e a Mondego, mais conhecida pela “Argente Santos”, que hoje encolheu o mais possível para passar a ser um bar, em frente ao Chá de Caxinde. É da mais elementar justiça falar da “Livraria Popular” de José Marques da Cunha, numa loja pequenina na ex-“Av. dos Restauradores de Angola”, e que foi durante muito tempo o único alfarrabista de Angola. No meio de um amontoado de livros saia sempre qualquer coisa que o Senhor Cunha convencia o meu pai a comprar, por “dez reis de mel coado” , como diria o mestre Aquilino Ribeiro. O Senhor Cunha desapareceu e a sua livraria fechou há muitas décadas, mas cada vez que por ali passo olho para aquele lugar com a saudade de” um homem muito bom, mas que tinha tido pouca sorte na vida”, como ouvia dizer em Luanda nos meus tempos de descuidada meninice.
Mas a Lello era o sítio! Era lá que me compravam os meus livros da escola primária e no “Salvador Correia”. Foi da papelaria que os meus pais levaram os estojos de desenho Kern e a Pelikan, que era uma caneta de tinta permanente, um pouco uma Montblanc de remediados. Comprava-se a tinta-da-china, os godés, as aguarelas e o papel cavalinho; Tudo material que invariavelmente ia parar aos calções, pernas e camisa porque fui um verdadeiro desastre em desenho.
Continuava a comprar na Lello, os dicionários, as enciclopédias juvenis e livros de todo o tipo, pois fui-me tornando um leitor compulsivo, chegando a alternar entre o David Copperfield do Dickens e as fotonovelas interiores da “Crónica Feminina”!
A partir de determinada altura, começo a partilhar na Lello a amizade com o pai de um colega de Liceu, que era uma pessoa notável, e que muitos em Angola maltrataram, o mais velho Felisberto Lemos.
Quando fui estudar para Coimbra no dealbar dos anos 70 despedi-me do Felisberto oferece-me um livro do Dr. Videira, “Angola”, com desenhos de Neves e Sousa, editado pela Lello, que também era editora e reproduzia excelentes postais de artistas angolanos.
O Felisberto Lemos, o “Livreiro da Esperança” como lhe chamou Manuel Alegre, foi uma referência importante no combate à ditadura e ao colonialismo português, já que foi “desterrado” para Angola, e tantos lhe agradeceram o muito que fez por todos os muitos que chegavam a Luanda, e iam ter com o Felisberto para terem acesso a livros e a prepararem conspirações. Melo Antunes, Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos, Bessa Murias, e tantos outros deixaram o seu testemunho reconhecido a um homem de quem nunca ouvi um queixume pela forma “cobarde” como foi tratado, tendo regressado a Portugal pobre, e valendo-se da ajuda de amigos que não o esqueceram, mas que nunca lhe conseguiram mitigar a tristeza. Morreu amargurado e com muitas dificuldades económicas, esquecido por muitos, a quem deu guarida e matou a fome, e que em determinada altura foi acusado de deslealdade e “traição” porque entre vários livros na montra da Lello tinha o livro do Nito Alves em exposição e para venda.
Outra figura da Lello foi o poeta Ricardo Manuel, autor de vários livros de poesia, e que nos anos 80 foi galardoado com um prémio literário na Coreia do Norte, num concurso onde foi o mais encomiasta relativo a Kim-Il Sung e à doutrina Juche. Foi receber o prémio a Pyongyang, e durante meses a fio o “Grande Líder” teve direito a uma foto gigante, numa montra toda decorada com cetim e cheia de livros coreanos traduzidos para português e espanhol, sobre as ideias centrais de uma deriva marxista-leninista algo bizarra.
Na Lello, ao fim da tarde, reuniam-se no fim dos anos 70 e durante a década de 80 um conjunto de pessoas de gerações diferentes, que constituiu uma das tertúlias mais interessantes da Luanda solidária que se vivia. Os irmãos Guerra Marques, Osvaldo Pinto, Galeano, Chaves, o velho Lello, Antero de Abreu, Dionísio Rocha e outros onde me incluía, juntavam-se ali o fim de tarde numa amena e salutar cavaqueira, em que quase todos tínhamos uma visão diferente das coisas e pasme-se soluções para elas, o que não deixava de ser algo pueril entre pessoas, a maioria ao tempo ao tempo já com 50 anos ou mais.
Foi na Lello que comprei Jorge de Sena, Garcia Marques, Hemingway, Camilo José Cela, Maria Teresa Horta, Carlos Malheiro Dias, Castro Soromenho, Albert Camus, Alvin Toffler, Frantz Fannon, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e tantos que me enriqueceram para a minha afirmação de cidadão solidário e politicamente interventivo.
Quando vejo fechar a Lello, vejo encerrar algo que fazia parte do coletivo da cultura de um País, que tem cada vez menos livrarias e se conformou com os esforços de bem-sucedidas campanhas de alfabetização, de um tempo em que o homem não era mercadoria, nem número de mercado.
A iliteracia prevalecente vai aumentando e o resultado terá consequências perniciosas na vida quotidiana dos angolanos. A cidade empobreceu e de que maneira com o encerramento da Lello.
Limito-me a agradecer os sessenta anos em que fui convivendo com ela.
“Sic transit gloria mundi”



Fernando Pereira 26/8/2015



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