1 de abril de 2015

Seripipi de Benguela / Ágora /Novo Jornal / Luanda 2/4/2015


“(…)
leva no bico uma esperança
ao ninho do teu irmão.”


Ernesto Lara Filho


O fogo consumiu totalmente na passada semana um dos emblemáticos edifícios da cidade de Benguela, o “Cabo Submarino”!
Era um edifício com características “sui generis”, pois foi construído para que, no seu interior, se trabalhasse com todo o conforto, num tempo em que o ar condicionado nem sequer era uma miragem.
Conheci bem o local que albergou durante anos a direção provincial de cultura, e sempre me fascinou o ar temperado, numa construção situada no meio de um terreno sem arborização envolvente e numa cidade onde a canícula aperta em períodos continuados do ano.
O edifício, recuperado em 2001 e 2010, manteve, no essencial, a sua estrutura de 1889, com as janelas em lamelas de madeira. Este processo justificava-se no sentido de permitir, durante o dia, o seu manuseamento, tentando amenizar o calor no interior. Esta circulação permanente de ar, era ajudada pelo facto de se tratar de uma estrutura em madeira e ferro, assente em paliçadas. Era um edifício interessantíssimo e, se na primeira metade do século XX o “gémeo” do Namibe (Moçâmedes) foi demolido, este mantinha-se indiferente à voragem avassaladora do pato-bravismo "construtivo" que tem percorrido as cidades de Angola, principalmente as de maior atividade económica.
O edifício foi montado para a West African Telegraph Company, que era uma empresa subsidiária de uma Eastern & Company Telegraph, que no fim da Conferência de Berlim tinha todo o mundo coberto por uma rede de cabo submarino. Em Angola, a ligação entre Cape Town e Moçâmedes prosseguiu para Benguela, daí para Luanda, acabando por se unir ao cabo-submarino que vinha do Brasil para a Europa via S. Vicente em Cabo Verde.
Depois do cabo submarino, no tempo colonial, funcionou lá o Colégio Alemão e hoje restam as cinzas de mais um desastre, este sem anúncio, no pobre património edificado e classificado que há no País.
Ouvi as justificações mais pueris, e uma das mais risíveis foi a de que a culpa do incêndio teria sido da intensa chuva que desabou em Benguela nessa noite. Não quero estabelecer um nexo de causalidade quanto ao que futuramente se irá por lá construir, mas espero que, pelo menos , se reabram os dossiers sobre a recuperação do edifício e se averigue se terão sido cumpridas todas as regras inerentes à preservação de um imóvel com a provecta idade de 125 anos. Era uma excelente oportunidade de casar a culpa com alguém!
Benguela é fundada em 1617 em homenagem a Filipe II de Espanha (1º de Portugal), daí o seu patrono ser S. Filipe, numa clara tentativa por parte de Cerveira Pereira de ficar nas boas graças da corte. “A Sul, o sombreiro” de Pepetela, descreve com autenticidade e minúcia essa personagem malevolamente controversa no século XVI da colónia.
As suas gentes não têm nada a ver com as patifarias do seu fundador, nem com as maledicências em torno do seu santo padroeiro, que só tem uma importância acrescida pois está ligado a um dos reis de Espanha que teve um poder quase absoluto na Europa.
Numa atitude ousada, a população de Benguela manifestou-se contra a travessia do caminho-de-ferro pela cidade, já que a dividiria ao meio, pois a estrutura central da povoação era afastada da linha de costa e do seu porto. Foi assim que nasceu o Lobito para albergar o porto de mar que apoiaria Benguela e, na realidade, esta decisão acabou por atrofiar a cidade no seu crescimento e desenvolvimento económico em detrimento do que em tempos recuados foi a “Catumbela das ostras”!
Benguela foi sempre uma cidade de gente muito ciosa na sua relação interpessoal, de partilha entre quintais e com uma interessante atividade cultural. Durante o colonialismo foi o local privilegiado de intervenção política, e onde terão germinado algumas sociedades maçónicas que acabaram por ser dissolvidas pela repressão das autoridades.
Henrique Galvão, adversário de Salazar, mas com uma verve colonialista, entre 1930-1940 faz esta descrição de Benguela: “… é uma cidade enorme, de ruas compridíssimas e asfixiantes, em que dominam o amarelo e o pardo, feia, muito feia, mas depois de Luanda a cidade mais característica de Angola (…)O mar bate-lhe nas costas, é certo, mas ela fugiu do mar para terras nuas e encardidas (…). Dentro deste quadro, de aspeto doentio e abafante, vive uma população teimosa e tão simpaticamente aferrada à cidade, que constitui o caso mais típico e ferrenho de bairrismo que se conhece em Angola. A gente de Benguela faz lembrar a gente do Porto”( Álbum Comemorativo da 1ª Exposição Colonial Portuguesa / 1934).
O arquiteto Fernando Batalha, recentemente falecido, escrevia sobre Benguela: “Tem o seu assento em uma terra plana e está traçada em quadra”. “Foi o primeiro plano urbanístico de Benguela e provavelmente também o primeiro que se traçou para qualquer povoação de Angola (…) A formação «em quadra» ou traçado ortogonal é também um dos caracteres comuns e de uso frequente nas povoações criadas depois do seculo XVI. Foi o sistema adotado na “Baixa” de Lisboa depois do terramoto e em muitas povoações do Brasil”, FB, “A urbanização de Angola”, Edição Museu de Angola, Luanda 1960.
Resta mesmo a poesia imorredoira de Aires de Almeida Santos: “Meu amor da Rua Onze/ Meu amor da Rua Onze/ Já não quero/ Mais mentir.”

Fernando Pereira
30/3/2015
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