12 de junho de 2008

"JANGO Jornal para ler e guardar"/Ágora/Novo Jornal /Luanda




Estive para fazer uma croniqueta sobre qualquer coisa de actualidade, que não se confunda com utilidade, porque nos tempos que correm, a maior parte das vezes nem uma nem outra são compatíveis, podendo ser competíveis.
Acontece que no meio de milhares de coisas que fui guardando, o que pode ser sintoma de velhice, avareza, caciquismo de cultura, enfim múltiplas coisas, mas o que é efectivamente relevante é que descobri num molho de jornais, uma colecção do Jango.
Quando olhei para aquele jornalzinho de páginas amarelas, que sei que era desta cor para não se confundir com o “Financial Times” (!!!), detenho-me a pensar quanto empenho, quanto voluntarismo e quanta boa vontade o David, a São, o Fernando Marcelino e poucos mais, colocaram na vida de um projecto, que para alguns foi só mais um pequeníssimo motivo para serem objecto de um vil assassinato, perpetrado por protozoários de invisível, mas de torpe catadura.
No numero 0 do Jango, de 28/8/92, saído precisamente no dia anterior ao início da campanha eleitoral das primeiras eleições gerais no País, os fundadores propunham que este amarelo papel, mas jamais amarelecido,”estava aberto a todos que não vem para ferir”. Propunham uma “informação formativa”, e esperavam poder ser um lugar onde se dessem a conhecer “as deficientes condições em que continua a viver a grande maioria do nosso povo”.
O “Jango”, foi um jornal teimosamente criado para defender o mundo rural, já que era afirmativo no “editorial” do seu numero 0, que “ A preocupação constante é a população rural”. O Governo continua a ser uma emanação das cidades, e a cidade é muito mais exploradora da área rural que o seu apoio.”.
Hoje quando peguei no “Jango”, que tinha sede no Huambo e a administração em Luanda, veio-me à lembrança um grupo de gente solidária, de uma enorme vontade de fazer, insensível às ameaças, mas sensível aos problemas dos muitos que os procuravam e do quotidiano de miséria dos que os rodeavam.
Os malsins que os espiavam, os assassinos e os seus mandantes devem hoje passear-se calmamente, numa qualquer rua de uma qualquer cidade de Angola, e só aqui são lembrados, porque abateram gente intelectualmente superior, pessoas ideologicamente formadas com princípios humanistas, e respeitadoras da dignidade dos cidadãos do seu País, que foi feito à custa da sua luta na idade da razão e a sua continuação na sua razão da idade, até que umas balas fizeram perder mais idade, mas ganharam mais razão, sem contudo a poderem partilhar, com tantos entre os quais nós, que os estimávamos.
Do projecto inicial do Jango, há dezasseis anos, alguns já morreram, outros envelheceram, melhor agrisalharam os cabelos, alguns leitores, como eu, acabámos por ter mais idade, mas seria um lapso enorme não fazer aqui uma referencia, ainda que muito modesta a uma edição que embora efémera, foi uma verdadeira síntese de boas vontades, e de uma coerência de princípios afirmativos do País.
Passados quase dezasseis anos desses hediondos crimes a gente livre e liberta, e num momento em que citando Brecht ,” A paz eclodiu de novo”, fica aqui a lembrança e a saudade, e quanto a mim só me resta continuar a cumprir o que dizia nas páginas centrais do Jornal: “Jango, o jornal para ler e guardar”
De vez em quando releio-os como foi o caso, por isso agradeço a recomendação!





Fernando Pereira

África do Sul: Xenofobia a fogo por falta de ferro! /Novo Jornal / Luanda


Os recentes acontecimentos que se verificaram na República da África do Sul, são deveras preocupantes para a instável estabilidade do sul do continente.
A África do Sul é dos países do mundo com um maior crescimento, na ordem dos 5% o que é assinalável, mas não deixa de ser preocupante a sua percentagem de desempregados, na ordem dos 25% da população activa; sem um sistema social que garanta minimamente a sua sobrevivência, num quadro de vida com alguma dignidade.
Muito se tem falado sobre os recentes acontecimentos, que devem ser olhados pelos africanos com alguma cautela, pois o eclodir de uma sublevação interna com razoável significado, pode ser rastilho para os países limítrofes e também para os da SADCC, de que Angola é membro fundador.
Não deixa de ser paradoxal que quarenta anos depois do assassinato de Luther King, da repressão violenta aos negros nos Estados Unidos, que apenas lutavam por melhores condições de trabalho e direitos cívicos iguais aos dos brancos em todos os estados, surja em África uma questão xenófoba, num país, que há pouco menos de vinte anos, era o berço puro e duro do torpe racismo étnico no mundo.
Já se adiantaram pormenores múltiplos sobre as razões desta xenofobia, que se espera ver contida de imediato, embora ela tenha sempre como motivação primordial, o da economia que não consegue gerar emprego para todos.
Para além das circunstâncias já aduzidas por tanta gente, a convicção que paira é que a África do Sul, pouco mudou para a grande maioria da população com a subida do ANC ao poder.
As expectativas na mudança por parte da maioria sul-africana, não se cingiam apenas ao facto de começarem a haver autocarros, escolas e hospitais mistos, ou um governo maioritariamente sufragado pelos cidadãos dentro do princípio reitor da democracia um cidadão, um voto. Embora isso tenha sido apreciavelmente positivo, num território onde tudo funcionava fora do contexto normal da história no ocaso do século XX, chegou provavelmente a altura de começar a ter de se criarem regras para uma distribuição mais equitativa da riqueza.
Mandela, a quem provavelmente já não se podia exigir muito mais quando ascendeu ao poder, fez a transição pacífica num país, onde era expectante um banho de sangue por feridas de muitos anos de segregação inerente ao apartheid. Convenhamos que foi relevante devolver à África do Sul a respeitabilidade no seio das nações. Foi decisivo, mas o sistema económico não se alterou, e alguns históricos que o acompanharam na luta, na prisão ou no exterior estão velhos ou foram falecendo entretanto.
Do ANC que não esteve na cadeia, mas que esteve no exílio em Angola, Moçambique, Zimbabué, e noutros locais, emergiu uma elite de dirigentes, e também alguns que se “reformaram” da luta, e entraram nos negócios, sendo hoje as estrelas do “empreendorismo” e do novo riquismo sul-africano, esquecendo que as diferenças entre a concepção de Azania e África do Sul ainda não estão resolvidas, assim como quase todas as outras, porque nada disso se resolve por decreto!
Mbeki, foi um quase presidente estátua, pois foi vendo a situação a alterar-se internamente, e até mesmo em locais que a África do Sul tem responsabilidades objectivas, como é o caso do Zimbabué e nada fez, aparecendo sempre titubeante e com propostas pouco esclarecedoras e acima de tudo sem força acrescida, algo que as circunstancias exigem a um presidente que sabia que não devia deixar tudo como estava.
Houve um tímido crescimento de alguns novos empresários, mas a sensação que vai existindo é que está tudo na mesma, e era desejável, se ainda não for tarde, que se faça uma redistribuição de riqueza, que não aliene de forma aventureirista os fundamentos económicos, e naturalmente a dinâmica produtiva do País.
A xenofobia é facilmente explorada em momentos de pobreza, mas não deixa de ser cruel que sejam os moçambicanos e os zimbabueanos a serem as maiores vítimas do desmando e da violência que vimos irromper nos últimos tempos; Se havia povos que mereceriam a gratidão da quase generalidade dos sul-africanos, são precisamente os povos dos ex – Países da Linha da Frente, que foram os mais sacrificados na longa luta pela liberdade, contra o apartheid.
Este movimento não é isolado, e observa-se que a África do Sul obsta sistematicamente à tentativa de construir um mercado comum da África Austral, o que indicia que se herdaram tiques, que teria sido excelente que tivessem sido erradicados em tempo útil, para se evitarem o avolumar de desconfianças em todos os lados, e surgirem situações internas incontroláveis com o efeito bola de neve em todas as economias e com consequências graves quotidianos de vida das populações dos países à volta.
Há uma enorme esperança em Jacob Zuma por parte da grande maioria sul-africana, principalmente e recorrendo a um termo peronista, os “descamisados”. Teme-se que o evoluir da situação talvez não dê para muita espera, e a realidade que se começa a viver é preocupante, principalmente quando os primeiros visados são as populações mais vulneráveis e curiosamente os vizinhos próximos, que guardarão sempre sentimentos confusos e desencontrados.
O que se passa na África do Sul, pode ter as razões do que se passa no Kozovo, no Ruanda, e em tanto lugar, por isso não se deve olhar apenas com comiseração, mas acima de tudo com a necessidade óbvia de se prepararem cenários, para eventuais dias que se esperam sombrios, reafirmando que a culpa vai inteirinha para um ANC que se deslumbrou com o poder, e esqueceu-se do muito que lutou e fundamentalmente dos muitos que com ele lutaram e que muito sofreram, como foi por exemplo o caso do nosso País.

Fernando Pereira
4/06/08


Publicado no suplemento da economia do Novo Jornal em 13/06/08
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