28 de agosto de 2015
FECHOU A LELLO / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 28-8-2015
Fiquei perplexo, quando li a notícia do recente encerramento definitivo da livraria Lello de Luanda. Era uma situação expectável porque os “mujimbos” eram mais que muitos, sobre o encerramento de uma das mais emblemáticas lojas da nossa cidade capital.
Por causa do capital na cidade, é que há muito o “Palácio da Palmeira” estava na mira dos que se vão encarregando de aumentar a bolha imobiliária, e quando rebentar serão os angolanos a pagar por estes desmandos de grande calibre!
Um dos edifícios mais nobres da baixa luandense, o seu nome refere-se à característica palmeira estilizada na grade que protege as escadas, do edifício na praça Rainha N’ZINGA, em frente, à outrora mais majestática Sonangol. Há muito que se sabia que era um espaço cobiçado, como é qualquer canteiro em determinada zona da cidade, mas os anos foram passando e lá se ia mantendo com o ar vetusto, a lembrar tempos do antanho em que o popular e Angola se confundiam num quotidiano político, que deixa saudades a muitos de nós.
Foi adquirido por uma daquelas sociedades que compram coisas, que não se sabem a quem pertence e quando aparece alguém a colocar nomes dos societários é uma inquietação a todo o tamanho para muita gente. Compraram o edifício para o deitar abaixo, é um dado mais que adquirido, e já estou a ver os olhos raiados de cifrões de alguns, a verem surgir mais um megatério, de uma sordidez visual e conceptual que nada tem a ver com uma urbe, com cada vez menos pessoas e com cada vez um maior número de habitantes.
Não vou voltar ao estafado tema da degradação continuada que estão a fazer ao coração da cidade, o que me deixa muito triste, mas neste momento o que interessa é mesmo é o encerramento da Lello.
A Lello já lá estava há umas décadas quando eu vim ao mundo há sessenta anos, na Casa de Saúde de Luanda (Augusto Ngangula). Curiosamente o primeiro livro que recebi foi lá comprado, conforme a minha mãe anotou num “livro do bebé”, algo habitual nos nascimentos desse tempo no seio da burguesia colonial!
Na Lello foram-me comprando livros infantis, de colorir, de pano, escolares e tantos outros que me aborreciam um pouco no desafio continuado por parte dos meus vizinhos para as brincadeiras de rua.
Apesar de muitas vezes desejar que não optassem por livros nas datas em que era habitual dar prendas, a verdade é que gostava muito de os ir lendo, e lembro-me de ter lido toda a coleção do Tintin em francês, o Ben-Hur, o Marco Polo, o Simbad, os irmãos Grimm, Charles Perrot, Hans Cristian Anderson, a Enid Blyon com os famosos “Cinco”, o Nodi e os “Sete”, enfim “varri” tudo e a Lello era um dos maiores “filões” na pachorrenta e algo provinciana Luanda colonial, de um tempo em que o ar condicionado era para uns poucos e que o calor se mantinha dia e noite.
Durante os anos 50 e 60 Luanda tinha para além da Lello, a “Lusitana”, acima do hotel Globo, a “Minerva”, hoje em ruinas, a ABC, quase em frente ao “esqueleto” do que foi em tempos o garboso edifício da Biker, e a Mondego, mais conhecida pela “Argente Santos”, que hoje encolheu o mais possível para passar a ser um bar, em frente ao Chá de Caxinde. É da mais elementar justiça falar da “Livraria Popular” de José Marques da Cunha, numa loja pequenina na ex-“Av. dos Restauradores de Angola”, e que foi durante muito tempo o único alfarrabista de Angola. No meio de um amontoado de livros saia sempre qualquer coisa que o Senhor Cunha convencia o meu pai a comprar, por “dez reis de mel coado” , como diria o mestre Aquilino Ribeiro. O Senhor Cunha desapareceu e a sua livraria fechou há muitas décadas, mas cada vez que por ali passo olho para aquele lugar com a saudade de” um homem muito bom, mas que tinha tido pouca sorte na vida”, como ouvia dizer em Luanda nos meus tempos de descuidada meninice.
Mas a Lello era o sítio! Era lá que me compravam os meus livros da escola primária e no “Salvador Correia”. Foi da papelaria que os meus pais levaram os estojos de desenho Kern e a Pelikan, que era uma caneta de tinta permanente, um pouco uma Montblanc de remediados. Comprava-se a tinta-da-china, os godés, as aguarelas e o papel cavalinho; Tudo material que invariavelmente ia parar aos calções, pernas e camisa porque fui um verdadeiro desastre em desenho.
Continuava a comprar na Lello, os dicionários, as enciclopédias juvenis e livros de todo o tipo, pois fui-me tornando um leitor compulsivo, chegando a alternar entre o David Copperfield do Dickens e as fotonovelas interiores da “Crónica Feminina”!
A partir de determinada altura, começo a partilhar na Lello a amizade com o pai de um colega de Liceu, que era uma pessoa notável, e que muitos em Angola maltrataram, o mais velho Felisberto Lemos.
Quando fui estudar para Coimbra no dealbar dos anos 70 despedi-me do Felisberto oferece-me um livro do Dr. Videira, “Angola”, com desenhos de Neves e Sousa, editado pela Lello, que também era editora e reproduzia excelentes postais de artistas angolanos.
O Felisberto Lemos, o “Livreiro da Esperança” como lhe chamou Manuel Alegre, foi uma referência importante no combate à ditadura e ao colonialismo português, já que foi “desterrado” para Angola, e tantos lhe agradeceram o muito que fez por todos os muitos que chegavam a Luanda, e iam ter com o Felisberto para terem acesso a livros e a prepararem conspirações. Melo Antunes, Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos, Bessa Murias, e tantos outros deixaram o seu testemunho reconhecido a um homem de quem nunca ouvi um queixume pela forma “cobarde” como foi tratado, tendo regressado a Portugal pobre, e valendo-se da ajuda de amigos que não o esqueceram, mas que nunca lhe conseguiram mitigar a tristeza. Morreu amargurado e com muitas dificuldades económicas, esquecido por muitos, a quem deu guarida e matou a fome, e que em determinada altura foi acusado de deslealdade e “traição” porque entre vários livros na montra da Lello tinha o livro do Nito Alves em exposição e para venda.
Outra figura da Lello foi o poeta Ricardo Manuel, autor de vários livros de poesia, e que nos anos 80 foi galardoado com um prémio literário na Coreia do Norte, num concurso onde foi o mais encomiasta relativo a Kim-Il Sung e à doutrina Juche. Foi receber o prémio a Pyongyang, e durante meses a fio o “Grande Líder” teve direito a uma foto gigante, numa montra toda decorada com cetim e cheia de livros coreanos traduzidos para português e espanhol, sobre as ideias centrais de uma deriva marxista-leninista algo bizarra.
Na Lello, ao fim da tarde, reuniam-se no fim dos anos 70 e durante a década de 80 um conjunto de pessoas de gerações diferentes, que constituiu uma das tertúlias mais interessantes da Luanda solidária que se vivia. Os irmãos Guerra Marques, Osvaldo Pinto, Galeano, Chaves, o velho Lello, Antero de Abreu, Dionísio Rocha e outros onde me incluía, juntavam-se ali o fim de tarde numa amena e salutar cavaqueira, em que quase todos tínhamos uma visão diferente das coisas e pasme-se soluções para elas, o que não deixava de ser algo pueril entre pessoas, a maioria ao tempo ao tempo já com 50 anos ou mais.
Foi na Lello que comprei Jorge de Sena, Garcia Marques, Hemingway, Camilo José Cela, Maria Teresa Horta, Carlos Malheiro Dias, Castro Soromenho, Albert Camus, Alvin Toffler, Frantz Fannon, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e tantos que me enriqueceram para a minha afirmação de cidadão solidário e politicamente interventivo.
Quando vejo fechar a Lello, vejo encerrar algo que fazia parte do coletivo da cultura de um País, que tem cada vez menos livrarias e se conformou com os esforços de bem-sucedidas campanhas de alfabetização, de um tempo em que o homem não era mercadoria, nem número de mercado.
A iliteracia prevalecente vai aumentando e o resultado terá consequências perniciosas na vida quotidiana dos angolanos. A cidade empobreceu e de que maneira com o encerramento da Lello.
Limito-me a agradecer os sessenta anos em que fui convivendo com ela.
“Sic transit gloria mundi”
Fernando Pereira 26/8/2015
22 de agosto de 2015
Liberdade, do seu uso e do seu abuso! / Ágora / Novo Jornal / Luanda 21-8-2015
Comunicar começa por ser um imperativo de todo o animal. Ele não poderia manter a comunicação da espécie sem comunicar. A comunicação é pois uma necessidade inilidível das espécies.
Tal conceito, porém, aponta-nos (se me é permitido dizer assim desta maneira) para uma comunicação não livre. O animal comunica na estrita obediência de funções irrecusáveis, próprias da sua natureza. O animal neste sentido não é livre.
Mas contrário é aquilo que acontece com o Homem, um ser ao qual já definiram muitas vezes, desde o sisudo ponto de vista filosófico, até ao mais simples ramo humorístico.
Beau Marchais, por exemplo, teve esta expressão feliz:” o Homem difere dos animais porque bebe sem ter sede e ama em todas as estações do ano”. Menos prosaico, menos material, para Anatole France, “aquilo que distingue o Homem dos outros seres vivos é a mentira. O que tudo quer dizer é que os homens fazem mais coisas do que só as necessárias para a conservação da sua espécie”.
Entre elas, como veículo de mentir, de ficcionar, e numa de otimismo, também de dizer a verdade, o Homem tem capacidade para comunicar, com outros através de mensagens para lá do seu gesto transitório e da sua voz extinguível.
Se é que ele realiza Imprensa, ou como é habitual dizer-se comummente hoje: Comunicação Social. Importa relembrar que durante anos o termo “meios de difusão massiva” entravam num léxico que em certos aspetos era portador de tempos de maior esperança e menos conformismo!
Tudo se reduz ao estafado clichê do B A BA do aprendiz de filósofo: “O Homem é um animal social”. A verdade é que tal reconhecimento implica outro: o da necessidade de uma intercomunicação coletiva humana, consequentemente uma comunicação social.
Hegel foi o primeiro que logrou expor de modo exato as relações entre liberdade e a necessidade, salientado por Engels num determinado passo do “Anti-Düring”!
A liberdade não representa outra coisa senão o reconhecimento da necessidade. Desde o cavernícola temeroso da trovoada (Uma ira dos Deuses), até ao cientista do nosso tempo, o homem foi sendo tanto e tanto mais livre quanto progressivamente foi conhecendo e dominando a realidade objetiva.
A liberdade é, pois, uma tomada de consciência por parte do homem. È uma conquista progressiva, constante. È um rasgar no sentido de um cada vez maior horizonte.
A liberdade constrói-a o próprio homem; A liberdade não é um direito que a lei, mesmo a Constituição, conceda ou atribua ao cidadão.
Quando nos é proposto refletir acerca da liberdade de imprensa, logo nos ocorre que a noção mais evidente, aquela que afinal, mais se nos impõe é, no âmbito dos factos a da não liberdade de imprensa.
Na realidade, quando enfrentamos o problema da comunicação social segundo um prisma geográfico e utilizando noções não muito rigorosas como sejam as de liberdade ou censura, tão sujeitas a gradações, facilmente somos obrigadas a reconhecer que as áreas de não - liberdade constituem a mancha maior.
Temos um cada vez maior pouco por todo o lado em todo o mundo, regimes de censura oficial, externa aos órgãos de comunicação social.
Um dos primados da liberdade de imprensa está enunciado na Declaração de 1789,”Declaração dos direitos do Homem e do cidadão” no seu artigo 11ª diz: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.”
Liebling em 1961, referindo-se à situação da imprensa nos Estados Unidos dizia:” Temos hoje uma imprensa livre. Quem quer que disponha de dez milhões de dólares tem a liberdade de comprar ou fundar um jornal numa grande cidade como Nova Iorque ou Chicago”.
Há evidentemente, formas grosseiras de censura, outras que o são menos, outras que variam no grau de subtileza com que se exercem. Se nos países de regimes políticos concentracionários existe declarada censura, também nas democracias que erigem a liberdade de imprensa como um dogma, a liberdade está cada vez mais longe de ser total.
Nos primeiros o sistema, como entidade coletiva, rígida, burocrática, invoca como lídimo direito de se defender e cria os mecanismos que lhe asseguram o domínio direto ou indireto dos meios de comunicação, os segundos criam do mesmo modo mecanismos de autodefesa, embora não burocrática e difusa.
Num e noutro caso a liberdade é, desde logo e grosso modo, condicionada pelo estatuto de propriedade dos meios de comunicação, geralmente restrita aos poderosos, sejam eles o Estado ou o capital. Em qualquer dos casos, o jornalista se está no essencial, consciente ou inconscientemente, de acordo com o sistema que o integra e condiciona pode ir e não há verdadeiramente motivo para que não se sinta livre. Pode sentir-se livre, mas é-o realmente?
Num e noutro caso, numa ou noutra modalidade, o jornalista coim veleidades de independente(???) que se interrogue acerca da sua inserção na profissão ou mesmo numa sistema vai refletindo criticamente como se posiciona e como se colocam os seus colegas.
Os riscos que um jornalista desacomodado enfrenta são mais que muitos, em todo o lado, mas o caminho é aliciante, evitando sempre que nos atirem para a marginalidade. A rejeição centrífuga dos marginais é da natureza dos sistemas.
O que importa muitas vezes ao jornalista importa riscos. Há quem pense, mesmo na incomodidade, que vale a pena correr riscos, a fim de poder transmitir aos vindouros a imprescritível ideia de liberdade.
Desculparão este ensaio, mas como se aproxima o Congresso dos Jornalistos Angolanos (Julgo que em Setembro) estas reflexões talvez possam não cair de todo em saco roto!
Fernando Pereira
15/8/2015
14 de agosto de 2015
“O SENHOR LUBITO”/ o Chá / Luanda / Maio Junho de 2015
Já há muito que acho que era indispensável fazer-se um inventário do que vulgarmente se chamou “a geração africana” , denominação dada a arquitetos portugueses que por perseguição política ou por divergências conceptuais em relação ao status quo instalado na arquitetura portuguesa estadonovista tiveram que procurar trabalho nas então províncias ultramarinas africanas.
O falecimento de Francisco Castro Rodrigues (1920-2015) ocorrido recentemente é uma oportunidade de se falar de um grupo de arquitetos que trabalharam e inovaram o conceito de cidade em Angola, entre os anos 30 e a primeira metade da década de 70.
Fala-se porque esta plêiade de gente valorosa recusa participar na intervenção gradual da definição ideológica de uma estética nacionalista que sirva o salazarismo. A partir de 1945 a oposição do movimento moderno de arquitetos, consegue combater o “português suave” e alcandora-se para novos e arrojados conceitos, que merecem a crítica dos poderes instalados ao nível central e local. Nota: Em Angola, os mais emblemáticos edifícios do estilo “Português Suave” é o Liceu Salvador Correia (Mutu-ya-Kewela), o edifício sede do Banco Nacional de Angola, delegações do banco espalhadas pelo território e alguns palácios de governo provinciais.
Realiza-se em Lisboa “Congresso Nacional de Arquitetura” em 1948, reunião magna onde se sente emergir uma nova geração e em paralelo uma vontade coletiva de mudança, de recusa consciente e teoricamente alicerçada da arquitetura do Estado Novo. É um “momento de viragem na reconquista da liberdade de expressão dos arquitetos” como refere Nuno Teotónio Pereira, oposicionista e preso político do Salazarismo.
A arquitetura que se propunha a partir de então, seguia de perto os ideais expressos na Carta de Atenas, documento internacional que, escrito ainda nos anos 30 com o apoio de Le Corbusier, tinha conceptualizado e enumerado o programa de renovação mundial da linguagem arquitetónica: os grandes blocos em altura, de habitação coletiva, assentes em pilotis, com sistemas mecânicos de transportes e infraestruturas orientadas corretamente em relação ao Sol (e controlando a sua incidência através de brise-soleils móveis), arejados, alternando com espaços verdes servidos por circuitos pedonais. Importa referir como nota que foi Francisco Castro Rodrigues e sua mulher Lurdes Rodrigues que traduziram integralmente para português a Carta de Atenas, documento de trabalho para o “Congresso Nacional de Arquitetura”.
Este “estilo internacional” tinha influencia direta das obras sul- americanas (onde os pioneiros como Le Corbusier tinham deixado sementes), cheias de vitalidade que faltava ao emperrado contexto europeu do pós-guerra.
O que objetivamente interessa é discutir a influência desta gente numa dinâmica inovadora de transformação das cidades e simultaneamente propostas que entravam em choque com as dos arquitetos do regime a quem eram encomendados a esmagadora maioria dos projetos.
Francisco Castro Rodrigues, vive continuadamente no Lobito (Lubito, como sempre escreveu) entre 1953 e 1988, será sempre o “Senhor Lubito”,como carinhosamente lhe chamava nas conversas que íamos mantendo nestes últimos anos.
A cidade tem o seu “ferrete” nas Portas do Mar, no edifício Universal, na Colina da Saudade, na Casa do Sol, no Liceu Saydi Mingas, no Cine Flamingo, nas atuais instalações do Instituto Lusíada adaptadas no silo-auto da Casa Americana, na reconversão do Tamariz, no Mercado Municipal, na urbanização do Alto Liro, na Bela Vista, no obelisco, no edifício da aerogare e num conjunto muito variado de vivendas e prédios um pouco por toda a cidade. Fora do Lobito projetou os Paços do Concelho do Sumbe, um edifício que foi depois adulterado, bem como os de Luena e Ganda. São seus trabalhos no Sumbe o liceu , o palácio da justiça e a magnífica catedral (um pouco a recordar Frank Lloyd Wright), de onde terá sido plagiada a catedral de Benguela.
Criou o Museu do Lobito na casa que foi da madame Berman (uma alemã com poderosos interesses no minério e na agricultura de Angola), onde os soviéticos queriam a todo o custo instalar o consulado recuando perante um obstinado FCR com o apoio do Comissário Ramos da Cruz.
Francisco Castro Rodrigues pela participação, decisiva e simultânea, nos planos municipais, urbanístico, infraestrutural e arquitetónico tornou-se num verdadeiro “fazedor da cidade moderna” em relação ao Lobito.
Logo no início em 1953 entendeu de modo dinâmico a velha aspiração do Lobito, a de passar da “cidade do mangal”, insalubre e litorânea para a mais ampla e expansiva “cidade do morro”, com uma dimensão moderna.
Percebeu que a cidade era mais que um espaço de casas, atividade económica ou local de recreio. Era sobretudo um espaço de crescimento dinâmico onde se iam absorvendo realidades importadas de sociedades diferentes e com contornos de estigmatização rácica visível em cada um dos seus movimentos sociais e laborais.
Castro Rodrigues entendeu globalmente o sistema urbano em presença, com toda a complexidade das suas novas e crescentes funções. Foi o autor único que evoluiu na feitura de uma cidade luso-africana, com a visão e a possibilidade prática “ de controlar (pelo menos em parte) a sua dimensão e qualidade-em termos de planeamento/expansão, de sistema de zonamento funcional, de desenho urbano e de mobiliário, de espaços verdes e da sua arquitetura- e esta em projetos e obras para equipamentos, para publicação de classe média e de tipo «social» ”.
Conseguiu modificar o primeiro plano diretor de 1944 e essa alteração profunda serviu como guião à expansão de determinadas áreas da cidade. Não conseguiu, nas suas múltiplas batalhas ultrapassar os “direitos adquiridos” pelo poderoso Caminho de Ferro de Benguela que continua a dividir a cidade ao meio. Uma das suas batalhas perdidas, que faria infletir as linhas do CFB para os arredores da urbe, praticamente na saída do porto mineiro.
Numa das últimas conversas que tivemos mostrou-se muito triste por terem autorizado a refinaria no Lobito, uma das guerras que as gentes do Lobito tinham ganho às autoridades portuguesas quando tentaram instalá-la nos anos sessenta!
Para além da sua faceta de arquiteto, Francisco Castro Rodrigues casado com a atriz Lurdes Rodrigues, foi militante do PCP até 1949, preso no Aljube em 1941, participante no MUD, mandatário no Lobito das candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado (o general ganhou com 83,5% dos votos expressos) manteve sempre uma empenhada atividade politica progressista e depois da independência de Angola um promotor cultural com muito trabalho feito.
Foi fundador e dinamizador do Cine Clube do Lobito, de Oficinas de teatro, a que não será alheio o facto de sua mulher ter sido atriz profissional em Portugal e também o representante da Sociedade Cultural de Angola na cidade do Lobito.
Produziu alguma imprensa e apesar de lhe ter perguntado diretamente se fez parte da maçonaria, respondeu-me sempre com o evasivo: “eram bons rapazes”!
Sugiro que leiam, se conseguirem encontrar, o livro “Um cesto de cerejas”, um livro editado pela Fundação Mário Dionísio - Casa da Achada que é afinal uma descrição bem-humorada e muito catalogada do que foram os seus trinta e quatro anos de ligação a um “Lubito” que terá levado consigo.
O livro é uma conversa escorreita com a Drª Eduarda Dionísio, filha do meu professor Mário Dionísio, um dos grandes do neorrealismo, corrente que marcou a literatura portuguesa do fim dos anos trinta a meados dos anos sessenta. FCR foi um grande dinamizador da instalação do Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, tendo sido um dos coautores do projeto do edifício e a quem doou uma parte significativa do seu formidável espólio.
Perguntei-lhe se o título “um cesto de cerejas” tinha alguma coisa a ver com a canção emblemática da Comuna de Paris (1871)“O tempo das cerejas”, respondendo que havia esse conceito politico subjacente embora a escolha primordial foi porque a conversa no livro fluía como as cerejas.
Penso que era capaz de ser interessante que no Comissariado Municipal do Lobito se instalasse um pequeno “museu” com o acervo de FCR ,que por lá andará perdido e provavelmente mal conservado! Francisco Castro Rodrigues já foi homenageado pelo Município do Lobito aquando do centenário da cidade, e as autoridades locais não o esqueceram tributando-o com inúmeras provas de carinho que muito o sensibilizaram. Acho que inseri-lo na toponímia da cidade era da mais elementar justiça, pois foi um homem que “colocou pedras nos alicerces do mundo”, neste caso no seu “Lubito”!
Obrigado Francisco Castro Rodrigues, o “Senhor Lubito”.
Fernando Pereira
5/5/2015
FOFOCAGRAFIA POLITICA / Ágora /Novo Jornal / Luanda 14-8-2015
“Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas"
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de matemática, com pouco sucesso diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luis Cília, quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neo-realismo, portador de palavras que eram de sonho, afecto e luta simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático na vetusta Universidade de Coimbra, que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Todos os estudantes das colónias portugueses que passaram por Coimbra nesses “sombrios tempos” tiveram em Joaquim Namorado um amigo, e alguém com quem podiam partilhar as desventuras do tempo vivido. Como um dos fundadores do neorrealismo, influenciou alguns escritores de uma geração mais nova, onde incluo Manuel Rui Monteiro, então um jovem cheio de sonhos que vem do Lubango para uma Coimbra de mentalidade sórdida e “rigorosamente vigiada”!
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que pela relevância do seu percurso cultural na revista Vértice, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos oitenta um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até muitos dos premiados.
Foi meu médico da “garganta”, o Dr. Adolfo Rocha, pessoa de imagem austera e muito parco em palavras, mas que construiu uma obra de uma dimensão literária notável, Miguel Torga, pseudónimo surgido numa homenagem a dois vultos das letras espanholas que muito admirava, Miguel Unamuno e Miguel Cervantes, associando torga, uma pequena erva perene do seu Traz os Montes natal.
Cumprimentávamo-nos quando nos encontrávamos, de forma distante, e quando uma vez lhe disse que tinha comprado “Os bichos”, e que gostaria de ler outros livros seus, na esperança de ser presenteado com algum, ele no seu jeito curto e grosso diz-me: ”Tenho muitos e bons, pode comprá-los na Bertrand, estão lá todos”.
Miguel Torga era conhecido por cultivar muito pouco a sua aparência e víamo-lo demasiadas vezes descuidado, tendo em consideração o seu estatuto enquanto escritor lido em muitos países e traduzido nalgumas línguas. São curiosas as histórias de que Miguel Torga era forreta, que não dava autógrafos e que editava os seus livros para poder controlar todo o processo de edição.
Um dia, Miguel Torga foi surpreendido pelo chefe da estação Velha (em Coimbra há duas estações) subindo para uma carruagem de terceira classe. Julgando que se tratava de um equívoco, aproximou-se do escritor e observou:- V. Exª. vai em terceira classe? Torga, num sorriso:- Porquê? Há quarta?
Uma de muitas histórias de um homem que foi perseguido pela PIDE, que assinou manifestos para a libertação de presos políticos e nos seus diários deixa bem clara a sua posição anticolonial, e a sua oposição à guerra nas colónias.
Nunca foi muito pródigo em elogios para com os políticos que emergiram no fim dos anos 70, apesar de ter sido um antissalazarista assumido, sentindo na carne o ostracismo do Estado Novo, e foi-se distanciando cada vez mais das pessoas, até à sua morte ocorrida em Coimbra em 1995.
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a máquina do Estado é a falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente, é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, “um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal” . É isso!
Contudo não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltou a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando vou vendo o que acontece em sessões de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, disse: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
10/8/2015
Vamos brincar à liberdadezinha! / O Interior / Guarda 13-8-2015
Vamos brincar à liberdadezinha!
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.
Fernando Pereira
8/08/2015
Judeus em Angola / Ágora / Novo Jornal / Luanda 7-8-2015
Amiúde, ouve-se falar da vontade de António Salazar em instalar em Angola uma colónia de judeus, expulsos da Europa, na sequência da onda de antissemitismo que precedeu a segunda-guerra mundial.
Uma perfeita estultice esta afirmação repisada ao longo dos tempos. Eu ouvia-a frequentemente nos serões de minha casa, onde os meus pais e alguns amigos discutiam estes assuntos, e durante anos eu próprio ia defendendo esta inverdade.
A primeira ideia “consistente” de colonização judaica em Angola surgiu em 1915 pelo judeu russo Walter Terlo, apresentada no Almanaque Israelita, estabelecia a fixação no “Planalto de Angola”, mais propriamente em Benguela. Esta proposta teria surgido do republicano José Relvas no dealbar da Republica em Portugal em 1910, por proposta de emissários da Jewish Territorial Organization (JTO).
Este projeto era concebido pela JTO, que sondou parlamentares portugueses no sentido de instalar uma colónia judaica em Angola. Esta ideia já vinha de 1903, na sequência do pogrom contra os judeus ocorrido em Kishinev, na Rússia, em que se colocava como alternativa de refúgio o Uganda ou Angola.
Houve propostas concretas no parlamento português e só a instabilidade política dos anos da 1ª republica em Portugal impediram a aprovação dessa instalação pelas duas camaras, que concedia a naturalização e punha à disposição de cada judeu , que se apresentasse, 250 hectares de terreno cultivado.
Em 1917 o processo é abandonado e retomado em 1930, já no período de vigência da ditadura em Portugal. A 7 de Janeiro de 1934 o jornal britânico Daily Herald faz referência a uma pretensa autorização dada pelo governo português, à emigração de um número limitado de judeus para a colónia. O artigo, reproduzido no “Século”, que acabou por ser censurado pelo regime, noticiava ainda que Portugal não tinha “capacidade para colonizar a região” e que, por outro lado, não se adequando “os seus meios agrícolas obsoletos” às “necessidades de uma economia agrícola mecanizada”, esta deveria ser “instalada na colónia”.
O putativo artigo do “Século”, acrescentava que o governo estava disposto a assistir-lhes com empréstimos a fim de lhes permitir que se dedicassem a trabalhos agrícolas e outras indústrias, na condição de se naturalizarem portugueses e cumprirem serviço militar nas Forças Armadas Portuguesas.
Em Londres, o embaixador português recebia insistentes pedidos de judeus alemães para a instalação de uma colónia de judeus em Angola, lembrando que em 1912 o Parlamento Português tinha aprovado essa fixação, ao que o MNE português lembrava que para aprovar essa legislação ao tempo era necessária a aprovação das duas camaras, algo que não sucedeu, não passando pois de um projeto lei.
O então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal Macelo Mathias, ia colocando alguma contenção no entusiasmo do embaixador em Londres relativamente ao assunto, pois Salazar e o seu regime viam com muitas reservas a presença de grupos de estrangeiros organizados nas colónias, mesmo com as promessas de avultados fundos por parte de Fritz Seidler e Ernest Meyer, representantes da JTO.
Como era hábito na diplomacia portuguesa ao tempo, prolongava-se o “nim” até onde fosse possível, e só já no fim de 1934 é que saiu uma circular para os consulados de Portugal a impedir que fossem “visados passaportes de cidadãos estrangeiros que quisessem exercer atividades económicas em Angola”. Objectivamente era para impedir qualquer veleidade por parte de grupos de judeus.
O argumento usado pelo governo da ditadura para recusar a criação de um colonato judeu em Angola, foi um argumento do medo de abrir um “problema semita”, com a entrada em Portugal de judeus, “cuja tendência nómada e diferenciação rácica e religiosa os tornam praticamente inassimiláveis”. Marcelo Mathias, MNE ao tempo, atribuía aos judeus “certo caracter comunista” que os tornara “suspeitos à maioria dos estados capitalistas”.
Era necessário ter em consideração a matriz ideológica da Constituição de 1933 e simultaneamente a componente religiosa subjacente à Concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé, que incluía o Estatuto Missionário, para justificar as reservas mantidas por Salazar em relação a qualquer hipotética instalação de colonatos de judeus em Angola. Nunca terá visto com bons olhos esta remota hipótese, e só a sua diplomacia de contemporizar terá permitido alimentar ilusões a alguns, que nunca terão passado disso mesmo.
A presença da figura discreta, mas de uma influência impar na diplomacia portuguesa nas décadas de 30 e 40 de Luis Teixeira de Sampaio, um germanófilo assumido, que contribuiu decisivamente para cortar cerce algumas tentativas deste tipo por parte de Armindo Monteiro, por exemplo, ministro das colónias (1931-1935), ministro dos Negócios Estrangeiros (1935-1936) e embaixador de Portugal em Londres (1937-1943), ao tempo figura de primeiro plano na constelação salazarista.
Julgo ter contribuído para repor alguma verdade sobre um tema que tem trazido múltiplas discussões e afirmações perentoriamente erradas ao longo de décadas, mas que face aos documentos que entretanto estão disponíveis, tudo que coloquei está muito próximo dos factos ocorridos. Perante a teimosia dos factos nada a fazer!
Em breve tentarei fazer um artigo sobre a espionagem alemã na segunda guerra mundial em Angola, para se acabar também com algumas suposições!
Fernando Pereira
3/8/2015
1 de agosto de 2015
O Fantasma da Liberdade / Ágora -Novo Jornal - Luanda 31/ 7/2015
O Fantasma da Liberdade.
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós, angolanos, talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.
Fico-me nas divagações com o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen no seu “Livro Sexto”:
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
Ou como diria José Gomes Ferreira: Liberdade, muro transparente de cada um!
Fernando Pereira
27/7/2015
24 de julho de 2015
Ouçam o que se diz na rua / Ágora / Novo Jornal / Luanda 23-7-2015
Ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e deixem-me continuar a sonhar que o MPLA ainda tem os seus princípios e pode ver restituída aos angolanos alguma da sua dignidade perdida ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e façam investimentos no sector produtivo em vez de esbanjarem fortunas em bens de luxo ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua hão-de vir para a rua ouvir ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua quando vierem para a rua ouvir o que se disse na rua já ninguém quer saber de vós para nada ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua a porta da rua é a serventia da casa ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua farto de ouvir falar de coisas que infestam a rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua perco a paciência com muitos que andam na rua para tentarem por na rua outros por quem não tenho paciência nenhuma de os lá ver e estou morto por vê-los na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua faço anos em Maio podem dar-me uma prenda mesmo que estejam para ir para a rua ou fiquem lá porque os não puseram na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não coloquem na prisão meia dúzia de miúdos a quem acabam por conseguir ter maior publicidade que alguma vez suporiam ter ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a recolher o lixo em Luanda ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e resolvam definitivamente o problema da luz e do transito na cidade capital ouçam o que se diz na rua diz-se que um País com tanto dinheiro devia ter um dos melhores sistemas de saúde de África e uma vacinação alargada a toda a população infantil ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a premiar o mérito das pessoas ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que há falta de liberdade de expressão e uma justiça lenta e parcial ouçam o que se diz na rua e não tentem esconder as dificuldades como tem feito na Sonangol ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua numa altura que precisamos de uma política que privilegie o cidadão nacional numa mobilização de recursos para a construção de uma sempre adiada sociedade nova ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não façam uma lei laboral que quase recua aos tempos do Código de Trabalho Indígena ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que ando esbaforido de tanto dizer mal de tanta coisa e tudo permanecendo piorando ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e vão pensando que a eternização no poder não é bom conselheiro em lado nenhum ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que não temos nada que andar a pedinchar o que quer que seja que está à partida consignado na legislação ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua deixem-me ver televisão à vontade sem ouvir os tudólogos apoliptólogos politólogos achólogos e alem de tudo isso os tipos que discursam para os que falei falarem deles ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politiqueiros são flatulência da politica ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politica nada tem a ver com politiqueiros comissários e serventuários do sistema ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua PORQUE QUALQUER DIA ESTÂO TODOS NO OLHO DA RUA A OUVIREM O QUE SE DISSE NA RUA PORQUE NÂO QUISERAM OUVIR O QUE SE DIZIA NA RUA.
Este pequeno texto é um devaneio da “Guidinha” do injustamente esquecido Luis Sttau Monteiro, que ao tempo escrevia na “Mosca” do Diário de Lisboa e posteriormente no “Jornal” .
Fernando Pereira
21-07-2015
18 de julho de 2015
A verdade é a única realidade / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 17-7-2015
Saiu recentemente o livro “Guerra e Paz, Portugal/Angola (1961-1974)" escrito pelo vice-cônsul da África do Sul em Luanda, de 1970 a 1973, W. S. van der Waals, editado pela “Casa das Letras”.
Tive alguma curiosidade em lê-lo, por razões evidentes. O autor foi protagonista num período de relações próximas entre o aparelho militar do “apartheid” e as autoridades militares coloniais em Angola. Era um militar colocado num lugar normalmente ocupado por um civil, e com ligações aos serviços de informação militar da África do Sul, o que não deixa de ser uma exceção, mesmo em contextos pouco vulgares. Como recentemente se abriram os arquivos da SADF (Forças Armadas Sul Africanas), havia naturais expectativas de que este trabalho pudesse trazer mais alguns contributos para um conhecimento maior do estertor do período colonial.
O livro revelou-se uma verdadeira deceção, não apenas pelas vulgaridades que enchem perto de quinhentas páginas, mas acima de tudo pela falta de precisão histórica e factual, num trabalho que pretendia ser rigoroso, pois foi a base da dissertação de doutoramento do autor na Universidade de Orange Free State em Bloemfontain, na República da África do Sul.
O suporte do livro, nomeadamente no recurso a vários documentos, revela que o Brigadeiro General W. S. van der Waals se apoia em autores de textos que, de certa forma, enfatizam o papel do exército colonial, omitindo situações em que prevaleceu alguma combatividade por parte dos movimentos de libertação. A própria organização clandestina do MPLA é secundarizada, apesar de, pontualmente, haver menção ao trabalho da PIDE o que, convenhamos, revela alguma incongruência, pois havendo trabalhos redobrados seria sempre um evidente sinal de que haveria, simultâneamente, atividade por parte das células urbanas clandestinas.
Os próprios documentos “classificados” do SADF revelam-se de importância residual, e em nada acrescentam ao muito que se vai sabendo sobre esses tempos que muita gente ”estoria”, mas com um contributo pouco decisivo para a história.
Talvez valha a pena lembrar Edgar Morin: "Pensar autonomamente significa reflectir na sua crença e na sua descrença, na sua confiança e na sua desconfiança. A cultura, que deveria permitir-nos pensar por nós mesmos, leva-nos demasiadas vezes a pensar 'culturalmente', de forma convencional e estereotipada, e assim, sem sabermos, somos submetidos às crenças e descrenças estabelecidas, às confianças e desconfianças que são de regra. Devemos portanto desconfiar das nossas confianças, sem por isso nos entregarmos às nossas desconfianças."
Estes trabalhos sobre o período colonial, publicados por um conjunto de protagonistas, historiadores, jornalistas, investigadores, deparam-se com barreiras que urgiria ultrapassar rapidamente, e o que sobressai é a ausência de oportunidade de recorrer aos documentos militares do tempo colonial em vários países, a começar naturalmente por Portugal, e com acesso facilitado aos arquivos da PIDE/ DGS em Angola. Seria excelente poder consultar o maior número de documentos para confrontar as muitas pessoas ainda vivas, e com memória, sobre situações que ocorreram num determinado contexto, onde foram protagonistas ou observadores.
Esse “documentar a memória” era um contributo decisivo para se fazer a história de períodos onde há silêncios, ocultações deliberadas e muitas suspeições, que conviria que não se perpetuassem no tempo, para que a especulação não ocupasse o lugar do rigor.
Há pouco tempo ouvi acidentalmente um indivíduo explicar, em detalhe, como ocorreu a morte do comandante Kwenha, já que ele fazia parte do grupo que o abateu. Fiquei com natural interesse em saber se estava disposto a dar-me um depoimento para este jornal. Não me manifestou qualquer reserva e combinámos que, oportunamente, lhe faria um conjunto de perguntas sobre o assunto. Vim fazer o meu trabalho de casa e, surpresa das surpresas, quando faço uma pesquisa sobre o Comandante Kwenha, herói do MPLA no combate contra os portugueses, não encontro rigorosamente nada a não ser a menção à sua presença na toponímia de várias cidades e do recentemente inaugurado aeroporto de Menongue, a quem muito justamente foi dado o seu nome.
Da sua vida, da data da sua morte, da sua participação na guerrilha, rigorosamente nada, o que não deixa de ser bizarro!
Qualquer boa ideia para recuperar a memória coletiva recente é bem-vinda. Não há sociedade sem cultura nem cultura sem instrumentação de juízos prévios.
Ou será, como diz Isaac de Ninive, “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”?
Fernando Pereira
13/7/2015
10 de julho de 2015
“De todos se faz um País” / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-7-2015
“De todos se faz um País”
“Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.”
“Memória de outro rio”, Eugénio de Andrade.
“De todos se faz um País” de Óscar Monteiro é um livro que suscita uma multiplicidade de sentimentos aos que deram corpo à “Geração da Utopia”, e simultaneamente algum desconforto à geração seguinte, onde me incluo, e onde estão muitos dos que mandam, alguns dos que desmandam, nas emergentes sociedades onde nos inserimos.
Este livro, com prefácio de Artur Santos Silva, e um posfácio excelente de Manuel Rui Monteiro, é uma “quase” autobiografia de um homem que sempre esteve do lado certo da luta, na defesa de valores de independência, liberdade e respeito pelo cidadão enquanto motor do desenvolvimento, e seu único beneficiário num quadro de uma sociedade de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades.
Óscar Monteiro faz ao longo do livro um trajeto, desde os seus tempos de meninice e juventude no Moçambique colonial, a sua ida para Portugal estudar em 1958, o seu engajamento nas lutas estudantis, na atividade associativa, na “Casa dos Estudantes do Império”, concluindo direito com vinte anos na Universidade de Coimbra. No desfiar de recordações, e de muitas solidariedades e amizades que se perpetuam nos dias de hoje Oscar Monteiro descreve o seu “salto” para o combate contra o colonialismo português, o dealbar de um tempo em que a sua vida se confunde com a luta da FRELIMO, o 25 de Abril de 1974 em Portugal, os acordos de Lusaka, a independência de Moçambique e o apoio à luta do povo angolano e do MPLA na afirmação de um esforço coletivo comum, no âmbito da ex-CONCP (Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) para que a Republica Popular de Angola emergisse como País no contexto das nações a 11 de Novembro de 1975.
A grande dimensão humana do moçambicano, revela-se na forma reconhecida para com todos os que o ajudaram a trilhar as fases de um percurso em que foi protagonista ativo, de um período relevante de lutas contra a potência colonial e concomitantemente pela erradicação do domínio do apartheid na África Austral.
Óscar Monteiro, como outros moçambicanos já o fizeram, deixa o seu testemunho de um tempo de luta por causas nobres, que ajudaram a dignificar os momentos históricos da edificação das novas nações. Era muito bom que todos os protagonistas fizessem o mesmo, para que no futuro não se procure reescrever a história ao belo prazer das circunstâncias.
"Estamos a dar-nos conta de como nos afastámos dos nossos objetivos", declarou em recente entrevista à Lusa. "Cada vez mais estamos a sentir que há alguma coisa que não funcionou", avalia Óscar Monteiro, referindo que "há um fator de humanização do capitalismo que desapareceu e que levou à contração da riqueza". Este não é um problema só de Moçambique, "é de todo o mundo", enfatizou o jurista, abordando a forma como Moçambique evoluiu de um "socialismo na sua forma mais pura" para o capitalismo, "com menos entusiasmo, muita pressa e sem se pensar em todas as consequências".
"O desenvolvimento tem de ser visto a partir do que as pessoas desejam", defendeu, assumindo que este "é um problema não resolvido" e que a Frelimo está consciente de que "as distâncias aumentaram muito mais do que se pensava". Além de "uma diferença grande e crescente entre os que têm e não têm", existe sobretudo "o facto de que os que não têm não terem o suficiente", nem um mecanismo compensatório, como um rendimento mínimo garantido para "comprar a paz social".
Em Moçambique também há apoios aos mais pobres e aos idosos, "mas em certos momentos uma conjugação de fatores leva à perceção de que só alguns é que têm e em alguns casos é fundamentada", referiu, acreditando que "ainda é possível" produzir um sistema "mais regulado e humanizado".
Esta longa entrevista tem destinatários certos, e não só em Moçambique, mas também em Países como Angola, que de certa forma viveu uma luta comum, processos políticos e organizativos semelhantes, e que vive hoje uma fase de capitalismo selvagem mesclado com um ou outro laivo avulso de socialismo.
Óscar Monteiro merece o seu “bocado de pão”, e apesar de ter sido ministro da Presidência, Informação, Administração Estatal, Interior e governador provincial não deixa de alijar as suas responsabilidades, mas alerta que o percurso está enviesado, e urge voltar-se ao primado do homem ser o centro do debate e usufrutuário de toda a riqueza, produzida numa sociedade onde o coletivo se assume como fator decisivo.
O desenvolvimento de África continua a ser um sonho não realizado de muitos, mas seria pelo menos muito bom que não se matasse o sonho das gentes, de um continente que coloca 36% das matérias-primas na economia mundial e que tem apenas um PIB de 3%, segundo dados de credibilidade insuspeita.
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) dizia: “ Não importa quantas vezes se cai. O importante é levantarmo-nos e tentar mudar as coisas”. Quando os intelectuais discutiam a globalização, o que se podia fazer para melhorar as condições de vida das pessoas do Terceiro Mundo ele dizia: “ Olhem o que mudou a vida de muitas pessoas em África foi o bidão de plástico, que permitiu que as crianças carregassem água sem a desperdiçar pelo caminho”.
Fernando Pereira
4/7/2015
3 de julho de 2015
NA LINHA DOS CONFINS (FINAL) / Novo Jornal / Ágora / Luanda 3-7-2015
Ocupemo-nos agora do réu Grilo:
Além do crime de fogo posto por que foi condenado, foi visto a empunhar uma pistola Beretta 22 longo; foi visto aos tiros com a mesma arma; provou-se ser ele o condutor do táxi AAP-04-32; provou-se que Bernardo Gouveia foi morto por uma bala disparada por uma pistola Beretta 22 longo; provou-se com 50%-70% de probabilidades ter sido aquela pistola Beretta 2.R.LR. que disparou o tiro assassino (e note-se que na identificação de impressões digitais a polícia científica se considera satisfeita quando alcança uma percentagem de 40%, na identificação de pessoas) e nem mesmo assim se dá o réu Grilo como autor do crime de homicídio voluntário na pessoa do assassinado do Bernardo Gouveia!!! «Branco é, galinha o põe». Será o ovo?! A douta sentença recorrida põe em dúvida; logo, absolve-se o réu. «In dubio pro reo», pois claro! Galinhas há muitas e nem todas põem ovos...
Cumpre-me agora aduzir umas tantas considerações acerca dos n. III e IV da douta sentença:
- Espantamo-nos perante as conclusões que aí se extraiem dos factos carreados para o processo, porquanto é evidente que a absolvição dos réus Domingos Oliveira e João Barbosa, reconhecidos, aliás, até pelas próprias alcunhas e por vários circunstantes e vítimas da sua actuação, resultou pura e simplesmente porque ficou demonstrado que, à hora em que se lhes imputava a prática dos actos criminosos pelos quais foram acusados. estavam eles a trabalhar em outro local... Salvo o devido respeito, achamos espantosas estas conclusões! Não se nega, evidentemente, que eles tivessem estado a trabalhar onde as 10 testemunhas o afirmaram, nem às horas que vieram a ser referidas. Mas tudo isso só permite concluir que houve erro relativamente às horas mas não relativamente às pessoas.
Como é que se pode exigir que gente apavorada, escondida na sua cubata quando os tumultos já se haviam desencadeado, sai¬bam que horas são, quando lhes derrubaram a casa, os agrediram, os maltrataram nas suas pessoas e haveres? Esse «pormenor» da hora é assim tão decisivo?! Estavam certos os relógios? (Se os tinham...) Repare-se que até se referem erradamente quanto à hora, a factos irrecusavelmente verdadeiros (por exemplo, os tiros dados pelo réu Telmo). Repare-se que os agressores apareceram munidos de paus e enxadas e que tais factos se iniciaram, segundo a própria P.S.P., cerca das 19 para as 20 horas. Estar a trabalhar na substituição de manilhas na rua de Goa (fls. 400 e segs.) até cerca das 19 horas não é incompatível com o facto de se aparecer munido da própria ferramenta (v. g. enxadas) no Cazenga entre as 19 e as 20 horas, para agredir pessoas e destruir móveis e casas. O único erro que se demonstra é o de que esses factos se terão passado a horas diferentes.
Finalmente, a douta sentença recorrida deu como provado que o réu João Cruz, associando-se activamente aos motins do Cazenga «tirou de um táxi uma faca de mato, com dezanove centímetros de lâmina e que passou a empunhar» (cfr. fls. 435 v), provando-se também que, ao empunhar tal arma, o mesmo réu, opondo-se às directrizes que os agentes da P.S.P. se esforçavam por impor sobre os demais rebeldes, proferia frases de incitamento à rebelião e à «vingança», tais como «ninguém sai daqui». Pois mesmo assim foi o réu absolvido!!! Humildemente pergunto: - não será o simples facto de empunhar uma tal arma, em tais circunstâncias passível do pena? Não lhe será aplicável, nem ao menos, o disposto no art. 253, parag. 1, do Código Penal? Não diz o art. 447 do Código de Processo Penal que «o tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela porque o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente»?
E, sintetizando, por assim dizer, a angústia de todas as interrogações de quem sente os subjectivismos da sentença recorrida como traduzindo uma NÃO JUSTIÇA, pergunto ainda:
- Até onde é que os fins das penas ficaram salvaguardadas?
- Até onde é que o Código Penal pode ser manipulado partidariamente, por sobre realidades concretas e comprovadas?
VENERANDOS DESEMBARGADORES:
Quando se não faz justiça, encorajam-se as pessoas e as comunidades a fazê-la por suas próprias mãos.
No tribunal que julgou os réus
1. Telmo Pires,
2. Manuel António Grilo,
3. Domingos Lopes de Oliveira,
4. João Hermínio Barbosa, e
5. João Augusto da Cruz.
não se viu, no dia do julgamento, nem uma pessoa de cor, não obstante a cor dos mortos, dos feridos, dos humilhados nos tumultos, dos que viram as casas queimadas, destroçadas e destruídas, não obstante a cor de familiares, amigos ou conhecidos dessas vítimas todas.
Poderá considerar-se facciosismo ver nisto um tremendo sintoma de descrença na Justiça que iria ser feita? Justiça de brancos. Brancos o Juiz, o Ministério Público, os advogados, os réus, a assistência inteira!!! Só as vítimas o não eram! Todas as vítimas! Nenhuma delas presente, nem por procuração?! Admirem-se, pois, que, quando, numa qualquer «Avenida de Lisboa» ( [2]) um branco motorista de táxi atropele uma criança preta, surjam dos bairros miseráveis da periferia uma multidão de pretos solidários a tentar vingar a criancinha morta pela máquina dos brancos! Admirem-se, pois, quando no Cazenga, porque um assassino banal desencadeia grande «bernarda» brancos-pretos, só morrem pretos, só ficam feridos pretos, só se destroem as casas de pretos... e os assassinos saem em liberdade, ou absolvidos, ou com «penugens» que são caricatura do Código Penal!!!
Pois muito bem! Não há lugar a apreciações emocionais nem dos próprios acontecimentos, por essência emocionais!
MAS, sendo assim, então APLIQUE-SE O CÓDIGO PENAL com isenção, sem emotividade, COM JUSTIÇA.
É SÓ O QUE SE PEDE JUSTIÇA!
JUSTIÇA em nome dos cinco assassinados no Cazenga em 16 de Setembro do ano passado!
JUSTIÇA em nome dos feridos e maltratados do mesmo bairro!
JUSTIÇA em nome dos milhares de apavorados dessa mesma noite do MEDO!
JUSTICA contra o ÓDIO!
JUSTIÇA contra VIOLÊNCIA!
Aqui poderiam terminar as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal.
Os Venerandos Desembargadores não precisam que se lhes peça
JUSTIÇA.
Hão-de fazê-la como manda a LEI.
Somente se acrescenta o seguinte reparo:
- Imagine-se que, no dia 16 de Setembro de 1972, um qualquer preto do Musseque Cazenga, por volta das 16 horas, descia à cidade dos brancos e, junto da cervejaria Baleizão, ou debaixo da mulemba da Esplanada Portugália, após um conflito que nem foi entendido pelos circunstantes, sacava da sua pistola e matava um dos presentes; imagine-se ainda - seguindo um paralelismo fáctico - que do mesmo musseque Cazenga, logo a seguir, em consequência de falsos boatos, descia à baixa da cidade branca de Luanda um grupo de vingadores que espancavam até à morte quatro outros brancos, incendiavam a livraria Lello, estilhaçavam os vidros da sofisticada «Versailles», destruíam os «Supermercados de Angola» e enviavam aos hospitais mais de uma dúzia de outros brancos,
Bom! No mínimo, a estas horas, haveria volumoso processo político no Tribunal Militar local;
no mínimo, haveria dezenas ou centenas de habitantes dos musseques remetidos, com um simples despacho administrativo, à situação de residência fixa em um dos vários locais destinados a cumprir «medidas administrativas de segurança» de entre os vários que existem desde Cabo Verde até à Foz do Cunene... pelo menos.
Com esta hipótese pretende-se significar o seguinte:
- O que se passou no bairro Cazenga no dia 16 de Setembro do ano passado, excluindo o crime perpretado pelo réu Telmo Pires, não é da competência dos Tribunais Comuns, mas, por se tratar de verdadeiros atentados à ordem interna, segurança e prestígio do Estado, recai sob a competência do Tribunal Militar, aí devendo ter lugar o respectivo julgamento.
De uma maneira ou de outra, a nós basta-nos que os digníssimos e Venerandos Juízes do Tribunal da Relação se debrucem sobre tão denso como complexo processo para nos ficar a certeza de que, anulando-se ou corrigindo-se a douta sentença recorrida, HÁ-DE fazer-se
JUSTIÇA
- É o que se pede:
JUSTIÇA
«LES CHOSES ET LES ACTIONS SONT CE QU'ELLES SONT ET LEURS CONSÉQUENCES SERONT CE QU'ELLES SERONT: POURQUOI DONC CHERCHERIONS NOUS À ÊTRE LEURRÉS?»
Évêque Butler
O Magistrado do Ministério Público
(a) Albertino dos Santos Fonseca Almeida
Fernando Pereira
20/06/15
NA LINHA DOS CONFINS (I parte)- Novo Jornal / Ágora / Luanda 26-6-2015
Hoje limito-me a lembrar esta pérola, feita pelo Dr. Albertino de Almeida, homem de grande probidade intelectual e pessoa de enorme dimensão humana que merecia outro tratamento pelo muito que fez por uma Angola a quem nunca pediu nada em troca, mas que ainda conseguiu receber a ignomínia de muitos que a troco da sua segurança e conforto lhes proporcionou a liberdade.
O título deste artigo é precisamente do livro de Albertino Almeida, há muito esgotado!
Numa das próximas edições do Novo Jornal, vou fazer uma crónica sobre este valoroso e intrépido combatente da liberdade. Fica a promessa e esta peça de grande qualidade!
Um muito obrigado Albertino Almeida!
EXCELENTÍSSIMOS SENHORES
JUIZES DESEMBARGADORES
DO VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA (*)
Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença que consta dos autos a fls. 429 e seguintes, porquanto salvo o devido respeito por mais esclarecido entendimento, a decisão recorrida, eivada de subjectivismo, não ponderou criticamente os factos descritos e de mais elementos de prova carreados para o processo, não subsumiu correctamente nos comandos penais aplicáveis a situação criminal, em causa, em suma, não fez JUSTIÇA
«THINGS AND ACTIONS ARE WHAT THEY ARE, AND THEIR CONSEQUENCES WILL BE WHAT THEY WILL BE: WHY THEN SHOULD WE SEEK TO BE DECEIVED?» ( [1])
Bishop Butler
VENERANDOS DESEMBARGADORES:
Serão curtas e simples as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal, pois os factos narrados nos autos são suficiente¬mente claros e significativos para que neles nos detenhamos em análises supérfluas ou redundantes.
No dia 16 de Setembro de 1972, por volta das 16 horas, o réu Telmo Pires dirigia-se na sua carrinha de vendedor de miudezas para determinado largo do bairro da Cazenga, onde então se realizava um mercado.
Àquela hora havia aí várias centenas de pessoas.
Quando a carrinha ia entrar no referido largo, Fernando Veríssimo da Costa, que por ali também transitava numa «moto», deteve-se para dar passagem à viatura do réu Telmo.
A carrinha, entretanto, ultrapassada a «moto», parou subitamente, ao mesmo tempo que o seu condutor, deitando a cabeça de fora, respondia a qualquer frase, observação ou insulto que um dos circunstantes proferira.
Após um curto diálogo, cujo teor jamais chegou a ser determinado, o condutor, da carrinha - o réu Termo Pires - abriu rapidamente a porta da viatura e, saindo desta, dirigiu-se, com ares agressivos, ao interlocutor de ocasião.
Este, «já com aspecto de quem está com medo», disse ainda qualquer outra frase à qual o réu. reagiu sacando de uma pistola e abatendo a tiro o seu contraditor: - chamava-se ele Elias Mateus Pedro, tinha 25 anos. e idade, era marceneiro de profissão e residia naquele mesmo bairro Cazenga, na casa 47-C2-112-C.
Acto contínuo, o réu meteu-se de novo na carrinha, abandonou rapidamente o local e dirigiu-se para sua casa (no bairro São Pedro, à Cuca, na rua Charula de Azevedo, nº 37), onde entrou.
A testemunha Veríssimo da Costa que tudo presenciara e fora no encalço da carrinha até à porta da casa do réu; dirigiu-se então à 10º Esquadra da P.S.P., a fim de participar o crime e indicar a matrícula da carrinha do réu, que entretanto anotara.
Ao alcançar a esquadra já aí encontrou o réu, agora acompanhado de sua mulher (a esposa) apresentando o bolso da camisa descosido e rasgado...
Pouco depois, começou a circular pela cidade o boato de que «os pretos haviam-se revoltado, levando isto para; o campo, do terrorismo e que os mesmos tinham morto um motorista de táxi» (sic).
Na sequência da efervescência assim criada, «cerca das 19 horas para as 20 horas começaram a chegar ao Bairro Cazenga» dezenas de viaturas entregando-se os seus ocupantes à prática de indiscriminadas e brutais agressões sobre pessoas e haveres dos cidadãos de cor que fossem apanhados nas imediações do mercado do Cazenga até à Curbol.
Algumas casas foram incendiadas, outras totalmente destruídas.
Inexplicavelmente, a P.S.P., presente em força considerável, armada, equipada e reforçada por cães-polícia, só alta madrugada do dia seguinte conseguiu serenar o tumulto e quase parece que se limitou a dar cobertura à ferocidade das várias dezenas de «pretensos vingadores» duma vítima-boato. Efectivamente, não obstante a presença das forças policiais, mais quatro pessoas foram assassinadas (Bernardo Gouveia, morto a tiro pelo réu António Grilo; Faria Fusga Neto, espancado brutalmente; Paulo Antunes. também espancado até à morte, e Francisco Capundanga, igualmente morto por espancamento).
Os cinco réus trazidos a julgamento traduzem apenas uma modesta «amostragem» da ferocidade e número de populares que nessa sombria noite de 16 de Setembro do ano passado deram largas a um ódio primário e selvagem, em repetição de cenas igualmente sinistras a que Luanda já antes assistira, desejando-se todavia que jamais voltem a verificar-se (no que aliás dificilmente se acredita, pois quem semeia tempestades não deve surpreender-se se vier a colher apocalipses...) .
VENERANDOS DESEMBARGADORES
Não nos iludamos!
O que se passou naquela noite de sábado revela bem o grau de tensão que existe entre duas comunidades desavindas, ao nível da base. Não nos competem aqui diagnósticos e prognósticos. Mas já nos compete o sagrado e inalienável dever de fazer Justiça.
Os factos criminosos imputados aos réus nos autos estão todos claramente comprovados. As hesitações e subjectivismos da douta sentença recorrida não têm assento nos elementos de prova, carreados durante a instrução.
Deu-se, por exemplo, acolhimento à versão do réu Telmo e à sua infantil história de que precisou de se defender a tiro de quatro mal¬feitores que, em pleno dia, 16 horas, e no meio de centenas de pessoas (mercado do Cazenga) lhe queriam roubar quatro ou cinco contos de um bolso e que nem hesitaram nos seus intentos quando ele deu dois tiros para o ar (não obstante três dos malfeitores o terem manietado pelas costas!!!)
Não foi nenhum vadio que o réu assassinou, mas um honrado marceneiro residente no mesmo bairro em que o mataram!
Deu-se aceitação à tese do réu de que fora agredido, etc., etc., quando a testemunha Veríssimo, que tudo presenciou, nega peremptoriamente tal versão.
O que é que o réu foi fazer a casa antes de seguir para a 10ª Esquadra? Não terá por ventura ido encenar os rasgões e as unhadas juntamente com a mulher?!
De qualquer modo onde é que é possível fundamentar a «provocação relevante» de que se fala na douta sentença? (fls. 432v). A convicção do julgador, apenas?!! (fls. 432). Se o tal diálogo que a testemunha Veríssimo presenciou à distância pudesse vir a ser considerado tão grave como o Meritíssimo Juiz «a quo» o imaginou, porque razão é que o réu Telmo nunca o invocou? Aliás o réu nem sequer se refere a tal diálogo que não «cabe» na sua versão dos factos. Por este andar, também podemos imaginar que a provocação foi iniciada pelo próprio réu. Repare-se que este era um profissional da pistola. Repare-se que o réu, durante anos, fez profissão de mantenedor da ordem contra subvertores. Se ficou ou não traumatizado contra todos ou a maior parte dos indivíduos da mesma cor daqueles que o feriram, um dia, na Organização a que pertencia, é assunto que bem poderia merecer alguma atenção... o que não aconteceu.
Em contrapartida, a fls. 436 da douta sentença, referem-se expressamente a favor do réu Telmo «os serviços relevantes prestados à Pátria» (!!!). Quer-se maior demonstração de subjectivismo?! Que relevantes serviços terá ele prestado à Pátria que nem sequer mereceram um simples louvor (cfr. fls. 392 v)?!
E o bom comportamento anterior?!
O bom comportamento anterior que se lhe «contabiliza» onde é que se vai documentar? É só ao certificado de registo criminal de fls. 332 onde se apôs o habitual carimbo do NADA CONSTA?! Bom comportamento anterior não é só o NADA CONSTA de tais certificados e abstemo-nos de aqui desenvolver este tema, pois seria ingénuo desafio à inteligência dos Venerandos Desembargadores. Permito-me somente este comentário: - Já vai sendo tempo de se superar, a qualquer nível de julgamento, a estreitíssima visão de que «bom comportamento» significa somente o desconhecimento oficial de quaisquer patifarias do «bem comportado»...
Pelo que respeita ao réu Telmo, o verdadeiro interruptor que desencadeou o drama daquela noite de Setembro em que foram assassinados 5 (cinco) homens, incendiadas e destruídas 6 (seis) casas, feridas numerosas pessoas e em que a cidade inteira participou, pelo menos emocionalmente, só quero acrescentar o seguinte:
- Cometeu o réu Telmo, sem dúvida e sem atenuantes, um crime crapuloso de homicídio voluntário, abatendo a tiro, sem contemplações, raivosamente, um homem desarmado (o próprio réu o reconheceu), que, quando muito, o «terá irritado» com quaisquer observações, comentários ou até insultos à qualidade de senhor branco todo poderoso, portador de uma pistola, no desgraçado bairro Cazenga, para lá do asfalto. onde os «pretos», aos olhos dos Telmos deste mundo, são, por definição, patifes, salteadores, desprezíveis...
É sempre o ódio o sentimento gerador dos homicídios. A genealogia do ódio é que poderá ser mais ou menos complexa, conforme os casos. No exemplo concreto do réu Telmo não será difícil ir decantar esta genealogia do ódio ao «espírito heróico de pequeno branco», à discutível escola das organizações para-militares que proliferam, infelizmente. nesta perturbadíssima terra. CONTINUA
19 de junho de 2015
INSINCERAMENTE / Ágora/ Novo Jornal / Luanda /18_6-2015
“O pessimismo da razão e otimismo do coração” Gramsci (1891-1937)
Não. Definitivamente. As bruxas não existem. Não sou supersticioso. Não acredito em azares. Não me preocupo com a sexta-feira, seja treze ou qualquer outro dia do mês. Não entro com o pé direito, não como passas às badaladas do novo ano e nunca me preocupo com o facto de ter de passar por baixo de escadas. Não me preocupo se derramar sal na mesa e não acredito que virar o copo de vinho à mesa dá sorte. Até acho isso um contrassenso porque, logicamente, uma toalha com nódoas de vinho só serve para o lixo. Definitivamente. Não sou supersticioso, não acredito em bruxas, nem em bruxedos, nem em feitiços e muito menos em pragas e macumbas.
À evolução sempre necessária, e neste momento histórico exigido pela transformação social e pela maturidade da grei, para um mais amplo sistema de direito público, substitui-se tragicamente de uma forma apressada o sistema, levando à quebra de tradições e à divisão dos homens em vencedores e vencidos.
A ausência de cultura, aliada à falta de consciência política global, gera bastardia irremediável do voto, e a organização dos partidos, ou “grupos de status”, não como expressões tendenciais dos grandes rumos de opinião pública, mas sim como simples associações utentes do poder, assentes na importância social da licenciatura e gerando uma nova forma de privilégio parasitário.
Os sistemas políticos nunca são perfeitos e a democracia só o será quando um grau de preparação económica, social e cultural do povo for determinante de uma consciência do direito político individual, e que no momento de ação resulte em vontade coletiva.
Cada novo messianismo na ação política, cada nova ideologia redentora, enche o povo de promessas e mesmo de realizações. Por um momento efémero domina a prole e arrasta os homens na sedução do novo ideal coletivo. Paulatinamente porém, a vida reflexiva e consciente retoma os seus direitos, a inteligência renova as suas perguntas, e os problemas renascem para a diversidade discutível das várias soluções.
E como o homem nesta fase só concebe a política em termos de ideal absoluto e redentor, e existe na forçosa circunstância de vencido ou de vencedor, a ação pública situa-se em coordenadas de “guerra”, de sentido de revolta ou de defesa a todo o custo.
Ser adversário político é sinónimo de inimigo pessoal. O partidário do poder, olha para os adversários como uma raça diferente, uma espécie de monstros capazes de todos os “crimes”. O adversário do poder, pelo seu lado, olha para os outros como uma tribo estranha, que se apoderou do mando ou de desmando nalguns casos.
O sentimento comum da existência coletiva o conceito de solidariedade, o ideal de uma vida comunitária e irmanada numa obra comum a construir em cada hora, são tropos literários, cuja verdade profunda jaz moribunda.
Até quando poderemos resistir à trágica divisão das pessoas, à triste dialética, à partilha do destino humano, na injusta base do vencido e do vencedor?
Apetece-me recordar um texto do “desalinhadíssimo” Alberto Pimenta, o criador desse delicioso poema “discurso sobre o filho da puta” , que não ouso publicar por razões que pelo menos eu julgo óbvias. Alberto Pimenta é um “malquisto” por muitos outros trabalhos de “rotura” no contexto literário da língua portuguesa.
“1948: o meu pai foi às Finanças fazer um requerimento, e como de costume fez questão que eu o acompanhasse. Para “aprender a vida”.
Em casa explicou-me minuciosamente a fórmula e o motivo do requerimento. No fim meteu dentro da folha uma nota de 50 escudos, e disse-me- Esta é a parte mágica da fórmula. Quando tiveres um pedido a fazer, já sabes, o segredo é este.
Passados uns meses enviei a minha primeira declaração de amor e, como 50 escudos era muito para as minhas posses, juntei uma moedinha de 2$50.
Nunca tive resposta, decerto foi por ser tão pouco”
“Os capitalistas têm dinheiro e compram tudo: justiça, polícia, padres, governo, tudo. A gente só tem um capital: os companheiros.
Jorge Amado, in “S. Jorge dos Ilhéus”.
Não faço ideia se estou a escrever pela antiga ortografia, se já ao abrigo do novo acordo! Paciência, saiu assim…
Exatamente assim!
Fernando Pereira
8/5/2012
12 de junho de 2015
NO ANTIGAMENTE NA BOLA!/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda / 12 -6 - 2015
Em 2009 saiu do prelo o “História do Clube Atlético de Loanda”, numa edição do Clube Atlético de Luanda e Saudade. Tive o privilégio de ter estado na apresentação que decorreu no Espaço Verde do Chá de Caxinde.
O livro é um excelente documento sobre a evolução do desporto angolano no período de 1924-1953, com as suas conotações de natureza politica e social numa sociedade colonial fechada e profundamente retrógrada.
È um precioso auxiliar para quem quiser saber o que de importante aconteceu numa sociedade vincadamente estratificada do ponto de vista social, económico e político com as inerentes ligações ao associativismo.
Ao contrário do que é muito frequente comentar-se, o desporto tem ligações muito estreitas com o circunstancialismo politico, e é indisfarçável o alinhamento ou a rutura que determinadas associações ou clubes desportivos tem com os poderes instalados.
O Clube Atlético de Loanda foi desde a sua criação um clube de forte espírito nacionalista, a que não serão alheias as convicções emancipalistas dos seus fundadores, em contraciclo com os clubes emblemáticos do regime colonial, normalmente filiais dos clubes de Lisboa.
Numa das páginas do livro, que mereceria uma cuidada revisão, conta-se o episódio da vinda a Angola da Associação Académica de Coimbra a 2 de Agosto de 1938, acompanhando o então general Oscar Carmona na 1ª visita de um chefe de Estado Português às colónias.
Vivia-se na comunidade branca de Luanda a euforia da inauguração da Exposição-Feira, no bairro onde hoje estão instaladas a maior parte das embaixadas, e o convite à Académica partiu da direção da Exposição, entidade organizadora de um torneio onde participariam as seleções de Luanda, Benguela e Huíla.
A taça em disputa foi entregue à Académica, por iniciativa da direção da Exposição, provocando veementes protestos pela direção da Associação de Futebol de Luanda e do conjunto de selecionadores, técnicos e jogadores do selecionado local. A taça “General Carmona” foi disputada com pundonor pelas equipas entusiasmando o público que encheu os “Coqueiros”.
A versão do livro do Atlético:”… no referido jogo os luandenses marcaram a primeira bola . Coimbra empatou, e minutos depois sob perfeitíssimo centro de Julio Peyroteu , Júlio Andrade corre, esgueira-se entre os defesas, bate Tibério atirando a bola onde quer. Luanda 2 – Coimbra 1. Ardeu Tróia. Tibério apossa-se da bola e reclama off-side (pretenso). Os outros “académicos” acompanham-no. O árbitro valida o goal e manda a bola ao centro. Os “académicos” não cedem, e Tibério chefe do motim não quer entregar a bola. O árbitro insiste na sua resolução, e os académicos querem bater no árbitroque ante a impossibilidade de ser respeitado, se vê forçado em abandonar o campo, sempre sob a ameaça de pancada”. Tibério era o guarda-redes da equipa de Coimbra, e ainda entra Gentil Santos, a quem não é entregue a bola o mesmo acontecendo com o 3º árbitro, Serra Coelho. Tal o sururu que a polícia é obrigada aq intervir para acabar o jogo que já se prolongava para horas que não permitia a legislação relativa a espectáculos.
“… A direção da Exposição Feira de Angola, contra tudo, entregou a taça ao grupo académico: E essa entrega (?!) tem o seu quê de interessante. A taça foi levada para bordo do gasolina, que transportou os jogadores de Coimbra ao vapor “Colonial”, para a sua viagem à outra costa (Moçambique). Ora se a Taça foi ganha com merecimento, porque não foi entregue publicamente.”
Há contudo outra versão dos acontecimentos que vem no livro do meu saudoso colega João Mesquita “Académica / História do Futebol”.
Diz o seguinte esse livro, editado pela Almedina em 2007: “ …Corre o dia 6 de Agosto e os estudantes queixam-se de uma certa frieza na recepção” “… No segundo encontro é que o “caldo” se “ entorna”. Jogam Académica e a seleção de Luanda, com o ex-atleta da Briosa, Bernardo Pimenta, a recusar-se a alinhar por esta última. Desde o início que os estudantes se queixam de parcialidade por parte do árbitro, por sinal o treinador do selecionado luandense. Às tantas Luanda faz 2-1. Protestam veementemente os coimbrãos, alegando que o marcador se encontra fora de jogo. Em resposta o juiz abandona o campo. Os Angolanos não aceitam. Sugerem outro. É a vez da Académica recusar. Com tudo isto, a luz do dia vai desaparecendo e a polícia entra em acção para mandar os jogadores para o balneário.
Uma vez que não se esgotam os 60 minutos que o regulamento estipula para duração de cada jogo, é marcado segundo encontro. Mas Luanda não comparece. Como a Académica batera entretanto a seleção de Benguela por 3-1, a taça é atribuída aos estudantes. Estes antes de deixarem Luanda, envoltos numa acesa polémica, ainda defrontam a seleção de Angola. Com quem perdem por 4-3.”
Neste jogo que se disputou a 28 de Agosto de 1938, com a arbitragem de Armando Serra Coelho, pai do Serra Coelho que posteriormente representou a Académica no dealbar dos anos 50, a seleção de Angola orientada por João Francisco Mendonça alinhou com: Oscar de Lemos, António Arsénio e Apolinário Mendonça (todos de Luanda),Duarte Cabral (Benguela),Saldanha Palhares (Luanda), Jaime Adriano (Benguela), José Cruz “Gégé” (Benguela), Julio Andrade (Luanda), Telmo Vaz Pereira (Luanda), Nuno Vaz (Benguela) e Julio Peyroteu (Luanda).
A Associação Académica de Coimbra orientada por Puskas alinha com Tibério Antunes (depois Cipriano), João Teixeira (Alberto Cunha), José Maria Antunes, Faustino (Teixeira), Alberto Carneiro, Octaviano, Alberto Gomes, Peseta, António dos Santos, Nini e Manuel da Costa.
António Santos(2) e Nini marcaram pela Académica e Julio Andrade (3) e Telmo pelo selecionado de Angola.
António Santos não fazia parte da equipa da Académica que disputava os campeonatos nacionais. Era jogador do Futebol Clube do Porto e estudava na altura em Coimbra.
Estes jogos, aparentemente “amigáveis”, entre equipas da Metrópole e da então colónia eram sempre marcados por uma grande rivalidade, a que não eram alheios os propósitos emancipalistas de alguns elementos do selecionado local, e o nacionalismo exacerbado de alguns elementos das equipas de Portugal, que eram escolhidas naturalmente a contento do regime.
Este texto visto na perspetiva dos dois contendores, talvez consiga dar outra verosimilhança a esse episódio nesse longínquo 20 de Agosto de 1938 na cidade de Luanda.
Fernando Pereira
10/6/2015
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