3 de julho de 2015

NA LINHA DOS CONFINS (I parte)- Novo Jornal / Ágora / Luanda 26-6-2015


Hoje limito-me a lembrar esta pérola, feita pelo Dr. Albertino de Almeida, homem de grande probidade intelectual e pessoa de enorme dimensão humana que merecia outro tratamento pelo muito que fez por uma Angola a quem nunca pediu nada em troca, mas que ainda conseguiu receber a ignomínia de muitos que a troco da sua segurança e conforto lhes proporcionou a liberdade.
O título deste artigo é precisamente do livro de Albertino Almeida, há muito esgotado!
Numa das próximas edições do Novo Jornal, vou fazer uma crónica sobre este valoroso e intrépido combatente da liberdade. Fica a promessa e esta peça de grande qualidade!
Um muito obrigado Albertino Almeida!


EXCELENTÍSSIMOS SENHORES
JUIZES DESEMBARGADORES
DO VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA (*)
Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença que consta dos autos a fls. 429 e seguintes, porquanto salvo o devido respeito por mais esclarecido entendimento, a decisão recorrida, eivada de subjectivismo, não ponderou criticamente os factos descritos e de mais elementos de prova carreados para o processo, não subsumiu correctamente nos comandos penais aplicáveis a situação criminal, em causa, em suma, não fez JUSTIÇA
«THINGS AND ACTIONS ARE WHAT THEY ARE, AND THEIR CONSEQUENCES WILL BE WHAT THEY WILL BE: WHY THEN SHOULD WE SEEK TO BE DECEIVED?» ( [1])

Bishop Butler


VENERANDOS DESEMBARGADORES:

Serão curtas e simples as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal, pois os factos narrados nos autos são suficiente¬mente claros e significativos para que neles nos detenhamos em análises supérfluas ou redundantes.

No dia 16 de Setembro de 1972, por volta das 16 horas, o réu Telmo Pires dirigia-se na sua carrinha de vendedor de miudezas para determinado largo do bairro da Cazenga, onde então se realizava um mercado.

Àquela hora havia aí várias centenas de pessoas.

Quando a carrinha ia entrar no referido largo, Fernando Veríssimo da Costa, que por ali também transitava numa «moto», deteve-se para dar passagem à viatura do réu Telmo.

A carrinha, entretanto, ultrapassada a «moto», parou subitamente, ao mesmo tempo que o seu condutor, deitando a cabeça de fora, respondia a qualquer frase, observação ou insulto que um dos circunstantes proferira.

Após um curto diálogo, cujo teor jamais chegou a ser determinado, o condutor, da carrinha - o réu Termo Pires - abriu rapidamente a porta da viatura e, saindo desta, dirigiu-se, com ares agressivos, ao interlocutor de ocasião.

Este, «já com aspecto de quem está com medo», disse ainda qualquer outra frase à qual o réu. reagiu sacando de uma pistola e abatendo a tiro o seu contraditor: - chamava-se ele Elias Mateus Pedro, tinha 25 anos. e idade, era marceneiro de profissão e residia naquele mesmo bairro Cazenga, na casa 47-C2-112-C.

Acto contínuo, o réu meteu-se de novo na carrinha, abandonou rapidamente o local e dirigiu-se para sua casa (no bairro São Pedro, à Cuca, na rua Charula de Azevedo, nº 37), onde entrou.

A testemunha Veríssimo da Costa que tudo presenciara e fora no encalço da carrinha até à porta da casa do réu; dirigiu-se então à 10º Esquadra da P.S.P., a fim de participar o crime e indicar a matrícula da carrinha do réu, que entretanto anotara.

Ao alcançar a esquadra já aí encontrou o réu, agora acompanhado de sua mulher (a esposa) apresentando o bolso da camisa descosido e rasgado...

Pouco depois, começou a circular pela cidade o boato de que «os pretos haviam-se revoltado, levando isto para; o campo, do terrorismo e que os mesmos tinham morto um motorista de táxi» (sic).

Na sequência da efervescência assim criada, «cerca das 19 horas para as 20 horas começaram a chegar ao Bairro Cazenga» dezenas de viaturas entregando-se os seus ocupantes à prática de indiscriminadas e brutais agressões sobre pessoas e haveres dos cidadãos de cor que fossem apanhados nas imediações do mercado do Cazenga até à Curbol.

Algumas casas foram incendiadas, outras totalmente destruídas.
Inexplicavelmente, a P.S.P., presente em força considerável, armada, equipada e reforçada por cães-polícia, só alta madrugada do dia seguinte conseguiu serenar o tumulto e quase parece que se limitou a dar cobertura à ferocidade das várias dezenas de «pretensos vingadores» duma vítima-boato. Efectivamente, não obstante a presença das forças policiais, mais quatro pessoas foram assassinadas (Bernardo Gouveia, morto a tiro pelo réu António Grilo; Faria Fusga Neto, espancado brutalmente; Paulo Antunes. também espancado até à morte, e Francisco Capundanga, igualmente morto por espancamento).

Os cinco réus trazidos a julgamento traduzem apenas uma modesta «amostragem» da ferocidade e número de populares que nessa sombria noite de 16 de Setembro do ano passado deram largas a um ódio primário e selvagem, em repetição de cenas igualmente sinistras a que Luanda já antes assistira, desejando-se todavia que jamais voltem a verificar-se (no que aliás dificilmente se acredita, pois quem semeia tempestades não deve surpreender-se se vier a colher apocalipses...) .

VENERANDOS DESEMBARGADORES
Não nos iludamos!
O que se passou naquela noite de sábado revela bem o grau de tensão que existe entre duas comunidades desavindas, ao nível da base. Não nos competem aqui diagnósticos e prognósticos. Mas já nos compete o sagrado e inalienável dever de fazer Justiça.

Os factos criminosos imputados aos réus nos autos estão todos claramente comprovados. As hesitações e subjectivismos da douta sentença recorrida não têm assento nos elementos de prova, carreados durante a instrução.

Deu-se, por exemplo, acolhimento à versão do réu Telmo e à sua infantil história de que precisou de se defender a tiro de quatro mal¬feitores que, em pleno dia, 16 horas, e no meio de centenas de pessoas (mercado do Cazenga) lhe queriam roubar quatro ou cinco contos de um bolso e que nem hesitaram nos seus intentos quando ele deu dois tiros para o ar (não obstante três dos malfeitores o terem manietado pelas costas!!!)

Não foi nenhum vadio que o réu assassinou, mas um honrado marceneiro residente no mesmo bairro em que o mataram!

Deu-se aceitação à tese do réu de que fora agredido, etc., etc., quando a testemunha Veríssimo, que tudo presenciou, nega peremptoriamente tal versão.

O que é que o réu foi fazer a casa antes de seguir para a 10ª Esquadra? Não terá por ventura ido encenar os rasgões e as unhadas juntamente com a mulher?!

De qualquer modo onde é que é possível fundamentar a «provocação relevante» de que se fala na douta sentença? (fls. 432v). A convicção do julgador, apenas?!! (fls. 432). Se o tal diálogo que a testemunha Veríssimo presenciou à distância pudesse vir a ser considerado tão grave como o Meritíssimo Juiz «a quo» o imaginou, porque razão é que o réu Telmo nunca o invocou? Aliás o réu nem sequer se refere a tal diálogo que não «cabe» na sua versão dos factos. Por este andar, também podemos imaginar que a provocação foi iniciada pelo próprio réu. Repare-se que este era um profissional da pistola. Repare-se que o réu, durante anos, fez profissão de mantenedor da ordem contra subvertores. Se ficou ou não traumatizado contra todos ou a maior parte dos indivíduos da mesma cor daqueles que o feriram, um dia, na Organização a que pertencia, é assunto que bem poderia merecer alguma atenção... o que não aconteceu.

Em contrapartida, a fls. 436 da douta sentença, referem-se expressamente a favor do réu Telmo «os serviços relevantes prestados à Pátria» (!!!). Quer-se maior demonstração de subjectivismo?! Que relevantes serviços terá ele prestado à Pátria que nem sequer mereceram um simples louvor (cfr. fls. 392 v)?!

E o bom comportamento anterior?!

O bom comportamento anterior que se lhe «contabiliza» onde é que se vai documentar? É só ao certificado de registo criminal de fls. 332 onde se apôs o habitual carimbo do NADA CONSTA?! Bom comportamento anterior não é só o NADA CONSTA de tais certificados e abstemo-nos de aqui desenvolver este tema, pois seria ingénuo desafio à inteligência dos Venerandos Desembargadores. Permito-me somente este comentário: - Já vai sendo tempo de se superar, a qualquer nível de julgamento, a estreitíssima visão de que «bom comportamento» significa somente o desconhecimento oficial de quaisquer patifarias do «bem comportado»...

Pelo que respeita ao réu Telmo, o verdadeiro interruptor que desencadeou o drama daquela noite de Setembro em que foram assassinados 5 (cinco) homens, incendiadas e destruídas 6 (seis) casas, feridas numerosas pessoas e em que a cidade inteira participou, pelo menos emocionalmente, só quero acrescentar o seguinte:

- Cometeu o réu Telmo, sem dúvida e sem atenuantes, um crime crapuloso de homicídio voluntário, abatendo a tiro, sem contemplações, raivosamente, um homem desarmado (o próprio réu o reconheceu), que, quando muito, o «terá irritado» com quaisquer observações, comentários ou até insultos à qualidade de senhor branco todo poderoso, portador de uma pistola, no desgraçado bairro Cazenga, para lá do asfalto. onde os «pretos», aos olhos dos Telmos deste mundo, são, por definição, patifes, salteadores, desprezíveis...

É sempre o ódio o sentimento gerador dos homicídios. A genealogia do ódio é que poderá ser mais ou menos complexa, conforme os casos. No exemplo concreto do réu Telmo não será difícil ir decantar esta genealogia do ódio ao «espírito heróico de pequeno branco», à discutível escola das organizações para-militares que proliferam, infelizmente. nesta perturbadíssima terra. CONTINUA

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