14 de agosto de 2015

“O SENHOR LUBITO”/ o Chá / Luanda / Maio Junho de 2015




Já há muito que acho que era indispensável fazer-se um inventário do que vulgarmente se chamou “a geração africana” , denominação dada a arquitetos portugueses que por perseguição política ou por divergências conceptuais em relação ao status quo instalado na arquitetura portuguesa estadonovista tiveram que procurar trabalho nas então províncias ultramarinas africanas.
O falecimento de Francisco Castro Rodrigues (1920-2015) ocorrido recentemente é uma oportunidade de se falar de um grupo de arquitetos que trabalharam e inovaram o conceito de cidade em Angola, entre os anos 30 e a primeira metade da década de 70.
Fala-se porque esta plêiade de gente valorosa recusa participar na intervenção gradual da definição ideológica de uma estética nacionalista que sirva o salazarismo. A partir de 1945 a oposição do movimento moderno de arquitetos, consegue combater o “português suave” e alcandora-se para novos e arrojados conceitos, que merecem a crítica dos poderes instalados ao nível central e local. Nota: Em Angola, os mais emblemáticos edifícios do estilo “Português Suave” é o Liceu Salvador Correia (Mutu-ya-Kewela), o edifício sede do Banco Nacional de Angola, delegações do banco espalhadas pelo território e alguns palácios de governo provinciais.
Realiza-se em Lisboa “Congresso Nacional de Arquitetura” em 1948, reunião magna onde se sente emergir uma nova geração e em paralelo uma vontade coletiva de mudança, de recusa consciente e teoricamente alicerçada da arquitetura do Estado Novo. É um “momento de viragem na reconquista da liberdade de expressão dos arquitetos” como refere Nuno Teotónio Pereira, oposicionista e preso político do Salazarismo.
A arquitetura que se propunha a partir de então, seguia de perto os ideais expressos na Carta de Atenas, documento internacional que, escrito ainda nos anos 30 com o apoio de Le Corbusier, tinha conceptualizado e enumerado o programa de renovação mundial da linguagem arquitetónica: os grandes blocos em altura, de habitação coletiva, assentes em pilotis, com sistemas mecânicos de transportes e infraestruturas orientadas corretamente em relação ao Sol (e controlando a sua incidência através de brise-soleils móveis), arejados, alternando com espaços verdes servidos por circuitos pedonais. Importa referir como nota que foi Francisco Castro Rodrigues e sua mulher Lurdes Rodrigues que traduziram integralmente para português a Carta de Atenas, documento de trabalho para o “Congresso Nacional de Arquitetura”.
Este “estilo internacional” tinha influencia direta das obras sul- americanas (onde os pioneiros como Le Corbusier tinham deixado sementes), cheias de vitalidade que faltava ao emperrado contexto europeu do pós-guerra.
O que objetivamente interessa é discutir a influência desta gente numa dinâmica inovadora de transformação das cidades e simultaneamente propostas que entravam em choque com as dos arquitetos do regime a quem eram encomendados a esmagadora maioria dos projetos.
Francisco Castro Rodrigues, vive continuadamente no Lobito (Lubito, como sempre escreveu) entre 1953 e 1988, será sempre o “Senhor Lubito”,como carinhosamente lhe chamava nas conversas que íamos mantendo nestes últimos anos.
A cidade tem o seu “ferrete” nas Portas do Mar, no edifício Universal, na Colina da Saudade, na Casa do Sol, no Liceu Saydi Mingas, no Cine Flamingo, nas atuais instalações do Instituto Lusíada adaptadas no silo-auto da Casa Americana, na reconversão do Tamariz, no Mercado Municipal, na urbanização do Alto Liro, na Bela Vista, no obelisco, no edifício da aerogare e num conjunto muito variado de vivendas e prédios um pouco por toda a cidade. Fora do Lobito projetou os Paços do Concelho do Sumbe, um edifício que foi depois adulterado, bem como os de Luena e Ganda. São seus trabalhos no Sumbe o liceu , o palácio da justiça e a magnífica catedral (um pouco a recordar Frank Lloyd Wright), de onde terá sido plagiada a catedral de Benguela.
Criou o Museu do Lobito na casa que foi da madame Berman (uma alemã com poderosos interesses no minério e na agricultura de Angola), onde os soviéticos queriam a todo o custo instalar o consulado recuando perante um obstinado FCR com o apoio do Comissário Ramos da Cruz.
Francisco Castro Rodrigues pela participação, decisiva e simultânea, nos planos municipais, urbanístico, infraestrutural e arquitetónico tornou-se num verdadeiro “fazedor da cidade moderna” em relação ao Lobito.
Logo no início em 1953 entendeu de modo dinâmico a velha aspiração do Lobito, a de passar da “cidade do mangal”, insalubre e litorânea para a mais ampla e expansiva “cidade do morro”, com uma dimensão moderna.
Percebeu que a cidade era mais que um espaço de casas, atividade económica ou local de recreio. Era sobretudo um espaço de crescimento dinâmico onde se iam absorvendo realidades importadas de sociedades diferentes e com contornos de estigmatização rácica visível em cada um dos seus movimentos sociais e laborais.
Castro Rodrigues entendeu globalmente o sistema urbano em presença, com toda a complexidade das suas novas e crescentes funções. Foi o autor único que evoluiu na feitura de uma cidade luso-africana, com a visão e a possibilidade prática “ de controlar (pelo menos em parte) a sua dimensão e qualidade-em termos de planeamento/expansão, de sistema de zonamento funcional, de desenho urbano e de mobiliário, de espaços verdes e da sua arquitetura- e esta em projetos e obras para equipamentos, para publicação de classe média e de tipo «social» ”.
Conseguiu modificar o primeiro plano diretor de 1944 e essa alteração profunda serviu como guião à expansão de determinadas áreas da cidade. Não conseguiu, nas suas múltiplas batalhas ultrapassar os “direitos adquiridos” pelo poderoso Caminho de Ferro de Benguela que continua a dividir a cidade ao meio. Uma das suas batalhas perdidas, que faria infletir as linhas do CFB para os arredores da urbe, praticamente na saída do porto mineiro.
Numa das últimas conversas que tivemos mostrou-se muito triste por terem autorizado a refinaria no Lobito, uma das guerras que as gentes do Lobito tinham ganho às autoridades portuguesas quando tentaram instalá-la nos anos sessenta!
Para além da sua faceta de arquiteto, Francisco Castro Rodrigues casado com a atriz Lurdes Rodrigues, foi militante do PCP até 1949, preso no Aljube em 1941, participante no MUD, mandatário no Lobito das candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado (o general ganhou com 83,5% dos votos expressos) manteve sempre uma empenhada atividade politica progressista e depois da independência de Angola um promotor cultural com muito trabalho feito.
Foi fundador e dinamizador do Cine Clube do Lobito, de Oficinas de teatro, a que não será alheio o facto de sua mulher ter sido atriz profissional em Portugal e também o representante da Sociedade Cultural de Angola na cidade do Lobito.
Produziu alguma imprensa e apesar de lhe ter perguntado diretamente se fez parte da maçonaria, respondeu-me sempre com o evasivo: “eram bons rapazes”!
Sugiro que leiam, se conseguirem encontrar, o livro “Um cesto de cerejas”, um livro editado pela Fundação Mário Dionísio - Casa da Achada que é afinal uma descrição bem-humorada e muito catalogada do que foram os seus trinta e quatro anos de ligação a um “Lubito” que terá levado consigo.
O livro é uma conversa escorreita com a Drª Eduarda Dionísio, filha do meu professor Mário Dionísio, um dos grandes do neorrealismo, corrente que marcou a literatura portuguesa do fim dos anos trinta a meados dos anos sessenta. FCR foi um grande dinamizador da instalação do Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, tendo sido um dos coautores do projeto do edifício e a quem doou uma parte significativa do seu formidável espólio.
Perguntei-lhe se o título “um cesto de cerejas” tinha alguma coisa a ver com a canção emblemática da Comuna de Paris (1871)“O tempo das cerejas”, respondendo que havia esse conceito politico subjacente embora a escolha primordial foi porque a conversa no livro fluía como as cerejas.
Penso que era capaz de ser interessante que no Comissariado Municipal do Lobito se instalasse um pequeno “museu” com o acervo de FCR ,que por lá andará perdido e provavelmente mal conservado! Francisco Castro Rodrigues já foi homenageado pelo Município do Lobito aquando do centenário da cidade, e as autoridades locais não o esqueceram tributando-o com inúmeras provas de carinho que muito o sensibilizaram. Acho que inseri-lo na toponímia da cidade era da mais elementar justiça, pois foi um homem que “colocou pedras nos alicerces do mundo”, neste caso no seu “Lubito”!
Obrigado Francisco Castro Rodrigues, o “Senhor Lubito”.

Fernando Pereira
5/5/2015

1 comentário:

Retornado disse...

Não creio que haja ruas nem avenidas nesta Angola, que mereçam nomes de inúmeros arquitectos, engenheiros e até de médicos e enfermeiros, brancos ou pretos, que vieram do tempo colonial.

Até que depois de tanto herói de 30 anos de guerra, nem haveria ruas que cheguem para todos, que nacionais, quer estrangeiros (cooperantes).

Claro que a maioria deve ter vindo em ponte aérea, e não se sabe se alguns terão vindo por Ceuta e Melilla.

Cumprimentos

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