14 de agosto de 2015

“O SENHOR LUBITO”/ o Chá / Luanda / Maio Junho de 2015




Já há muito que acho que era indispensável fazer-se um inventário do que vulgarmente se chamou “a geração africana” , denominação dada a arquitetos portugueses que por perseguição política ou por divergências conceptuais em relação ao status quo instalado na arquitetura portuguesa estadonovista tiveram que procurar trabalho nas então províncias ultramarinas africanas.
O falecimento de Francisco Castro Rodrigues (1920-2015) ocorrido recentemente é uma oportunidade de se falar de um grupo de arquitetos que trabalharam e inovaram o conceito de cidade em Angola, entre os anos 30 e a primeira metade da década de 70.
Fala-se porque esta plêiade de gente valorosa recusa participar na intervenção gradual da definição ideológica de uma estética nacionalista que sirva o salazarismo. A partir de 1945 a oposição do movimento moderno de arquitetos, consegue combater o “português suave” e alcandora-se para novos e arrojados conceitos, que merecem a crítica dos poderes instalados ao nível central e local. Nota: Em Angola, os mais emblemáticos edifícios do estilo “Português Suave” é o Liceu Salvador Correia (Mutu-ya-Kewela), o edifício sede do Banco Nacional de Angola, delegações do banco espalhadas pelo território e alguns palácios de governo provinciais.
Realiza-se em Lisboa “Congresso Nacional de Arquitetura” em 1948, reunião magna onde se sente emergir uma nova geração e em paralelo uma vontade coletiva de mudança, de recusa consciente e teoricamente alicerçada da arquitetura do Estado Novo. É um “momento de viragem na reconquista da liberdade de expressão dos arquitetos” como refere Nuno Teotónio Pereira, oposicionista e preso político do Salazarismo.
A arquitetura que se propunha a partir de então, seguia de perto os ideais expressos na Carta de Atenas, documento internacional que, escrito ainda nos anos 30 com o apoio de Le Corbusier, tinha conceptualizado e enumerado o programa de renovação mundial da linguagem arquitetónica: os grandes blocos em altura, de habitação coletiva, assentes em pilotis, com sistemas mecânicos de transportes e infraestruturas orientadas corretamente em relação ao Sol (e controlando a sua incidência através de brise-soleils móveis), arejados, alternando com espaços verdes servidos por circuitos pedonais. Importa referir como nota que foi Francisco Castro Rodrigues e sua mulher Lurdes Rodrigues que traduziram integralmente para português a Carta de Atenas, documento de trabalho para o “Congresso Nacional de Arquitetura”.
Este “estilo internacional” tinha influencia direta das obras sul- americanas (onde os pioneiros como Le Corbusier tinham deixado sementes), cheias de vitalidade que faltava ao emperrado contexto europeu do pós-guerra.
O que objetivamente interessa é discutir a influência desta gente numa dinâmica inovadora de transformação das cidades e simultaneamente propostas que entravam em choque com as dos arquitetos do regime a quem eram encomendados a esmagadora maioria dos projetos.
Francisco Castro Rodrigues, vive continuadamente no Lobito (Lubito, como sempre escreveu) entre 1953 e 1988, será sempre o “Senhor Lubito”,como carinhosamente lhe chamava nas conversas que íamos mantendo nestes últimos anos.
A cidade tem o seu “ferrete” nas Portas do Mar, no edifício Universal, na Colina da Saudade, na Casa do Sol, no Liceu Saydi Mingas, no Cine Flamingo, nas atuais instalações do Instituto Lusíada adaptadas no silo-auto da Casa Americana, na reconversão do Tamariz, no Mercado Municipal, na urbanização do Alto Liro, na Bela Vista, no obelisco, no edifício da aerogare e num conjunto muito variado de vivendas e prédios um pouco por toda a cidade. Fora do Lobito projetou os Paços do Concelho do Sumbe, um edifício que foi depois adulterado, bem como os de Luena e Ganda. São seus trabalhos no Sumbe o liceu , o palácio da justiça e a magnífica catedral (um pouco a recordar Frank Lloyd Wright), de onde terá sido plagiada a catedral de Benguela.
Criou o Museu do Lobito na casa que foi da madame Berman (uma alemã com poderosos interesses no minério e na agricultura de Angola), onde os soviéticos queriam a todo o custo instalar o consulado recuando perante um obstinado FCR com o apoio do Comissário Ramos da Cruz.
Francisco Castro Rodrigues pela participação, decisiva e simultânea, nos planos municipais, urbanístico, infraestrutural e arquitetónico tornou-se num verdadeiro “fazedor da cidade moderna” em relação ao Lobito.
Logo no início em 1953 entendeu de modo dinâmico a velha aspiração do Lobito, a de passar da “cidade do mangal”, insalubre e litorânea para a mais ampla e expansiva “cidade do morro”, com uma dimensão moderna.
Percebeu que a cidade era mais que um espaço de casas, atividade económica ou local de recreio. Era sobretudo um espaço de crescimento dinâmico onde se iam absorvendo realidades importadas de sociedades diferentes e com contornos de estigmatização rácica visível em cada um dos seus movimentos sociais e laborais.
Castro Rodrigues entendeu globalmente o sistema urbano em presença, com toda a complexidade das suas novas e crescentes funções. Foi o autor único que evoluiu na feitura de uma cidade luso-africana, com a visão e a possibilidade prática “ de controlar (pelo menos em parte) a sua dimensão e qualidade-em termos de planeamento/expansão, de sistema de zonamento funcional, de desenho urbano e de mobiliário, de espaços verdes e da sua arquitetura- e esta em projetos e obras para equipamentos, para publicação de classe média e de tipo «social» ”.
Conseguiu modificar o primeiro plano diretor de 1944 e essa alteração profunda serviu como guião à expansão de determinadas áreas da cidade. Não conseguiu, nas suas múltiplas batalhas ultrapassar os “direitos adquiridos” pelo poderoso Caminho de Ferro de Benguela que continua a dividir a cidade ao meio. Uma das suas batalhas perdidas, que faria infletir as linhas do CFB para os arredores da urbe, praticamente na saída do porto mineiro.
Numa das últimas conversas que tivemos mostrou-se muito triste por terem autorizado a refinaria no Lobito, uma das guerras que as gentes do Lobito tinham ganho às autoridades portuguesas quando tentaram instalá-la nos anos sessenta!
Para além da sua faceta de arquiteto, Francisco Castro Rodrigues casado com a atriz Lurdes Rodrigues, foi militante do PCP até 1949, preso no Aljube em 1941, participante no MUD, mandatário no Lobito das candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado (o general ganhou com 83,5% dos votos expressos) manteve sempre uma empenhada atividade politica progressista e depois da independência de Angola um promotor cultural com muito trabalho feito.
Foi fundador e dinamizador do Cine Clube do Lobito, de Oficinas de teatro, a que não será alheio o facto de sua mulher ter sido atriz profissional em Portugal e também o representante da Sociedade Cultural de Angola na cidade do Lobito.
Produziu alguma imprensa e apesar de lhe ter perguntado diretamente se fez parte da maçonaria, respondeu-me sempre com o evasivo: “eram bons rapazes”!
Sugiro que leiam, se conseguirem encontrar, o livro “Um cesto de cerejas”, um livro editado pela Fundação Mário Dionísio - Casa da Achada que é afinal uma descrição bem-humorada e muito catalogada do que foram os seus trinta e quatro anos de ligação a um “Lubito” que terá levado consigo.
O livro é uma conversa escorreita com a Drª Eduarda Dionísio, filha do meu professor Mário Dionísio, um dos grandes do neorrealismo, corrente que marcou a literatura portuguesa do fim dos anos trinta a meados dos anos sessenta. FCR foi um grande dinamizador da instalação do Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, tendo sido um dos coautores do projeto do edifício e a quem doou uma parte significativa do seu formidável espólio.
Perguntei-lhe se o título “um cesto de cerejas” tinha alguma coisa a ver com a canção emblemática da Comuna de Paris (1871)“O tempo das cerejas”, respondendo que havia esse conceito politico subjacente embora a escolha primordial foi porque a conversa no livro fluía como as cerejas.
Penso que era capaz de ser interessante que no Comissariado Municipal do Lobito se instalasse um pequeno “museu” com o acervo de FCR ,que por lá andará perdido e provavelmente mal conservado! Francisco Castro Rodrigues já foi homenageado pelo Município do Lobito aquando do centenário da cidade, e as autoridades locais não o esqueceram tributando-o com inúmeras provas de carinho que muito o sensibilizaram. Acho que inseri-lo na toponímia da cidade era da mais elementar justiça, pois foi um homem que “colocou pedras nos alicerces do mundo”, neste caso no seu “Lubito”!
Obrigado Francisco Castro Rodrigues, o “Senhor Lubito”.

Fernando Pereira
5/5/2015

FOFOCAGRAFIA POLITICA / Ágora /Novo Jornal / Luanda 14-8-2015



“Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas"
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de matemática, com pouco sucesso diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luis Cília, quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neo-realismo, portador de palavras que eram de sonho, afecto e luta simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático na vetusta Universidade de Coimbra, que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Todos os estudantes das colónias portugueses que passaram por Coimbra nesses “sombrios tempos” tiveram em Joaquim Namorado um amigo, e alguém com quem podiam partilhar as desventuras do tempo vivido. Como um dos fundadores do neorrealismo, influenciou alguns escritores de uma geração mais nova, onde incluo Manuel Rui Monteiro, então um jovem cheio de sonhos que vem do Lubango para uma Coimbra de mentalidade sórdida e “rigorosamente vigiada”!
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que pela relevância do seu percurso cultural na revista Vértice, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos oitenta um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até muitos dos premiados.
Foi meu médico da “garganta”, o Dr. Adolfo Rocha, pessoa de imagem austera e muito parco em palavras, mas que construiu uma obra de uma dimensão literária notável, Miguel Torga, pseudónimo surgido numa homenagem a dois vultos das letras espanholas que muito admirava, Miguel Unamuno e Miguel Cervantes, associando torga, uma pequena erva perene do seu Traz os Montes natal.
Cumprimentávamo-nos quando nos encontrávamos, de forma distante, e quando uma vez lhe disse que tinha comprado “Os bichos”, e que gostaria de ler outros livros seus, na esperança de ser presenteado com algum, ele no seu jeito curto e grosso diz-me: ”Tenho muitos e bons, pode comprá-los na Bertrand, estão lá todos”.
Miguel Torga era conhecido por cultivar muito pouco a sua aparência e víamo-lo demasiadas vezes descuidado, tendo em consideração o seu estatuto enquanto escritor lido em muitos países e traduzido nalgumas línguas. São curiosas as histórias de que Miguel Torga era forreta, que não dava autógrafos e que editava os seus livros para poder controlar todo o processo de edição.
Um dia, Miguel Torga foi surpreendido pelo chefe da estação Velha (em Coimbra há duas estações) subindo para uma carruagem de terceira classe. Julgando que se tratava de um equívoco, aproximou-se do escritor e observou:- V. Exª. vai em terceira classe? Torga, num sorriso:- Porquê? Há quarta?
Uma de muitas histórias de um homem que foi perseguido pela PIDE, que assinou manifestos para a libertação de presos políticos e nos seus diários deixa bem clara a sua posição anticolonial, e a sua oposição à guerra nas colónias.
Nunca foi muito pródigo em elogios para com os políticos que emergiram no fim dos anos 70, apesar de ter sido um antissalazarista assumido, sentindo na carne o ostracismo do Estado Novo, e foi-se distanciando cada vez mais das pessoas, até à sua morte ocorrida em Coimbra em 1995.
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a máquina do Estado é a falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente, é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, “um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal” . É isso!
Contudo não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltou a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando vou vendo o que acontece em sessões de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, disse: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
10/8/2015

Vamos brincar à liberdadezinha! / O Interior / Guarda 13-8-2015


Vamos brincar à liberdadezinha!
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.

Fernando Pereira
8/08/2015

Judeus em Angola / Ágora / Novo Jornal / Luanda 7-8-2015



Amiúde, ouve-se falar da vontade de António Salazar em instalar em Angola uma colónia de judeus, expulsos da Europa, na sequência da onda de antissemitismo que precedeu a segunda-guerra mundial.
Uma perfeita estultice esta afirmação repisada ao longo dos tempos. Eu ouvia-a frequentemente nos serões de minha casa, onde os meus pais e alguns amigos discutiam estes assuntos, e durante anos eu próprio ia defendendo esta inverdade.
A primeira ideia “consistente” de colonização judaica em Angola surgiu em 1915 pelo judeu russo Walter Terlo, apresentada no Almanaque Israelita, estabelecia a fixação no “Planalto de Angola”, mais propriamente em Benguela. Esta proposta teria surgido do republicano José Relvas no dealbar da Republica em Portugal em 1910, por proposta de emissários da Jewish Territorial Organization (JTO).
Este projeto era concebido pela JTO, que sondou parlamentares portugueses no sentido de instalar uma colónia judaica em Angola. Esta ideia já vinha de 1903, na sequência do pogrom contra os judeus ocorrido em Kishinev, na Rússia, em que se colocava como alternativa de refúgio o Uganda ou Angola.
Houve propostas concretas no parlamento português e só a instabilidade política dos anos da 1ª republica em Portugal impediram a aprovação dessa instalação pelas duas camaras, que concedia a naturalização e punha à disposição de cada judeu , que se apresentasse, 250 hectares de terreno cultivado.
Em 1917 o processo é abandonado e retomado em 1930, já no período de vigência da ditadura em Portugal. A 7 de Janeiro de 1934 o jornal britânico Daily Herald faz referência a uma pretensa autorização dada pelo governo português, à emigração de um número limitado de judeus para a colónia. O artigo, reproduzido no “Século”, que acabou por ser censurado pelo regime, noticiava ainda que Portugal não tinha “capacidade para colonizar a região” e que, por outro lado, não se adequando “os seus meios agrícolas obsoletos” às “necessidades de uma economia agrícola mecanizada”, esta deveria ser “instalada na colónia”.
O putativo artigo do “Século”, acrescentava que o governo estava disposto a assistir-lhes com empréstimos a fim de lhes permitir que se dedicassem a trabalhos agrícolas e outras indústrias, na condição de se naturalizarem portugueses e cumprirem serviço militar nas Forças Armadas Portuguesas.
Em Londres, o embaixador português recebia insistentes pedidos de judeus alemães para a instalação de uma colónia de judeus em Angola, lembrando que em 1912 o Parlamento Português tinha aprovado essa fixação, ao que o MNE português lembrava que para aprovar essa legislação ao tempo era necessária a aprovação das duas camaras, algo que não sucedeu, não passando pois de um projeto lei.
O então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal Macelo Mathias, ia colocando alguma contenção no entusiasmo do embaixador em Londres relativamente ao assunto, pois Salazar e o seu regime viam com muitas reservas a presença de grupos de estrangeiros organizados nas colónias, mesmo com as promessas de avultados fundos por parte de Fritz Seidler e Ernest Meyer, representantes da JTO.
Como era hábito na diplomacia portuguesa ao tempo, prolongava-se o “nim” até onde fosse possível, e só já no fim de 1934 é que saiu uma circular para os consulados de Portugal a impedir que fossem “visados passaportes de cidadãos estrangeiros que quisessem exercer atividades económicas em Angola”. Objectivamente era para impedir qualquer veleidade por parte de grupos de judeus.
O argumento usado pelo governo da ditadura para recusar a criação de um colonato judeu em Angola, foi um argumento do medo de abrir um “problema semita”, com a entrada em Portugal de judeus, “cuja tendência nómada e diferenciação rácica e religiosa os tornam praticamente inassimiláveis”. Marcelo Mathias, MNE ao tempo, atribuía aos judeus “certo caracter comunista” que os tornara “suspeitos à maioria dos estados capitalistas”.
Era necessário ter em consideração a matriz ideológica da Constituição de 1933 e simultaneamente a componente religiosa subjacente à Concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé, que incluía o Estatuto Missionário, para justificar as reservas mantidas por Salazar em relação a qualquer hipotética instalação de colonatos de judeus em Angola. Nunca terá visto com bons olhos esta remota hipótese, e só a sua diplomacia de contemporizar terá permitido alimentar ilusões a alguns, que nunca terão passado disso mesmo.
A presença da figura discreta, mas de uma influência impar na diplomacia portuguesa nas décadas de 30 e 40 de Luis Teixeira de Sampaio, um germanófilo assumido, que contribuiu decisivamente para cortar cerce algumas tentativas deste tipo por parte de Armindo Monteiro, por exemplo, ministro das colónias (1931-1935), ministro dos Negócios Estrangeiros (1935-1936) e embaixador de Portugal em Londres (1937-1943), ao tempo figura de primeiro plano na constelação salazarista.
Julgo ter contribuído para repor alguma verdade sobre um tema que tem trazido múltiplas discussões e afirmações perentoriamente erradas ao longo de décadas, mas que face aos documentos que entretanto estão disponíveis, tudo que coloquei está muito próximo dos factos ocorridos. Perante a teimosia dos factos nada a fazer!
Em breve tentarei fazer um artigo sobre a espionagem alemã na segunda guerra mundial em Angola, para se acabar também com algumas suposições!

Fernando Pereira
3/8/2015

1 de agosto de 2015

O Fantasma da Liberdade / Ágora -Novo Jornal - Luanda 31/ 7/2015



O Fantasma da Liberdade.
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós, angolanos, talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.
Fico-me nas divagações com o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen no seu “Livro Sexto”:
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo



Ou como diria José Gomes Ferreira: Liberdade, muro transparente de cada um!

Fernando Pereira
27/7/2015

24 de julho de 2015

Ouçam o que se diz na rua / Ágora / Novo Jornal / Luanda 23-7-2015



Ouçam o que se diz na rua
ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e deixem-me continuar a sonhar que o MPLA ainda tem os seus princípios e pode ver restituída aos angolanos alguma da sua dignidade perdida ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e façam investimentos no sector produtivo em vez de esbanjarem fortunas em bens de luxo ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua hão-de vir para a rua ouvir ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua quando vierem para a rua ouvir o que se disse na rua já ninguém quer saber de vós para nada ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua a porta da rua é a serventia da casa ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua farto de ouvir falar de coisas que infestam a rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua perco a paciência com muitos que andam na rua para tentarem por na rua outros por quem não tenho paciência nenhuma de os lá ver e estou morto por vê-los na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua faço anos em Maio podem dar-me uma prenda mesmo que estejam para ir para a rua ou fiquem lá porque os não puseram na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não coloquem na prisão meia dúzia de miúdos a quem acabam por conseguir ter maior publicidade que alguma vez suporiam ter ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a recolher o lixo em Luanda ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e resolvam definitivamente o problema da luz e do transito na cidade capital ouçam o que se diz na rua diz-se que um País com tanto dinheiro devia ter um dos melhores sistemas de saúde de África e uma vacinação alargada a toda a população infantil ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a premiar o mérito das pessoas ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que há falta de liberdade de expressão e uma justiça lenta e parcial ouçam o que se diz na rua e não tentem esconder as dificuldades como tem feito na Sonangol ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua numa altura que precisamos de uma política que privilegie o cidadão nacional numa mobilização de recursos para a construção de uma sempre adiada sociedade nova ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não façam uma lei laboral que quase recua aos tempos do Código de Trabalho Indígena ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que ando esbaforido de tanto dizer mal de tanta coisa e tudo permanecendo piorando ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e vão pensando que a eternização no poder não é bom conselheiro em lado nenhum ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que não temos nada que andar a pedinchar o que quer que seja que está à partida consignado na legislação ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua deixem-me ver televisão à vontade sem ouvir os tudólogos apoliptólogos politólogos achólogos e alem de tudo isso os tipos que discursam para os que falei falarem deles ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politiqueiros são flatulência da politica ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politica nada tem a ver com politiqueiros comissários e serventuários do sistema ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua PORQUE QUALQUER DIA ESTÂO TODOS NO OLHO DA RUA A OUVIREM O QUE SE DISSE NA RUA PORQUE NÂO QUISERAM OUVIR O QUE SE DIZIA NA RUA.
Este pequeno texto é um devaneio da “Guidinha” do injustamente esquecido Luis Sttau Monteiro, que ao tempo escrevia na “Mosca” do Diário de Lisboa e posteriormente no “Jornal” .
Fernando Pereira
21-07-2015

18 de julho de 2015

A verdade é a única realidade / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 17-7-2015









Saiu recentemente o livro “Guerra e Paz, Portugal/Angola (1961-1974)" escrito pelo vice-cônsul da África do Sul em Luanda, de 1970 a 1973, W. S. van der Waals, editado pela “Casa das Letras”.
Tive alguma curiosidade em lê-lo, por razões evidentes. O autor foi protagonista num período de relações próximas entre o aparelho militar do “apartheid” e as autoridades militares coloniais em Angola. Era um militar colocado num lugar normalmente ocupado por um civil, e com ligações aos serviços de informação militar da África do Sul, o que não deixa de ser uma exceção, mesmo em contextos pouco vulgares. Como recentemente se abriram os arquivos da SADF (Forças Armadas Sul Africanas), havia naturais expectativas de que este trabalho pudesse trazer mais alguns contributos para um conhecimento maior do estertor do período colonial.
O livro revelou-se uma verdadeira deceção, não apenas pelas vulgaridades que enchem perto de quinhentas páginas, mas acima de tudo pela falta de precisão histórica e factual, num trabalho que pretendia ser rigoroso, pois foi a base da dissertação de doutoramento do autor na Universidade de Orange Free State em Bloemfontain, na República da África do Sul.
O suporte do livro, nomeadamente no recurso a vários documentos, revela que o Brigadeiro General W. S. van der Waals se apoia em autores de textos que, de certa forma, enfatizam o papel do exército colonial, omitindo situações em que prevaleceu alguma combatividade por parte dos movimentos de libertação. A própria organização clandestina do MPLA é secundarizada, apesar de, pontualmente, haver menção ao trabalho da PIDE o que, convenhamos, revela alguma incongruência, pois havendo trabalhos redobrados seria sempre um evidente sinal de que haveria, simultâneamente, atividade por parte das células urbanas clandestinas.
Os próprios documentos “classificados” do SADF revelam-se de importância residual, e em nada acrescentam ao muito que se vai sabendo sobre esses tempos que muita gente ”estoria”, mas com um contributo pouco decisivo para a história.
Talvez valha a pena lembrar Edgar Morin: "Pensar autonomamente significa reflectir na sua crença e na sua descrença, na sua confiança e na sua desconfiança. A cultura, que deveria permitir-nos pensar por nós mesmos, leva-nos demasiadas vezes a pensar 'culturalmente', de forma convencional e estereotipada, e assim, sem sabermos, somos submetidos às crenças e descrenças estabelecidas, às confianças e desconfianças que são de regra. Devemos portanto desconfiar das nossas confianças, sem por isso nos entregarmos às nossas desconfianças."
Estes trabalhos sobre o período colonial, publicados por um conjunto de protagonistas, historiadores, jornalistas, investigadores, deparam-se com barreiras que urgiria ultrapassar rapidamente, e o que sobressai é a ausência de oportunidade de recorrer aos documentos militares do tempo colonial em vários países, a começar naturalmente por Portugal, e com acesso facilitado aos arquivos da PIDE/ DGS em Angola. Seria excelente poder consultar o maior número de documentos para confrontar as muitas pessoas ainda vivas, e com memória, sobre situações que ocorreram num determinado contexto, onde foram protagonistas ou observadores.
Esse “documentar a memória” era um contributo decisivo para se fazer a história de períodos onde há silêncios, ocultações deliberadas e muitas suspeições, que conviria que não se perpetuassem no tempo, para que a especulação não ocupasse o lugar do rigor.
Há pouco tempo ouvi acidentalmente um indivíduo explicar, em detalhe, como ocorreu a morte do comandante Kwenha, já que ele fazia parte do grupo que o abateu. Fiquei com natural interesse em saber se estava disposto a dar-me um depoimento para este jornal. Não me manifestou qualquer reserva e combinámos que, oportunamente, lhe faria um conjunto de perguntas sobre o assunto. Vim fazer o meu trabalho de casa e, surpresa das surpresas, quando faço uma pesquisa sobre o Comandante Kwenha, herói do MPLA no combate contra os portugueses, não encontro rigorosamente nada a não ser a menção à sua presença na toponímia de várias cidades e do recentemente inaugurado aeroporto de Menongue, a quem muito justamente foi dado o seu nome.
Da sua vida, da data da sua morte, da sua participação na guerrilha, rigorosamente nada, o que não deixa de ser bizarro!
Qualquer boa ideia para recuperar a memória coletiva recente é bem-vinda. Não há sociedade sem cultura nem cultura sem instrumentação de juízos prévios.
Ou será, como diz Isaac de Ninive, “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”?




Fernando Pereira
13/7/2015

10 de julho de 2015

“De todos se faz um País” / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-7-2015





“De todos se faz um País”

“Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.”

“Memória de outro rio”, Eugénio de Andrade.


“De todos se faz um País” de Óscar Monteiro é um livro que suscita uma multiplicidade de sentimentos aos que deram corpo à “Geração da Utopia”, e simultaneamente algum desconforto à geração seguinte, onde me incluo, e onde estão muitos dos que mandam, alguns dos que desmandam, nas emergentes sociedades onde nos inserimos.
Este livro, com prefácio de Artur Santos Silva, e um posfácio excelente de Manuel Rui Monteiro, é uma “quase” autobiografia de um homem que sempre esteve do lado certo da luta, na defesa de valores de independência, liberdade e respeito pelo cidadão enquanto motor do desenvolvimento, e seu único beneficiário num quadro de uma sociedade de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades.
Óscar Monteiro faz ao longo do livro um trajeto, desde os seus tempos de meninice e juventude no Moçambique colonial, a sua ida para Portugal estudar em 1958, o seu engajamento nas lutas estudantis, na atividade associativa, na “Casa dos Estudantes do Império”, concluindo direito com vinte anos na Universidade de Coimbra. No desfiar de recordações, e de muitas solidariedades e amizades que se perpetuam nos dias de hoje Oscar Monteiro descreve o seu “salto” para o combate contra o colonialismo português, o dealbar de um tempo em que a sua vida se confunde com a luta da FRELIMO, o 25 de Abril de 1974 em Portugal, os acordos de Lusaka, a independência de Moçambique e o apoio à luta do povo angolano e do MPLA na afirmação de um esforço coletivo comum, no âmbito da ex-CONCP (Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) para que a Republica Popular de Angola emergisse como País no contexto das nações a 11 de Novembro de 1975.
A grande dimensão humana do moçambicano, revela-se na forma reconhecida para com todos os que o ajudaram a trilhar as fases de um percurso em que foi protagonista ativo, de um período relevante de lutas contra a potência colonial e concomitantemente pela erradicação do domínio do apartheid na África Austral.
Óscar Monteiro, como outros moçambicanos já o fizeram, deixa o seu testemunho de um tempo de luta por causas nobres, que ajudaram a dignificar os momentos históricos da edificação das novas nações. Era muito bom que todos os protagonistas fizessem o mesmo, para que no futuro não se procure reescrever a história ao belo prazer das circunstâncias.
"Estamos a dar-nos conta de como nos afastámos dos nossos objetivos", declarou em recente entrevista à Lusa. "Cada vez mais estamos a sentir que há alguma coisa que não funcionou", avalia Óscar Monteiro, referindo que "há um fator de humanização do capitalismo que desapareceu e que levou à contração da riqueza". Este não é um problema só de Moçambique, "é de todo o mundo", enfatizou o jurista, abordando a forma como Moçambique evoluiu de um "socialismo na sua forma mais pura" para o capitalismo, "com menos entusiasmo, muita pressa e sem se pensar em todas as consequências".
"O desenvolvimento tem de ser visto a partir do que as pessoas desejam", defendeu, assumindo que este "é um problema não resolvido" e que a Frelimo está consciente de que "as distâncias aumentaram muito mais do que se pensava". Além de "uma diferença grande e crescente entre os que têm e não têm", existe sobretudo "o facto de que os que não têm não terem o suficiente", nem um mecanismo compensatório, como um rendimento mínimo garantido para "comprar a paz social".
Em Moçambique também há apoios aos mais pobres e aos idosos, "mas em certos momentos uma conjugação de fatores leva à perceção de que só alguns é que têm e em alguns casos é fundamentada", referiu, acreditando que "ainda é possível" produzir um sistema "mais regulado e humanizado".
Esta longa entrevista tem destinatários certos, e não só em Moçambique, mas também em Países como Angola, que de certa forma viveu uma luta comum, processos políticos e organizativos semelhantes, e que vive hoje uma fase de capitalismo selvagem mesclado com um ou outro laivo avulso de socialismo.
Óscar Monteiro merece o seu “bocado de pão”, e apesar de ter sido ministro da Presidência, Informação, Administração Estatal, Interior e governador provincial não deixa de alijar as suas responsabilidades, mas alerta que o percurso está enviesado, e urge voltar-se ao primado do homem ser o centro do debate e usufrutuário de toda a riqueza, produzida numa sociedade onde o coletivo se assume como fator decisivo.
O desenvolvimento de África continua a ser um sonho não realizado de muitos, mas seria pelo menos muito bom que não se matasse o sonho das gentes, de um continente que coloca 36% das matérias-primas na economia mundial e que tem apenas um PIB de 3%, segundo dados de credibilidade insuspeita.
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) dizia: “ Não importa quantas vezes se cai. O importante é levantarmo-nos e tentar mudar as coisas”. Quando os intelectuais discutiam a globalização, o que se podia fazer para melhorar as condições de vida das pessoas do Terceiro Mundo ele dizia: “ Olhem o que mudou a vida de muitas pessoas em África foi o bidão de plástico, que permitiu que as crianças carregassem água sem a desperdiçar pelo caminho”.

Fernando Pereira
4/7/2015



3 de julho de 2015

NA LINHA DOS CONFINS (FINAL) / Novo Jornal / Ágora / Luanda 3-7-2015


Ocupemo-nos agora do réu Grilo:
Além do crime de fogo posto por que foi condenado, foi visto a empunhar uma pistola Beretta 22 longo; foi visto aos tiros com a mesma arma; provou-se ser ele o condutor do táxi AAP-04-32; provou-se que Bernardo Gouveia foi morto por uma bala disparada por uma pistola Beretta 22 longo; provou-se com 50%-70% de probabilidades ter sido aquela pistola Beretta 2.R.LR. que disparou o tiro assassino (e note-se que na identificação de impressões digitais a polícia científica se considera satisfeita quando alcança uma percentagem de 40%, na identificação de pessoas) e nem mesmo assim se dá o réu Grilo como autor do crime de homicídio voluntário na pessoa do assassinado do Bernardo Gouveia!!! «Branco é, galinha o põe». Será o ovo?! A douta sentença recorrida põe em dúvida; logo, absolve-se o réu. «In dubio pro reo», pois claro! Galinhas há muitas e nem todas põem ovos...

Cumpre-me agora aduzir umas tantas considerações acerca dos n. III e IV da douta sentença:

- Espantamo-nos perante as conclusões que aí se extraiem dos factos carreados para o processo, porquanto é evidente que a absolvição dos réus Domingos Oliveira e João Barbosa, reconhecidos, aliás, até pelas próprias alcunhas e por vários circunstantes e vítimas da sua actuação, resultou pura e simplesmente porque ficou demonstrado que, à hora em que se lhes imputava a prática dos actos criminosos pelos quais foram acusados. estavam eles a trabalhar em outro local... Salvo o devido respeito, achamos espantosas estas conclusões! Não se nega, evidentemente, que eles tivessem estado a trabalhar onde as 10 testemunhas o afirmaram, nem às horas que vieram a ser referidas. Mas tudo isso só permite concluir que houve erro relativamente às horas mas não relativamente às pessoas.

Como é que se pode exigir que gente apavorada, escondida na sua cubata quando os tumultos já se haviam desencadeado, sai¬bam que horas são, quando lhes derrubaram a casa, os agrediram, os maltrataram nas suas pessoas e haveres? Esse «pormenor» da hora é assim tão decisivo?! Estavam certos os relógios? (Se os tinham...) Repare-se que até se referem erradamente quanto à hora, a factos irrecusavelmente verdadeiros (por exemplo, os tiros dados pelo réu Telmo). Repare-se que os agressores apareceram munidos de paus e enxadas e que tais factos se iniciaram, segundo a própria P.S.P., cerca das 19 para as 20 horas. Estar a trabalhar na substituição de manilhas na rua de Goa (fls. 400 e segs.) até cerca das 19 horas não é incompatível com o facto de se aparecer munido da própria ferramenta (v. g. enxadas) no Cazenga entre as 19 e as 20 horas, para agredir pessoas e destruir móveis e casas. O único erro que se demonstra é o de que esses factos se terão passado a horas diferentes.

Finalmente, a douta sentença recorrida deu como provado que o réu João Cruz, associando-se activamente aos motins do Cazenga «tirou de um táxi uma faca de mato, com dezanove centímetros de lâmina e que passou a empunhar» (cfr. fls. 435 v), provando-se também que, ao empunhar tal arma, o mesmo réu, opondo-se às directrizes que os agentes da P.S.P. se esforçavam por impor sobre os demais rebeldes, proferia frases de incitamento à rebelião e à «vingança», tais como «ninguém sai daqui». Pois mesmo assim foi o réu absolvido!!! Humildemente pergunto: - não será o simples facto de empunhar uma tal arma, em tais circunstâncias passível do pena? Não lhe será aplicável, nem ao menos, o disposto no art. 253, parag. 1, do Código Penal? Não diz o art. 447 do Código de Processo Penal que «o tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela porque o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente»?

E, sintetizando, por assim dizer, a angústia de todas as interrogações de quem sente os subjectivismos da sentença recorrida como traduzindo uma NÃO JUSTIÇA, pergunto ainda:
- Até onde é que os fins das penas ficaram salvaguardadas?
- Até onde é que o Código Penal pode ser manipulado partidariamente, por sobre realidades concretas e comprovadas?

VENERANDOS DESEMBARGADORES:

Quando se não faz justiça, encorajam-se as pessoas e as comunidades a fazê-la por suas próprias mãos.

No tribunal que julgou os réus
1. Telmo Pires,
2. Manuel António Grilo,
3. Domingos Lopes de Oliveira,
4. João Hermínio Barbosa, e
5. João Augusto da Cruz.

não se viu, no dia do julgamento, nem uma pessoa de cor, não obstante a cor dos mortos, dos feridos, dos humilhados nos tumultos, dos que viram as casas queimadas, destroçadas e destruídas, não obstante a cor de familiares, amigos ou conhecidos dessas vítimas todas.

Poderá considerar-se facciosismo ver nisto um tremendo sintoma de descrença na Justiça que iria ser feita? Justiça de brancos. Brancos o Juiz, o Ministério Público, os advogados, os réus, a assistência inteira!!! Só as vítimas o não eram! Todas as vítimas! Nenhuma delas presente, nem por procuração?! Admirem-se, pois, que, quando, numa qualquer «Avenida de Lisboa» ( [2]) um branco motorista de táxi atropele uma criança preta, surjam dos bairros miseráveis da periferia uma multidão de pretos solidários a tentar vingar a criancinha morta pela máquina dos brancos! Admirem-se, pois, quando no Cazenga, porque um assassino banal desencadeia grande «bernarda» brancos-pretos, só morrem pretos, só ficam feridos pretos, só se destroem as casas de pretos... e os assassinos saem em liberdade, ou absolvidos, ou com «penugens» que são caricatura do Código Penal!!!

Pois muito bem! Não há lugar a apreciações emocionais nem dos próprios acontecimentos, por essência emocionais!

MAS, sendo assim, então APLIQUE-SE O CÓDIGO PENAL com isenção, sem emotividade, COM JUSTIÇA.

É SÓ O QUE SE PEDE JUSTIÇA!
JUSTIÇA em nome dos cinco assassinados no Cazenga em 16 de Setembro do ano passado!

JUSTIÇA em nome dos feridos e maltratados do mesmo bairro!

JUSTIÇA em nome dos milhares de apavorados dessa mesma noite do MEDO!

JUSTICA contra o ÓDIO!
JUSTIÇA contra VIOLÊNCIA!

Aqui poderiam terminar as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal.

Os Venerandos Desembargadores não precisam que se lhes peça

JUSTIÇA.

Hão-de fazê-la como manda a LEI.
Somente se acrescenta o seguinte reparo:

- Imagine-se que, no dia 16 de Setembro de 1972, um qualquer preto do Musseque Cazenga, por volta das 16 horas, descia à cidade dos brancos e, junto da cervejaria Baleizão, ou debaixo da mulemba da Esplanada Portugália, após um conflito que nem foi entendido pelos circunstantes, sacava da sua pistola e matava um dos presentes; imagine-se ainda - seguindo um paralelismo fáctico - que do mesmo musseque Cazenga, logo a seguir, em consequência de falsos boatos, descia à baixa da cidade branca de Luanda um grupo de vingadores que espancavam até à morte quatro outros brancos, incendiavam a livraria Lello, estilhaçavam os vidros da sofisticada «Versailles», destruíam os «Supermercados de Angola» e enviavam aos hospitais mais de uma dúzia de outros brancos,

Bom! No mínimo, a estas horas, haveria volumoso processo político no Tribunal Militar local;
no mínimo, haveria dezenas ou centenas de habitantes dos musseques remetidos, com um simples despacho administrativo, à situação de residência fixa em um dos vários locais destinados a cumprir «medidas administrativas de segurança» de entre os vários que existem desde Cabo Verde até à Foz do Cunene... pelo menos.

Com esta hipótese pretende-se significar o seguinte:

- O que se passou no bairro Cazenga no dia 16 de Setembro do ano passado, excluindo o crime perpretado pelo réu Telmo Pires, não é da competência dos Tribunais Comuns, mas, por se tratar de verdadeiros atentados à ordem interna, segurança e prestígio do Estado, recai sob a competência do Tribunal Militar, aí devendo ter lugar o respectivo julgamento.
De uma maneira ou de outra, a nós basta-nos que os digníssimos e Venerandos Juízes do Tribunal da Relação se debrucem sobre tão denso como complexo processo para nos ficar a certeza de que, anulando-se ou corrigindo-se a douta sentença recorrida, HÁ-DE fazer-se
JUSTIÇA
- É o que se pede:
JUSTIÇA
«LES CHOSES ET LES ACTIONS SONT CE QU'ELLES SONT ET LEURS CONSÉQUENCES SERONT CE QU'ELLES SERONT: POURQUOI DONC CHERCHERIONS NOUS À ÊTRE LEURRÉS?»

Évêque Butler
O Magistrado do Ministério Público

(a) Albertino dos Santos Fonseca Almeida

Fernando Pereira
20/06/15

NA LINHA DOS CONFINS (I parte)- Novo Jornal / Ágora / Luanda 26-6-2015


Hoje limito-me a lembrar esta pérola, feita pelo Dr. Albertino de Almeida, homem de grande probidade intelectual e pessoa de enorme dimensão humana que merecia outro tratamento pelo muito que fez por uma Angola a quem nunca pediu nada em troca, mas que ainda conseguiu receber a ignomínia de muitos que a troco da sua segurança e conforto lhes proporcionou a liberdade.
O título deste artigo é precisamente do livro de Albertino Almeida, há muito esgotado!
Numa das próximas edições do Novo Jornal, vou fazer uma crónica sobre este valoroso e intrépido combatente da liberdade. Fica a promessa e esta peça de grande qualidade!
Um muito obrigado Albertino Almeida!


EXCELENTÍSSIMOS SENHORES
JUIZES DESEMBARGADORES
DO VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA (*)
Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença que consta dos autos a fls. 429 e seguintes, porquanto salvo o devido respeito por mais esclarecido entendimento, a decisão recorrida, eivada de subjectivismo, não ponderou criticamente os factos descritos e de mais elementos de prova carreados para o processo, não subsumiu correctamente nos comandos penais aplicáveis a situação criminal, em causa, em suma, não fez JUSTIÇA
«THINGS AND ACTIONS ARE WHAT THEY ARE, AND THEIR CONSEQUENCES WILL BE WHAT THEY WILL BE: WHY THEN SHOULD WE SEEK TO BE DECEIVED?» ( [1])

Bishop Butler


VENERANDOS DESEMBARGADORES:

Serão curtas e simples as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal, pois os factos narrados nos autos são suficiente¬mente claros e significativos para que neles nos detenhamos em análises supérfluas ou redundantes.

No dia 16 de Setembro de 1972, por volta das 16 horas, o réu Telmo Pires dirigia-se na sua carrinha de vendedor de miudezas para determinado largo do bairro da Cazenga, onde então se realizava um mercado.

Àquela hora havia aí várias centenas de pessoas.

Quando a carrinha ia entrar no referido largo, Fernando Veríssimo da Costa, que por ali também transitava numa «moto», deteve-se para dar passagem à viatura do réu Telmo.

A carrinha, entretanto, ultrapassada a «moto», parou subitamente, ao mesmo tempo que o seu condutor, deitando a cabeça de fora, respondia a qualquer frase, observação ou insulto que um dos circunstantes proferira.

Após um curto diálogo, cujo teor jamais chegou a ser determinado, o condutor, da carrinha - o réu Termo Pires - abriu rapidamente a porta da viatura e, saindo desta, dirigiu-se, com ares agressivos, ao interlocutor de ocasião.

Este, «já com aspecto de quem está com medo», disse ainda qualquer outra frase à qual o réu. reagiu sacando de uma pistola e abatendo a tiro o seu contraditor: - chamava-se ele Elias Mateus Pedro, tinha 25 anos. e idade, era marceneiro de profissão e residia naquele mesmo bairro Cazenga, na casa 47-C2-112-C.

Acto contínuo, o réu meteu-se de novo na carrinha, abandonou rapidamente o local e dirigiu-se para sua casa (no bairro São Pedro, à Cuca, na rua Charula de Azevedo, nº 37), onde entrou.

A testemunha Veríssimo da Costa que tudo presenciara e fora no encalço da carrinha até à porta da casa do réu; dirigiu-se então à 10º Esquadra da P.S.P., a fim de participar o crime e indicar a matrícula da carrinha do réu, que entretanto anotara.

Ao alcançar a esquadra já aí encontrou o réu, agora acompanhado de sua mulher (a esposa) apresentando o bolso da camisa descosido e rasgado...

Pouco depois, começou a circular pela cidade o boato de que «os pretos haviam-se revoltado, levando isto para; o campo, do terrorismo e que os mesmos tinham morto um motorista de táxi» (sic).

Na sequência da efervescência assim criada, «cerca das 19 horas para as 20 horas começaram a chegar ao Bairro Cazenga» dezenas de viaturas entregando-se os seus ocupantes à prática de indiscriminadas e brutais agressões sobre pessoas e haveres dos cidadãos de cor que fossem apanhados nas imediações do mercado do Cazenga até à Curbol.

Algumas casas foram incendiadas, outras totalmente destruídas.
Inexplicavelmente, a P.S.P., presente em força considerável, armada, equipada e reforçada por cães-polícia, só alta madrugada do dia seguinte conseguiu serenar o tumulto e quase parece que se limitou a dar cobertura à ferocidade das várias dezenas de «pretensos vingadores» duma vítima-boato. Efectivamente, não obstante a presença das forças policiais, mais quatro pessoas foram assassinadas (Bernardo Gouveia, morto a tiro pelo réu António Grilo; Faria Fusga Neto, espancado brutalmente; Paulo Antunes. também espancado até à morte, e Francisco Capundanga, igualmente morto por espancamento).

Os cinco réus trazidos a julgamento traduzem apenas uma modesta «amostragem» da ferocidade e número de populares que nessa sombria noite de 16 de Setembro do ano passado deram largas a um ódio primário e selvagem, em repetição de cenas igualmente sinistras a que Luanda já antes assistira, desejando-se todavia que jamais voltem a verificar-se (no que aliás dificilmente se acredita, pois quem semeia tempestades não deve surpreender-se se vier a colher apocalipses...) .

VENERANDOS DESEMBARGADORES
Não nos iludamos!
O que se passou naquela noite de sábado revela bem o grau de tensão que existe entre duas comunidades desavindas, ao nível da base. Não nos competem aqui diagnósticos e prognósticos. Mas já nos compete o sagrado e inalienável dever de fazer Justiça.

Os factos criminosos imputados aos réus nos autos estão todos claramente comprovados. As hesitações e subjectivismos da douta sentença recorrida não têm assento nos elementos de prova, carreados durante a instrução.

Deu-se, por exemplo, acolhimento à versão do réu Telmo e à sua infantil história de que precisou de se defender a tiro de quatro mal¬feitores que, em pleno dia, 16 horas, e no meio de centenas de pessoas (mercado do Cazenga) lhe queriam roubar quatro ou cinco contos de um bolso e que nem hesitaram nos seus intentos quando ele deu dois tiros para o ar (não obstante três dos malfeitores o terem manietado pelas costas!!!)

Não foi nenhum vadio que o réu assassinou, mas um honrado marceneiro residente no mesmo bairro em que o mataram!

Deu-se aceitação à tese do réu de que fora agredido, etc., etc., quando a testemunha Veríssimo, que tudo presenciou, nega peremptoriamente tal versão.

O que é que o réu foi fazer a casa antes de seguir para a 10ª Esquadra? Não terá por ventura ido encenar os rasgões e as unhadas juntamente com a mulher?!

De qualquer modo onde é que é possível fundamentar a «provocação relevante» de que se fala na douta sentença? (fls. 432v). A convicção do julgador, apenas?!! (fls. 432). Se o tal diálogo que a testemunha Veríssimo presenciou à distância pudesse vir a ser considerado tão grave como o Meritíssimo Juiz «a quo» o imaginou, porque razão é que o réu Telmo nunca o invocou? Aliás o réu nem sequer se refere a tal diálogo que não «cabe» na sua versão dos factos. Por este andar, também podemos imaginar que a provocação foi iniciada pelo próprio réu. Repare-se que este era um profissional da pistola. Repare-se que o réu, durante anos, fez profissão de mantenedor da ordem contra subvertores. Se ficou ou não traumatizado contra todos ou a maior parte dos indivíduos da mesma cor daqueles que o feriram, um dia, na Organização a que pertencia, é assunto que bem poderia merecer alguma atenção... o que não aconteceu.

Em contrapartida, a fls. 436 da douta sentença, referem-se expressamente a favor do réu Telmo «os serviços relevantes prestados à Pátria» (!!!). Quer-se maior demonstração de subjectivismo?! Que relevantes serviços terá ele prestado à Pátria que nem sequer mereceram um simples louvor (cfr. fls. 392 v)?!

E o bom comportamento anterior?!

O bom comportamento anterior que se lhe «contabiliza» onde é que se vai documentar? É só ao certificado de registo criminal de fls. 332 onde se apôs o habitual carimbo do NADA CONSTA?! Bom comportamento anterior não é só o NADA CONSTA de tais certificados e abstemo-nos de aqui desenvolver este tema, pois seria ingénuo desafio à inteligência dos Venerandos Desembargadores. Permito-me somente este comentário: - Já vai sendo tempo de se superar, a qualquer nível de julgamento, a estreitíssima visão de que «bom comportamento» significa somente o desconhecimento oficial de quaisquer patifarias do «bem comportado»...

Pelo que respeita ao réu Telmo, o verdadeiro interruptor que desencadeou o drama daquela noite de Setembro em que foram assassinados 5 (cinco) homens, incendiadas e destruídas 6 (seis) casas, feridas numerosas pessoas e em que a cidade inteira participou, pelo menos emocionalmente, só quero acrescentar o seguinte:

- Cometeu o réu Telmo, sem dúvida e sem atenuantes, um crime crapuloso de homicídio voluntário, abatendo a tiro, sem contemplações, raivosamente, um homem desarmado (o próprio réu o reconheceu), que, quando muito, o «terá irritado» com quaisquer observações, comentários ou até insultos à qualidade de senhor branco todo poderoso, portador de uma pistola, no desgraçado bairro Cazenga, para lá do asfalto. onde os «pretos», aos olhos dos Telmos deste mundo, são, por definição, patifes, salteadores, desprezíveis...

É sempre o ódio o sentimento gerador dos homicídios. A genealogia do ódio é que poderá ser mais ou menos complexa, conforme os casos. No exemplo concreto do réu Telmo não será difícil ir decantar esta genealogia do ódio ao «espírito heróico de pequeno branco», à discutível escola das organizações para-militares que proliferam, infelizmente. nesta perturbadíssima terra. CONTINUA

19 de junho de 2015

INSINCERAMENTE / Ágora/ Novo Jornal / Luanda /18_6-2015




“O pessimismo da razão e otimismo do coração” Gramsci (1891-1937)

Não. Definitivamente. As bruxas não existem. Não sou supersticioso. Não acredito em azares. Não me preocupo com a sexta-feira, seja treze ou qualquer outro dia do mês. Não entro com o pé direito, não como passas às badaladas do novo ano e nunca me preocupo com o facto de ter de passar por baixo de escadas. Não me preocupo se derramar sal na mesa e não acredito que virar o copo de vinho à mesa dá sorte. Até acho isso um contrassenso porque, logicamente, uma toalha com nódoas de vinho só serve para o lixo. Definitivamente. Não sou supersticioso, não acredito em bruxas, nem em bruxedos, nem em feitiços e muito menos em pragas e macumbas.
À evolução sempre necessária, e neste momento histórico exigido pela transformação social e pela maturidade da grei, para um mais amplo sistema de direito público, substitui-se tragicamente de uma forma apressada o sistema, levando à quebra de tradições e à divisão dos homens em vencedores e vencidos.
A ausência de cultura, aliada à falta de consciência política global, gera bastardia irremediável do voto, e a organização dos partidos, ou “grupos de status”, não como expressões tendenciais dos grandes rumos de opinião pública, mas sim como simples associações utentes do poder, assentes na importância social da licenciatura e gerando uma nova forma de privilégio parasitário.
Os sistemas políticos nunca são perfeitos e a democracia só o será quando um grau de preparação económica, social e cultural do povo for determinante de uma consciência do direito político individual, e que no momento de ação resulte em vontade coletiva.
Cada novo messianismo na ação política, cada nova ideologia redentora, enche o povo de promessas e mesmo de realizações. Por um momento efémero domina a prole e arrasta os homens na sedução do novo ideal coletivo. Paulatinamente porém, a vida reflexiva e consciente retoma os seus direitos, a inteligência renova as suas perguntas, e os problemas renascem para a diversidade discutível das várias soluções.
E como o homem nesta fase só concebe a política em termos de ideal absoluto e redentor, e existe na forçosa circunstância de vencido ou de vencedor, a ação pública situa-se em coordenadas de “guerra”, de sentido de revolta ou de defesa a todo o custo.
Ser adversário político é sinónimo de inimigo pessoal. O partidário do poder, olha para os adversários como uma raça diferente, uma espécie de monstros capazes de todos os “crimes”. O adversário do poder, pelo seu lado, olha para os outros como uma tribo estranha, que se apoderou do mando ou de desmando nalguns casos.
O sentimento comum da existência coletiva o conceito de solidariedade, o ideal de uma vida comunitária e irmanada numa obra comum a construir em cada hora, são tropos literários, cuja verdade profunda jaz moribunda.
Até quando poderemos resistir à trágica divisão das pessoas, à triste dialética, à partilha do destino humano, na injusta base do vencido e do vencedor?
Apetece-me recordar um texto do “desalinhadíssimo” Alberto Pimenta, o criador desse delicioso poema “discurso sobre o filho da puta” , que não ouso publicar por razões que pelo menos eu julgo óbvias. Alberto Pimenta é um “malquisto” por muitos outros trabalhos de “rotura” no contexto literário da língua portuguesa.
“1948: o meu pai foi às Finanças fazer um requerimento, e como de costume fez questão que eu o acompanhasse. Para “aprender a vida”.
Em casa explicou-me minuciosamente a fórmula e o motivo do requerimento. No fim meteu dentro da folha uma nota de 50 escudos, e disse-me- Esta é a parte mágica da fórmula. Quando tiveres um pedido a fazer, já sabes, o segredo é este.
Passados uns meses enviei a minha primeira declaração de amor e, como 50 escudos era muito para as minhas posses, juntei uma moedinha de 2$50.
Nunca tive resposta, decerto foi por ser tão pouco”
“Os capitalistas têm dinheiro e compram tudo: justiça, polícia, padres, governo, tudo. A gente só tem um capital: os companheiros.
Jorge Amado, in “S. Jorge dos Ilhéus”.
Não faço ideia se estou a escrever pela antiga ortografia, se já ao abrigo do novo acordo! Paciência, saiu assim…
Exatamente assim!

Fernando Pereira
8/5/2012

12 de junho de 2015

NO ANTIGAMENTE NA BOLA!/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda / 12 -6 - 2015













Em 2009 saiu do prelo o “História do Clube Atlético de Loanda”, numa edição do Clube Atlético de Luanda e Saudade. Tive o privilégio de ter estado na apresentação que decorreu no Espaço Verde do Chá de Caxinde.
O livro é um excelente documento sobre a evolução do desporto angolano no período de 1924-1953, com as suas conotações de natureza politica e social numa sociedade colonial fechada e profundamente retrógrada.
È um precioso auxiliar para quem quiser saber o que de importante aconteceu numa sociedade vincadamente estratificada do ponto de vista social, económico e político com as inerentes ligações ao associativismo.
Ao contrário do que é muito frequente comentar-se, o desporto tem ligações muito estreitas com o circunstancialismo politico, e é indisfarçável o alinhamento ou a rutura que determinadas associações ou clubes desportivos tem com os poderes instalados.
O Clube Atlético de Loanda foi desde a sua criação um clube de forte espírito nacionalista, a que não serão alheias as convicções emancipalistas dos seus fundadores, em contraciclo com os clubes emblemáticos do regime colonial, normalmente filiais dos clubes de Lisboa.
Numa das páginas do livro, que mereceria uma cuidada revisão, conta-se o episódio da vinda a Angola da Associação Académica de Coimbra a 2 de Agosto de 1938, acompanhando o então general Oscar Carmona na 1ª visita de um chefe de Estado Português às colónias.
Vivia-se na comunidade branca de Luanda a euforia da inauguração da Exposição-Feira, no bairro onde hoje estão instaladas a maior parte das embaixadas, e o convite à Académica partiu da direção da Exposição, entidade organizadora de um torneio onde participariam as seleções de Luanda, Benguela e Huíla.
A taça em disputa foi entregue à Académica, por iniciativa da direção da Exposição, provocando veementes protestos pela direção da Associação de Futebol de Luanda e do conjunto de selecionadores, técnicos e jogadores do selecionado local. A taça “General Carmona” foi disputada com pundonor pelas equipas entusiasmando o público que encheu os “Coqueiros”.
A versão do livro do Atlético:”… no referido jogo os luandenses marcaram a primeira bola . Coimbra empatou, e minutos depois sob perfeitíssimo centro de Julio Peyroteu , Júlio Andrade corre, esgueira-se entre os defesas, bate Tibério atirando a bola onde quer. Luanda 2 – Coimbra 1. Ardeu Tróia. Tibério apossa-se da bola e reclama off-side (pretenso). Os outros “académicos” acompanham-no. O árbitro valida o goal e manda a bola ao centro. Os “académicos” não cedem, e Tibério chefe do motim não quer entregar a bola. O árbitro insiste na sua resolução, e os académicos querem bater no árbitroque ante a impossibilidade de ser respeitado, se vê forçado em abandonar o campo, sempre sob a ameaça de pancada”. Tibério era o guarda-redes da equipa de Coimbra, e ainda entra Gentil Santos, a quem não é entregue a bola o mesmo acontecendo com o 3º árbitro, Serra Coelho. Tal o sururu que a polícia é obrigada aq intervir para acabar o jogo que já se prolongava para horas que não permitia a legislação relativa a espectáculos.
“… A direção da Exposição Feira de Angola, contra tudo, entregou a taça ao grupo académico: E essa entrega (?!) tem o seu quê de interessante. A taça foi levada para bordo do gasolina, que transportou os jogadores de Coimbra ao vapor “Colonial”, para a sua viagem à outra costa (Moçambique). Ora se a Taça foi ganha com merecimento, porque não foi entregue publicamente.”
Há contudo outra versão dos acontecimentos que vem no livro do meu saudoso colega João Mesquita “Académica / História do Futebol”.
Diz o seguinte esse livro, editado pela Almedina em 2007: “ …Corre o dia 6 de Agosto e os estudantes queixam-se de uma certa frieza na recepção” “… No segundo encontro é que o “caldo” se “ entorna”. Jogam Académica e a seleção de Luanda, com o ex-atleta da Briosa, Bernardo Pimenta, a recusar-se a alinhar por esta última. Desde o início que os estudantes se queixam de parcialidade por parte do árbitro, por sinal o treinador do selecionado luandense. Às tantas Luanda faz 2-1. Protestam veementemente os coimbrãos, alegando que o marcador se encontra fora de jogo. Em resposta o juiz abandona o campo. Os Angolanos não aceitam. Sugerem outro. É a vez da Académica recusar. Com tudo isto, a luz do dia vai desaparecendo e a polícia entra em acção para mandar os jogadores para o balneário.
Uma vez que não se esgotam os 60 minutos que o regulamento estipula para duração de cada jogo, é marcado segundo encontro. Mas Luanda não comparece. Como a Académica batera entretanto a seleção de Benguela por 3-1, a taça é atribuída aos estudantes. Estes antes de deixarem Luanda, envoltos numa acesa polémica, ainda defrontam a seleção de Angola. Com quem perdem por 4-3.”
Neste jogo que se disputou a 28 de Agosto de 1938, com a arbitragem de Armando Serra Coelho, pai do Serra Coelho que posteriormente representou a Académica no dealbar dos anos 50, a seleção de Angola orientada por João Francisco Mendonça alinhou com: Oscar de Lemos, António Arsénio e Apolinário Mendonça (todos de Luanda),Duarte Cabral (Benguela),Saldanha Palhares (Luanda), Jaime Adriano (Benguela), José Cruz “Gégé” (Benguela), Julio Andrade (Luanda), Telmo Vaz Pereira (Luanda), Nuno Vaz (Benguela) e Julio Peyroteu (Luanda).
A Associação Académica de Coimbra orientada por Puskas alinha com Tibério Antunes (depois Cipriano), João Teixeira (Alberto Cunha), José Maria Antunes, Faustino (Teixeira), Alberto Carneiro, Octaviano, Alberto Gomes, Peseta, António dos Santos, Nini e Manuel da Costa.
António Santos(2) e Nini marcaram pela Académica e Julio Andrade (3) e Telmo pelo selecionado de Angola.
António Santos não fazia parte da equipa da Académica que disputava os campeonatos nacionais. Era jogador do Futebol Clube do Porto e estudava na altura em Coimbra.
Estes jogos, aparentemente “amigáveis”, entre equipas da Metrópole e da então colónia eram sempre marcados por uma grande rivalidade, a que não eram alheios os propósitos emancipalistas de alguns elementos do selecionado local, e o nacionalismo exacerbado de alguns elementos das equipas de Portugal, que eram escolhidas naturalmente a contento do regime.
Este texto visto na perspetiva dos dois contendores, talvez consiga dar outra verosimilhança a esse episódio nesse longínquo 20 de Agosto de 1938 na cidade de Luanda.

Fernando Pereira
10/6/2015

CONTRA TEMPO - O Interior- 11/6/2015



Acho risível quando vejo um coro de protestos relativo à entrada em vigor do recente acordo ortográfico.
Num Portugal, ou mesmo numa lusofonia, que agora também já fala um espanhol enviesado, onde e iliteracia e o analfabetismo têm números que nos devem deixar preocupados, é no mínimo redutor andar com rodriguinhos por causa de um acordo, situação que tem sido recorrente desde 1931.
Nunca me preocupei com isso e curiosamente muitas vezes a única coisa que une os bons e os maus escrevinhadores é só a frase “escrito de acordo com a antiga ortografia”.
Há causas mais importantes a dar algumas das nossas forças, e essas tem a ver com a restituição do primado “de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades”, matriz ideológica fundamental para uma sociedade solidária e mais justa, bem diferente do neoliberalismo que tem sido o quotidiano político e económico de uma Europa envelhecida e deprimida.
Os “condes de Abranhos” da política local e nacional começam a aquecer as suas depauperadas máquinas partidárias, uns na tentativa de se perpetuarem no poder outros para lá retornarem, fazendo uma cosmética de políticas velhas e de soluções que não trazem nada de novo à região e ao País.
Acho que é completamente dispensável a vinda ao interior dos responsáveis nacionais e líderes partidários dos partidos do arco da governação, porque de facto não vem fazer rigorosamente nada de novo, a não ser distribuir sorrisos artificiais e gastarem o resto do tempo em repetidos lugares comuns do tipo “não virar costas ao interior”, “promover emprego e lutar contra as assimetrias da interioridade” e outras tretas habituais neste quotidiano que defrauda os valores da democracia.
Não sinto que mudar pormenores resolva os problemas do quotidiano de vida de uma região onde vivemos, onde tudo é particularmente difícil de conseguir e onde cada vez somos menos a pensar que as coisas não melhoram sem resistência. Paciência!
Adam Smith (1723-1790), por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar: “Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável.”
Para que conste Adam Smith morreu quase cinquenta anos antes de ter nascido Karl Marx.
Que tem isto a ver com o acordo ortográfico? Provavelmente muito pouco, mas reitero o que disse: Acho que é melhor desgastarmo-nos em batalhas que valham a pena!

Fernando Pereira
7/6/2015

5 de junho de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (3) / Novo Jornal / Luanda 5/5/2015






Continuo a descrever a Angola nas histórias do António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração colonial, que merecem uma leitura atenta de um tempo que foi correndo nos anos 40,50 e 60 na então “província de Angola”.
Dizia uma vez alguém sobre Angola do antanho, que bastava publicar os documentos da administração colonial, sem precisar de comentários para dar a verdadeira imagem dos tempos de um período que muitos hoje não gostam que se chame colonialismo!

“O Ambaquista era uma figura imprescindível da Angola de outras eras e que chegou aos nossos dias e nos anos 70 praticamente já quase tinha passado à história.
O Ambaquista, é definido, em primeiro lugar por ser natural de Ambaca, atual concelho de Ambaca, com sede em Camabatela, e essa figura para ser conhecida usava uma caneta pendurada ao pescoço, suspensa por um baraço, e um tinteiro de chifre preso à cintura e debaixo do braço ou presa na mão, uma pasta que continha folhas de papel, para utilizar quando necessário. Tratava-se pouco mais ou menos de um indivíduo, normalmente mal letrado e que recorrendo as aldeias de diversas áreas administrativas, junto das povoações nativas, oferecia os seus conhecimentos para passar ao papel, exposições, requerimentos, queixas diversas, reclamações, etc. Cobrava os serviços de acordo com a sua importância, e que ele próprio encaminhava para a entidade que entendia competente.
Grande parte era gente oriunda das Missões católicas ou outras e que, muitas vezes, mal falando e muito pior escrevendo português, se tornavam ininteligíveis. Primeiro porque procuravam utilizar palavras arrevesadas e difíceis, nos lugares mais impróprios.
As composições, e até, às vezes utilizando e mencionando artigos da Constituição dos Códigos Penal e Civil, como que a alardear ciência. Era um autêntico doutor de lareira, que sempre que possível usava óculos de vidro de garrafa, para lhe dar um ar de intelectual. Se terminada a exposição se lhe perguntava o que escreveu, ele não sabia explicar.
Ambaca foi uma grande região que desde o séc. XVII teve o privilégio depois da grande batalha de Ambuíla, de se tornar o centro para onde convergiam todas as iniciativas de ocupação e desenvolvimento e por isso aquela que maior influência colonial criou: primeiro as feiras, depois os conventos e as igrejas influenciando as populações de uma região que era prodigiosa na agricultura e pecuária, avultando a produção de café, a borracha e o gado bovino.
Há séculos que a escrita e a leitura eram correntes entre eles, e como já o dissemos a igreja católica sempre aliava a propagação a fé à escolarização e ao ensino das artes e ofícios. O Ambaquista distingue-se dos outros à vista desarmada. Nestas lonjuras, na época em que Ambaca ficava muito longe, pela imagem do tinteiro de chifre e da caneta pendurada no pescoço, estes rapidamente se espalharam por todo o norte de Angola.
Foram apesar dos seus defeitos, por deficiência de formação elementos muito úteis para quem dos seus serviços precisava e cujas exposições dos problemas passava do oral a escrito. Trouxe, por outro lado, alguns problemas às autoridades especialmente às administrativas de quem faziam queixas que de outro modo não chegavam ao conhecimento dos superiores, enunciando as injustiças e arbitrariedades. Os custos diversos para os Ambaquistas foram como uma mina de diamantes. Façam lá ideia do que era um Ambaquista invocar os artigos do Código Civil ou Penal perante os analfabetos e o conceito que passaram a ter entre as populações que recrutavam os seus serviços. Os Ambaquistas evoluíram até no vestuário começando a apresentarem-se bem vestidos e calçados. O tinteiro e a caneta transitaram para os bolsos e as queixas, os requerimentos, e exposições passaram a multiplicar-se tal como o milagre do pão das bodas de Canãa.
Por último gostaria de dar três exemplos do modo de escrita dos Ambaquistas para se aquilatar da sua "verborreia".
Primeira carta- dirigida a um funcionário superior de passagem pela terra

- Viva a República!... Viva. O Estado curpurativo que bom da Nassão.
Meu amigo... Meu amore? Exulentissimo Senhore
Nu servisse e traqualmente do decreto artigo 265 vem o queixose que do nomi e tradissoes Bernardo Maria Dalmeida a depor para vossinselencia li ter amão um imprejo em Luanda qe o nomi de seu pai é legitimi António Maria como precetua u mesmo artigo 265 e verso com inclinato neste concelho, poisque no gado que tinha, mais vacas suas tistimunhas deu duenssa de mosca que o dito empregu du artigo 265 me podia aliviar incargos.
Asseite meu amigui Exulentissime Senhore a bam da nassão.
Saúde e fartenidade du quem sassina Bernardo Maria Dalmeida pur sabere lere e contare
Di juelhos aos pés da crus
A. Bernardo Maria Dalmeida

Nota-se nesta carta que o ambaquista não estava seguro da sua escrita e já a segunda demonstra outros conhecimentos e saberes.

Exmo. Senhore
Em primeiro de tudo disculpa-me de tão atrevimento importuná-lo nos números a-fazeres de Vossa Exa..
Tem primeiro a presente carta com calor e escana minha situação me obriga a escrever consideravelmente a Vexa para fim de Vexa levar a minha perturbada vida um pouco mais além? Digo e juro pelos maiores doutros mundos, e até a todos os santos, que tenho uma velhinha tia que diariamente além feitos para o pão nosso de cada dia nos dá hoje.
Por mais esse pedia a Vexa venha uma mais com qualquer coisa do meu vencimento que me dê favorável.
Assisto, então espero submeter a uma interrogação a negativa para confiança positiva.
De sou beijos sei que muito negarão esta meu situação pedindo.
O Deus o guarde dois corações.
Preconceite em conceito sem mais, recordo-me em espaço com quanto há dignidade de Vexa muito obrigado.
João Augusto

Tive na minha posse diversas cartas que guardei e que hoje não sei onde param, á exceção destas duas que hoje vos dou a ler. Tinham as características e o vocabulário dos Ambaquistas de nascimento e profissão que definiam bem a sua mentalidade. Não fujo, porém, à tentação de transcrever uma requisição de medicamentos a qual tinha que levar o visto do administrador do concelho, para ser satisfeita e que foi elaborada por ajudante de agente sanitário, que rezava assim:

Requesição

0,5 litro de Mercúrio
0,5 litro de tintura de ódio
5 maços de gazia
3 garrafas de água oxisnada
3 rolos de adezível

6 de Maio de 1965
( Segue-se a assinatura)

E ainda esta...

Buraco di Fumassa, dia do Lua Nova do mês do Chuva deste ano

Meu quirido Bastião.
Sou eu qui te estar e escrever.
Eu num querer te dizer tua pai moreu, por aqui meu pessoa num querer dar desgosto, mas moreu mesmo parava de onra. No nosso tera estar passando coisa esquisito, carcura qui pessoas qui nunca ter morido estar a morer agora.
Muer do ti Paurino já pariu minino, mas ti Paurino estar sconfiado num ser dere por qui ti Paurino ter perna de pau e minino nascer com dois perna mesmo verdadeiro.
Tónico querer casar com Mariquita mas os pai num querer por qui eres afinar ser pirima e pirimo e pirimo com pirima num pode, sair firio analfabeto.
Firio de pai João ter engorido sete e quinhento, já cagou cinco escudo, fartar meio cinco.
Os branco agora estar a fazer rua nova. Ter passeio dum rado e ter passeio doutro rado e o rua passar mesmo no meio.
Branco ter esperto no cabeça.

Escurpa o caligrafia mas eu andar bem rouco e os parava não sair bem.
Escurpa num mandar vinte escudo mas a carta já fechou.
Escurpa num por ponto finar mas a tinta já acabou.

Teu pirimo
Djongo

Para terminar transcrevo o final de uma carta enviada a um amigo que termina assim:
Saudades para todos sem mais adeus manda sempre aquilo que não precisares
6 de Julho de 1952
Assinado Diamantino

È com estes pedaços ligados ao longo dos tempos que se faz a história de uma nação.”


Fernando Pereira
31/5/2015

29 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (2) / Ágora /Novo Jornal/ Luanda 29/5/2015



Nos tempos da Kaparandanda (2)

Continuo a dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração que nos deixou algumas preciosidades e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” editado pela Cá de Caxinde, fez uma reflexão do que foram os seus vinte e seis anos de Angola.
São histórias simples, numa linguagem despretensiosa e num enquadramento de um tempo em que Angola era uma colónia de Portugal num contexto muito diferente dos tempos de hoje.
“O Moutinho
Hoje há quem se prepare convenientemente e com diploma passado, para animador cultural. Naquele tempo não era assim. O maior e melhor diploma era a aparelhagem sonora e o amplificador.
Este conjunto entregue a quem tivesse alguma habilidade e espírito alegre, nada mais era necessário. Pois, no Uíge, conheci um desses indivíduos que era chamado para todos os eventos: festas de rua, homenagens a personalidades, casamentos, batizados e outros. E ele era elemento imprescindível.
Tinha uma boa aparelhagem, muitos discos, com músicas brasileiras que ainda hoje, e já lá vão tantos anos, de volta e meia ainda oiço algumas delas.

Mas vamos então fazer a apresentação da personagem: chamava-se José Moutinho, homem de mediana estatura, de boa compleição física, sardento, cabelo ondulado avermelhado, de cerca de pouco mais de 40 anos, casado com uma senhora nutrida e muito simpática que sempre o acompanhava para todos os lados.
Não tinha filhos e tinha toda a disponibilidade para ir onde fosse necessário. Com uma locução agradável e fluente, caíra no goto da gente do Uíge, mas muita gente desconhecia um acontecimento que lhe deu fama e pouco proveito.
Em tempos, tinha ele cerca de vinte e poucos anos, juntamente com mais três amigos resolveram que haviam de fazer uma viagem, de bicicleta, ligando Luanda a Lisboa. Era um feito inédito e com bicicletas pasteleiras mas que teria uma grande repercussão; trataram das pasteleiras juntaram o necessário para o caminho, uma credencial para permitir abrir fronteiras, levaram a roupa necessária e água.
Faltar-lhes-ia o essencial que era um planeamento muito cuidado do itinerário e ainda a Comunicação Social que nestes eventos é sempre necessária. Mas gente de sangue na guelra e cheios de esperança, lá arrancaram certo dia de Luanda, a caminho de Lisboa, não pensando muito naquilo que era o esforço diário e as contrariedades que poderiam acontecer. O mais entusiasta foi o José Moutinho, talvez o mais bem preparado para a grande jornada. Os primeiros dias foram passados mais ou menos, depois foram surgindo as dificuldades, falta de capacidade física, e aos poucos e à medida que os quilómetros eram percorridos e noites mal dormidas, iam fazendo mossa que já diziam mal da sua vida por se meterem em tal aventura. Quantos mais quilómetros percorriam parecia-lhes que muitos mais outros lhes faltavam para andar. Começaram a dar sinais de fraqueza e a falta de ânimo conjuntamente com as indisposições e as pequenas mazelas que os iam afetando cada vez mais.
É preciso não esquecer que estavam nos anos 30, e nesse tempo, muito havia ainda a explorar. Primeiro, e há sempre um primeiro que piora, completamente exausto obrigou os restantes a pararem para o ajudar. Mas o mal não era fácil de debelar e acusando uma forte anemia, que apesar dos esforços de todos e dos cuidados médicos e hospitalares, foi internado numa pequena Vila da República do Congo, não resistindo ao mal que o afetava, acabou por falecer.
Os outros dois elementos permaneceram ali alguns dias para cumprirem com as formalidades legais; depois continuaram a viagem, agora só dois, sendo o José Moutinho o mais resistente e o mais bem preparado, e à medida que se aproximavam do norte de África já ambos iam bem desgastados e a verdade é que o companheiro do Moutinho, quando já estava perto de Marrocos ali desistiu, continuando assim a viagem completamente só o Moutinho, que para sua grande alegria entrou em território português Vilar Formoso , de onde seu pai era natural.
Veio para Lisboa, onde o Moutinho julgava que seria recebido depois daquela viagem única sem apoios de qualquer espécie, e pensou até que exultassem o feito e o custo da viagem...
Mas 105 dias depois internaram-no na Casa Pia de Lisboa como indigente, onde lhe facultaram comida e dormida, bem como o pagamento da viagem de regresso.
Ao ter-me contado esta aventura, levou-me a concluir que tinha à minha frente um homem de coragem e de grande espírito de sacrifício.
Por estas e por outros foi sempre um amigo que eu estimei, e o seu último gesto para comigo, foi, depois de gravar a minha festa de despedida no novo Hotel do Uíge, ter-me oferecido o original da gravação com um abraço muito apertado de amizade que quando me recordo daquele tempo, sempre vem à minha mente o José Moutinho, que para mim foi um herói injustiçado.”
Não deixa de ser interessante quando se consegue reproduzir uma aventura com 75 anos de um tempo em que tudo era difícil para alguns e muitíssimo difícil para muitos!
Às histórias havemos de voltar!

Fernando Pereira
26/5/2015
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