Lipotimia da
Democracia?
Eis-nos na “antecâmara” das
eleições autárquicas.
Vamos
ter um mês de propostas requentadas, de proposituras em reprise e sobretudo
muito folclore. Depois tudo amança e volta-se ao quotidiano do repetível.
Talvez
não fosse mau as pessoas saberem à partida quanto ganha um autarca, desde os
membros das juntas aos executivos, e quanto custam as ajudas para os membros
das assembleias municipais e freguesias. Julgo que iria surpreender muita gente
quando soubessem os valores que auferem os “eleitos do povo”.
Não
pretendo pôr em causa o pagamento aos eleitos, achando que a democracia merece
esse preço a pagar pelo erário público, e que as pessoas devem receber pelo
trabalho em favor da comunidade. Não partilho, contudo, da ideia que as pessoas
façam discursos tão inflamados em que misturam o amor declarado à terra ao
sacrifício pessoal e familiar. Ninguém lhes pede isso. Mantenham convictamente
as promessas, muitas delas incumpríveis, mas evitem pedir aos eleitores o voto
para o supremo sacrifício do poder.
Não sei
porquê vem-me à lembradura nestas circunstâncias esta texto do truculento poeta
brasileiro Nelson Rodrigues em “óbvio ululante”: “Uma verdade historicamente
demonstrada: o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e
dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: ponham um santo na
primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá
ninguém, e repito: ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma
esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente
outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.”
Talvez
mesmo que seja do meu mau feitio esta de citar outros com um pior que o meu!
Há anos
que ando a clamar no deserto pela alteração desta legislação eleitoral ridícula
nos tempos que correm.
A
autonomia do poder local foi uma das grandes conquistas do 25 de Abril de 1974,
a par de muitas outras que vão sendo silenciosamente esmagadas.
Quando
se criou esta estrutura de poder autárquico teve-se em consideração a
necessidade de haver uma representatividade acrescida dos presidentes de junta,
sem que estes ficassem na dependência de amores ou maus humores dos presidentes
de Camara. Tinham, e mantém uma representatividade na Assembleia Municipal para
levarem os seus problemas a um fórum aberto. A situação prevalecente traz-me à
memória alguns aspetos da Camara Corporativa em que havia membros nomeados pelo
parlamento, organizações sindicais, patronais, grémios e outros. Era um órgão
consultivo ao invés da Assembleia Municipal que é um órgão que tem poderes para
vetar e aprovar documentos emanados do executivo, incluindo o orçamento
municipal, instrumento indispensável para a prossecução do trabalho de uma
autarquia.
A
bizarrice de tudo isto tem a ver com o facto dos membros da AM serem eleitos
pelos eleitores do concelho e quase metade serem eleitos só pela população de
uma freguesia. Podemos ter um eleito para um órgão alguém com 400 votos e uma
força partidária com 5000 votos não conseguir eleger alguém para um órgão em
que a legitimidade democrática fosse salvaguardada pela representatividade das
pessoas pelo número de votos.
Não vou
alongar-me muito mais, mas acho que os executivos deviam sair de uma Assembleia
Municipal eleita nos mesmos moldes da Assembleia da República, podendo o
Presidente da Camara fazer o executivo como quisesse sem se cingir ao absurdo critério
dos vereadores eleitos. Aí a AM tinha uma importância maior nos concelhos. Os
Presidentes de Junta fariam parte de um Conselho Consultivo, ou uma estrutura
com alguma hibridez que obrigasse a que a Camara Municipal ouvisse as suas
queixas e recomendações e fosse obrigada a aceitar quando houvesse propostas de
alterações estruturantes.
Acho
que era um tema interessante para salvaguardar a democracia e que deixe de
continuar a haver alguma demagogia no atual modelo desatualizado pelas
alterações do status quo político.
Fernando
Pereira
7/9/2025