16 de junho de 2012

O nome da ausência./ Ágora / Novo Jornal 230 15-6-2012








Na passada semana resolvi arrumar as minhas atulhadíssimas estantes. Os livros já começam a estar em terceira fila, e revistas, documentos, pastas com textos diversos, são colocados nas velhinhas malas de porão recuperadas depois de tanto cruzarem os mares e escaparem às térmitas e ao salalé.
Acreditem que é um exercício cansativo e simultaneamente demorado, dura alguns dias, e no fim fica tudo atulhado na mesma, com menos espaço, mas com a vantagem de ter avivado a memória relativa a obras que me vou esquecendo que estão por lá.
Redescobri o “Velho e o Mar” de Ernest Hemingway, traduzido para português por Jorge de Sena, um dos mais incompreendidos e esquecidos enormes escritores da língua portuguesa. Datado de 1951, foi o indiciador de que, a seguir a um Pulitzer, em 1953, lhe seria atribuído o Nobel, em 1954 e terá sido um dos romances que comigo funcionou como iniciação à literatura de qualidade.
"Um homem pode ser destruído, mas não derrotado" é o mote desta comovente saga de um ser frágil em luta desigual contra as mais inclementes forças da natureza. "Hei-de lutar enquanto tiver remos", diz para si próprio o velho pescador Santiago, protagonista do livro. No final, perdido o espadarte que pescara no alto mar e esgotadas as forças, basta-lhe a recompensa de nunca ter virado a cara à luta - mensagem que transcende épocas e modas, tornando-se numa alegoria da condição humana.
Cojimar, uma belíssima baía de Cuba, foi o lugar central desta novela e Jorge de Sena escreveu no prefácio à edição portuguesa do livro: "Esta é uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo".
A recordar o “Velho e do Mar” e simultaneamente a assistir às imagens da saída das tropas angolanas da República da Guiné-Bissau, no âmbito da “Missang”, lembrei-me com saudade do Viriato Pã.
Meu contemporâneo em Coimbra no dealbar dos anos setenta, Viriato Pã era um guineense que causava uma enorme empatia em todos os que com ele se cruzassem no quotidiano de farra e folia que ia reinando nos estudantes das colónias que por lá viviam nesse tempo.
O Viriato Pã, Balanta, era assumidamente um adversário da fórmula que Amílcar Cabral e o PAIGC preconizavam para a Guiné, o que irritava bastante os cabo-verdianos adeptos confessos desse projeto finado em 14 de Novembro de 1980, com o golpe de Estado de Nino Vieira. Foi deposto Luis Cabral, acusado de tudo que de mau tinha acontecido na Guiné, desde o assassinato dos comandos africanos, tropa de elite portuguesa recrutada localmente, até à míngua de produtos no circuito comercial. A velha máxima de que a “história dos vencidos é escrita pelos vencedores”, sempre presente no quotidiano.
Viriato Pã era um brilhante comunicador, com uma capacidade argumentativa notável e não se furtava a discussão nenhuma, fosse com quem fosse, quando o tema era a Sua Guiné Bissau. Foi no tempo em que esteve em Coimbra, onde iniciou o curso de direito, um dos poucos indivíduos da Guiné que partilhava companhia com toda a gente, o que de facto não acontecia com os seus conterrâneos que inclusivamente chegavam ao ponto de chantagear colegas que manifestassem desejo de participar em farras ou eventos desportivos e culturais em que os estudantes das ex-colónias arranjavam motivos para conviver.
Era intransigente na defesa de algumas posições próximas da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné) e naturalmente que, depois do 25 de Abril de 1974, as situações extremaram-se com os defensores do PAIGC. Nunca deixou contudo de manter as suas posições como também nunca alterou a sua postura em relação ao convívio com outros ou a amizades entretanto constituídas.
Foi para Lisboa, onde finalizou com grande brilhantismo o seu curso, e de vez em quando encontrávamo-nos e lá vinha a eterna conversa sobre a Guiné-Bissau e a “sua subordinação a Cabo-Verde". Aquando do golpe de 14 de Novembro de 1980, Viriato Pã regressa a Bissau cheio de sonhos que acabam todos quando é vítima de fuzilamento, um dos muitos de um País que cada vez menos faz por merecer o respeito da comunidade internacional e a indiferença generalizada dos cidadãos e estruturas de países da CPLP.
Foi com muita tristeza que soube do seu cobarde fuzilamento, por parte de Nino Vieira que, de uma penada e de forma soez, afastou quem ousava fazer-lhe frente, ou talvez nem isso!
Aliás, o posterior assassinato selvagem de Nino Vieira não me mereceu qualquer espécie de comiseração, apesar de o ter idolatrado na minha juventude pela sua figura de um guerrilheiro intrépido, a quem depois passei a olhar com desprezo.
Ao Viriato Pã a minha homenagem sincera, ainda que peque por tardia.
Fernando Pereira
11 /6/2012


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