26 de agosto de 2011
O ADEUS ÀS ARMAS?´/ Ágora / Novo Jornal nº188 /LUanda 26/8/2011
"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso. Mas esse regime só pode ser concebido, realizado e sustentado por homens que saibam que não sabem tudo, que se recusem a aceitar a condição proletária e nunca se conformem com a miséria dos outros, mas que recuse, justamente, a agravá-la em nome de uma teoria ou de um messianismo cego."
Albert Camus, Novembro de 1948
Há sessenta anos Camus dá um “murro” nos conceitos da esquerda francesa quando faz sair o livro L´Homme révolté , “ O Homem Revoltado”, o que o leva a zangas com anteriores “compagnons de route” como por exemplo Jean Paul Sartre, com quem nunca mais reatou relações.
Esse livro contextualizado num tempo em que Mao emergia na China como um libertador e um guia de uma revolução, no país mais populoso do mundo, quando MacArthur, o vitorioso general americano da guerra do Pacífico pedia bomba atómica sobre a China, no momento em que os americanos já intervinhamna Coreia, uma obra que punha em destaque a completa inutilidade das revoluções, era no mínimo espantoso.
Argumentava Camus que as três revoluções que eclodiram em França, reportando-se principalmente à de 1789, criticando a sua elevada violência, não conseguindo trazer à França um padrão de vida melhor que países escandinavos e os ingleses conseguiram sem grandes tumultos optando por transições pacíficas moderadas.
As críticas de Camus aos destemperos das revoluções não pararam por aí, visto que acreditava que os seus líderes no poder, mais tarde ou mais cedo, se tornavam repressores ou heréticos, policiais ou loucos!
Já há muito que não me lembrava deste livro de Camus e nem sei bem a que propósito, resolvi reler páginas que sublinhei há trinta anos, acrescidos de pontos de interrogação e exclamação, que reflectiam as minhas certezas em relação a certas passagens. Essas referências no texto eram nem mais nem menos que as minhas certezas de então, que a teimosia dos factos acabou por alterar para uma cada vez maior quantidade de dúvidas em relação à vida, ao mundo e às relações entre os homens num quadro que não pode ser limitado só à luta de classes, mas também não deve ser liminarmente abolido, como se tenta fazer quotidianamente na defesa do sacrossanto domínio de uma quase divindade chamada mercado.
Esta releitura de Albert Camus, um existencialista que me obrigou a ler tudo o que publicou, desde ensaio, romance ou teatro trouxe-me angústias, que julgava repelidas pela voragem dos tempos algo niilistas que vamos vivendo.
Uma das preocupações que tenho, e julgo que partilhada com algumas pessoas com quem vou discutindo ideologia e política tem a ver com a ausência total do ideológico no quadro político angolano.
Aparentemente muitos acham que a política é dispensável, mas não se coíbem de utilizar a sordidez de outras formas de manipulação para atingir a chefia dos chamados grupos de status, no nosso caso o racismo, as prerrogativas familiares, o regionalismo, e partirem daí para afirmações de um grande coração angolano, com as veias cavas oleadas em saborosas notas de dólar.
Como não existe democracia num estado puro. Não existe democracia no vazio. A democracia é sempre portadora de um conteúdo de classe, fico-me por uma citação de um livro comprado na ex-livraria Che Guevara em Cabinda há muitos anos, e que hoje também desfolhei sem particular interesse, e nessa altura sublinhei a vermelho, preto e amarelo: «As ideias nunca podem levar a ultrapassar um antigo estado do mundo, apenas podem permitir ultrapassar as ideias do antigo estado de coisas. Falando de uma maneira geral, as ideias nunca podem executar nada. Para executar as ideias, são necessários os homens, que põem em acção uma força prática».Karl Marx e Friedrich Engels, A Sagrada Família, Editorial Presença, 1974, p.179.
Não sei se vem a propósito, mas há mil e uma razões para não comprar um Rolls-Royce; a primeira é a falta de dinheiro… as outras, assim sendo já não interessam.
Fernando Pereira
20/08/11
19 de agosto de 2011
MARABUNTA / Ágora/ Novo Jornal nº 187/ Luanda 19-8-2011
Hoje vou ter que ir ao baú do muito que ouvi, do pouco que vi e do bastante que imaginei relativamente à “Marabunta”
Para os menos familiarizados com estas coisas: Marabunta (Cheliomyrmex andicola) é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. É de cor avermelhada, tamanho médio, parecida com o Kissonde. Suas mandíbulas são em forma de garra e armadas com grandes espinhos, semelhantes a dentes, que permitem que elas se prendam às suas presas durante o ataque. Suas picadas são extremamente dolorosas, irritantes e paralisantes. A dor que provoca assemelha-se com a da picada das "formigas de fogo".São a única espécie que remove e consome carne de vertebrados, como lagartos, serpentes e pássaros, inclusive de animais de maior porte, até o homem.
Não vem muito a propósito, mas retenho na minha memória a invasão de uma horda de kissonde a um terreiro circundante às residências de uma exploração de café no Norte de Angola. Era miúdo, e recordo-me de ver milhões de formigas a deixarem lisinho o terreno por onde passavam, e a irromperem em direcção à fogueira entretanto ateada com gasolina, única forma de as conseguir parar e exterminá-las.
Vou falar de outra “Marabunta”, uma personagem famosa da Luanda dos anos cinquenta e sessenta e que já só conheci numa fase em que a sua áurea se teria já desvanecido. Era uma madeirense que terá emigrado para Luanda, na busca de uma vida que dificilmente encontrava na sua Madeira.
Segundo as vozes a “Marabunta” era uma mulher que desafiava a morrinha quotidiana da provinciana Luanda do antanho. Mulher vistosa, loura, despreconceituosa, ambiciosa, deslocava-se sempre num Chevrolet Corvette vermelho garrido descapotável, insinuando-se numa cidade que parava literalmente para a ver.
Constava-se que esse Corvette era do Ferreira da Massa, que tinha umas fazendas de café, abriu o Bowling ao pé do Hospital Militar, uma fábrica de massas num edifício onde funciona a representação consular da África do Sul, ali para os Coqueiros.
A “Marabunta”, apenas sei que se chamava Gracinda, alimentou muitas histórias e muita galga na Luanda dos anos sessenta e setenta, e só vê-la passar em frente ao Salvador Correia era para os que se empoleiravam no muro um verdadeiro troféu, imaginando pelos joelhos da senhora o torneamento do resto das pernas.
A “Marabunta” era muito ciosa nas suas relações, e conta-se que um daqueles fazendeiros do café enriquecido, quis gozar com ela; Depois dos “preliminares”, passou-lhe um cheque de 20 contos (atenção estamos no fim dos anos 40 e era muita massa) sabendo que aquela conta só tinha 18, ela foi ao Banco de Angola, e como era sobejamente conhecida o banco depositou os dois contos e ela levantou o cheque. O fazendeiro acabou gozado quando pensou que estava a lidar com alguma “amadora”.
Em determinada altura na hoje Avenida Valódia, estabeleceu-se na “Vidraria dos Combatentes”, paredes meias com o ” Punta del Pazo” , tendo comprado todo o material da “vidraria Leiriense”, ao lado da Saratoga ao pé do edifício na Mutamba que hoje alberga o Ministério das Finanças. Na cidade faziam-se conjecturas diversas, como é que ela teria conseguido o dinheiro para montar um estabelecimento, que era passagem obrigatória de miudagem e graudagem, por razões que pouco tinham a ver com vidros ou espelhos. Constava-se que tinha sido novo-rico do café do Golungo-Alto, que estava com ela amiúde no “Sporting” na 1ª rotunda da ilha, e que dizia em voz alta: “O meu dinheiro é inacabável”. Parece que a “Marabunta” sem muito esforço, provou o contrário em pouco tempo, tendo-o deixado falido. A realidade é que a senhora juntou-se entretanto com um furriel do exército colonial, que as más línguas da cidade chamavam de “furriel consorte” , mudou de carro, tendo comprado um Chevrolet Camaro amarelo, aí por volta de 1970. Nessa altura já envelhecia e vendeu por muito bom preço o único Corvette descapotável que havia em Angola, e que tinha a matrícula AMF- -?
Duas décadas de ouro, para o carro e para a Marabunta, afinal uma mulher que toda a cidade conhecia e contava histórias, muitas inventadas, mas que ainda hoje é recordada nas conversas de um cada vez maior número de pessoas, que cada vez mais se lembram do que se passou há muitos anos, e não se conseguem recordar o que fizeram uns dias antes.
Para lá caminho também!
Fernando Pereira
15-8-2011
12 de agosto de 2011
"Massa Bruta" / Ágora / Novo Jornal nº 186/ Luanda 12/8/2011
O Negage no tempo colonial era uma cidadezinha (???) sem grande piada, que não destoava de todas no grande Congo Português.
A figura marcante do Negage durante décadas foi um ex-degredado de Valpaços, vila portuguesa transmontana, João Ferreira de sua graça.
Tinha um porte físico avantajado, sempre andrajoso com umas calças de serrobeco coçadas, uma camisa de xadrez que poucas vezes terá visto água e sempre nas costas com um casaco ensebado que nunca largava, fizesse frio ou calor argumentando que “o que tapa o frio tapa o calor”.
Segundo constava, este iletrado era provavelmente uma das maiores fortunas de Angola e à sua volta multiplicavam-se as histórias mais inverosímeis. Eu conheci-o em miúdo e nunca mais me esqueci da abundante pilosidade das suas mãos, sempre em movimento no meio de berros quase imperceptíveis.
Tinha uma actividade comercial fecunda e as suas cantinas proliferavam por todo o Norte de Angola desde o Ucua, Camabatela, Kimbele, Quitexe, Kalandula, Ambriz, Cangola, Tomboco, uma teia que percorria várias vezes por ano para fazer contas com empregados locais. Quando fazia as contas e o empregado se queixava que “o negócio estava mau”, o “Massa Bruta”, como também era conhecido, dizia ao feitor que o acompanhava que “faça contas com este tipo”; Perante a estupefacção do empregado dizia: “Um empregado meu tem que roubar para ele e para mim, só roubar para ele não é negócio ”.
Tinha umas fazendas de café, uma demarcação de gado e muitos prédios urbanos espalhados pelo norte de Angola, Luanda, Lisboa e Valpaços, onde quando ia de férias havia sempre uma festa programada com banda fanfarra e bailarico durante dias, onde as pessoas comiam por sua conta. Era um gastar à tripa-forra de uma pessoa que era avaro no que tocava a fazer face às suas obrigações, para com os contratados nas suas propriedades em África, muito pouco respeitados aliás.
Em Luanda, num terreno na Valódia onde até há bem pouco tempo havia um mercado numa miserável adaptação africana dos jardins do Dali em Figueras, o João Ferreira preparava-se para fazer o maior prédio de África, “donde se avistasse Catete”, que felizmente se ficou pelas intenções, frustradas pela evolução política angolana.
Contam-se histórias surpreendentes do João Ferreira, como aquela de ter ido ao BCA, no início dos anos 60, e com o ar andrajoso terá pedido 15.000 contos da sua conta, ao que o empregado disse que tivesse juízo; Como o Ferreira insistia que queria o dinheiro, o gerente do banco é chamado ao balcão e fica lívido quando se depara com a situação. O fanfarrão do Ferreira exigiu que o empregado fosse demitido e que lhe fosse dado todo o dinheiro que por lá tinha, algo que o Banco despodia fazer. Depois daí a história espalhou-se que seria para instalar o BCCI, que o dinheiro teria ido em camionetas para o mato em notas de vinte, que o caixa que contou o dinheiro se enganou na contagem e deu mais de mil contos, tendo ido ao Negage de avião e depois de sanado o erro, o Ferreira terá dito: “ Tome lá os mil contos, que dinheiro só quero o meu, e leve mais este molho de cem para os gastos e o susto”. Conta-se a história de ter comprado o “Hotel Mundial”, depois de lhe ter sido barrada a entrada por se apresentar sujo e andrajoso, tendo exigido o despedimento imediato do empregado.
O João Ferreira em determinada altura, numa atitude recorrente de “coronel” brasileiro do interior, quis impor no Desportivo do Negage algo que desagradava aos outros directores, que ousaram desafiá-lo. Não esteve com meias medidas, fundou o Sporting, mandou alguém a Lisboa comprar uns jogadores das reservas do Benfica, alguns já com varizes, e eis que nos deparamos no fim dos anos sessenta, uma vila do interior com duas equipas a disputar um campeonato de doze equipas, numa afirmação clara que o dinheiro abrutalhadamente conseguido vale mais que tudo.
Para muitos era uma figura notável, que colocou o Negage no mapa, tendo inaugurado em 1971 o Hotel Tombwaza à entrada na estrada que vinha de Camabatela, mas não passava de uma figura ridícula apaparicado porque tinha dinheiro, não sabia ler nem escrever, não sabia conduzir, não andava de avião, em síntese uma pessoa amiudadas vezes recordada pelos piores motivos.
Não respeitava a autoridade, porque entendia que era ele que a pagava, tratava toda a gente com sobranceria e era excessivamente grosseiro com os seus empregados principalmente com os trabalhadores negros; Não usava cheques e o seu mundo era limitado e talvez mesmo os seus maiores devaneios foram as garrafas de espumante marado que pagava a rodos nos cabarets luandenses Bambi, Marialvas, Embaixador etc., onde a sua boçalidade era insistentemente comentada.
Gente deste jaez era dispensável em Angola.
Fernando Pereira
8/08/2011
"Trinca-Fortes" / O Interior/ 11-8-2011
A Lusofonia tem as suas vacas sagradas, e admitamos sem rebuço que Luís de Camões é uma delas pois é um dos símbolos maiores da escrita em língua portuguesa!
Desvou escrever sobre Luís Vaz de Camões da forma hermética que o discurso oficial e oficioso da Lusofonia nos habituou, mas sim do verdadeiro "Trinca Fortes", com as características do português suave de Fernão Mendes Pinto miscigenado com o Fado Tropical de Chico Buarque.
Na linguagem da filosofia, tentou-se criar uma ciência independente: "A Semiótica"! Realmente a primeira proeminente figura da Semiótica mundial foi Luís de Camões, ombreando com o Capitão Gancho e mais recentemente com o antigo ministro da defesa israelita, Moshe Dyan. O comum destes tipos era só terem um olho, ou apropriadamente dizerem, trazer tudo debaixo de olho!
Falando de Luís Vaz de Camões, que tem para aí dez terras a assumirem que nasceu por lá! Lisboa (os lisboetas só ainda não assumiram que o Pinto da Costa nasceu lá, porque ainda é vivo, e inevitavelmente daqui a 500 anos irão, de certeza fazer-lhe uma estátua, colocarem uma lápide numa casa a dizer:”Aqui presumivelmente nasceu Jorge Nuno de Lima Pinto da Costa, homem sério, vencedor como nenhum outro, incompreendido no seu tempo!”). Santarém, Coimbra, Constança, Porto, Linhares da Beira, outras e paradoxalmente no meio de todas Olhão, que presumo por um devaneio humorístico, pois só faltaria, terem dito, que o homem teria nascido na avenida da Boavista no Porto.
O Luís de Camões fascina-me em muitos aspectos! Começando pelo seu fim, admitamos que personifica algum pechisbeckismo dos portugueses. Estar na miséria, e ter um escravo com nome económico, Jau, para mendigar por ele. Tinha uma tença, que revela bem que o problema das reformas é já um problema antigo, que não lhe dava para sobreviver, e vai daí arranja um escravo para cobrir alguma zona da cidade. Esta de ter um escravo para pedir esmola é coisa grande!
Outra coisa que me fascina, é o facto de ele ter atravessado o mar da China, com os Lusíadas numa mão no meio da tempestade. Sinceramente era demais, sem um olho e só com um braço, o homem merecia uma toalha da GANT á chegada, um chá e uns scones quentinhos! Como ainda não havia a indústria da petroquímica, nem os derivados do petróleo, não se pensava sequer nos sacos de polietileno, para embrulhar o notável canto IX dos Lusíadas, que no liceu só um professor de português numa de clandestinidade ousou mencionar. Houve alguém que insistiu presumir, que todo esse episódio aconteceu na Costa dos Esqueletos, perto do rio Cunene.
Já vem de longe, a falta de apoio aos criadores e à cultura, algo que não acontece com a gente dos mercados, tão apoiados sempre pelo dinheiro subtraído aos contribuintes.
Algo em que o olho é recorrente ou não estivéssemos a falar de Camões é vê-lo andar sempre metido com o olho pelas casadas, o que o obrigou a "ser olho por olho, dente por dente", prevalecendo no caso dele o “olho por olho”!
Deixo o “olho por olho” pois não faltaria muito para ser acusado de revelar alguma homofobia no que estou a escrever, fruto de leituras enviesadas que alguns fazem destes escritos.
Deixem-me pelo menos finalizar com duas breves citações do discurso do mal-amado Jorge de Sena no 10 de Junho de 1977 na Guarda sobre Camões e Portugal:
“Os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade”
“Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano”.
Fernando Pereira
7-08-2011
6 de agosto de 2011
Não sei por onde vou mas sei que não se deve ir por aí./ Ágora / Novo Jornal nº185 / 5-8-2011/ Luanda
Por insistência de um amigo, fascinado pelos prédios em altura, acompanhei-o numa visita à “Nova Cidade de Kilamba Kiaxi”.
Habituado às bizarrices urbanísticas e aos discutíveis projectos arquitectónicos que enxameiam a cidade capital, limitei-me a encolher os ombros enquanto o meu amigo exultava com a quantidade de gruas e a dimensão dos estaleiros.
A ideia que trouxe quando saí daquele emaranhado de torres, atafulhadas umas em cima de outras, completamente desinseridos de um contexto aglutinador de cidade, só me resta achar enquanto observador diletante, que quem projectou aquilo está numa posição privilegiada para fazer muitíssimo pior.
Por ironia do destino, o Semanário Angolense fez na semana passada uma entrevista ao arquitecto Simões de Carvalho, um luandense nado e criado numa cidade onde participou em equipas interdisciplinares de planos directores municipais, elaborou coerentes planos de pormenor (o trabalho no Prenda é paradigmático) e executou obras arrojadas que passados mais de quarenta anos ainda são referências no caos urbano em que se transformou a cidade (a título de exemplo o edifício da Rádio Nacional de Angola).
Essa entrevista merece releitura atenta porque de uma forma cortês Simões de Carvalho, põe em causa o muito do que de mau se tem feito em Luanda para deleite de alguns, infelizmente bastantes, que olham para a cidade como se estivessem a ver uma Manhattan.
O arquitecto Simões de Carvalho entre vários exemplos foca a perigosidade dos arranha-céus construídos na baixa e na Ilha, e acima de tudo a existência de caves, num solo arenoso e permeável às águas. Não me canso de repetir que a entrevista merece reflexão, e acima de tudo urge discutir a cidade nas suas múltiplas vertentes, para ver se ainda vamos a tempo de conseguir salvar alguma coisa para o futuro, sendo nossa obrigação pedir desculpa aos vindouros por lhe termos legado um património edificado com tamanha falta de visão e qualidade.
A visita a Kilamba Kiaxi obrigou-me a procurar a revista “Novembro” de Fevereiro/ Abril de 1977, onde recordei a viagem de Fidel de Castro a Angola em 23 de Março de 1977. Dirigida pelo saudoso Mário Alcântara Monteiro, esta “Novembro” trouxe-me gratas recordações da vivencia colectiva de um País que emergia orgulhoso no contexto das nações africanas.
Fui ler o discurso de Fidel de Castro no Golfe, por ironia muito perto do que é hoje a Nova Cidade de Kilamba Kiaxi, e a realidade é que ao tempo o discurso era coerente e nalguns aspectos mantém grande actualidade.
“Antes de vir a Luanda, todos os cubanos me diziam: “Luanda é uma cidade muito bonita”. Efectivamente Luanda é uma cidade muito bonita. Tem grandes edifícios de dez, doze andares; grandes avenidas… Há 140 edifícios para terminar…” “Agora, o governo angolano enfrenta estes problemas: Muitos grandes edifícios que estão por terminar_ E muitas famílias vivem nos musseques. Que fazer? Dedicar todos os recursos a concluir esses edifícios? Serão alguns centos, talvez alguns milhares de habitações. Mas isso é muito caro. Com o que custa um desses apartamentos talvez se façam três casas…” “…Aqui no Golfe há-de erguer-se a primeira experiencia piloto de urbanização” …” Os prédios se forem muito altos precisam de elevadores, tecnologia que os angolanos não dispõem e ficam sempre dependentes dos países capitalistas para a sua manutenção”… Se forem moradias unifamiliares aumentam de tal forma a cidade que precisam de uma rede de transporte eficaz e as viaturas e manutenção dependem do imperialismo” …”a solução tem que ser prédios pequenos onde se estabeleçam relações de convívio e vizinhança e que não aumentem a cidade de forma a torná-la insuportável”… E por aí fora sintetizada numa frase: “ a Revolução tem que construir para todos”.
Do que li desta alocução de Fidel de Castro nada contraria o que Simões de Carvalho disse na sua entrevista ao Semanário Angolense. Ontem como hoje a manterem-se as coisas os problemas de amanhã serão os mesmos.
Fernando Pereira
30/7/2011
29 de julho de 2011
“A crítica pública devia ser um direito e não um risco”/ Ágora/ Novo Jornal 184/ Luanda 29-7-2011
Nesta coluna há uns tempos, fiz uma referência a um julgamento em que três cidadãos estavam no banco dos réus, porque de diferente forma participaram na peça do Teatro D. Maria II, “ A filha rebelde”.
A peça baseada num texto de José Pedro Castanheira, com Margarida Fonseca Santos como encenadora e Carlos Fragateiro na qualidade de director do D. Maria II, réus num processo em que eram acusados de difamar a figura do falecido Fernando da Silva Pais, o ultimo director da PIDE- DGS em Portugal. Os familiares acusaram os autores da peça de “colocarem na lama” o bom nome do seu tio, e o que se me oferece dizer é que o Silva Pais tem que ter o nome e a vida dele sempre na lama, que é o seu lugar, tais os crimes que cumpliciou.
Aconteceu a absolvição dos réus com o argumento do juiz que deveria fazer jurisprudência: “a crítica pública devia ser um direito e não um risco”.
Ao contrário de algum marasmo qualitativo na literatura angolana actual, assistimos na literatura portuguesa ao aparecimento de excelentes talentos que temos que referenciar, já que cada vez mais a expressão oficial portuguesa é a unidade da nossa vida comum. Walter Hugo Mãe (pseudónimo de WH Lemos) por acaso nascido em Saurimo em 1971 é hoje um dos emergentes romancistas portugueses com enorme êxito em Portugal e no Brasil, tendo Saramago comentado em 2008 que “estávamos perante um tsunami na literatura” e curiosamente um dos poucos que António Lobo Antunes elogiou. “A máquina de fazer espanhós” é um livro de leitura urgente, deste multifacetado artista plástico, romancista, poeta, editor e DJ.
Outro dos brilhantes escritores da nova geração, por acaso também nascido em Angola (Luanda 1970) é Gonçalo M. Tavares que em 2007 recebeu vários prémios, um deles entregue por José Saramago e que disse a propósito do romance “Jerusalem”: «é um grande livro, que pertence à grande literatura ocidental. Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!». Este ultimo livro “Uma viagem à Índia” recentemente editado pela Caminho, é uma obra extraordinária e corolário de todo um percurso de vários “Senhores”, conjunto de livros surpreendentes do autor.
Se juntarmos a estes um José Luis Peixoto, um João Tordo ou um Jacinto Lucas Pires, para citar apenas meia dúzia de romancistas, podemos afirmar sem rebuço estarmos perante um período muito interessante das letras do “Ultramar” com a capital em Lisboa!
Estamos no ano da comemoração do centenário do nascimento de um dos poetas portugueses que melhor escreveu o Alentejo, suas gentes e lutas; Manuel da Fonseca (1911-1993) foi um dos grandes do neo-realismo, fundador da Vértice, onde colaboraram também Eugénio Ferreira e Manuel Rui Monteiro, e presidente em 1965 da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta foi encerrada, na conhecida circunstância da atribuição do prémio a Luandino Vieira pelo seu romance Luuanda.
Manuel da Fonseca viu muitos dos seus poemas serem musicados por um dos cantores de intervenção mais injustamente esquecidos em Portugal e em Angola: Adriano Correia de Oliveira.
Adriano Correia de Oliveira (1942-1982), um enorme coração de 1,80m foi um exímio intérprete da canção de Coimbra, “baladeiro”, cantor de intervenção, actor de teatro, jogador de voleibol, estudante de direito e acima de tudo um homem solidário e um verdadeiro distribuidor de afectos.
Participou com Zeca Afonso, Fausto, Ruy Mingas entre outros num espectáculo de apoio ao MPLA na Cidadela, e entre muitos apertos que teve ao longo da vida lembrava sempre o do “canto livre” da cantina da Universidade, na baixa de Luanda ao pé da Igreja da Nazaré, quando a cantina foi invadida por provocadores armados da FNLA nesse distante 1975.
Trabalhou com alguns de nós em muita coisa relacionada com a emergente Republica Popular de Angola, nomeadamente no Órgão Coordenador do MPLA para a Europa, no Luciano Cordeiro em Lisboa, onde se fazia de tudo em pouco para se substituir uma embaixada que não havia então em Portugal.
O Luis Filipe Colaço, nosso insigne estatístico, colaborou com o Adriano nos arranjos musicais do disco “O Canto e as Armas” de 1971 onde tem uma canção com poema seu, editado pelo Arnaldo Trindade, antecedendo a sua fuga de Portugal para se juntar aos muitos que lutavam por uma Angola diferente.
Fernando Pereira
24/7/2011
22 de julho de 2011
LIVROMENTE/ ÁGORA / Novo Jornal nº 183/ Luanda 22-7-2011
Editado pela “Afrontamento” já no fim do ano passado só agora acabei de ler o livro “Os donos de Portugal”, um relato de “cem anos de poder económico” da autoria de Jorge Costa, Luis Fazenda, Cecília Honório, Francisco Louçã e Fernando Rosas.
Talvez alguns dos autores suscitem reservas políticas pertinentes, mas isso não invalida que estejamos perante um trabalho sério, em que naturalmente as relações entre Portugal e Angola no último período de um século sejam escalpelizadas com detalhe. Das relações dos grupos económicos portugueses em Angola no período entre 1910 e 1974, o livro pouca novidade traz a muitos outros que foram sendo publicados há longos anos a esta parte, desde o estudo de Maria Belmira Martins, Maria Filomena Mónica, Pedro Ramos de Almeida, Eduardo Sousa Ferreira, Armando de Castro e quejandos ao nosso conterrâneo Henrique Guerra, no seu “Angola, Estrutura Económica e Classes Sociais”, livro escrito na prisão de Peniche em 1972 e 1973, onde esteve preso por actividade política na luta anti-colonial.
O que acaba por ser interessante neste livro são a constituição dos novos grupos económicos portugueses e a sua interligação e participação no capital por grupos angolanos, e a sua reciprocidade.
O livro é a compilação de textos académicos a que os autores deram uma discutível componente política de um espaço económico pronunciadamente agrilhoado.
Foi com surpresa que li que o Presidente José Eduardo dos Santos, teria dito que quando da independência, Angola teria apenas quarenta licenciados! Não faço a menor ideia em que contexto o disse, mas qualquer que seja está completamente equivocado.
Recordo-me que em 1978 na esteira do 1º Congresso do MPLA houve por parte da então Universidade de Angola, hoje Agostinho Neto, a necessidade de se criar uma comissão que determinasse o número de doutorados, mestres, licenciados e bacharéis existentes no País e ao que se apurou por exemplo no tocante a médicos angolanos eram pelo menos 58, se a memória não me trai. Esse documento foi muito badalado pois havia profissões em que o número de licenciados era de três, falando por exemplo de geólogos. Era curioso o número de antropólogos e sociólogos que apareceram então, e que era motivo de alguns dichotes, no que o angolano é de uma prodigalidade assinalável.
O livro de Carlos Rocha Dilolwa de 1978, “Contribuição à História Económica de Angola”, apontando os números da colonial FASTA (Fundo de Acção Social no Trabalho), refere 3094 alunos matriculados no ensino superior em Angola e 274 docentes em 1972. Convirá não esquecer que Angola no tempo colonial não tinha várias faculdades, como por exemplo Direito, Arquitectura entre outras. Dilolwa aponta para a existência de 561 médicos em 1973 na colónia, exceptuando os da tropa colonial. Mesmo grande como foi a debandada houve muitos que permaneceram e outros que regressaram O próprio livro encomiástico sobre Angola, da Progresso de Moscovo, de L.L. Fituni diz que Angola em 1976 tinha 50 médicos de um total de 750 no tempo colonial.
Estes livros da editorial Progresso deviam ser elevados a objectos de culto, nomeadamente os que existem sobre Angola e que guardo religiosamente na minha estante. Ocasionalmente, como foi o caso, abro-os e não me fico pelo que vou procurar; Vou começando a ler e realmente os “sovias” conseguiam mostrar uma Angola que nem os próprios angolanos mais acérrimos defensores de qualquer causa tinham “peito” para defender.
Oleg Ignatiev, o citado Fituni, Albert Nenarakov ou o Tarabrin, doutor em ciências históricas (leis gerais e carácter específico da luta anti-imperialista), são alguns dos muitos e pujantes escritores da ex-URSS que falavam de Angola com pouco ou nenhum conhecimento, mas lá enxameavam as poucas montras das livrarias com livros que empoeiradamente se iam mantendo, até que alguém se lembrasse que o sol já tinha descolorada a encadernação.
No livro do tal Fituni vem um quadro com a população de Angola em 1980 dividido em etnias: Africano, Branco e Mestiço! Uma “pérola” entre várias.
Estou convencido que alguns destes livros só poderiam ter vindo na cabine de algum limpa-neve!
Fernando Pereira
19/7/2011
15 de julho de 2011
CONSAGRADA TOPONÍMIA/ Ágora/ Novo Jornal nº 182/ Luanda 14-7-2011
Durante uma temporada num período pós-colonial as placas da sinalização vertical e os traços da sinalização horizontal da cidade desapareciam num ápice e só anos mais tarde é que eram substituídas.
O cidadão de Luanda não raras vezes confrontava-se com posturas municipais que alteravam o trânsito, publicavam essa alteração na imprensa, comunicavam à polícia (então CPPA) e placas ou riscos no chão nem sombra, o que acabava sempre por originar discussões e multas recorrentes.
Uma certa manhã, numa altura em que o movimento de viaturas nada tinha a ver com o de hoje, numa rua ali para os lados de S. Paulo que sabia ter um único sentido no tempo colonial confronto-me com um carro em sentido contrário. Naturalmente desviei-me porque a ideia com que fiquei foi que o condutor era um neófito na cidade e iria fazer o mesmo, devendo explicar-lhe que estava enganado. O homem, um expatriado, ao tempo cooperante começou a vociferar e a agitar os braços de forma ameaçadora, como a razão lhe assistisse.
Eu, cidadão nado e criado em Luanda resolvi perder uma parte das boas maneiras e resolvi desfacilitar pela falta de propósitos do indivíduo. Saiu do carro e dirigiu-se a mim e peremptoriamente afirmava, com tiques até simiescos, que eu estava a transgredir, respondendo-lhe que quem estava a fazê-lo era ele pois aquela rua sempre teve aquele sentido. Ele argumentava que não havia placa nenhuma, e disse-lhe o mesmo que faziam os polícias de Luanda enquanto passavam a multa: “já lá esteve”. O tipo saiu a abanar a cabeça, deu meia volta e reentrou na legalidade, ainda que desconvencido.
Se houve placas que já caíram várias vezes houve outras que se mantém de azulejo, cimento e ferro de pé na cidade com a toponímia colonial bem vincada e quase a afirmar que “aqui foi Portugal”!
A Igreja da Sagrada Família foi executada segundo o plano gizado pelos arquitectos António de Sousa Mendes e Sabino Luis Martins, que ficaram em segundo lugar no concurso para o projecto em 1964, tendo sido preterido o desenho do arquitecto do Lobito, António Campino (1917-1997), o vencedor do concurso, considerado demasiado arrojado pelas autoridades eclesiásticas.
Em tempos quando a sua conservação deixou muito a desejar o léxico verrinoso do luandense chamava-lhe a “desgraçada família”. Nas traseiras do templo há uma placa que indica a Rua D. Manuel I, Rei de Portugal (sec. XV e XVI) que termina no Largo da Independência.
Convenhamos que é no mínimo irónico, quando vemos ruas com nomes de cientistas, escritores e cidades serem substituídas pelas razões políticas mais pueris e permanecer este nome, que terá sido o rei que mais “colheu” com os “descobrimentos” ou “achamentos” como bem dizem os brasileiros.
Lembro que a Sagrada Família foi inaugurada pelo Américo Tomas, ao tempo presidente da Republica de Portugal e logo se me amemoriou o discurso feito pelo Tomaz em 1970 noutras circunstancias não menos risíveis.
Ao presidir à cerimónia da inauguração da estátua de D. Manuel I, em Alcochete, o Chefe do Estado afirmou: «Vive hoje a vila de Alcochete o dia mais festivo da sua existência milenária, ao encerrar as comemorações do quinto centenário do nascimento do rei D. Manuel I com a inauguração da estátua erguida na terra em que o rei «Venturoso» viu a luz da vida, há 501 anos. ( ... ) Primo direito do rei D. João II, sobrinho do rei D. Afonso V, sobrinho-neto do Infante D. Henrique ,o excelso príncipe das Descobertas, e bisneto do rei D. João I, D. Manuel foi o nono filho do Infante D. Fernando, irmão único de D. Afonso V. Quando aqui nasceu em 1469, nada faria 'prever que pudesse vir a ser rei de Portugal, mas uma série de imprevisíveis acontecimentos caprichou em o tomar o único herdeiro legitimo de D. João II, quatro anos antes da morte do grande rei e notabilíssimo governante, que pela sua sagacidade e persistência excepcionais, se tomou num dos maiores homens portugueses de todos os tempos. Desígnios da providência”. Depois de referir que “as palavras que proferia não eram propriamente para acrescentar qualquer achega às que foram ditas e muito bem ditas”, o Chefe do Estado afirmou, a certo passo: “D. Manuel I beneficiou de um passado que lhe preparou magnificamente o futuro. Foi, sem dúvida, sumamente venturoso por isso, mas não o teria sido se o não tivesse sabido ser. Esta uma verdade que seria injustiça não lembrar nesta ocasião solene. Termino, apresentando os meus respeitosos cumprimentos aos nobres descendentes do rei Sr. D. Manuel I e lembrando também que devemos ser gratos à sua memória e honrar a obra imensa que realizou. É o que estamos presentemente fazendo em África”.
Falta só dizer que este texto foi objecto de censura pelos serviços do “Exame Prévio”.
Fernando Pereira
12/7/2011
A Borracha do Rocha /Jornal O INTERIOR / 14-7-2011
Presumo que os próximos tempos serão de grande discussão no Partido Socialista num momento em que "O PS tem de ser refundado de alguma maneira, tem de ser melhorado, tem de discutir política a sério e tem de ter política a sério e grandes ideias para o futuro", segundo Mário Soares.
Fiquei perplexo porque sempre pensei que o Mário Soares tivesse sido alguém no PS, mas pelos vistos um de nós enganou-se, a história ou eu.
Nunca é tarde para começar, e já estou a ver que nos próximos tempos o que se vai discutir no Partido Socialista vai ser Hegel, Owen, Fourier ou Saint-Simon , o jovem Marx (estou a ver toda a gente com a Ideologia Alemã e as “Críticas a Feuerbach” na mão, ali para o lado da Rua dos Prazeres),Kautsky, Bernstein, Weber ou outros teóricos do socialismo moderno.
Acredito que vai ser mesmo isto e acho que se vai conseguir sair dos lugares comuns do quotidiano eleiçoeiro, onde magotes de gente com colarinho fechado, vestidos com fardas maoistas a brandir o livro vermelho poderão ocupar uma outra sede, ali perto da Álvares Cabral na cidade capital do País, onde todos os Prazeres de todos os distritos e autónomas fluirão num líder qual revisitação portuguesa de “The Last King of Scotland”, esse filme onde Forest Whitaker foi “oscarado”.
Vou gostar de ver, e quiçá participar neste conclave se me aceitarem, mas talvez ainda não veja grande movimentação porque os textos teóricos estarão presumivelmente a ser passados para PDF. Há sempre a possibilidade de poder consultar o site de uma fundação perto de si (neste caso, no largo de S. Bento, perto do Rato).
Como o Tomas enquanto presidente tinha mais piada que o Cavaco Silva, apesar das atribuições serem iguais, não resisto a colocar aqui uma parte de um discurso e reportagem em 1970 em Torres Vedras: O Chefe de Estado visitou Torres Vedras, onde inaugurou vários melhoramentos. À sua chegada, uma força da Legião Portuguesa prestou as honras da praxe ao Almirante Américo Tomás. Ao discursar, durante a sessão de boas-vindas, o Chefe do Estado evocou o papel histórico das linhas de Torres. Disse o Almirante Américo Tomás: “Tem esta terra, senhor presidente, largas tradições, tradições que vêm de muito longe; mas eu agora só quero referir aquelas que distam no tempo de século e meio. Aqui estão colocadas as Linhas de Torres, essas Linhas que conseguiram parar os exércitos de Napoleão e salvar a cidade de Lisboa na terceira invasão francesa. Pois bem, esta terra cumpriu, através das suas Linhas, o seu papel na defesa da Pátria. Tem cumprido sempre esse papel ao longo dos tempos e eu, neste momento, para terminar estas minhas palavras, quero dizer que as Linhas de Torres estão presentemente em todo o nosso Pais: começam no nosso Ultramar, mas, também, aqui na Metrópole, elas são absolutamente indispensáveis, porque temos que defender a nossa Pátria em todos os lugares onde ela existe. E hoje, nos tempos modernos, o campo de batalha não está apenas no sítio em que as lutas se travam: está em toda a parte, e nós, por conseguinte, precisamos de ter Linhas de Torres em todo o nosso Pais, em todo o nosso território,..”
Não sei se irei ler o “18 Brumário de Luis Bonaparte” de Marx para seguir as orientações do também Nobre, mas Soares.
Fernando Pereira
27/6/2011
10 de julho de 2011
UMA VOLTA PELO BAFIO! / Ágora / Novo Jornal 181/ Luanda 8-7-2011
Às vezes empoleiro-me na estante, arriscando os meus volumosos e mal distribuídos 94kg também os 1, 87m de altura e talento e reencontro verdadeiras obras e desgraças do Espírito Santo, de quem não sou adepto nem tampouco temente.
Voltei a pegar no livro de Mugur Valahu, “Angola – Chave de África”, editado pela P.A. M. Pereira em Lisboa 1968.
Peço que desculpem o termo, mas o livro é uma verdadeira náusea no que às relações humanas e raciais respeitam.
Vamos por partes. Este Mugur Valahu nasceu em Bucareste em 1920 e faleceu no sul de França em 2003. Aos vinte anos, como membro da organização fascista romena da “Guarda de Ferro” , a "Orastie Libertatea", participa e é ferido na “Operação Barbarrosa”, nome de código da intervenção militar nazi na URSS durante a segunda guerra mundial, integrado como voluntário no exército de Hitler.
Em 1946, algum tempo depois da queda do pró-nazi Ion Antonescu, Mugur foge para em Paris onde começa um percurso de jornalista na Rádio Free Europe, BBC, Fígaro e France-Press, tendo conseguido a nacionalidade americana graças aos bons ofícios de uns quantos romenos exilados nos EUA, acolitados pelo arcebispo da Igreja Ortodoxa, Valeria Trifa, presidente da National Union of Romanian Christian Students, organização de legionários do regime romeno, e serventuário das “potencias do Eixo”
Mugur Valahu começa a descobrir uma vocação africana, emoldurada com muito dinheiro à mistura, e em 1961 ei-lo no Congo, mais propriamente no Katanga posteriormente Shaba, onde escreve um livro: “Aqui jaz o Katanga” (The Katanga Circus 1964). O livro eivado de racismo primário é sintetizado no comentário do “Pantera Cor-de-rosa”, o general colonialista Kaulza de Arriaga:”Os povos negros são, de todos os povos do mundo, os menos inteligentes”… “O perigo da civilização colonial vem dos negros evoluídos, mas graças a Deus nós não temos possibilidade de fazer evoluir todos os negros”. Já nem me preocupo em reproduzir as recomendações do K. “na necessidade de crescimento da população branca e na limitação da população negra através da limitação científica da natalidade”.
Mugur Valahu, um mercenário da caneta, do tipo Cascudo ( que foi assessor de imprensa da FNLA, depois de muitos trabalhos laudatórios para o CITA , de Alves Cardos, conhecido entre os jornalistas em Angola em meados dos anos sessenta pelo “Major Cabaça” (polido por fora e oco por dentro).
Ler este livro ou discursos, publicações ou opúsculos de Henrique Paiva Couceiro, Norton de Matos, Mousinho de Albuquerque é exactamente o mesmo no conceito que tem do africano, e no caso do angolano.
“O contacto com o branco mudou naturalmente os hábitos dos negros, que muitas vezes tiveram que trabalhar a chicote. Há pessoas que perguntam certamente por que motivo os portugueses recorreram no passado ao trabalho obrigatório, e hoje ainda recorrem á disciplina dos contratos. É que se os deixassem viver à sua moda frugal, sem nada fazer, a maioria do tempo, os Negros de Angola, e também dos outros países, viveriam na ociosidade”…”Foi pois o branco que, com as suas tentações, os veio tirar do seu torpor” (SIC).
Outra pérola sobre a actividade psico-social do exército colonial numa determinada fase da guerra em Angola: “ Se o negro nos rouba qualquer coisa, é preciso censurá-lo abertamente e reclamar a restituição do objecto; nem ele se sente atrapalhado se for apanhado com a mão dentro da algibeira do próximo. Se, pelo contrário aceitamos as suas negativas, as suas mentiras, não hesitará em falar de nós como de imbecis que se deixam facilmente intrujar”(SIC).
Este livro, hoje uma raridade não é uma obra para se esquecer, é acima de tudo só e apenas mais um documento do que foi um passado em Angola há quarenta anos e qual era a ideologia prevalecente, no contexto de um tempo que muitos não se coíbem de dizer com total desfaçatez que nem foi mau de todo!
Parece descabido neste arrazoado de mentalidades bafientas falar de Ernest Hemingway, mas relembramos que fez cinquenta anos se suicidou na sua casa de Ketchum no Idaho (2 de Julho de 1961). Terá sido um dos melhores de sempre, e que no Velho e o Mar deixa esta frase: «o homem não foi feito para a derrota», «um homem pode ser destruído mas não derrotado.».
Fernando Pereira
30/6/2011
2 de julho de 2011
DA PANELA AO UGANDA! / Ágora/ Novo Jornal nº 180/ Luanda 30-6-2011
DA PANELA AO UGANDA!
As modernidades não param de me surpreender.
Fui recentemente convidado por uma amiga para comer um fungi e naturalmente não recusei, pois sei que normalmente fá-la sempre bem, sendo até demasiado escrupulosa na escolha dos ingredientes.
Naturalmente cheguei a sua casa no quarto de hora seguinte à hora previamente marcada, e curiosamente não a vi afogueada como das outras vezes em que fui presenteado com uma opípara muambada.
Fui à cozinha colocar o vinho branco na geleira e não vi a desarrumação habitual que um repasto destes costuma proporcionar.
Sentados à mesa reparei que o sabor não era exactamente o mesmo, mas há dias em que as coisas na cozinha não correm bem e o único comentário que fiz foi um desengraçado: “já comi pior e gostei”!
A surpresa estava guardada para o fim, quando essa minha amiga me disse que tinha sido cozinhada numa “Bimby”, a “Barbie” das cozinhas modernas e que pelos vistos dá para fazer tudo. Mercado muito, criatividade cada vez menos!
Em Luanda na segunda metade dos anos setenta levantou-se um coro de protestos em torno da exibição do filme a “Vitória em Entebbe” no Cine Atlantico. Uma parada de estrelas liderada pelo judeu Marvin Chomsky resolveu fazer uma recriação do resgate de um avião da Air-France, sequestrado por um comando palestiniano que exigia a libertação de presos em Israel. O filme era uma adaptação moderna do Weissmuler e a sua racista pose de Tarzan, num misto de qualquer coisa como “O ultimo comboio do Katanga” ou o “Africa Adeus”, filmes que recorrentemente passavam no Colonial, N’gola e S. João na primeira metade dos anos 60.
O filme era vexatório e nem os que se opunham a Idi Amin em África toleraram tamanha dose de arrogância sionista e racismo, daí os protestos no “Jornal de Angola” ao tempo o único jornal do País. Trinta anos depois a extraordinária interpretação do tranquilo Forest Whitaker no papel de Idi Amin, James McAvoy na pele de Dr. Nicolas Gerringan, numa realização superior de Kevin Macdonald do filme “ O Ultimo Rei da Escócia”, trata de forma fidedigna os tempos de crueldade num dos mais prósperos países agrícolas de África.
Idi Amin era presidente do Uganda e da OUA quando a Republica Popular de Angola se tornou independente e houve acordos com Nixon tendentes a que a UNITA fosse privilegiada na luta pelo poder em Angola. Foi Idi Amin quem forçou o reconhecimento da UNITA como movimento de libertação com o sórdido argumento de que Àfrica devia ser para os negros, como Deus lhe havia confidenciado a seguir ao golpe de Estado que depôs em 1971 Milton Obote.
Os britânicos apoiaram este antigo boxeur, sargento dos King’s African Riffles, na expectativa de terem alguém mais brando para defender os seus interesses. As elites africanas adaptaram-se a ele durante longo tempo, visto que aquele que afirmava que “nunca se chega tão depressa como uma bala de espingarda” foi eleito em 1975 para a presidência da OUA, e nessa qualidade recebido por Paulo VI. Nyerere em vão protestava:” Um assassino, um opressor, um fascista negro e um admirador confesso do fascismo”, e a realidade é que para além de cem mil mortos no seu consulado (1971-1979), o corte de relações com o Reino Unido, a sua promoção a marechal com toda a parafernália de pechisbeque e trajes, a expulsão de 90.000 indo paquistaneses, indispensáveis à economia do Uganda e deixou o País à beira da fome e a população no estado mais desesperado de indigência.
Idi Amin, o “Big Daddy”como gostava de ser chamado fazia parte dos 7% de muçulmanos dos vinte milhões de habitantes do Uganda e foi deposto por Yusuf Lule em 1979, que numa entrevista à Afrique-Asie de 16 de Abril desse ano disse que “ O Islão nunca foi tão terrivelmente caricaturado como por Idi Amin Dada, que acabará no caixote do lixo da história…”.
Ainda não andava a “Bimby” por perto!
Fernando Pereira
27/6/2011
26 de junho de 2011
Não importa Sol ou sombra/ Ágora /Novo Jornal 179/ Luanda 24-6-2011
Quem vai acompanhando a vida cultural de Luanda tem que recorrentemente vir aceitando a ideia que muito se tem feito, e que vai havendo propostas interessantíssimas na nossa cidade capital. Nos últimos tempos vai-se assistindo um pouco por toda a cidade a eventos culturais tão diversificados na área das artes plásticas, dança, música de referências diversas e de boa qualidade, cinema e documentário, colóquios, uma multiplicidade de ofertas que cada vez mais tornam a cidade num local vivível e não tão dependente do “4 de Fevereiro” para se ter acesso a bens culturais.
No quadro da edição literária nota-se um outro fulgor com a apresentação de novos títulos, novas editoras a aparecerem com propostas interessantíssimas revelando que há quem trabalhe, pesquise, divulgue e simultaneamente há quem aposte, sendo a “Mayamba” do Arlindo Isabel um dos muitos exemplos, provando que há mercado.
Aqui há uns tempos recebi a herança um conjunto de jornais, revistas, livros e documentos, a maior parte em acentuada estragação. Meticulosamente estive a fazer-lhes um arremedo de classificação e catalogação para depois tentar dar-lhes um destino.
Uma parte resolvi doar ao “Centro de Documentação 25 de Abril” da Universidade de Coimbra, porque entendi que eram mais “resguardáveis e utilizáveis” que em minha casa.
Uma das revistas que estava naquele imenso amontoado era a “Ilustração Portuguesa”de Junho de 1910, que trazia um conjunto de fotos de uma “torada em Loanda”, numa improvisada praça adaptada no Velódromo da cidade. Esse Velódromo viu-se substituído pelo actual estádio dos Coqueiros, Clube de Ténis e instalações desportivas e sociais do Sporting de Luanda no dealbar dos anos trinta do século passado.
Pode-se presumir que a tourada tenha sido um evento importante na cidade, embora o texto não seja muito descritivo, já que a revista vivia à base de fotos, no caso a reportagem feita por um tal Anselmo Dias.
Lembro-me de ter ido em miúdo no tempo colonial ver uma tourada na praça de touros de Luanda, sempre de má memória, com um tio meu que era aficionado da “festa brava”. Recusei-me mais tarde, já adolescente a partilhar esse gosto com ele no Lubango e em Portugal na Figueira da Foz. Nunca mais tentou aliciar-me porque de facto fui sempre relutante a ver espectáculos onde a selvajaria e o opróbrio imperam.
Nunca percebi nada de tourada mas o que diziam os aficionados em postura pós prandial participantes em grotescos e imperceptíveis urros e “olés”, tinha a ver com a falta de qualidade dos touros, que quase adormeciam na arena na canícula do Janeiro de Luanda, causada por uma viagem de barco de Portugal e sedados durante dias. Os animais na Europa latina e no México são vítimas de extrema violência nas horas que antecedem a “refrega”. Em Luanda a moleza aumentava a ira dos toureiros, e a desforra era a violência bravia sobre o animal, o que ainda tornava o quadro mais torpe.
O que se pretendia objectivamente era criar em Luanda uma alternativa ao toureio na então “Metrópole”, que só começava a ter época de Abril a Outubro. O resto da temporada para a faena e para o dinheiro era dividido entre Luanda e Lourenço Marques, onde emergiu o único negro do toureio apeado no Mundo, o Ricardo Chibanga, que vive hoje retirado das lides numa quinta da Golegã em pleno Ribatejo. A par de Luanda, o Lubango também tinha uma praça de touros, mas aí não surpreende já que era uma cidade contra-natura em África, já que até 1974 conseguia ter mais população branca que preta. Em Luanda ainda houve um grupo de forcados constituído e pouco mais se fez.
Ficou o registo de um espectáculo selvagem e bárbaro, aviltante para os cidadãos no século XXI, mas que felizmente vai sendo cada vez mais contestado pelo crescendo de grupos de apoio aos direitos dos animais, o que levou recentemente à sua proibição em vários locais, por exemplo na emblemática Catalunha.
Como escreveu José Carlos Ary dos Santos: Nós vamos pegar o mundo/ pelos cornos da desgraça/ e fazermos da tristeza/ graça.
Fernando Pereira
19/6/2011
Entrevista que fiz para o Novo Jornal de 24-6-2011 ao Engenheiro Fernando Falcão
Fernando Falcão, 87 anos, angolano, engenheiro civil. Nasceu no Namibe, neto dos primeiros colonos que aportaram no deserto no fim do século XIX vindos do Brasil. Estudou no Liceu Diogo Cão e formou-se em Engenharia no Porto no distante ano de1947 . Fixou-se no Lobito, onde desenvolveu marcada actividade política, empresarial e associativa durante muitas décadas, acabando por ser uma das figuras de referência da cidade e de todo o Sul de Angola.
NJ- Enquanto estudante a sua participação no combate à ditadura e à sociedade colonial prevalecente em Angola foi marcada pela fundação da Casa de Estudantes de Angola, depois Casa dos Estudantes do Império, no MUD juvenil, onde partilhou cumplicidades políticas, companheiros de percurso e também a marcação cerrada de uma PIDE que nunca o esqueceu até 25 de Abril de 1974. Fale-nos do Falcão da “juventude”.FF – Pouco tenho a acrescentar ao que é conhecido. Direi que fiz a instrução primária em Moçâmedes (hoje Namibe), fiz o 7º ano do Liceu em Sá da Bandeira (hoje Lubango) e a Faculdade em Coimbra na parte dos Preparatórios e Porto na Faculdade de Engenharia.Fui da Mocidade Portuguesa, onde atingi o posto de comandante de castelo, e evolui sempre para a oposição ao regime de Salazar.
NJ- Pode parecer algo impertinente, mas de tudo que se vai lendo e sabendo fica-se com a sensação que no início havia “divergências” entre os estudantes que tinham saído do Liceu Diogo Cão ( “Os sulistas”) e os que saiam do Salvador Correia (Luanda e Norte) para estudar no exterior. Se isso de facto aconteceu contextualize tendo em consideração as origens dos estudantes dos dois estabelecimentos de ensino?FF – As divergências entre os estudantes saídos do Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira, e os do Liceu Salvador Correia, em Luanda, eram fruto de um bairrismo salutar que nunca destruiu a amizade entre jovens de idade aproximada.
NJ- Quais as razões ponderaveis na sua decisão de se radicar no Lobito, há mais de cinquenta anos?FF – Eu não quis radicar-me no Lobito, mas quando cheguei a Luanda, vindo de Lisboa, onde fui contratado como engenheiro praticante para o Serviço de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes, o então subdirector destes serviços – Engº Melo Vieira – que tinha sido meu professor no Liceu, obrigou-me a ir para o Lobito para a Direcção do Porto do Lobito.
NJ-A cidade cresceu consigo e não se pode ignorar que o seu desenvolvimento urbano, a expansão do seu tecido empresarial tem uma marca sua. À distância de umas décadas quer-nos falar um pouco desse percurso e também um pouco do vivificar do Lobito.FF – Rapidamente me tornei “Lobitanga”, tornando-me vereador do Municipio, presidente de um clube de futebol – O Lusitano – fundador e primeiro presidente dos Bombeiros, presidente da direcção da Associação Comercial e Industrial, durante vários anos e de um modo geral participei em todas as realizações que valorizassem a cidade do Lobito e da vila da Catumbela,
NJ- O Eng. Falcão teve ao longo do seu percurso de cidadão uma participação política activa que nalguns momentos lhe terá criado situações embaraçosas. Foi delegado no distrito de Benguela da candidatura do general oposicionista a Salazar, Humberto Delgado; Foi um dos poucos sítios onde o general Delgado ganhou, numas eleições que se revelaram fraudulentas, onde o declarado vencedor foi Américo Tomás, o candidato de Salazar. Fale-nos um pouco desse período e do que aconteceu nesse longínquo 1958.FF – Não fui delegado no distrito de Benguela do general Humbero Delgado, mas sim do Dr. Arlindo Vicente, Por desistência deste a favor daquele, acatei a deliberação superior de colaborar com a comissão distrital do general Humberto Delgado.
Foi intenso o meu trabalho nesta comissão e suportei algumas intriguices que puseram em risco o meu lugar de engenheiro adjunto do director do Porto do Lobito. Valeu-me a compreensão do então Governador Geral de Angola, capitão Agapito da Silva Carvalho, que foi sempre muito compreensivo a meu respeito.
NJ- Quando começou a sentir que poderia organizar alguma coisa que pudesse ter alguma consistência na luta pela autodeterminação e independência do País?FF – Após os incidentes no norte de Angola provocados pela UPA e mais tarde a FNLA, traduzidos por barbaros assassinatos, senti a necessidade de contrariar tais atitudes. Daqui resultou a criação da FUA (Frente de Unidade Angolana), da qual fui o primeiro e único presidente.
NJ- Ainda que lhe peça de forma sucinta, com quem partilhou esses primeiros tempos que foram, ou poderão ter sido o embrião de uma organização em que o Engenheiro Falcão é a maior referencia, a FUA (Frente de Unidade Angolana)?FF – Nesta tarefa tive a colaboração de muitos, destacando o eng. Manuel Brazão Farinha, o Luís Portocarrero, o Carlos Morais, o Socrates Daskalos, etc.
NJ- Num tempo em que as ideologias estão a ser constantemente relegadas para segundo plano, peço-lhe que enquadre a FUA num contexto ideológico de uma Angola colonial.FF – A FUA era uma amalgama de vários partidos notando-se nos seus dirigentes uma tendência pro-MPLA. No entanto, a FUA nunca esteve subordinada a qualquer partido político. Foram na altura publicados os seus princípios básicos que não ofendem qualquer ideologia política.
NJ- Sem qualquer sinal de provocação pergunto-lhe se a FUA não era um movimento progressista de colonos e circunscrito ao Sul do território?FF - A FUA não era um movimento progressista de colonos e circunscrito ao sul do território, pois foi estendida a todo e território angolano e bem implantado no seio de todas as etnias.
NJ- Sem constrangimento de qualquer ordem peço-lhe que me diga qual a posição da FUA em relação ao MPLA e à UPA, no dealbar dos anos 60 e num contexto de forte repressão das autoridades coloniais portuguesas.FF – A FUA teve sempre as melhores relações com o MPLA o que não sucedeu com a UPA que consideramos responsáveis pelos massacres no norte de Angola.
NJ- Em 1961 reuniu-se com o novel Ministro do Ultramar de Salazar, Adriano Moreira, que lhe terá deixado muto boa impressão, e que depois de acolher algumas das suas propostas o mandou prender. Gostava de ouvir esse episódio, mas não gostava de deixar de dizer que o percurso dessa figura, um misto de seráfico e sórdido, continua a ser motivo de divergência nas questões coloniais de matizes diferentes.FF - Em Maio de 1961 veio a Angola como ministro do ultramar de Salazar. A FUA , encapotadamente, pediu a audiência que foi concedida a vários dirigentes exceptuando o eng. Manuel Braxão Farinha que se tinha refugiado a bordo de um barco que se encontrava acostado ao porto do Lobito.
Adriano Moreira ouviu as considerações e prometeu corrigir algumas contradições coloniais. Em vez disso pucos dias depois começou a prisão de dirigentes sendo a maioria desterrada para Portugal.
NJ- O Senhor Engenheiro Falcão era um homem de sucesso em termos empresariais, mas nunca deixou de defender as suas posições, que lhe valeram bastantes dissabores e até algumas calúnias, de sinais bem contrários, quando por exemplo numa atitude de cortesia e amizade foi ao paquete “Infante D. Henrique” despedir-se do deposto governador colonial Santos e Castro. Porque foi uma atitude muito contestada por alguns jornais de Luanda, ainda na esteira de um 25 de Abril de 1974, e permitiu especulações diversas sobre os reais propósitos do encontro, gostava de poder ter a S. versão de uma situação que julgo ter sido pouco mais que nada, embora julgo ter tido o eco do que se passou.FF - O episódio da minha ida a bordo do paquete “Infante D. Henrique” cumprimentar o então governador geral de Angola (Santos e Castro) não passsou senão de uma atitude de cortesia para com o governante que sempre atendeu da melhor maneira os nossos dirigentes, contrariando o comportamento daqueles que o deveriam ter feito.
NJ- Que FUA pretendeu fazer renascer no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974? FF – Pretendi fazer renascer a FUA de 1974 nos mesmos moldes da FUA de 1961, tentando assim promover a unidade das forças em presença evitando o derramamento de sangue que mais tarde aconteceu.
NJ- O Senhor Engenheiro permaneceu no Lobito , como administrador do CFB nomeado pelo governo de Angola e simultaneamente desempenhou funções de Director do Porto do Lobito, onde teve alguns atritos com os sindicatos. Não sei se é verdade a história que se conta que terá despedido um determinado número de trabalhadores com elevado absentismo, e contratado o mesmo número para os substituir. Perante a contestação do Sindicato, o Engº Falcão apenas terá respondido que o número de desempregados se mantinha exactamente igual. É ficção ou aconteceu alguma coisa parecida?FF - Desde que assumi a direcção do porto do Lobito tive a preocupação de sanear hábitos pouco correctos dos seus recursos humanos. Os trabalhadores tinham direito a um cartão de abastecimento e por esse motivo o porto estava cheio de gente que se limitava a ir levantar o vencimento e a fazer o abastecimento que vendia na kandonga. Foi assim que realmente demiti cerca de 200 pseudo trabalhadores mas não os substitui, o que provocou protestos da UNTA, tendo contudo tido o apoio das entidades superiores.
NJ- Como encara o desenvolvimento de Angola nunca esquecendo que o Senhor foi sempre contundente na sua análise em diversas ocasiões de Angola enquanto País.FF – O desenvolvimento de Angola não deve ser circunscrito a meia dúzia de dirigentes em Luanda mas deve estender-se a todas as províncias e suas populações.
NJ- Para finalizar, agradecendo a sua disponibilidade por nos dar esta entrevista, aliás necessária, pergunto-lhe se a sua luta valeu a pena?FF – Como diz o poeta “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Fernando Pereira
15/6/2011
17 de junho de 2011
FALTA SEMPRE ALGUMA COISA / Ágora/ Novo Jornal nº178 / Luanda 17-6-2011
Na passada semana João Gilberto fez oitenta anos, ele que é o último dos criadores da Bossa Nova vivo, que há uns anos se vai resguardando de toda a gente no seu apartamento no Leblon, resolveu para comemorar o seu aniversário dar um conjunto de oito espectáculos, raro nos últimos vinte anos.
Apesar do meu ouvido ser quase um mineral que cristalizaria no sistema ortorrômbico, tenho classificado entre os dez melhores álbuns de sempre, o Getz/ Gilberto, uma parceria entre os virtuosos Stan Getz, Tom Jobim, Astrud Gilberto e naturalmente João Gilberto. Foi aí que a “Garota de Ipanema” se tornou definitivamente uma canção pop intergeracional . A título de curiosidade, a “Garota de Ipanema” de Jobim é a canção em língua portuguesa mais tocada e ouvida no mundo.
Pontualmente percorro o “Portal do Governo de Angola”, que apesar de parecer revelar-se pouco expedito para consulta rápida, acho razoável para quem quiser ter uma ideia sobre a organização do poder executivo no País. Graficamente apelativo, o “Portal” tem o senão de ter poucas actualizações e pontualmente ter omissões e erros imperdoáveis.
A título de exemplo pego no caso do “Ministério da Juventude e Desportos” e sem nada de extraordinário aparece o perfil do Ministro Gonçalves Muandumba e seus vices, a surpresa está no “Histórico” do Ministério onde aparece esta pérola:”O Ministério da Juventude e Desportos é dirigido actualmente pelo Dr. José Marcos Barrica”, por sinal o actual embaixador de Angola em Portugal.
Continuando a “folhear” o site vê-se que há omissões e incorrecções que admito serem involuntárias, como por exemplo ignorar-se que o primeiro Director do Conselho Superior de educação Física e Desportos foi Pedro Augusto, demitido na sequência do 27 de Maio de 1977, substituído por Hermenegildo de Sousa e já empossado como Secretário de Estado de Educação Física e Desportos Ruy Mingas em 1979, organismo que tem o seu primeiro quadro orgânico aprovado no âmbito do decreto 89/81. A agenda de eventos do ministério precisa também de ser actualizada, pois as ultimas informações que existem é de 2010.
“A Filha Rebelde” é um livro de José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz que conta a vida de Annie Silva Pais, filha do director da PIDE-DGS Fernando da Silva Pais, que casada com um diplomata colocado em Cuba acabou por aderir de corpo e alma à Revolução Cubana a viver então os seus dias mais agitados.
Annie, filha única do poderoso chefe da polícia política portuguesa afirmou-se como uma enorme entusiasta da revolução socialista, privando com Che e Fidel, participante de forma dedicada em todas as tarefas que o Partido Comunista de Cuba determinava, desde brigadas de alfabetização à apanha de cana do açúcar, tendo por lá falecido na década de 80.
O livro, que é um trabalho de jornalista, foi motivo de controvérsia quando foi apresentado, não sendo ignorado também pelo enfoque que o “Expresso” lhe deu.
Foi adaptado ao teatro pela escritora Margarida Fonseca Santos e apresentada no Teatro D. Maria II em Lisboa.
Os familiares de Silva Pais, decidiram pôr em tribunal os directores do Teatro, a escritora Margarida Fonseca Santos e os autores do livro, argumentando que a peça era ofensiva ao carácter do antigo director da PIDE-DGS.
No mínimo isto é bizarro já que um tribunal de um Portugal democrático, aceita que pessoas intelectualmente probas se sentem no banco dos réus porque “insultam a memória de um funcionário público com carreira excepcional”. Ignóbil descaramento!
Estamos a falar do chefe dos torcionários da PIDE-DGS, o homem que só acreditava na justiça dos tribunais plenários, que aceitava a prisão preventiva até três anos sem julgamento, que era o superior de uns títeres inferiores que tentavam obter confissões à custa de pancadaria, torturas várias e chantagem psicológica e emocional dos prisioneiros e familiares, em que a maioria das acusações eram crimes tão comezinhos como o delito de opinião e apego a valores democráticos.
Muito mau o que se está passar, e por isso a minha solidariedade com todos os réus deste processo da “Filha Rebelde” é acima de tudo um acto de revolta cívica na defesa de valores da liberdade, que quem está no banco dos réus representa.
Fernando Pereira
11/6/2011
11 de junho de 2011
ATRÁS DE TEMPOS VEM TEMPOS E OUTROS TEMPOS HÃO-DE VIR! / Ágora / Novo Jornal 177 / Luanda/ 10-6-2011
Carta de Armindo Monteiro, ao tempo Subsecretário de Estado das Finanças a Oliveira Salazar escrita de Luanda em 4-8-1930. A. M: foi posteriormente Ministro das Colónias do “Império”!
“Lá acabou por fim esta tremenda navegação l. Ontem de manhã o "Quanza" fundeou em frente desta feia e árida Luanda - onde não lobriguei ainda um canto de verdura. Às dez horas já o soba da ilha, fardado de almirante, de general e de músico, profusamente condecorado, desfilava diante o navio, à frente de uma numerosa armada de "dongos", entre apitos estridentes e alta gritaria (…)Passada a revista à guarda de honra (Companhia indígena) que, deve dizer-se, executou mal as vozes e estava longe de se apresentar com correcção - o governador tomou lugar num automóvel à frente de uma fila de sete ou oito carros; parou o cortejo diante do famoso "Palácio do Governo" - construção do gosto das muitas que, nos meados do século XIX, por graça dos brasileiros de torna-viagem, se multiplicavam em Portugal: lisa, sem harmonia nem imponência de linhas, sem relevo, sem grandeza. O Palácio do Governo Geral de Angola podia perfeitamente ser a Câmara Municipal de Freixo-de-Espada-à-Cinta. À porta fazia a guarda de honra uma Companhia de Marinheiros, limpos, correctamente alinhados, imóveis. Confesso-lhe que os vi com comoção e orgulho. Dentro das salas destinadas à posse, acumulava-se uma multidão diferente de todas as que tenho visto: tive a impressão de que todos os barbeiros das aldeias de Portugal se tinham reunido aqui.
Eu fiquei instalado no rés-do-chão do Palácio; disponho de um quarto grande e de uma ínfima sala de banho: aposentos de burguês pretensioso e pouco amigo da água. É tudo assim cá no "Palácio"! Palácio, é claro, em atenção às cubatas que enxameiam nas voltas de Luanda. Qualquer pessoa de boa condição e fortuna tem aí melhor e maior conforto.(…) Só tenho visto aqui duas coisas realmente boas: as louças e as roupas de mesa e cama. O resto é de qualidade banal e de gosto inferior. Os jardins (que me tinham sido anunciados como uma oitava maravilha) são pequenos, raquíticos, sem sombras, sem verdura, sem cor. Como se explica que até o Pierre Daye se tenha extasiado diante deles? Começo a acreditar que a África deforma a visão e os sentimentos.
Dei, em automóvel, uma volta por Luanda. (…)A grande massa das coisas que se vêem é confrangedora. A própria natureza fez desta costa uma linha árida. Os campos são secos, as árvores, nodosas e torcidas, parece que crescem de raízes para o ar; as palmeiras chegam a fazer vista de bonitas. A terra é vermelha, abrasada.
E que dizer-lhe da gente? Má de aspecto, má de espírito. Cheguei ontem: tive três conferências com chefes de serviços. Pareceram-me pessoas sãs - mas vivendo sob o pavor da intriga que vem da sombra, não se sabe de onde. Ficou-me, dessas conversas, uma impressão mais que de indisciplina, de inversão geral. É opinião de gente com quem falei que a direcção dos chefes seria razoável se tivesse a possibilidade de dominar a reacção dos subordinados - que se organizaram para mandar. A impressão que se colhe é esta: a colónia está governada por sovietes secretos de primeiros e segundos-oficiais. Tudo o mais é aparência. Se algum dos filiados prevarica, todos os outros estão ilimitadamente obrigados a ajudá-lo. De maneira que são dos últimos dias os seguintes factos: desfalque de centenas de contos na recebedoria de Luanda, com desaparecimento de livros de escrita; peculato na Direcção da Fazenda; desvio de importância (talvez 115 contos) de bilhetes de Tesouro emitidos, com roubo de documentos e livros essenciais. Sabe-se que a província é percorrida por estrangeiros que, de máquina fotográfica em punho, se documentam sobre os nossos minérios. Parece que, durante os últimos acontecimentos, fizeram farta colheita de elementos.
Até agora a nota que mais me feriu foi a dos degredados, que enxameiam por estas ruas. Chega-se a ter a impressão de que, aqui e ali, dominam a população. É horrível. No Palácio vivem cercados por eles. Cruzam-se com os pretos com uma facilidade que desgosta. Contam-me que há por aqui produtos dessas ligações que são um peso-morto formidável na vida da província: às taras dos pais aliam todas as tendências inferiores da raça das mães. Desnorteiam o povo, indisciplinam o preto. Apontam-nos como a casa-mãe de toda a desmoralização corrente. Por isso os melhores elementos da terra clamam em coro que os façam sair daqui - que tirem de cima de Angola a ignomínia de servir de penitenciária. O governador que isso conseguisse alcançaria, de golpe, um grande prestígio.
De tudo o que tenho visto e ouvido concluo que fomos recebidos com hostilidade por muitos, com indiferença pelos outros. Fez-se contra os que chegavam uma viva campanha. Dos que vêm estudar diz-se que se tem passado a vida nisso e que, incessantemente, aos estudos velhos se sobrepõem estudos novos, sem resultados sérios. Das próprias brigadas, aos quatro-ventos se apregoa que são constituídas por falhados das colónias. As autoridades novas são olhadas com inimizade: vêm da metrópole, filhos de uma ditadura de que aqui não se pode dizer bem.
A princípio os jornais recebiam hostilmente o nome do governador.
Um jornal qualquer, todos os dias publicava sobre ele uma pequena local: "sabemos mais que o Sr….também foi comandante da canhoeira tal"; no seguinte: "conseguimos saber que o Sr…. foi administrador da roça X". Mas ontem a Província de Angola trazia um artigo de pacificação e expectativa. O director (que nada dirige, segundo consta) veio oferecer-me os seus préstimos e as suas colunas. “
Fernando Pereira
4-6-2011
10 de junho de 2011
Do ruralismo ao abandono! / O Interior/ 9-6-2011
Vou inutilizar a vantagem que poderia ter por poder escrever depois de conhecidos os resultados eleitorais de domingo próximo (próximo em relação ao dia em que escrevo esta croniqueta e anterior à saída do jornal).
Não acompanhei a campanha eleitoral, por razões diferentes dos muitos que acham que isto de campanhas é uma treta, a democracia um embuste, ou porque acham que os políticos são uma praga que alapou no aparelho de Estado, autarquias, empresas publicas e por aí fora.
As razões de não acompanhar a campanha tem sobretudo a ver com a prevalência de lugares comuns, de um léxico esvaziado e acima de tudo o desapetecer-me ver as caras costumeiras e a indiciarem futuros habitualmente rotineiros e desfasados das realidades vividas na nossa comunidade.
Há cerca de vinte e cinco anos, na sequência da iniciativa do saudoso António Palouro, nas terceiras jornadas da Beira Interior (1990), numa das sessões que assisti na Covilhã deixei perplexos os “achólogos” de então, quando numa de “apoliptólogo” afirmei peremptoriamente que o “Interior era para esquecer”.
Levantou-se na sala o coro inflamado dos “Indefectíveis do Interior” que desacharam piada à minha intervenção. Lembro-me que já nessa altura peguei em números para me justificar, e ao tempo convenhamos que os números não eram tão teimosamente negativistas em relação á realidade de hoje.
Quando ao tempo disse que uma das razões determinantes do atraso do interior, tinha a ver fundamentalmente com a melhoria das acessibilidades, situação que convenhamos positiva, as pessoas presentes olharam-me quase com comiseração. Na realidade, as aldeias do interior foram perdendo gente, já não apenas por não haver recursos endógenos que permita a sua fixação perene, mas porque todo um conjunto de actividades económicas que iam gerando alguma economia local vão paulatinamente desaparecendo. Exemplifico actividades tão comezinhas como a padaria local, que encerrou porque o padeiro vem da cidade, a loja de “comércio misto”, que vendia do bacalhau ao prego acaba por fechar também por razões de “modernização do comércio”, o armazém dos adubos e sementes que desaparece pelo crescente abandono dos campos, e por aí fora. A economia local também por isto entra em colapso e despovoa-se a comunidade.
O padre, o professor e outros amanuenses que antes tinham que se fixar nas terras, e que acabavam por ser determinantes no associativismo e nalguns casos na elevação cultural dos cidadãos, passam a viver em cidades e deslocam-se a aldeias e vilas para trabalhar as horas contratualmente acordadas, deixando de viver o quotidiano local com todas as consequências que daí vão advindo.
Se antes se estoirou literalmente dinheiro em polivalentes por todo o interior, apesar de pontualmente se ter justificado por haver gente para os utilizar, o que a matriz do interior são as populações das aldeias, mais pedem é a construção de “casas mortuárias”, o que de certa forma não deixa de ser premonitório.
Havemos de voltar ao tema quando passar a incontinência verbal do eleiçoeiro!
Fernando Pereira 4/6/2011
3 de junho de 2011
VAGABUNDEANDO/ Ágora / Novo Jornal nº 176/ Luanda 3-6-2011
O Conselho das Igrejas Sul-africanas declarou-se indignado com o apelo do Vaticano, para que os católicos contaminados pelo vírus da sida renunciem ao uso do preservativo.
«Estou chocado e desgostado com a Igreja católica», afirmou o padre Joe Mdhlela, porta-voz do Conselho, referindo-se ao apelo do Vaticano contra o uso do preservativo, justificado por razões de índole moral.
Mdhlela sustentou que na perspectiva do SACC, incluindo os representantes da Igreja Católica que o integra, o Vaticano não está a tomar em consideração «as realidades do mundo». «Existem provas médicas indiscutíveis de que os preservativos podem ajudar a salvar vidas», sublinhou.
«A HIV/sida é uma pandemia, e a nossa convicção é tudo fazer para salvar vidas e conter a propagação da doença», acrescentou.
João Paulo 2 esteve 25 anos no cargo mais importante da ICAR, proclamou 476 santos e 1314 beatos enquanto os seus antecessores, todos juntos, se ficaram por 300 canonizações e 1310 beatificações.
Sabendo-se que a sua principal ocupação foi rezar e dar conselhos sobre moral, fica-se estupefacto com a produtividade deste emigrante polaco que criou ainda 232 cardeais.
Não fossem os esforços despendidos a combater o preservativo, e a promover a castidade poderia ter ido ainda mais longe nesta onda de santidade.
Percorreu uma distância equivalente a quase 29 vezes a volta à Terra e quase três vezes a distância entre a Terra e a Lua, a promover a ICAR e a espantar o demo.
«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não o pode ser, pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser céptico, ou melhor dizendo indiferentista.» (Sampaio Bruno, in «A Questão Religiosa», 1907)
Não pretendo discutir ou beliscar a fé das pessoas, por muitas coisas que vá vendo e que não acredito! Fundamento-me em factos históricos.
Sempre preferi falar de homens. Não falo de divindades, nem faço ataques à religião católica. Ataco pessoas que em determinados momentos se apropriaram da Igreja, essa sim, estrela principal da história dos últimos dois mil anos!
Elogio João XXIII, PauloVI, D. Helder da Camara, O arcebispo Romero, o Bispo de Nampula, podendo acrescentar D. António Ferreira Gomes, D. Eurico do Nascimento,"Os padres brancos" de Moçambique, Felicidade Alves, Mário de Oliveira, Cónego Manuel das Neves, Padre Joaquim Pinto de Andrade e tantos outros que foram vozes incómodas da Igreja e dos regimes totalitários a quem a Igreja prestou nalguns casos subserviência a raiar a sordidez.
Não preciso de recorrer ao proibidíssimo Canto IX dos Lusíadas para ilustrar o que quer que seja, não pego em Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) como “menino desceu à terra", nem pego nas versões de Alberto Pimenta para ilustrar o que quer que seja! Nem sequer fui ao ponto de pegar nos "Ballett Rose" descritos na Time em 1967.
A título de exemplo alguém sabe quanto custou o reconhecimento papal pela independência de Portugal? E quando Portugal pagou simultaneamente ao Papa de Roma e Avignon para que as fronteiras fossem determinadas, ao contrário do que fez Castela que só pagou ao Papa de Roma! Como foi a verdadeira conquista de Lisboa aos mouros? São pequenos detalhes que importaria serem conhecidos, caso alguém não estivesse disponível para ver o que nos ia impingindo na história do antanho, no Império de Minho a Timor.
Porque é que a carta do achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha chegou a Portugal truncada?
Pequenos detalhes, e por tudo isso não vale a pena pegar nas palavras dos outros e desconstrui-las, vale a pena sim apelar a algum cartesiano discursivo para podermos discordar no factual e não na pequena trica subjectiva, sempre mais fácil, mas que não leva a lado algum!
Vou-vos reproduzir uma coisa engraçada de um poeta português que poucos conhecem e que se chama Mário Henriques Leiria.
"Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no devido lugar. Lá em cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça-ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois em conferência, cimeira, claro. A primeira se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
-Está aqui tudo escrito. Tudo è assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser que se vá embora. Já.
Alguns foram
Então começou o serviço militar obrigatório, e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso é o que se vê"
Fernando Pereira
1 de Junho de 2011
29 de maio de 2011
Entrevista que fiz para o Novo Jornal de 27-05-2011 a Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus

Dalila Cabrita Mateus é uma insigne investigadora, doutorada magnum cum laude em História Moderna e Contemporânea, com interessante obra publicada sobre o colonialismo, as lutas de libertação nacional, a repressão, a guerra colonial, a independência das ex-colónias. Recentemente deu à estampa uma obra polémica sobre o 27 de Maio de 1977 em Angola, a Purga em Angola. Obra de que é co-autor seu marido, Álvaro Mateus, o qual, ao longo da vida, foi quadro político, jornalista, publicista, advogado e professor, tendo sido, nos anos da ditadura, dirigente da Casa dos Estudantes do Império e coordenador do jornal clandestino Anti-Colonial, em cuja redacção participaram angolanos e de que saíram 11 números, o primeiro em 1964 e o último em 1969.
Trinta e quatro anos depois do infausto “27 de Maio de 1977” acha que se pode começar a fazer a história ou ficarmo-nos pelas “estórias”?
No que nos respeita, não fazemos «estórias». E mais de 30 anos decorridos sobre os acontecimentos são tempo mais que suficiente para a História Contemporânea.
Para o livro PURGA EM ANGOLA consultámos todo o material que nos foi possível (e duvidamos seriamente que existam, em Angola, arquivos oficiais sobre estes acontecimentos).
Recolhemos 28 entrevistas e declarações, depois transcritas para umas 700 páginas. Considerando que, para a compreensão do que ocorrera, era necessário recordar a história do MPLA, consultámos 41 processos dos arquivos da PIDE e 1 processo do arquivo de Oliveira Salazar. No Arquivo Histórico Diplomático do Ministério português dos Negócios Estrangeiros (fonte de informações do governo português no que respeita aos processos ocorridos no pós independência), consultámos mais 16 processos. Consultámos, também, vários sites na Internet. Lemos uma dezena de cartas particulares, assim como uma série de documentos do MPLA e dos intervenientes nos acontecimentos. Visionámos uma série de filmes, alguns deles da Televisão Popular de Angola. Lemos mais de meia centena de livros e duas dezenas de jornais e revistas.
Muito deste material (designadamente as entrevistas e declarações gravadas e transcritas, os documentos, as cartas, os filmes, os jornais e revistas de Angola) foi avaliado por técnicos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e ali depositado na «Colecção Dalila Cabrita Mateus», para consulta nos prazos legais, até porque algumas pessoas, para sua segurança, pediram sigilo da sua identidade enquanto vivas, o que os arquivos respeitarão.
Nem se diga que não ouvimos todas as partes. Citamos passagens de dois livros, vários discursos, três artigos e algumas cartas de Agostinho Neto. Entrevistámos o senhor Dino Matross, secretário-geral do MPLA, assim como o senhor Agostinho Mendes de Carvalho, antigo governante e deputado do MPLA. Citamos passagens de livros e declarações de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Gilberto da Silva Teixeira (Jika), César Augusto (Kiluanji) e Iko Carreira. Citamos, também, vários documentos do MPLA. E citamos, finalmente, a obra de Jean Michel Mabeko Tali, autor do único trabalho académico de fôlego sobre o MPLA.
Podemos não conhecer a verdade completa sobre os acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Mas cremos ter chegado a uma verdade possível, que deve estar muito perto da realidade.
Dito isto, fazemos uma advertência. O historiador não é um juiz, nem enuncia verdades absolutas, dogmas como na religião. As conclusões a que chega, com base na análise de uma enorme quantidade de documentação, estão sempre sujeitas à revisão e à crítica, até a refutações, com base em novos documentos. E desde que exista seriedade nos métodos, nos processos e no uso das fontes.
Sente que a “Purga em Angola”, obra envolta em grande polémica, funcionou como algo de catártico para ambos os lados de algo que os angolanos parecem mesmo querer esquecer?
Não creio que os angolanos queiram esquecer. Se assim fosse, o nosso livro não estaria já na 5ª edição e muitos angolanos não o teriam adquirido e lido. Esquecer o que se passou seria, aliás, consagrar um processo totalitário de construção da História de Angola, concebida como acontecimento sem testemunhas.
Hegel dixit “se a teoria é desmentida pelos factos pior para os factos” . Como acha que consegue colocar isso no contexto do “27 de Maio de 1977” e na “Purga em Angola”?
Na nossa opinião, só recuperando a «Memória» do que aconteceu se poderá acautelar o presente. O exemplo das injustiças ontem praticadas servirá para prevenir as que amanhã possam vir a ocorrer. E quando os familiares dos milhares de mortos e desaparecidos souberem onde estão as ossadas dos seus, terão, finalmente, a possibilidade de fazer o luto da sua dor. É o mínimo que se deve fazer para que possam, finalmente, descansar em paz.
Passados quase quatro anos da primeira edição do vosso livro “Purga em Angola”, não acha que há uma maior serenidade de todo um conjunto de pessoas para uma abordagem mais fundamentada em factos e menos em emoções, e que permita visões mais esclarecedoras de uma data que marcou indelevelmente de forma negativa o dealbar de Angola enquanto nação?
Trinta e quatro anos decorridos sobre os acontecimentos deviam, de facto, dar uma maior serenidade para a abordagem dos factos. Infelizmente, tal não acontece. E continua a haver consciências muito intranquilas.
Meses depois da saída do livro, num conhecido jornal angolano, um colunista manifestava a sua coragem no ataque a mulheres e puxando da pena desferia uma dezena dos mais baixos insultos contra a autora do livro, num «festival de impropérios» como afirmou o jornalista Reginaldo Silva. Depois, a direcção duma conhecida fundação angolana, não se sabe com que autoridade, retirou à autora o grau académico que possui. Mais tarde, num jornal português de referência, uma senhora viúva declarava que a autora era «mentirosa e desonesta», facto pelo qual responderá no foro adequado. E ainda há dias, num telefonema de Angola atendido pelo autor do livro, o filho de um dos participantes na chamada Comissão das Lágrimas, lembrou-se, finalmente, de que o pai não participara naquela Comissão e, com propósitos que se podem adivinhar, puxou dos galões e ameaçou-nos … com a justiça.
Não pretendo levantar questões que permitam especulações pueris, e também sei que perante a honestidade intelectual da professora Dalila Mateus isso nunca aconteceria, mas posso perguntar-lhe se baseada nas suas fontes, no contexto da sua obra toda, não pode admitir que o “27 de Maio de 1977” tenha sido o prolongamento do «maquis» na sociedade urbana?
É sabido que o grupo dos chamados nitistas tinha ligações à 1ª Região Militar do MPLA. É também possível que houvesse rivalidade entre guerrilheiros de várias regiões na luta por lugares de comando.
Mas, quanto a nós, o que se verificou, por alturas do 27 de Maio de 1977, foi uma luta pelo poder no seio da frente política MPLA, então encarado como um partido leninista com muito centralismo e pouca ou nenhuma democracia (até porque, ao contrário do que fizeram a FRELIMO e o PAIGC, durante os anos de luta armada, não realizaram um único Congresso). Aliás, durante os anos da guerra, as divergências foram, em regra, resolvidas da pior forma.
No livro comparamos esta situação com o que se passou com a organização dirigente da África do Sul, o ANC, onde havia 36 fracções (entre elas um partido e os sindicatos). Também ali atiravam em diferentes direcções, novos contra velhos, exilados contra residentes no interior, militares contra civis, inflamados contra ponderados. Mas Mandela e os dirigentes do ANC tiveram a sensatez de todos acolher numa grande tenda, considerando que não se deviam cortar os laços com a juventude, por muito dogmática, excessiva e simplista que possa parecer, pois nunca se viu construir o futuro sem aqueles que irão vivê-lo.
Recentemente saiu um livro do professor Tiago Moreira de Sá (Estados Unidos e a descolonização de Angola) em que a relação URSS-Cuba sobre a questão angolana tem alguns pontos não de fricção mas de completa dissonância. Em 27 de Maio de 1977, repetiu-se o que tinha acontecido nos acontecimentos que precederam o 11 de Novembro de 1975?
As divergências ressaltam com nitidez da leitura do nosso livro.
Os soviéticos não tinham grande apreço por Agostinho Neto, embora isso nada tivesse a ver com a sua imparcialidade no conflito sino-soviético, argumento que acaba por ser um insulto a Amilcar Cabral e a Samora Machel, que eram bem acolhidos em Moscovo, embora o segundo fosse um simpatizante dos chineses. Pelo contrário, Fidel Castro exaltava Agostinho Neto, identificando-o com a revolução angolana.
Por outro lado, apesar das acusações feitas a soviéticos de cumplicidade com os chamados nitistas, a verdade é que estes nada tiveram a ver com o que ocorreu e, segundo diplomatas portugueses, nem sabiam muito bem o que estava a acontecer. Quanto aos cubanos sabe-se que, por intervenção de Fidel Castro, tiveram papel decisivo na repressão desencadeada, actuando ao lado da polícia política angolana.
Talvez uma pergunta que terá uma carga de muita subjectividade, mas isso também faz parte da parte especulativa de qualquer trabalho. No 27 de Maio de 1977, para além do que se sabe, do que se publica que não é exactamente o que se sabe, não terá acontecido um pouco a teoria do cadinho onde terão confluído os fenómenos racistas, tribalistas, oportunistas e um anti-comunismo a roçar o primário que muitos foram então escondendo para estarem de “corpo e alma na revolução”.
Tanto quanto se percebe há no «contra-golpe» (minuciosamente preparado) uma confluência de muitos e diversos interesses, aparentemente contraditórios. Mas há, também, influências outras, a que aludimos de forma breve, quando dizemos:
«Os promotores da repressão terão tido os seus conselheiros. Alguns embaixadores (por exemplo, os da França, Jugoslávia e Argélia) nem sempre souberam salvaguardar a necessária discrição. E também não faltaram conselheiros portugueses, civis e militares, com acesso directo a Agostinho Neto através dum amigo pessoal deste».
Talvez um dia voltemos a este assunto. Por agora, limitamo-nos a referir que dois militares portugueses que passaram na altura por Angola afirmavam que o 27 de Maio de 1977 fora o 25 de Novembro de 1975 que, em Portugal, não se pudera concretizar, com uma matança monumental de comunistas e de gente progressista.
O “27 de Maio de 1977” deixou a então Republica Popular de Angola decapitada de muitos quadros que foram mortos, presos e nalguns casos que se refugiaram no exterior para nunca mais regressar. Sente nas pessoas com quem falou que isso foi determinante para que a Angola não conseguisse substituir essa gente e tivesse permitido a ascensão rápida da mediocridade baseado na confiança política, tribal, racial ou familiar em detrimento da competência?
Angola tinha, de facto, uma enorme falta de quadros. Compreende-se porquê. Em 1974, pronunciando-se sobre a presença branca em Angola, Agostinho Neto declarava ter «dúvidas sobre se, neste momento, os mesmos indivíduos que têm sido privilegiados durante o regime colonial terão o direito de continuar no país». E em vésperas da independência, aparentemente esquecido de que a maioria dos portugueses eram simples trabalhadores, afirmava na rádio que tinham de sair de Angola antes do 11 de Novembro.
O coronel Melo Antunes, um dos homens do 25 de Abril, afirmou que a principal responsabilidade pela saída dos portugueses dos novos países foi dos movimentos de libertação porque, «contrariamente à letra e ao espírito dos acordos», se gerara «um clima de total repúdio da permanência de portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado».
Em Angola, engenheiros e quadros técnicos, médicos e professores, gestores e trabalhadores qualificados eram, na esmagadora maioria, brancos. Sem eles, a economia e as empresas, as escolas e os hospitais ou funcionariam mal ou deixariam mesmo de funcionar. Ora, depois da expulsão dos brancos, mataram-se, prenderam-se e afastaram-se dezenas de quadros angolanos, a pretexto de que estavam metidos na conjura nitista.
De modo que, muitos dos poucos quadros de que Angola dispunha foram liquidados ou afastados, sendo substituídos por gente sem qualificação. Quem acabou por pagar por tudo isso? A resposta é simples: o país e os angolanos.
Em Portugal, alguns antigos colonos aparecem a dizer que a expulsão foi inspirada pelos comunistas, pelos russos. Acusação totalmente falsa. Os teóricos da revolução davam indicações no sentido de cuidar, «como das meninas dos olhos, de cada especialista que trabalhe conscientemente, com conhecimento do seu trabalho e amor por ele». Por isso o general russo Valentim Varennikov, que cumpriu duas missões de serviço em Angola, sublinhou os enormes problemas criados pelo facto de terem sido «expulsos impensadamente todos os portugueses, que constituíam a principal força na economia, na direcção dos serviços municipais e na organização da gestão do país…».
Continuam determinados em fazer novas incursões sobre o 27 de Maio de 1977, apesar de algumas experiencias desagradáveis que passou?
Para um historiador, a história nunca está acabada. Novos documentos podem levar a reabrir o processo, para emendar, para melhorar, para completar. Aliás, se compararmos a primeira edição do Purga em Angola com a última, podemos constatar que há mudanças. Apenas um exemplo.
O acontecimento que serviu de pretexto à grande purga e justificou o facto de Agostinho Neto, no seu último discurso, ter dispensado o poder judicial, dizendo que não perderiam tempo com julgamentos, foi o aparecimento de uma série de dirigentes e quadros do MPLA, numa ambulância e num jeep, mortos e carbonizados.
A primeira versão oficial dizia que o crime era da responsabilidade dos nitistas. Depois, apareceu uma outra versão oficial a dizer que os mortos tinham sido vítimas de «excessos incontroláveis».
Contudo, apareceu uma terceira versão, a declarar que os presos tinham sido mortos por um elemento da DISA, infiltrado entre os guardas. Ora, já depois da primeira edição, mão amiga fez chegar até nós um filme da Televisão Popular de Angola, feito em colaboração com o Ministério da Defesa e intitulado Eles Vivem no Coração do Povo. Ali se vê, no Sambizanga, ao fundo de um pequeno pátio, o quarto em que estiveram os presos. A câmara filma esse quarto e mostra uma porta cravejada de balas, depois varridas e juntas no chão.
As imagens valem por mil palavras. Se os nitistas queriam matar os presos, por que não os levaram para um local que desse menos nas vistas? E se os queriam matar ali, por que não abriram a porta, atirando à queima-roupa ou matando-os à catanada, para não fazer demasiado barulho? Estranho seria, aliás, que até tivessem morto elementos da sua própria gente, Garcia Neto, José Manuel Paiva (Bula) e o comandante Nzaji que, segundo um elemento da DISA, teria estado, na noite anterior, a preparar o «golpe» nitista. Assim, se pensarmos bem, concluímos que só um agente provocador infiltrado poderia ter disparado através da porta, pois tinha pressa em sair dali, para escapar à ira dos companheiros. De resto, sabe-se hoje, esse elemento, um tal Tony Laton, ter-se-ia tornado assessor do vice-director da DISA.
Tenho a convicção de que é absolutamente necessário tirar “os esqueletos do armário”, como dizem os ingleses sobre trocar lembranças do passado, pois a sociedade angolana não pode continuar a viver especulando ou evitando lembrar o que de menos bom aconteceu naquele cada vez mais distante dia de Maio de 1977. Para fim da entrevista, pergunto-lhes como vêem o olhar angolano sobre o “27 de Maio de 1977”?
Em nossa opinião, milhares de angolanos encaram hoje os acontecimentos do 27 de Maio com outros olhos. E querem conhecer melhor a sua história. Embora persista o temor em falar do acontecimento, o que explica que a autora seja frequentemente designada como «a tal» e não pelo seu nome.
De resto, nós continuamos a «tirar esqueletos do armário», a investigar, para dar a conhecer aspectos da história de Angola e de outros países de língua oficial portuguesa. Ainda este ano, assinalando os 50 anos do início da guerra colonial, publicámos mais um livro, intitulado ANGOLA 61: Guerra Colonial, Causas e Consequências.
Divulgam-se novos dados sobre o 4 de Fevereiro. Mostramos que, apesar de a operação ter sido reivindicada quer pelo MPLA quer pela UPA, o facto é que os participantes actuaram à margem destes movimentos, por iniciativa própria, pressionados por presos que não queriam ser levados para fora de Angola. A ideia da operação nascera numa «sociedade» criada com o objectivo central de lutar pela independência nacional e cujos fundadores foram Domingos Manuel Agostinho (de Malange), Raúl Deião, Bento António e Virgílio Francisco Sotto Mayor ( de Icolo e Bengo). Segundo Raúl Deião, Domingos Agostinho, o presidente da «sociedade» ( que seria o chefe-geral do 4 de Fevereiro, acção em que perderia a vida), era um simpatizante de Agostinho Neto e de gente que seria conotada com o MPLA. E segundo Virgílio Francisco, a luta pela independência de Angola devia conjugar-se com revoltas que se verificariam em Portugal contra o governo de Salazar.
Mostramos, ainda, que, no 4 de Fevereiro, a operação assume carácter militar, havendo exemplos a mostrar que se poupam as vidas de civis. Ao passo que, no 15 de Março, a revolta assume um carácter racial e tribal, voltando-se contra brancos e negros, contra civis, contra mulheres e até contra crianças. Além disso, o 4 de Fevereiro congrega elementos de diferentes movimentos e etnias, que procuram armas para lutar pela independência nacional. Ao passo que na revolta do 15 de Março, a perspectiva aparenta ser regional e tribal, procurando-se a independência para os bacongos, porventura com o propósito de reconstituir o antigo reino de S. Salvador.
Mostramos, ainda, que o massacre dos cultivadores de algodão da Baixa de Cassange, estimado entre 5 e 10 mil pessoas (vítimas dos ataques das companhias de caçadores especiais e dos bombardeamentos com napalm) terá feito mais mortos do que o «terror negro» dos bacongos, comandados pela UPA. E este «terror negro» terá feito menos vítimas que o «terror branco» que se lhe seguiu. Só que, num caso morreram colonos brancos, ao passo que nos outros só os negros foram atingidos.
Fazemos história, com base em documentos e relatos. Não inventamos nem falsificamos. Estamos sempre abertos à discussão e a refutações sérias, que sirvam para corrigir o que não estava bem. Mas contamos, também, com as injúrias, que merecerão o tratamento dos argumentos históricos não concludentes.
Resta-nos fazer votos para que historiadores angolanos, com seriedade nos métodos, nos processos, no uso das fontes (e sem temor) possam investigar temas controversos da sua história.
Fernando Pereira ( Entrevista que fiz para sair no Novo Jornal de 27-5-2011
Subscrever:
Mensagens (Atom)