10 de junho de 2011
Do ruralismo ao abandono! / O Interior/ 9-6-2011
Vou inutilizar a vantagem que poderia ter por poder escrever depois de conhecidos os resultados eleitorais de domingo próximo (próximo em relação ao dia em que escrevo esta croniqueta e anterior à saída do jornal).
Não acompanhei a campanha eleitoral, por razões diferentes dos muitos que acham que isto de campanhas é uma treta, a democracia um embuste, ou porque acham que os políticos são uma praga que alapou no aparelho de Estado, autarquias, empresas publicas e por aí fora.
As razões de não acompanhar a campanha tem sobretudo a ver com a prevalência de lugares comuns, de um léxico esvaziado e acima de tudo o desapetecer-me ver as caras costumeiras e a indiciarem futuros habitualmente rotineiros e desfasados das realidades vividas na nossa comunidade.
Há cerca de vinte e cinco anos, na sequência da iniciativa do saudoso António Palouro, nas terceiras jornadas da Beira Interior (1990), numa das sessões que assisti na Covilhã deixei perplexos os “achólogos” de então, quando numa de “apoliptólogo” afirmei peremptoriamente que o “Interior era para esquecer”.
Levantou-se na sala o coro inflamado dos “Indefectíveis do Interior” que desacharam piada à minha intervenção. Lembro-me que já nessa altura peguei em números para me justificar, e ao tempo convenhamos que os números não eram tão teimosamente negativistas em relação á realidade de hoje.
Quando ao tempo disse que uma das razões determinantes do atraso do interior, tinha a ver fundamentalmente com a melhoria das acessibilidades, situação que convenhamos positiva, as pessoas presentes olharam-me quase com comiseração. Na realidade, as aldeias do interior foram perdendo gente, já não apenas por não haver recursos endógenos que permita a sua fixação perene, mas porque todo um conjunto de actividades económicas que iam gerando alguma economia local vão paulatinamente desaparecendo. Exemplifico actividades tão comezinhas como a padaria local, que encerrou porque o padeiro vem da cidade, a loja de “comércio misto”, que vendia do bacalhau ao prego acaba por fechar também por razões de “modernização do comércio”, o armazém dos adubos e sementes que desaparece pelo crescente abandono dos campos, e por aí fora. A economia local também por isto entra em colapso e despovoa-se a comunidade.
O padre, o professor e outros amanuenses que antes tinham que se fixar nas terras, e que acabavam por ser determinantes no associativismo e nalguns casos na elevação cultural dos cidadãos, passam a viver em cidades e deslocam-se a aldeias e vilas para trabalhar as horas contratualmente acordadas, deixando de viver o quotidiano local com todas as consequências que daí vão advindo.
Se antes se estoirou literalmente dinheiro em polivalentes por todo o interior, apesar de pontualmente se ter justificado por haver gente para os utilizar, o que a matriz do interior são as populações das aldeias, mais pedem é a construção de “casas mortuárias”, o que de certa forma não deixa de ser premonitório.
Havemos de voltar ao tema quando passar a incontinência verbal do eleiçoeiro!
Fernando Pereira 4/6/2011
3 de junho de 2011
VAGABUNDEANDO/ Ágora / Novo Jornal nº 176/ Luanda 3-6-2011
O Conselho das Igrejas Sul-africanas declarou-se indignado com o apelo do Vaticano, para que os católicos contaminados pelo vírus da sida renunciem ao uso do preservativo.
«Estou chocado e desgostado com a Igreja católica», afirmou o padre Joe Mdhlela, porta-voz do Conselho, referindo-se ao apelo do Vaticano contra o uso do preservativo, justificado por razões de índole moral.
Mdhlela sustentou que na perspectiva do SACC, incluindo os representantes da Igreja Católica que o integra, o Vaticano não está a tomar em consideração «as realidades do mundo». «Existem provas médicas indiscutíveis de que os preservativos podem ajudar a salvar vidas», sublinhou.
«A HIV/sida é uma pandemia, e a nossa convicção é tudo fazer para salvar vidas e conter a propagação da doença», acrescentou.
João Paulo 2 esteve 25 anos no cargo mais importante da ICAR, proclamou 476 santos e 1314 beatos enquanto os seus antecessores, todos juntos, se ficaram por 300 canonizações e 1310 beatificações.
Sabendo-se que a sua principal ocupação foi rezar e dar conselhos sobre moral, fica-se estupefacto com a produtividade deste emigrante polaco que criou ainda 232 cardeais.
Não fossem os esforços despendidos a combater o preservativo, e a promover a castidade poderia ter ido ainda mais longe nesta onda de santidade.
Percorreu uma distância equivalente a quase 29 vezes a volta à Terra e quase três vezes a distância entre a Terra e a Lua, a promover a ICAR e a espantar o demo.
«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não o pode ser, pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser céptico, ou melhor dizendo indiferentista.» (Sampaio Bruno, in «A Questão Religiosa», 1907)
Não pretendo discutir ou beliscar a fé das pessoas, por muitas coisas que vá vendo e que não acredito! Fundamento-me em factos históricos.
Sempre preferi falar de homens. Não falo de divindades, nem faço ataques à religião católica. Ataco pessoas que em determinados momentos se apropriaram da Igreja, essa sim, estrela principal da história dos últimos dois mil anos!
Elogio João XXIII, PauloVI, D. Helder da Camara, O arcebispo Romero, o Bispo de Nampula, podendo acrescentar D. António Ferreira Gomes, D. Eurico do Nascimento,"Os padres brancos" de Moçambique, Felicidade Alves, Mário de Oliveira, Cónego Manuel das Neves, Padre Joaquim Pinto de Andrade e tantos outros que foram vozes incómodas da Igreja e dos regimes totalitários a quem a Igreja prestou nalguns casos subserviência a raiar a sordidez.
Não preciso de recorrer ao proibidíssimo Canto IX dos Lusíadas para ilustrar o que quer que seja, não pego em Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) como “menino desceu à terra", nem pego nas versões de Alberto Pimenta para ilustrar o que quer que seja! Nem sequer fui ao ponto de pegar nos "Ballett Rose" descritos na Time em 1967.
A título de exemplo alguém sabe quanto custou o reconhecimento papal pela independência de Portugal? E quando Portugal pagou simultaneamente ao Papa de Roma e Avignon para que as fronteiras fossem determinadas, ao contrário do que fez Castela que só pagou ao Papa de Roma! Como foi a verdadeira conquista de Lisboa aos mouros? São pequenos detalhes que importaria serem conhecidos, caso alguém não estivesse disponível para ver o que nos ia impingindo na história do antanho, no Império de Minho a Timor.
Porque é que a carta do achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha chegou a Portugal truncada?
Pequenos detalhes, e por tudo isso não vale a pena pegar nas palavras dos outros e desconstrui-las, vale a pena sim apelar a algum cartesiano discursivo para podermos discordar no factual e não na pequena trica subjectiva, sempre mais fácil, mas que não leva a lado algum!
Vou-vos reproduzir uma coisa engraçada de um poeta português que poucos conhecem e que se chama Mário Henriques Leiria.
"Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no devido lugar. Lá em cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça-ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois em conferência, cimeira, claro. A primeira se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
-Está aqui tudo escrito. Tudo è assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser que se vá embora. Já.
Alguns foram
Então começou o serviço militar obrigatório, e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso é o que se vê"
Fernando Pereira
1 de Junho de 2011
29 de maio de 2011
Entrevista que fiz para o Novo Jornal de 27-05-2011 a Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus

Dalila Cabrita Mateus é uma insigne investigadora, doutorada magnum cum laude em História Moderna e Contemporânea, com interessante obra publicada sobre o colonialismo, as lutas de libertação nacional, a repressão, a guerra colonial, a independência das ex-colónias. Recentemente deu à estampa uma obra polémica sobre o 27 de Maio de 1977 em Angola, a Purga em Angola. Obra de que é co-autor seu marido, Álvaro Mateus, o qual, ao longo da vida, foi quadro político, jornalista, publicista, advogado e professor, tendo sido, nos anos da ditadura, dirigente da Casa dos Estudantes do Império e coordenador do jornal clandestino Anti-Colonial, em cuja redacção participaram angolanos e de que saíram 11 números, o primeiro em 1964 e o último em 1969.
Trinta e quatro anos depois do infausto “27 de Maio de 1977” acha que se pode começar a fazer a história ou ficarmo-nos pelas “estórias”?
No que nos respeita, não fazemos «estórias». E mais de 30 anos decorridos sobre os acontecimentos são tempo mais que suficiente para a História Contemporânea.
Para o livro PURGA EM ANGOLA consultámos todo o material que nos foi possível (e duvidamos seriamente que existam, em Angola, arquivos oficiais sobre estes acontecimentos).
Recolhemos 28 entrevistas e declarações, depois transcritas para umas 700 páginas. Considerando que, para a compreensão do que ocorrera, era necessário recordar a história do MPLA, consultámos 41 processos dos arquivos da PIDE e 1 processo do arquivo de Oliveira Salazar. No Arquivo Histórico Diplomático do Ministério português dos Negócios Estrangeiros (fonte de informações do governo português no que respeita aos processos ocorridos no pós independência), consultámos mais 16 processos. Consultámos, também, vários sites na Internet. Lemos uma dezena de cartas particulares, assim como uma série de documentos do MPLA e dos intervenientes nos acontecimentos. Visionámos uma série de filmes, alguns deles da Televisão Popular de Angola. Lemos mais de meia centena de livros e duas dezenas de jornais e revistas.
Muito deste material (designadamente as entrevistas e declarações gravadas e transcritas, os documentos, as cartas, os filmes, os jornais e revistas de Angola) foi avaliado por técnicos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e ali depositado na «Colecção Dalila Cabrita Mateus», para consulta nos prazos legais, até porque algumas pessoas, para sua segurança, pediram sigilo da sua identidade enquanto vivas, o que os arquivos respeitarão.
Nem se diga que não ouvimos todas as partes. Citamos passagens de dois livros, vários discursos, três artigos e algumas cartas de Agostinho Neto. Entrevistámos o senhor Dino Matross, secretário-geral do MPLA, assim como o senhor Agostinho Mendes de Carvalho, antigo governante e deputado do MPLA. Citamos passagens de livros e declarações de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Gilberto da Silva Teixeira (Jika), César Augusto (Kiluanji) e Iko Carreira. Citamos, também, vários documentos do MPLA. E citamos, finalmente, a obra de Jean Michel Mabeko Tali, autor do único trabalho académico de fôlego sobre o MPLA.
Podemos não conhecer a verdade completa sobre os acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Mas cremos ter chegado a uma verdade possível, que deve estar muito perto da realidade.
Dito isto, fazemos uma advertência. O historiador não é um juiz, nem enuncia verdades absolutas, dogmas como na religião. As conclusões a que chega, com base na análise de uma enorme quantidade de documentação, estão sempre sujeitas à revisão e à crítica, até a refutações, com base em novos documentos. E desde que exista seriedade nos métodos, nos processos e no uso das fontes.
Sente que a “Purga em Angola”, obra envolta em grande polémica, funcionou como algo de catártico para ambos os lados de algo que os angolanos parecem mesmo querer esquecer?
Não creio que os angolanos queiram esquecer. Se assim fosse, o nosso livro não estaria já na 5ª edição e muitos angolanos não o teriam adquirido e lido. Esquecer o que se passou seria, aliás, consagrar um processo totalitário de construção da História de Angola, concebida como acontecimento sem testemunhas.
Hegel dixit “se a teoria é desmentida pelos factos pior para os factos” . Como acha que consegue colocar isso no contexto do “27 de Maio de 1977” e na “Purga em Angola”?
Na nossa opinião, só recuperando a «Memória» do que aconteceu se poderá acautelar o presente. O exemplo das injustiças ontem praticadas servirá para prevenir as que amanhã possam vir a ocorrer. E quando os familiares dos milhares de mortos e desaparecidos souberem onde estão as ossadas dos seus, terão, finalmente, a possibilidade de fazer o luto da sua dor. É o mínimo que se deve fazer para que possam, finalmente, descansar em paz.
Passados quase quatro anos da primeira edição do vosso livro “Purga em Angola”, não acha que há uma maior serenidade de todo um conjunto de pessoas para uma abordagem mais fundamentada em factos e menos em emoções, e que permita visões mais esclarecedoras de uma data que marcou indelevelmente de forma negativa o dealbar de Angola enquanto nação?
Trinta e quatro anos decorridos sobre os acontecimentos deviam, de facto, dar uma maior serenidade para a abordagem dos factos. Infelizmente, tal não acontece. E continua a haver consciências muito intranquilas.
Meses depois da saída do livro, num conhecido jornal angolano, um colunista manifestava a sua coragem no ataque a mulheres e puxando da pena desferia uma dezena dos mais baixos insultos contra a autora do livro, num «festival de impropérios» como afirmou o jornalista Reginaldo Silva. Depois, a direcção duma conhecida fundação angolana, não se sabe com que autoridade, retirou à autora o grau académico que possui. Mais tarde, num jornal português de referência, uma senhora viúva declarava que a autora era «mentirosa e desonesta», facto pelo qual responderá no foro adequado. E ainda há dias, num telefonema de Angola atendido pelo autor do livro, o filho de um dos participantes na chamada Comissão das Lágrimas, lembrou-se, finalmente, de que o pai não participara naquela Comissão e, com propósitos que se podem adivinhar, puxou dos galões e ameaçou-nos … com a justiça.
Não pretendo levantar questões que permitam especulações pueris, e também sei que perante a honestidade intelectual da professora Dalila Mateus isso nunca aconteceria, mas posso perguntar-lhe se baseada nas suas fontes, no contexto da sua obra toda, não pode admitir que o “27 de Maio de 1977” tenha sido o prolongamento do «maquis» na sociedade urbana?
É sabido que o grupo dos chamados nitistas tinha ligações à 1ª Região Militar do MPLA. É também possível que houvesse rivalidade entre guerrilheiros de várias regiões na luta por lugares de comando.
Mas, quanto a nós, o que se verificou, por alturas do 27 de Maio de 1977, foi uma luta pelo poder no seio da frente política MPLA, então encarado como um partido leninista com muito centralismo e pouca ou nenhuma democracia (até porque, ao contrário do que fizeram a FRELIMO e o PAIGC, durante os anos de luta armada, não realizaram um único Congresso). Aliás, durante os anos da guerra, as divergências foram, em regra, resolvidas da pior forma.
No livro comparamos esta situação com o que se passou com a organização dirigente da África do Sul, o ANC, onde havia 36 fracções (entre elas um partido e os sindicatos). Também ali atiravam em diferentes direcções, novos contra velhos, exilados contra residentes no interior, militares contra civis, inflamados contra ponderados. Mas Mandela e os dirigentes do ANC tiveram a sensatez de todos acolher numa grande tenda, considerando que não se deviam cortar os laços com a juventude, por muito dogmática, excessiva e simplista que possa parecer, pois nunca se viu construir o futuro sem aqueles que irão vivê-lo.
Recentemente saiu um livro do professor Tiago Moreira de Sá (Estados Unidos e a descolonização de Angola) em que a relação URSS-Cuba sobre a questão angolana tem alguns pontos não de fricção mas de completa dissonância. Em 27 de Maio de 1977, repetiu-se o que tinha acontecido nos acontecimentos que precederam o 11 de Novembro de 1975?
As divergências ressaltam com nitidez da leitura do nosso livro.
Os soviéticos não tinham grande apreço por Agostinho Neto, embora isso nada tivesse a ver com a sua imparcialidade no conflito sino-soviético, argumento que acaba por ser um insulto a Amilcar Cabral e a Samora Machel, que eram bem acolhidos em Moscovo, embora o segundo fosse um simpatizante dos chineses. Pelo contrário, Fidel Castro exaltava Agostinho Neto, identificando-o com a revolução angolana.
Por outro lado, apesar das acusações feitas a soviéticos de cumplicidade com os chamados nitistas, a verdade é que estes nada tiveram a ver com o que ocorreu e, segundo diplomatas portugueses, nem sabiam muito bem o que estava a acontecer. Quanto aos cubanos sabe-se que, por intervenção de Fidel Castro, tiveram papel decisivo na repressão desencadeada, actuando ao lado da polícia política angolana.
Talvez uma pergunta que terá uma carga de muita subjectividade, mas isso também faz parte da parte especulativa de qualquer trabalho. No 27 de Maio de 1977, para além do que se sabe, do que se publica que não é exactamente o que se sabe, não terá acontecido um pouco a teoria do cadinho onde terão confluído os fenómenos racistas, tribalistas, oportunistas e um anti-comunismo a roçar o primário que muitos foram então escondendo para estarem de “corpo e alma na revolução”.
Tanto quanto se percebe há no «contra-golpe» (minuciosamente preparado) uma confluência de muitos e diversos interesses, aparentemente contraditórios. Mas há, também, influências outras, a que aludimos de forma breve, quando dizemos:
«Os promotores da repressão terão tido os seus conselheiros. Alguns embaixadores (por exemplo, os da França, Jugoslávia e Argélia) nem sempre souberam salvaguardar a necessária discrição. E também não faltaram conselheiros portugueses, civis e militares, com acesso directo a Agostinho Neto através dum amigo pessoal deste».
Talvez um dia voltemos a este assunto. Por agora, limitamo-nos a referir que dois militares portugueses que passaram na altura por Angola afirmavam que o 27 de Maio de 1977 fora o 25 de Novembro de 1975 que, em Portugal, não se pudera concretizar, com uma matança monumental de comunistas e de gente progressista.
O “27 de Maio de 1977” deixou a então Republica Popular de Angola decapitada de muitos quadros que foram mortos, presos e nalguns casos que se refugiaram no exterior para nunca mais regressar. Sente nas pessoas com quem falou que isso foi determinante para que a Angola não conseguisse substituir essa gente e tivesse permitido a ascensão rápida da mediocridade baseado na confiança política, tribal, racial ou familiar em detrimento da competência?
Angola tinha, de facto, uma enorme falta de quadros. Compreende-se porquê. Em 1974, pronunciando-se sobre a presença branca em Angola, Agostinho Neto declarava ter «dúvidas sobre se, neste momento, os mesmos indivíduos que têm sido privilegiados durante o regime colonial terão o direito de continuar no país». E em vésperas da independência, aparentemente esquecido de que a maioria dos portugueses eram simples trabalhadores, afirmava na rádio que tinham de sair de Angola antes do 11 de Novembro.
O coronel Melo Antunes, um dos homens do 25 de Abril, afirmou que a principal responsabilidade pela saída dos portugueses dos novos países foi dos movimentos de libertação porque, «contrariamente à letra e ao espírito dos acordos», se gerara «um clima de total repúdio da permanência de portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado».
Em Angola, engenheiros e quadros técnicos, médicos e professores, gestores e trabalhadores qualificados eram, na esmagadora maioria, brancos. Sem eles, a economia e as empresas, as escolas e os hospitais ou funcionariam mal ou deixariam mesmo de funcionar. Ora, depois da expulsão dos brancos, mataram-se, prenderam-se e afastaram-se dezenas de quadros angolanos, a pretexto de que estavam metidos na conjura nitista.
De modo que, muitos dos poucos quadros de que Angola dispunha foram liquidados ou afastados, sendo substituídos por gente sem qualificação. Quem acabou por pagar por tudo isso? A resposta é simples: o país e os angolanos.
Em Portugal, alguns antigos colonos aparecem a dizer que a expulsão foi inspirada pelos comunistas, pelos russos. Acusação totalmente falsa. Os teóricos da revolução davam indicações no sentido de cuidar, «como das meninas dos olhos, de cada especialista que trabalhe conscientemente, com conhecimento do seu trabalho e amor por ele». Por isso o general russo Valentim Varennikov, que cumpriu duas missões de serviço em Angola, sublinhou os enormes problemas criados pelo facto de terem sido «expulsos impensadamente todos os portugueses, que constituíam a principal força na economia, na direcção dos serviços municipais e na organização da gestão do país…».
Continuam determinados em fazer novas incursões sobre o 27 de Maio de 1977, apesar de algumas experiencias desagradáveis que passou?
Para um historiador, a história nunca está acabada. Novos documentos podem levar a reabrir o processo, para emendar, para melhorar, para completar. Aliás, se compararmos a primeira edição do Purga em Angola com a última, podemos constatar que há mudanças. Apenas um exemplo.
O acontecimento que serviu de pretexto à grande purga e justificou o facto de Agostinho Neto, no seu último discurso, ter dispensado o poder judicial, dizendo que não perderiam tempo com julgamentos, foi o aparecimento de uma série de dirigentes e quadros do MPLA, numa ambulância e num jeep, mortos e carbonizados.
A primeira versão oficial dizia que o crime era da responsabilidade dos nitistas. Depois, apareceu uma outra versão oficial a dizer que os mortos tinham sido vítimas de «excessos incontroláveis».
Contudo, apareceu uma terceira versão, a declarar que os presos tinham sido mortos por um elemento da DISA, infiltrado entre os guardas. Ora, já depois da primeira edição, mão amiga fez chegar até nós um filme da Televisão Popular de Angola, feito em colaboração com o Ministério da Defesa e intitulado Eles Vivem no Coração do Povo. Ali se vê, no Sambizanga, ao fundo de um pequeno pátio, o quarto em que estiveram os presos. A câmara filma esse quarto e mostra uma porta cravejada de balas, depois varridas e juntas no chão.
As imagens valem por mil palavras. Se os nitistas queriam matar os presos, por que não os levaram para um local que desse menos nas vistas? E se os queriam matar ali, por que não abriram a porta, atirando à queima-roupa ou matando-os à catanada, para não fazer demasiado barulho? Estranho seria, aliás, que até tivessem morto elementos da sua própria gente, Garcia Neto, José Manuel Paiva (Bula) e o comandante Nzaji que, segundo um elemento da DISA, teria estado, na noite anterior, a preparar o «golpe» nitista. Assim, se pensarmos bem, concluímos que só um agente provocador infiltrado poderia ter disparado através da porta, pois tinha pressa em sair dali, para escapar à ira dos companheiros. De resto, sabe-se hoje, esse elemento, um tal Tony Laton, ter-se-ia tornado assessor do vice-director da DISA.
Tenho a convicção de que é absolutamente necessário tirar “os esqueletos do armário”, como dizem os ingleses sobre trocar lembranças do passado, pois a sociedade angolana não pode continuar a viver especulando ou evitando lembrar o que de menos bom aconteceu naquele cada vez mais distante dia de Maio de 1977. Para fim da entrevista, pergunto-lhes como vêem o olhar angolano sobre o “27 de Maio de 1977”?
Em nossa opinião, milhares de angolanos encaram hoje os acontecimentos do 27 de Maio com outros olhos. E querem conhecer melhor a sua história. Embora persista o temor em falar do acontecimento, o que explica que a autora seja frequentemente designada como «a tal» e não pelo seu nome.
De resto, nós continuamos a «tirar esqueletos do armário», a investigar, para dar a conhecer aspectos da história de Angola e de outros países de língua oficial portuguesa. Ainda este ano, assinalando os 50 anos do início da guerra colonial, publicámos mais um livro, intitulado ANGOLA 61: Guerra Colonial, Causas e Consequências.
Divulgam-se novos dados sobre o 4 de Fevereiro. Mostramos que, apesar de a operação ter sido reivindicada quer pelo MPLA quer pela UPA, o facto é que os participantes actuaram à margem destes movimentos, por iniciativa própria, pressionados por presos que não queriam ser levados para fora de Angola. A ideia da operação nascera numa «sociedade» criada com o objectivo central de lutar pela independência nacional e cujos fundadores foram Domingos Manuel Agostinho (de Malange), Raúl Deião, Bento António e Virgílio Francisco Sotto Mayor ( de Icolo e Bengo). Segundo Raúl Deião, Domingos Agostinho, o presidente da «sociedade» ( que seria o chefe-geral do 4 de Fevereiro, acção em que perderia a vida), era um simpatizante de Agostinho Neto e de gente que seria conotada com o MPLA. E segundo Virgílio Francisco, a luta pela independência de Angola devia conjugar-se com revoltas que se verificariam em Portugal contra o governo de Salazar.
Mostramos, ainda, que, no 4 de Fevereiro, a operação assume carácter militar, havendo exemplos a mostrar que se poupam as vidas de civis. Ao passo que, no 15 de Março, a revolta assume um carácter racial e tribal, voltando-se contra brancos e negros, contra civis, contra mulheres e até contra crianças. Além disso, o 4 de Fevereiro congrega elementos de diferentes movimentos e etnias, que procuram armas para lutar pela independência nacional. Ao passo que na revolta do 15 de Março, a perspectiva aparenta ser regional e tribal, procurando-se a independência para os bacongos, porventura com o propósito de reconstituir o antigo reino de S. Salvador.
Mostramos, ainda, que o massacre dos cultivadores de algodão da Baixa de Cassange, estimado entre 5 e 10 mil pessoas (vítimas dos ataques das companhias de caçadores especiais e dos bombardeamentos com napalm) terá feito mais mortos do que o «terror negro» dos bacongos, comandados pela UPA. E este «terror negro» terá feito menos vítimas que o «terror branco» que se lhe seguiu. Só que, num caso morreram colonos brancos, ao passo que nos outros só os negros foram atingidos.
Fazemos história, com base em documentos e relatos. Não inventamos nem falsificamos. Estamos sempre abertos à discussão e a refutações sérias, que sirvam para corrigir o que não estava bem. Mas contamos, também, com as injúrias, que merecerão o tratamento dos argumentos históricos não concludentes.
Resta-nos fazer votos para que historiadores angolanos, com seriedade nos métodos, nos processos, no uso das fontes (e sem temor) possam investigar temas controversos da sua história.
Fernando Pereira ( Entrevista que fiz para sair no Novo Jornal de 27-5-2011
Cortar a Direito / Ágora / Novo Jornal nº 175/ Luanda 27-5-2011
Realizou-se em Portugal de 16 a 19 de Junho de 1977 a Conferencia Mundial Contra o Apartheid o Racismo e o Colonialismo na África Austral.
As sessões foram distribuídas pelo território tendo sido a Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, o epicentro das grandes sessões.
A minha participação no evento era apoiar algumas delegações à conferência, principalmente em Coimbra, onde era representante no Conselho para a Paz e Cooperação, o distintíssimo professor Orlando de Carvalho que poucos anos depois tive o privilégio de acompanhar em Angola, numa missão da comissão permanente saída desse congresso de 1977.
Orlando de Carvalho, catedrático de “Teoria Geral do Direito Civil” na faculdade de direito de Coimbra era um homem de grande cultura, de uma esmerada educação, muito rigoroso nos seus princípios e de grande coerência política. Nunca alijou responsabilidades nas suas intrépidas tomadas de posições políticas, assumindo-as publicamente, muitas vezes pondo em risco a sua brilhantemente longa carreira académica.
Apoiou na ditadura movimentos exigindo a libertação dos estudantes presos em resultado da crise académica de 1969, participou activamente nas campanhas eleitorais contra a ditadura e promoveu sempre sem tibiezas de qualquer ordem a denúncia do salazarismo e colonialismo português.
Era uma pessoa notável, talvez como seu maior defeito o facto de gostar de falar para si próprio com os ouvidos dos outros, e a Universidade de Coimbra tem múltiplas histórias deste professor, que se tornou uma lenda dos “direitos”.
Entre várias cadeiras que ministrava o “direito de reais” , um cadeirão que feito representava para qualquer quartanista “ultrapassar o Rubicão”. Certa vez uma aluna chegou-se ao pé de Orlando De Carvalho e disse-lhe: “Dr. podia antecipar a data do exame porque os meus pais alugaram uma casa na praia e assim ia logo com eles? O OC olhou para ela e disse-lhe que “pode ir já para a praia que o exame está feito, e que pode pois voltar na época de Setembro”. Surpreendida ouviu OC retorquir: “ Uma aluna que chega ao quarto ano de direito e não sabe a diferença entre alugar e arrendar comigo reprova já!”
Esta é uma de muitas histórias de um homem que anos mais tarde acompanhei ao Lubango para denunciar à imprensa internacional o ataque às “Madeiras da Huila” perpetrado pela aviação sul-africana onde houve algumas vítimas num objectivo que não era militar, ou naquilo que certas “intervenções humanitárias”chamam de danos colaterais. Nessa ocasião ainda foi para Xangongo e Onjiva sem que se notasse qualquer constrangimento da sua parte, já que assumia tudo isto como militante da liberdade e defensor dos direitos do homem.
O professor Orlando de Carvalho era um homem convidado para todos os centenários de repúblicas, o que não queria dizer que os republicos ganhassem alguma coisa com isso na hora de fazer os exames com ele. Muita vez recorri a ele para sessões públicas evocativas do 4 de Fevereiro de 1961 ou do 11 de Novembro de 1975, onde Orlando de Carvalho fez intervenções brilhantíssimas que se perderam para memória futura. Para a então Republica Popular de Angola nunca se negou a nada, e a sua relação com o País era apenas da luta comum que proporcionou o 25 de Abril em Portugal.
Voltando à Conferencia Mundial há um episódio curiosíssimo que se passou na Bairrada, capital do leitão assado em Portugal. Um dos jantares era precisamente esse opíparo repasto, e quando chegou à mesa de muitos convivas o leitão com a anti-oxidante laranja na boca, os representantes dos Países muçulmanos de África quedaram-se a olhar para a comida sem um gesto que fosse para “agarfar “.Interrogámo-nos das razões de se limitarem a comer salada e laranja, e só já com a refeição adiantada, alguém se lembrou que a tradição muçulmana impede que se coma carne de porco. Foi difícil arranjar cabrito e bifes de vitela para tanta gente, mas lá se conseguiu e do espectro da fome inicial só sobrou a história para contar. As malhas que o protocolo atabalhoado teceu.
Fernando Pereira
24/5/2011
20 de maio de 2011
O Senhor dos Aneis /Ágora/ Novo Jornal 174/ Luanda 20-5-2011
Num périplo com o professor Sousa Santos feito por um conjunto de províncias a propósito da feitura da “Carta do Desporto Angolano” e da “Lei das Associações Desportivas” no princípio dos anos oitenta, fui-me deparando com o bizarro de situações que hoje são “estórias” de um tempo que foi sendo feito a golpes de vontade.
Em Saurimo, fomos recebidos no aeroporto pelo velho Passos, ao tempo o delegado provincial dos desportos. Como ainda era cedo para o frugal almoço, habitual nesse tempo de penúria colectiva, pedimos para ir até à delegação para preparar a reunião da tarde com os clubes da província. O Passos levou-nos a sua casa, explicando-nos que as instalações da delegação se encontravam em obras já há uns tempos e por isso todo o expediente era gerido na sua casa. Quando chegámos, levou-nos a um anexo onde estava uma secretária, uma máquina de escrever, um armário metálico com as portas fechadas com um atilho e num canto entre duas cadeiras, uma cómoda de quarto de dormir. O Passos explicou que o armário de metal era o arquivo morto, e na primeira gaveta da cómoda estava a documentação da delegação provincial dos desportos, na segunda gaveta estava instalada a associação de futebol e a ultima gaveta era para as associações provinciais de desportos colectivos e desportos individuais. Era um tempo em que o desporto na Lunda-Sul estava literalmente arrumado em gavetas.
Hoje, o desporto angolano já nada tem a ver com o cabouqueiro de outros tempos, mas surpreende-me negativamente haver poucos quadros de excelência, que o País deveria ter nestes quase trinta e cinco de vida colectiva enquanto nação.
Num dos últimos fins-de-semana realizou-se em Benguela a Assembleia Geral da Federação Angolana de Basquetebol e penso que é muito importante este evento ter decorrido fora de Luanda, assumindo ainda mais importância pelo facto deste conclave ser da modalidade desportiva com maior visibilidade do País.
Há muitos anos que acompanho a FAB, e há muitos mais que vou acompanhando o percurso desportivo e a trajectória do seu presidente Gustavo da Conceição.
Tenho uma declaração prévia de interesses a fazer; Conheço o Gustavo da Conceição, mas não tenho relação próxima com ele, pelo que estou muito à vontade para escrever sem encolhos de qualquer ordem.
Acompanho o Gustavo da Conceição desde a sua fase inicial no basquetebol em 1973, o seu percurso desportivo, a sua formação académica e o seu carácter, para afirmar sem qualquer hesitação que é indiscutivelmente um dos melhores quadros desportivos angolanos no activo.
Possuidor de enorme probidade intelectual o actual presidente do Comité Olímpico de Angola e da FAB junta a sua bonomia, o que o tem guindado a lugares de tomo no dirigismo desportivo internacional e naturalmente prestigiando Angola. É a continuidade de um riquíssimo trajecto desportivo como atleta, vencedor de muitas provas internacionais em que capitaneou a selecção até 1988, quando abandonou a modalidade deixando também o 1º de Agosto, clube onde foi seis vezes campeão nacional entre outras vitórias nacionais e internacionais de clubes.
Gustavo da Conceição acompanhou todos os patamares do crescimento da modalidade no País e a sua argúcia apurada, aliada a uma licenciatura superior no domínio da sociologia e gestão desportiva, consolidada com um mestrado na área da direcção desportiva acrescentam a um curriculum valioso uma actividade de dirigente com trabalho feito.
No último congresso da FAB houve críticas à presidência do Gustavo da Conceição e algumas delas pertinentes, porque se terá negligenciado nos últimos tempos algumas áreas da formação e um abandono do basquetebol nas províncias. As associações provinciais mostraram o seu desagrado de forma franca e desinibida e a ideia que transpirou para o exterior é que vão ser implementadas as recomendações saídas do congresso de forma a manter o basquetebol angolano no topo em África.
O Gustavo da Conceição aceitou todas as críticas, algumas sugestões o que é revelador do comportamento de quem nos habituou desde os seus tempos de atleta a exemplos de enorme tenacidade, lealdade, combatividade e acima de tudo uma sobriedade de carácter tantas vezes invulgar num campeão.
O basquetebol angolano tem dado ao nosso País uma visibilidade única, melhor a única que certa imprensa quer ver, e por isso há que enfatizar quem o fez elevar. Aqui há tempos teve direito a isso aqui neste espaço Vitorino Cunha, hoje Gustavo da Conceição, porque merecemos exigir que eles mereçam o nosso reconhecimento.
Fernando Pereira
18/5/2011
16 de maio de 2011
APITA O COMBOIO! / Ágora /Novo Jornal / Luanda/ 13-5-2011
“Não existem países subdesenvolvidos, existem países subgeridos” Peter Drucker (1909- 2005)
De forma desinteressada comecei a ver um documentário num canal de satélite de temas históricos. Passados uns minutos comecei a interessar-me pois era um capítulo da série “Histórias dos Comboios” dedicado à introdução do caminho-de-ferro no continente africano.
Já tinha visto alguns capítulos desta série, que sempre se situou num bom nível, mas o que constatei do que vi é que esta era curiosa. Falando de comboios em África, a série, que é uma produção francesa da Pathé, e portanto acima de qualquer suspeita, sentiu-se obrigada a falar do colonialismo europeu. E teve a honestidade suficiente de o fazer com palavras suficientemente claras. Disse que o colonialismo explorou Àfrica de duas formas consecutivas, extorquindo-lhe matérias-primas e vendendo-lhas depois sob a forma de produtos manufacturados. Que os comboios que os europeus introduziram em África tiveram por exclusivo objectivo servir esse derrame de matérias-primas e, para mais foram construídos com material de rebotalho, de tal modo que os caminhos-de-ferro africanos têm doze medidas diferentes, o que de todo impossibilita agora a sua utilização conjunta. Lembrou que os colonizadores evitaram sempre proceder à industrialização dos territórios africanos, a fim de não suportarem a sua eventual concorrência. Por isso deixaram a África, quando foram obrigados a abandoná-la, num estado de total dependência económica.
Foi assim que “História dos Comboios” caracterizou suficientemente a “acção civilizadora” dos europeus em África.
Como esta série era do início dos anos 80, fui a um velho e esfarrapado atlas de África muito minucioso ver as linhas de caminho de ferro que existiam, e de igual forma recorri a mapas recentes para saber que troços de caminho de ferro foram melhorados, alterados, prolongados ou quiçá mesmo construídos de novo. Pouco mais que os mesmos troços, pelo menos em mapas recentes.
Os comboios em África têm traçados completamente diferentes da Europa, da América do Norte e da Ásia. Todos acabam num porto e invariavelmente percorrem no sentido perpendicular ao mar, em direcção ao interior, e quase todas acabam em zonas de produção de minério. Os traçados no resto do mundo são entre cidades para transporte de passageiros e normalmente num percurso Norte-Sul ( A título de curiosidade a India tem 55.000Km de via férrea e cerca de 1.200.000 funcionários).
O actual Caminho de Ferro de Luanda foi inaugurado em 1909 com uma extensão de 479km, e nunca deixou de ser uma linha de indecisões, acabando o seu traçado em Malange, por incapacidade de financiamento para o prolongar até ao Congo.
O primeiro troço é Luanda-Funda em 1888, quando ainda se pensava fazer um caminho-de-ferro a ligar Luanda ao Congo pelo Norte, acabando depois por inflectir para leste.
As peripécias do financiamento deste empreendimento foram motivo de demissões no governo português, falência de casas bancárias, rixas no Chiado com um denominador comum: Insuficiência de verbas para construir a linha de caminho de ferro do Ambaca, depois transformado em Caminho de Ferro de Angola, para aproveitar as iniciais provavelmente.
A construção inicia-se em 1885, tendo os trabalhos sido dirigidos por João Batista Burnay entre 1889-1902.
A esta “tremideira” financeira não é alheia a posição dos Ingleses que entretanto fazem um Ultimatum a Portugal em 1890, relativamente às terras do chamado “mapa cor-de-rosa”, que incluíam a Zambia e o Zimbabwe, ao tempo baptizadas de Rodésia do Norte e Rodésia do Sul, em homenagem ao colonialista Inglês Cecil Rhodes (1853-1902), o administrador e proprietário da magestática British South Africa Company.
Os estudos para a construção do caminho de ferro de Luanda a Ambaca são iniciados por documento régio de 18 de Outubro de 1876, em que é nomeado responsável o eng. João António Bisac das Neves Ferreira.
O engenheiro Neves Ferreira projectou e fabricou-se no local uma ponte perto do ramal do Dondo de 180m que maravilhou alguns engenheiros estrangeiros da obra, que julgavam impossível no ermo que era aquela região construir e implantar no terreno uma estrutura metálica arrojada e segura para o tráfego ferroviário.
Hoje recuperada a linha vai ser certamente um motor de desenvolvimento do interior de Angola, não sendo de negligenciar a sua utilização recorrente no percurso urbano na cidade de Luanda, como um dos transportes de eleição quer nos países desenvolvidos, quer nos países em vias de desenvolvimento, terminologia que substitui “O Terceiro Mundo”, denominação que deve a sua paternidade a Alfred Sauvy.
Fernando Pereira
7/4/2011
Pra não dizer que não falei das flores! / O Interior / 12-5-2011
Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário. / Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)
Começo esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.
Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.
Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.
Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto ‘não’/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor.
Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.
Poderia estar a escrever sobre troikas e baldroikas mas preferi esforçar-me por me esquecer dos dislates constantes que todos nós vamos quase “catando” e rindo.
Talvez vos surpreenda este texto aparentemente descontextualizado, e acima de tudo as minhas desculpas a Geraldo Vandré por lhe ter “usurpado” o título de uma canção emblemática de contestação à ditadura dos generais, iniciada por Castelo Branco em 1964 no Brasil. “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.
Fernando Pereira
6 de maio de 2011
História sem Estórias! / Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 6-4-2011
Foi recentemente apresentado em Lisboa o livro de Tiago Moreira de Sá, “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola”, editado pela D.Quixote, que irá certamente dar mais um contributo a um período da história do território que tem sido ao longo dos anos motivo de especulação e opiniões divergentes entre protagonistas, observadores e politólogos, um estatuto melhorado do comum “achólogo”.
Já neste espaço em 2009 tive ocasião de comentar algumas passagens do livro “ Carlucci vs. Kissinger” (Dom Quixote,2008) em que o autor em colaboração com Bernardino Gomes, fez uma busca aos arquivos entretanto abertos pela administração americana à correspondência, memorandos e contactos que se encontravam classificados no departamento de Estado sobre os tempos da revolução portuguesa, da descolonização e consequente independência dos Países africanos de língua oficial portuguesa.
Penso que este “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola” feita pelo doutorado em História Contemporânea, Tiago Moreira de Sá, passa por ser um complemento da outra obra, circunscrita apenas ao “dossier” Angola nos anos setenta.
Repito-me quando digo que é excelente que jovens professores universitários, jornalistas ou outros eméritos investigadores de outras áreas, longe das paixões vividas ao tempo, distanciados das questiúnculas internas de Angola, fisicamente sem nunca terem conhecido o território, consigam fazer trabalhos que são indispensáveis para conhecermos realidades que vivemos e que julgávamos ter tido enquadramentos em que as nossas antigas certezas são abaladas pela actual teimosia dos factos.
O livro que li num fôlego é um aturado trabalho de pesquisa não apenas dos documentos da correspondência epistolar, trocada entre vários intervenientes e o departamento de Estado Americano, mas também o recurso a outras obras, algumas já aqui comentadas, como a depoimentos de alguns intervenientes.
O que ressalta do muito que a obra contém é que a história oficial precisa de ser desmontada, e é de certa forma lastimável que certas personalidades envolvidas no processo de descolonização de Angola continuem a perpetuar discursos completamente distorcidos das suas próprias práticas ao tempo. Cito a título de exemplo entre outros, o caso de Almeida Santos, que na sua extensa obra “Quase Memórias” evidencia uma prática que os documentos colocados neste livro permitem ter outra leitura completamente divergente.
O livro não é laudatório para ninguém ou nenhum movimento, nem era esse o objectivo, mas pode permitir que outros factos em Angola possam ser analisados de forma diversa, como por exemplo o enquadramento e as desinteligências entre cubanos e soviéticos em alguns períodos quentes da história contemporânea de Angola.
O que Mobutu pensava de Holden, de Neto, Savimbi e Chipenda. Rosa Coutinho era o “homem dos americanos”, segundo informações do cônsul americano em Luanda. O alinhamento despudorado de Kaunda com Savimbi. A insistência de Almeida Santos em Savimbi para a presidência de Angola. A simpatia de Julius Nyerere pela UNITA e as suas tentativas para afastar Neto da presidência de Angola, tentando que Samora Machel o seguisse. A falta de interesse dos EUA em Angola. As razões pelas quais Mao não queria ligar-se a nenhum movimento que tivesse apoio sul-africano. As posições pró-Unita de Melo Antunes e a sua rápida mudança de tabuleiro. As razões da quebra de apoio à FNLA e à UNITA numa determinada fase. Tudo isto o livro aborda, ainda que ocasionalmente não de uma forma muita exaustiva, provavelmente por critérios que terão a ver com a necessidade de não transformar o livro num “tijolo” sensaborão.
Surpreende-me de certa forma a conclusão que o autor retira do conjunto de documentos, livros, depoimentos e alguma ajuda de certos intervenientes directos como Heitor Almendra, homem forte da conjuntura militar portuguesa em 74/75 em Angola, e que se tem remetido a prudente silencio. Tiago Moreira de Sá afirma categoricamente que a intervenção dos americanos numa primeira fase foi causada pela envolvência dos soviéticos e cubanos, destes pela “solidariedade internacionalista” sem terem consultado a URSS, e esta intervêm porque os chineses se posicionavam para criar tentáculos em África. Os sul-africanos e os zairenses eram trocos, em todo um esquema de intervenções pouco pensadas e afirmadas e perpetuadas no tempo por razões que nada tiveram no seu âmago.
Acho que é um livro essencial para dar novos conteúdos a outras realidades que julgávamos verosímeis, e pode ser mais um instrumento para novas discussões e outros trabalhos que valorizem o estudo da Angola contemporânea, que muito começa a dever a estes jovens investigadores.
Fernando Pereira
30/4/2011
29 de abril de 2011
Os Vampiros / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 29-4-2011
“Nunca tão poucos deveram tanto a tantos”
Palavras sábias na frontaria de uma vetusta república coimbrã, o “Palácio da Loucura”, derivação de uma frase imorredoira de Winston Churchill na sua homenagem à RAF na “batalha de Inglaterra”, determinante para a vitória dos aliados na II Grande Guerra.
Neste fim-de-semana e cumprindo a tradição o “Palácio” comemora mais um “centenário” e todos os que estiveram ligados às republicas vizinhas como o “Kimbo dos Sobas” e os “Mil-i-Onários” são convidados a participar num jantar em que se cruza muita gente, num quadro de solidariedade inter-geracional e naturalmente bebida a rodos. Uma “república” em Coimbra é uma casa de estudantes, gerida por períodos determinados de tempo por cada morador, o mor, em que todas as decisões são submetidas ao colectivo, e só daí sairá a decisão final. O “centenário” é nem mais nem menos que a data anual em que se comemora a fundação da república, e chama-se assim porque segundo reza a história, o espaço de vivencia é tão intenso que viver um ano numa república equivale a viver cem anos.
Por sinal o “centenário” da desaparecida república do “Kimbo dos Sobas” foi sempre o 4 de Fevereiro, o que deixava a vizinha PIDE sempre de incomodada e de atalaia. Aliás quero aproveitar para pedir a todos os muitos que por lá passaram, que não deixem de contribuir com histórias, depoimentos e fotos para um livro que está a ser preparado de forma a documentar uma das repúblicas marcantes na luta estudantil pela liberdade em Angola num tempo em que havia muitos estudantes angolanos em Coimbra.
A tradição das repúblicas de Coimbra era a de ter a porta aberta o ano inteiro, e quem quisesse podia entrar e servir-se. Sabendo que as dificuldades dos “republicos” eram enormes, havia alguma parcimónia dos visitantes na aceitação de convites para comer, embora para dormir não havia esse problema, já que outra das regras assentava na obrigatoriedade dos quartos estarem permanentemente disponíveis. Havia contudo os “vampiros” que se aproveitavam desta regra solidária de Coimbra e entravam nas repúblicas, esvaziavam as encolhidas e racionadas despensas deixando os “republicos” em muito maus lençóis.
Consta-se que a canção de José Afonso, também um ex-republico, “Os Vampiros” foi feita para denunciar esses autênticos pilha-galinhas, que aterrorizavam as parcas despensas dos estudantes. Passou depois a ser um hino de resistência ao fascismo e ao colonialismo, e curiosamente uma das mais emblemáticas de um dos nomes maiores da canção popular e de intervenção na língua portuguesa.
Vou reproduzir aqui uma história curiosa de um insigne angolano do Huambo que veio estudar medicina para Coimbra nos anos cinquenta. O recentemente falecido Freitas de Oliveira, que em determinada altura teve uma paixoneta por uma figueirense que tinha conhecido nas ferias de Verão. Freitas de Oliveira foi cirurgião e presidente do Mambroa durante muitos anos, militante da FNLA e posteriormente médico do Porto do Lobito nos anos 80. Queria ir à Figueira da Foz e disseram-lhe que havia um taxista pago pelo casino para levar dois jogadores de Coimbra todos os dias pelas 16h. O senhor João taxista, que tinha no seu cartão como outras profissões, afinador de pianos e agente de viagens para a Argentina, disse que só o levaria se o Roque pai e o Roque filho, a dupla de jogadores autorizassem. Aguardou e quando chegaram, com a duvida metódica dos jogadores, profundamente mesclada de superstição, começou um diálogo entre os dois em que não sabendo se quebrando esta rotina iriam ter uma noite de sorte ou azar. A determinada altura levaram o nosso F.O., num ambiente algo tenso. O F.O.ia com um distúrbio intestinal e quando chegaram aos arrozais de Montemor-o-Velho, ele disse que precisava de “evacuar”. Os “Roques” ficaram siderados, completamente desmoralizados perante as perspectivas de uma noite deplorável no jogo. A realidade é que tiveram uma noite memorável com os melhores ganhos na época do Casino. Fizeram questão de lhe pagar a ceia no cabaret “Lagosta Vermelha” e levaram-no à porta da sua”república”. No dia seguinte estava o táxi à sua porta com os Roques para o levarem de novo e ele grato pela boleia na expectativa de novo opíparo jantar. Quando chegou aos arrozais, abriram a porta e deram-lhe um rolo de papel higiénico recomendando-lhe que se esforçasse. A verdade é que a sorte não se repetiu e o F.O. nunca mais teve boleia, mas também não teve que defecar sem vontade. As teias enleadas das superstições do jogo.
Retomando José Afonso, principalmente pelo génio que era, e porque nunca olvidarei o 25 de Abril de 1974 e a sua “Grandola Vila Morena”, acho que seria interessante escrever-se sobre a conturbada digressão de José Afonso, Fausto, Adriano Correia de Oliveira a Angola em 1975 com Ruy Mingas, Liceu Vieira Dias Beto Gourgel, Filipe Zau e outros, para lembrar o que foram tempos de intolerância, perseguição e ameaça física de tempos que queremos mesmo esquecer.
Era um bom trabalho e a homenagem de muitos a quem muito deu sem nada pedir em troca: Zeca!!
Fernando Pereira
23/4/2011
22 de abril de 2011
JJ / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 22-4-2011
Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz, que lidamos mal com a história, o que faz de nós uma sociedade distraída e de curta memória.
Numa incursão pela minha desorganizada biblioteca fui encontrar um livro editado pela extinta Moraes, editora do esforçado Alçada Batista, “Angola, o longo caminho da Liberdade” saído do prelo em Novembro de 1975. O autor é Amadeu José de Freitas, ao tempo jornalista da RTP, depois de um percurso sóbrio e profissionalmente honesto no jornalismo desportivo quer como relator desportivo, quer como director do “Mundo Desportivo”, um tri semanário que saía à segunda, quarta e sexta, custava 10 tostões e rivalizava com a “Bola”, o “Record” e o “Norte Desportivo”.
Este livro de Amadeu José de Freitas é uma raridade, mas para quem precisar de conhecer bem os tempos conturbados da fase anterior à independência de Angola tem aqui um excelente trabalho jornalístico, com detalhes que cruzados com afirmações posteriores permitem alterar opiniões sobre o que aconteceu de facto num tempo em que a serenidade era um achado. Amadeu José de Freitas encontrou-a para escrever fazer este trabalho de uma forma apaixonada, coerente com o rigor que punha em tudo que fazia.
Lembro-me das tardes de domingo na Luanda colonial, num tempo em que ar condicionado era uma coisa rara que praticamente só os bancos tinham, ouvir das janelas abertas num rádio de som no máximo, as vozes de Nuno Braz, onde o Herman José foi buscar inspiração para o seu imorredoiro “José Estebes”, do Artur Agostinho, Romeu Correia, Fernando Correia e Amadeu José de Freitas. Havia ao tempo em Coimbra um relator desportivo que era um verdadeiro “doente” pela Académica, e isso custou-lhe o lugar quando num qualquer jogo berrava a plenos pulmões que tinha sido “golo da Académica” e no seguimento da jogada e com o mesmo timbre:”Porra, que não entrou”. Era o Manuel Gaspar que depois passou a “relatar” procissões com linguagem futebolística, o que acabava por ser delicioso de ouvir pelo caricato do “passam três meninos vestidos de anjo”, “ao fundo a primeira Nossa Senhora” e adiante…
Falando de futebol cumpre-nos recordar um dos maiores futebolistas angolanos de sempre: Jacinto João (1944-2004). Filho de um saudoso empregado da cervejaria Portugália em Luanda, ali pertinho da Lelo, JJ começou a jogar à bola na rua nos musseques, entre casas de adobe e telhados de zinco. Estudou no Colégio dos Missionários de Luanda, e como não conseguiu representar o Colégio no campeonato de juniores de Luanda por só ter 14 anos, fundou o seu clube, o Brazaville.
Aos 16 anos já jogava no Sport Congo e Benfica, e vem para Portugal prestar provas no Benfica, onde fica seis meses e depois de rejeitado por Bela Guttman regressa a Luanda, de onde sai para o Vitória de Setúbal depois de se ter negado vir para o FC Porto, Belenenses e Guimarães. Rapidamente se torna figura maior do Vitória de Setúbal, onde encontra os seus dois companheiros do Atlético de Luanda, os irmãos José Maria e Conceição, e entre vários treinadores o angolano Fernando Vaz e José Maia Pedroto.
O Setúbal nesses anos vulgarizava equipas grandes de Portugal e da Europa e o Vitória fez nos anos 60 e 70 as suas melhores épocas de sempre, com o JJ como figura maior da equipa. Internacional dez vezes por Portugal num tempo em que a selecção pouco jogava, JJ tem hoje perpetuado no Estádio do Bonfim uma escultura que o homenageia como o maior jogador de sempre do clube.
Eu que tive o privilégio de o ter visto jogar bastantes vezes posso dizer que a bola nos seus pés era uma delícia e não raras vezes os adversários puniam-no com faltas duras porque ficavam fartos de dançar ao som do seu toque de bola.
O racismo no futebol em Portugal, como na Europa em geral era muito marcante e mesmo entre colegas de profissão. Fernando Peyroteu, de quem um dia falaremos com mais detalhe, no seu livro de “Memórias” relata a sua chegada ao Sporting em 1937: “eh pá! Já cá tínhamos um preto, agora vem outro só um pouco mais branco” e “Qualquer dia a equipa fica tão escura que só com um lampião a encontramos”. Estas piadas eram para o branco angolano, mas dirigidas a Paciência, avançado de centro negro, que provocou a indignação de um Peyroteu que detestava dichotes racistas.
Até 1974 era comum o epíteto de “colored” quando se queria falar ou escrever de um negro no desporto ou noutra área onde sobressaísse, um pouco como hoje a expressão “de cor” muito usada em Portugal, o que prova que ainda há muitos esqueletos nos armários das mentalidades.
Fernando Pereira
17-4-2011
15 de abril de 2011
Da invasão à demolição / Ágora /Novo Jornal/ Luanda / 15-4-2011
Há cinquenta anos (16 de Abril de 1961) os EUA patrocinaram um desembarque de um corpo de anticastristas na Baia dos Porcos a sul de Cuba determinados a derrubar o regime de Fidel de Castro numa operação que se pretendia cirúrgica e secreta, acabando por descambar numa dos erros repetíveis dos americanos ao longo da sua história contemporânea.
O regime cubano estava avisado para a hipótese uma invasão deste tipo e num espaço de setenta e duas horas repeliu-a e vibrou um rude golpe em ulteriores projectos para derrubar o regime socialista cubano.
Os EUA ficaram indelevelmente ligados ao fortalecimento da revolução cubana, ao seu alinhamento com a então União Soviética, e a política titubeante de Kennedy em relação a Cuba terá precipitado o seu assassinato em Dallas em 1963, atentado atribuído à máfia cubana de Miami, facto apesar de tudo nunca cabalmente demonstrado.
Nesse ano e nesse período em que a Emissora Nacional depois do hino cantado pelo coro da FNAT da “Angola é Nossa”, da “Rádio Moscovo não fala verdade” e “De Luanda fala Ferreira da Costa” procedia-se à definitiva transferência da “Casa das Malucas” para as actuais instalações na “Revolução de Outubro”.
De facto foi em 1961, com a necessidade de se instalar o Hospital Militar para apoiar as tropas portuguesas enviadas para a colónia desocupou-se o hospital psiquiátrico de Luanda, anexo da Maternidade Mariano Machado inaugurada em 1947, e hoje o pavilhão anexo ao edifício principal da maternidade “Lucrécia Paim”. Era chamada em Luanda como a “casa dos malucos”, no antigo “Hospital da Caridade” instalada ao tempo numa zona arrabalde onde muitos dos doentes deambulavam pelas ruas, a maioria deles com diagnóstico de doença do sono.
O “Hospital da Caridade” era próximo do antigo aeródromo Emílio de Carvalho e perto da estação do comboio que cruzava a cidade duas vezes por dia em ambos os sentidos no percurso Bungo-Município-Cidade Alta- Hospital e Aeroporto. O comando central dos bombeiros de Luanda ocupa as salas de embarque do aeroporto, depois de terem sido deslocados da baixa onde o quartel foi transformado no antigo teatro Avenida no fim dos anos sessenta, hoje demolido por pressão do imobiliário reinante na nossa comunidade.
Até ao dealbar dos anos 50 era habitual o tiro de canhão ao meio dia na fortaleza, um aviso sonoro do fim do período de trabalho da manhã que apesar de deixar perplexos os recém-chegados à cidade, nunca deixou de ser um dos poucos ex-líbris de uma cidade provinciana e atarracada.
Era uma cidade em que o único cinema era o pequenino Nacional, hoje espaço Verde do Chá de Caxinde onde nas paredes exteriores, nos camarins ou nos foyers se vão vendo muitas evocações às passagens de teatro clássico e de revista “importada” de Lisboa que muitas vezes devem ter encolhido o elenco de forma a caberem no pequeno palco para representar junto da sociedade reluzente da urbe.
Como nessa altura o porto da cidade era nas “Portas do Mar”, no largo onde se encontra hoje a peanha vazia do Pedro Alexandrino da Cunha toda a cidade fervilhava em volta desse local onde estavam (e estão) os correios, a alfandega, o edifício das telecomunicações, a delegação do BNU e todas os grandes armazéns, barbearias, bares, botequins, comércio geral, farmácias e hotéis como por exemplo o demolido há décadas Hotel Colonial ao lado dos Correios, onde está hoje mais um edifício tipo palito disforme que nos exige cada vez mais resistência a tanta falta de gosto espelhado.
Vários armazéns perpetuaram-se e mantêm-se apesar de terem passado a monarquia, a 1ª república, a ditadura no período colonial e o arremedo de marxismo-leninismo, o capitalismo envergonhado e o ultra-liberalismo prevalecente dos anos em que somos Nação.
Os Armazens Caiado, Carrapa, Joaquim Valente, Catonhotonho, Travassos e Jorge, Mabílio Albuquerque, Setas, Bungo, ETA, Zuid, Diogo e Companhia entre muitos outros movimentaram a cidade num espaço junto do mercado do Caponte demolido para se construir inicialmente o “português-suave” Banco de Angola e mais tarde o BCA, actual BPC, que foi o orgulho dos luandenses durante décadas.
A actividade do porto pesqueiro, até ser mudado para o actual lugar em 1969, e todo aquele labirinto de casas que havia no que é hoje ocupado pelos prédios novos em redor do MIREX e pela praça Saidy Mingas era um lugar de grande convívio e de histórias que irei tentar contar para que não se percam, num tempo em que a cidade andava ao ritmo do comboio-bébé já pouco vivo na lembrança dos luandenses.
Obrigado pela companhia nessa cidade de mais terra encarnada que alcatrão. Às histórias dela havemos de voltar.
Fernando Pereira
11/4/2011
14 de abril de 2011
OUÇAM O QUE SE DIZ NA RUA / O INTERIOR/ 13-4-2011
Ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua hão-de vir para a rua ouvir ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua quando vierem para a rua ouvir o que se disse na rua já ninguém quer saber de vós para nada ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua a porta da rua é a serventia da casa ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua farto de ouvir falar de coisas que infestam a rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua perco a paciência com muitos que andam na rua para tentarem por na rua outros por quem não tenho paciência nenhuma de os lá ver e estou morto por vê-los na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua faço anos em Maio podem dar-me uma prenda mesmo que estejam para ir para a rua ou fiquem lá porque os não puseram na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua diz-se que o Futebol Clube do Porto é a melhor equipa do campeonato e é indiscutivelmente um campeão merecido ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que o Presidente da Republica está silencioso porque talvez nem seja má ideia para não ter na rua mais um a dizer banalidades sobre como se há-de multiplicar os lucros do sistema bancário ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua numa altura que precisamos de um novo Dino Meira porque não merecemos a Amália ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que ando esbaforido de tanto dizer mal de tanta coisa e tudo permanecendo piorando ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que não tenho nada que andar a pagar juros sobre juros de uma dívida que tem sido aumentada sem que se perceba porquê ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua deixem-me ver televisão à vontade sem ouvir os tudólogos apoliptólogos politólogos achólogos e alem de tudo isso os tipos que discursam para os que falei falarem deles ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politiqueiros são flatulência da politica ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politica nada tem a ver com politiqueiros comissários e serventuários do sistema ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua PORQUE QUALQUER DIA ESTÂO TODOS NO OLHO DA RUA A OUVIREM O QUE SE DISSE NA RUA PORQUE NÂO QUISERAM OUVIR O QUE SE DIZIA NA RUA.
Este pequeno texto é um devaneio da “Guidinha” do injustamente esquecido Luis Sttau Monteiro, que ao tempo escrevia na “Mosca” do Diário de Lisboa e posteriormente no “Jornal” .
Fernando Pereira
9-4-2011
8 de abril de 2011
Prémio ao Lubito / Ágora / Novo Jornal / Luanda 8-4-2011
Fiquei naturalmente satisfeito pela atribuição do prémio na vertente de Arquitectura, do prémio da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) ao arquitecto Francisco Castro Rodrigues.
“Quando se chega a velho é que nos dão os prémios”, respondeu de forma bem-humorada quando o parabenizei pela distinção.
O arquiteto Francisco Rodrigues é aos noventa e um anos uma pessoa loquaz, irreverente, com uma memória prodigiosa e arreigado às suas convicções de homem progressista e defensor da liberdade.
Um episódio que FCH conta da visita do presidente português Craveiro Lopes ao Lobito na sua viagem a Angola em 1954 e que é em tudo de semelhante à rábula da chegada de Mussolini a Berlim no “Grande Ditador” de Charlie Chaplin, uma das cenas maiores do cinema mundial.
Entre o Tamariz e o edifício dos Correios foi criado um espaço pomposamente chamado de “Portas do Mar”, que recebeu melhoramentos de tomo para receber Craveiro Lopes. No dia aprazado para a chegada, sob um calor intenso a fina-flor da sociedade do Lobito, um rancho folclórico do roupas minhotas composto por trabalhadores negros do Cassequel, uma banda, tudo a preceito para que a chegada antes do almoço fosse uma manifestação de grande enlevo.
As horas foram passando, a incomodidade das pessoas foi progredindo e as manchas nos sovacos aumentavam de diâmetro e quiçá mesmo a deixarem no ar um odor a que não eram alheias as pituitárias mais insensíveis.
O navio presidencial vinha de Novo Redondo (Sumbe), mas os planos foram alterados entretanto e a comitiva veio por terra; Resultou daí que a comitiva deslocou-se logo para o Terminus e admito quão hilariante foi ver a correria de gente de fato a rigor, vestidos compridos, saltos dos sapatos a partirem-se o que levou a que nessa “maratona” alguns chegassem descalços, a maioria esbaforidos e quase todos num estado de desmazelo nada condizente com a “elevação” do evento.
Este prémio é também para a cidade e tem que ser partilhado com o Engenheiro Fernando Falcão, técnico que Francisco Castro Rodrigues nunca se esquece de mencionar quando a sua obra é elogiada, dizendo apenas que era impossível construir o que quer que fosse sem a colaboração do prestigiado cidadão do Lobito.
Hoje diluído no imenso amontoado de casas no monte sobranceiro à estrada entre o Lobito e a Catumbela, existe em ruínas um conjunto de casas para trabalhadores “indígenas” da Sociedade Agrícola do Cassequel, uma verdadeira montra do esforço feito pela açucareira na “promoção social dos trabalhadores”. Não há ninguém com mais de trinta anos que por ali tenha passado que não se lembre de as ver ao longe, e encontrá-las em inúmeras fotos e postais do local. Era um conjunto de 120 casas, pintadas de cor de rosa cobertas com colmo. Era uma verdadeira obra de “portugalidade”, tão ao gosto de Gilberto Freire e dos prosélitos do luso-tropicalismo. Quando para lá foram transferidos os trabalhadores, imediatamente começaram a arranjar casa de adobe junto a esse aldeamento e deixarem as casas que tão elogiadas eram, para preferirem viver nas suas casas com paredes de barro, telhado de colmo e terra vã no interior.
Foi quase um sacrilégio quando os responsáveis da açucareira viram esta situação, o que deu azo a inúmeros dichotes racistas tipo: “os pretos não sabem viver em casas decentes”, “ali anda mão da Kuribeka” , “é para verem que cidades querem quando tivessem a independência”, e por aí fora.
A realidade é que as casas eram construídas com blocos, numa exposição solar permanente, sem ventilação, com o chão cimentado, perto de pântanos e de plantações de cana do açúcar, tornavam essas bonitas habitações em verdadeiras frigideiras onde o calor e os mosquitos tornavam a sobrevivência impossível. Julgo que já terão desaparecido, porque na realidade pouco serviram mais que para tirar fotos ao longe durante décadas, tendo em conta que foram construídas no final dos anos trinta.
Este exemplo proliferou por Angola inteira em muitos lugares de norte a sul do País, com as obrigações decorrentes do “desenvolvimento social” do fim do Império colonial na sua transição maquilhada para “províncias ultramarinas”. Na verdade era recorrente colocar divãs com esteiras em habitações de construção definitiva, casas lúgubres, sem iluminação natural e permeável a um espaço de nidificação de insectos e repteis, tal a humidade e o calor que havia no interior dessas casas para “contratados”.
O Lobito, que segundo Francisco Castro Rodrigues se chama Lubito por razões que já expliquei noutra crónica era a “Catumbela das ostras”, já que era o local privilegiado para a apanha das ostras, não só utilizadas para a alimentação, como a sua concha depois de moída foi durante anos um dos bons substitutos da cal no revestimento das casas da burguesia colonial.
Um dos mais conhecidos comerciantes de ostras foi o pai do José Aguas, campeão europeu de futebol pelo Benfica em 1960.
Já que se fala de grandes jogadores do Lobito e Catumbela não esqueçamos o sportinguista Fernando Peiroteu precocemente desaparecido, Santana, companheiro de Águas na vitória europeia de Benfica e depois ostracisado por questões políticas pelo clube, irmãos Couceiro que brilharam na Académica e Yaúca, em que a sua transferência para o Benfica foi paga pelas torres de iluminação do campo do Catumbela, que eram as do estádio do Campo Grande em Lisboa antecessor do antigo Estádio da Luz, enquanto campo de jogos do Sport Lisboa e Benfica.
A Catumbela teve o primeiro campo iluminado da província de Benguela e a segunda do território à boleia da transferência do malogrado Yaúca.
Fernando Pereira
5/3/2011
1 de abril de 2011
JARDIM COLONIAL / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 1-4-2011
No domingo passado resolvi dar uma volta em Lisboa e escolhi na zona de Belém o Jardim Botânico Tropical.
Este jardim, que está num magnífico estado de conservação, já teve ao longo dos anos vários nomes. Foi uma adaptação dos jardins dos Condes da Calheta, para que fosse um dos núcleos da Exposição do Mundo Português .
Nessa exposição começou por ser o “Jardim Colonial”, uma antevisão do que seria a zona dos “Descobrimentos” no “Potugal dos Pequenitos” em Coimbra numa obra do arquiteto Cassiano Branco. Neste espaço construíram-se pavilhões onde ao tempo se faziam exposições de artesanato, colóquios, mostras de trajes e outras iniciativas que ocuparam continuadamente o espaço entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940. A maioria encontra-se encerrada, apesar de relativamente bem cuidadas, excepção para a grande estufa central, que já terá conhecido melhoras dias, apesar de guardar espécies interessantes da flora africana.
Foi depois o Jardim do Ultramar, Tropical e finalmente Botânico Tropical, dependente do Instituto de Investigação Científica Tropical e é um espaço magnífico de Lisboa, paredes meias com o Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da Republica de Portugal.
Confesso que as razões para voltar ao “Jardim Colonial” foi o facto de no Palácio dos Condes da Calheta, hoje propriedade do IICT, estar uma exposição interessantíssima chamada “Viagens e Missões Científicas nos Trópicos”, merecedora de uma visita detalhada, pois é uma viagem ao trabalho e ao estudo minucioso do que foram as missões ou as experiencias colectivas e individuais de cientistas, biólogos, geógrafos, tipógrafos, botânicos, ornitólogos, ou até vulgares diletantes no espaço colonial português.
A exposição é riquíssima não apenas no aspecto documental, mas também uma mostra muito bem organizada da multiplicidade de materiais utilizados por todas as expedições, desde as necessárias para definir fronteiras como as que assentaram nas prioridades económicas ou puramente académicas.
O mais importante a reter desta exposição é a alteração do seu contexto “ideológico”, pois deparamo-nos com a ausência dos panegíricos ao “mundo que os portugueses descobriram”, apenas uma homenagem aos valorosos homens e instituições que apenas tinha como móbil o factor científico dos seus trabalhos em circunstâncias particularmente difíceis. É uma avaliação muito subjectiva mas penso não ser alheio o facto dos autores dos módulos desta exposição serem jovens académicos despidos de alguns escolhos da mentalidade colonialista ainda perene nalguns sectores.
Entre o espólio de alguns ilustres cientistas, muitos deles apeados da toponímia luandense sem justificação plausível, e que aqui trarei em futuros artigos, achei interessante ver uma parte do espólio de José de Macedo, autor de um livro centenário sobre a política colonial denominado “Autonomia de Angola”, felizmente reeditado pelo IICT no ano passado.
José de Macedo (1876-1948) foi um republicano, maçom, pedagogo, jornalista e defensor da liberdade dos povos das colónias, num período em que o racismo e a exploração dos povos coloniais eram matriz essencial da primeira metade do século passado.
José de Macedo, fortemente influenciado pelo positivismo de Proudhon, grande companheiro de Magalhães Lima, referência maior da maçonaria portuguesa e figura de proa do Republicanismo Português, foi preso várias vezes pela sua luta contra a Monarquia, muitas vezes através da contundência dos seus escritos na “Lucta”.
Perseguido, embarca para Angola onde para além da sua actividade profissional de professor assume a direcção do jornal “A Defeza de Angola” (1903, segundo Julio Castro Lopo), e também aí é preso por ter gritado “Viva a Republica” num jantar no Hotel Areias onde fazia uma sessão com lojistas e funcionários em Angola. Fundou em Luanda o “Colégio Progresso”, fez vários percursos pelo interior do território donde resultaram livros importantíssimos para o estudo da sociedade angolana do virar do século e de enorme importância política e de apoio à etnologia e antropologia. Lutou pelo desenvolvimento e conhecimento da sociedade angolano e participou nas lutas cívicas anti-esclavagistas e favoráveis à alteração do controlo dos contratos de serviçais, que lhe granjearam um enorme respeito mas também muitos inimigos. Foi colaborador do Jornal de Benguela entre 1912 e 1919.
Deixou um grande espólio que a família legou ao IICT, e talvez tenha chegado a hora de começarmos a conhecer em pormenor um homem que foi sendo sucessivamente esquecido na voragem das transformações políticas.
Renunciou a cargos e honrarias e o seu mote de vida pode ficar neste parágrafo retirado do seu livro “Etnografia e Economia”: “Luta um velho que quer dar exemplo aos novos, de constância no estudo e no sacrifício de seu nome humilde que vem lembrar aos jovens que nunca é tarde para exercer uma função e que até ao túmulo deve aparecer perante os outros a expor o fruto do seu trabalho e das suas vigílias”.
Fernando Pereira
30/3/2011
25 de março de 2011
Reviver o passado em Luanda/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda / 25-3-2011
“Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía...
Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica na esplanada Estrela Brilhante, com o chão cheio de tremoços e de detritos. Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmolas, outros oferecem-me cinzeiros de madeira, objectos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. Uns sujeitos sebentos, de pasta, trocam escudos por angolares, com 12% a mais. Mas é tudo caro, tórrido e feio.
...
Ontem um amigo daquele outro médico afinal conhecido, levou-nos a visitar a ilha, uma espécie de promontório com praias de um e outro lado, casas, um clube de golfe. Uma espécie de Rodésia vista por um mestre-de-obras de Tomar.
...
Luanda está longe de ser uma cidade vivível: toda ela é uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano, e os brancos daqui têm todo o mesmo indefinível aspecto dos vendedores de automóveis daí, de patilhas sem classificação social, camisas transparentes, e mulheres tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas. Os musseques são uma espécie de bairro da Boavista ampliado, em que os moradores fossem todos jogadores do Benfica. Só a terra é que é vermelha, como a areia dos estádios, e as noites cheias de murmúrios de insectos e de folhas, mergulhadas num mormanço de suor.
O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a por os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto porque, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos,porque a maneira de vestir destes tipos é absolutamente execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. Não há em Luanda absolutamente nada que preste: as poucas estátuas que tem, ultrapassam em mau gosto tudo o que se possa suportar, os edifícios são todos no género daquele em que mora o Souto, e que para mim representa o paradigma da fealdade. É uma excrecência absurda e estúpida. E estes tipos aqui acham Luanda um paraíso, uma espécie de Rodésia em melhor. Não nos agradecem o nosso sacrifício por eles, e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência desdenhosa de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver numa cidade sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
Esta Ágora foi fácil de fazer, foi só copiar excertos do livro do português António de Lobo Antunes, “D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto”e é um conjunto de aerogramas publicados pelas filhas do escritor, e que fazem parte da correspondência trocada com Maria José Lobo Antunes no dealbar da década de 70.
António Lobo Antunes foi médico militar na tropa colonial entre 1971 e 1973, e a fase inicial da sua extensa obra de romancista é um libelo extraordinário contra a política colonial portuguesa.
Em jeito de balanço final, já que comecei a ser a partir de 15 de Março de 2011 mais um de “etnia africana”(???), não posso deixar passar incólume as ofensivas palavras de Cavaco Silva no 15 de Março de 1961, revelador que não são as datas que mudam mentalidades e convenhamos exige-se mais a quem escreveu o discurso apologético da “guerra do Ultramar” que o Presidente da Republica de Portugal leu e mal.
Fernando Pereira
22-3-2011
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