29 de maio de 2011

Cortar a Direito / Ágora / Novo Jornal nº 175/ Luanda 27-5-2011







Realizou-se em Portugal de 16 a 19 de Junho de 1977 a Conferencia Mundial Contra o Apartheid o Racismo e o Colonialismo na África Austral.
As sessões foram distribuídas pelo território tendo sido a Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, o epicentro das grandes sessões.
A minha participação no evento era apoiar algumas delegações à conferência, principalmente em Coimbra, onde era representante no Conselho para a Paz e Cooperação, o distintíssimo professor Orlando de Carvalho que poucos anos depois tive o privilégio de acompanhar em Angola, numa missão da comissão permanente saída desse congresso de 1977.
Orlando de Carvalho, catedrático de “Teoria Geral do Direito Civil” na faculdade de direito de Coimbra era um homem de grande cultura, de uma esmerada educação, muito rigoroso nos seus princípios e de grande coerência política. Nunca alijou responsabilidades nas suas intrépidas tomadas de posições políticas, assumindo-as publicamente, muitas vezes pondo em risco a sua brilhantemente longa carreira académica.
Apoiou na ditadura movimentos exigindo a libertação dos estudantes presos em resultado da crise académica de 1969, participou activamente nas campanhas eleitorais contra a ditadura e promoveu sempre sem tibiezas de qualquer ordem a denúncia do salazarismo e colonialismo português.
Era uma pessoa notável, talvez como seu maior defeito o facto de gostar de falar para si próprio com os ouvidos dos outros, e a Universidade de Coimbra tem múltiplas histórias deste professor, que se tornou uma lenda dos “direitos”.
Entre várias cadeiras que ministrava o “direito de reais” , um cadeirão que feito representava para qualquer quartanista “ultrapassar o Rubicão”. Certa vez uma aluna chegou-se ao pé de Orlando De Carvalho e disse-lhe: “Dr. podia antecipar a data do exame porque os meus pais alugaram uma casa na praia e assim ia logo com eles? O OC olhou para ela e disse-lhe que “pode ir já para a praia que o exame está feito, e que pode pois voltar na época de Setembro”. Surpreendida ouviu OC retorquir: “ Uma aluna que chega ao quarto ano de direito e não sabe a diferença entre alugar e arrendar comigo reprova já!”
Esta é uma de muitas histórias de um homem que anos mais tarde acompanhei ao Lubango para denunciar à imprensa internacional o ataque às “Madeiras da Huila” perpetrado pela aviação sul-africana onde houve algumas vítimas num objectivo que não era militar, ou naquilo que certas “intervenções humanitárias”chamam de danos colaterais. Nessa ocasião ainda foi para Xangongo e Onjiva sem que se notasse qualquer constrangimento da sua parte, já que assumia tudo isto como militante da liberdade e defensor dos direitos do homem.
O professor Orlando de Carvalho era um homem convidado para todos os centenários de repúblicas, o que não queria dizer que os republicos ganhassem alguma coisa com isso na hora de fazer os exames com ele. Muita vez recorri a ele para sessões públicas evocativas do 4 de Fevereiro de 1961 ou do 11 de Novembro de 1975, onde Orlando de Carvalho fez intervenções brilhantíssimas que se perderam para memória futura. Para a então Republica Popular de Angola nunca se negou a nada, e a sua relação com o País era apenas da luta comum que proporcionou o 25 de Abril em Portugal.
Voltando à Conferencia Mundial há um episódio curiosíssimo que se passou na Bairrada, capital do leitão assado em Portugal. Um dos jantares era precisamente esse opíparo repasto, e quando chegou à mesa de muitos convivas o leitão com a anti-oxidante laranja na boca, os representantes dos Países muçulmanos de África quedaram-se a olhar para a comida sem um gesto que fosse para “agarfar “.Interrogámo-nos das razões de se limitarem a comer salada e laranja, e só já com a refeição adiantada, alguém se lembrou que a tradição muçulmana impede que se coma carne de porco. Foi difícil arranjar cabrito e bifes de vitela para tanta gente, mas lá se conseguiu e do espectro da fome inicial só sobrou a história para contar. As malhas que o protocolo atabalhoado teceu.

Fernando Pereira
24/5/2011

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