29 de abril de 2011
Os Vampiros / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 29-4-2011
“Nunca tão poucos deveram tanto a tantos”
Palavras sábias na frontaria de uma vetusta república coimbrã, o “Palácio da Loucura”, derivação de uma frase imorredoira de Winston Churchill na sua homenagem à RAF na “batalha de Inglaterra”, determinante para a vitória dos aliados na II Grande Guerra.
Neste fim-de-semana e cumprindo a tradição o “Palácio” comemora mais um “centenário” e todos os que estiveram ligados às republicas vizinhas como o “Kimbo dos Sobas” e os “Mil-i-Onários” são convidados a participar num jantar em que se cruza muita gente, num quadro de solidariedade inter-geracional e naturalmente bebida a rodos. Uma “república” em Coimbra é uma casa de estudantes, gerida por períodos determinados de tempo por cada morador, o mor, em que todas as decisões são submetidas ao colectivo, e só daí sairá a decisão final. O “centenário” é nem mais nem menos que a data anual em que se comemora a fundação da república, e chama-se assim porque segundo reza a história, o espaço de vivencia é tão intenso que viver um ano numa república equivale a viver cem anos.
Por sinal o “centenário” da desaparecida república do “Kimbo dos Sobas” foi sempre o 4 de Fevereiro, o que deixava a vizinha PIDE sempre de incomodada e de atalaia. Aliás quero aproveitar para pedir a todos os muitos que por lá passaram, que não deixem de contribuir com histórias, depoimentos e fotos para um livro que está a ser preparado de forma a documentar uma das repúblicas marcantes na luta estudantil pela liberdade em Angola num tempo em que havia muitos estudantes angolanos em Coimbra.
A tradição das repúblicas de Coimbra era a de ter a porta aberta o ano inteiro, e quem quisesse podia entrar e servir-se. Sabendo que as dificuldades dos “republicos” eram enormes, havia alguma parcimónia dos visitantes na aceitação de convites para comer, embora para dormir não havia esse problema, já que outra das regras assentava na obrigatoriedade dos quartos estarem permanentemente disponíveis. Havia contudo os “vampiros” que se aproveitavam desta regra solidária de Coimbra e entravam nas repúblicas, esvaziavam as encolhidas e racionadas despensas deixando os “republicos” em muito maus lençóis.
Consta-se que a canção de José Afonso, também um ex-republico, “Os Vampiros” foi feita para denunciar esses autênticos pilha-galinhas, que aterrorizavam as parcas despensas dos estudantes. Passou depois a ser um hino de resistência ao fascismo e ao colonialismo, e curiosamente uma das mais emblemáticas de um dos nomes maiores da canção popular e de intervenção na língua portuguesa.
Vou reproduzir aqui uma história curiosa de um insigne angolano do Huambo que veio estudar medicina para Coimbra nos anos cinquenta. O recentemente falecido Freitas de Oliveira, que em determinada altura teve uma paixoneta por uma figueirense que tinha conhecido nas ferias de Verão. Freitas de Oliveira foi cirurgião e presidente do Mambroa durante muitos anos, militante da FNLA e posteriormente médico do Porto do Lobito nos anos 80. Queria ir à Figueira da Foz e disseram-lhe que havia um taxista pago pelo casino para levar dois jogadores de Coimbra todos os dias pelas 16h. O senhor João taxista, que tinha no seu cartão como outras profissões, afinador de pianos e agente de viagens para a Argentina, disse que só o levaria se o Roque pai e o Roque filho, a dupla de jogadores autorizassem. Aguardou e quando chegaram, com a duvida metódica dos jogadores, profundamente mesclada de superstição, começou um diálogo entre os dois em que não sabendo se quebrando esta rotina iriam ter uma noite de sorte ou azar. A determinada altura levaram o nosso F.O., num ambiente algo tenso. O F.O.ia com um distúrbio intestinal e quando chegaram aos arrozais de Montemor-o-Velho, ele disse que precisava de “evacuar”. Os “Roques” ficaram siderados, completamente desmoralizados perante as perspectivas de uma noite deplorável no jogo. A realidade é que tiveram uma noite memorável com os melhores ganhos na época do Casino. Fizeram questão de lhe pagar a ceia no cabaret “Lagosta Vermelha” e levaram-no à porta da sua”república”. No dia seguinte estava o táxi à sua porta com os Roques para o levarem de novo e ele grato pela boleia na expectativa de novo opíparo jantar. Quando chegou aos arrozais, abriram a porta e deram-lhe um rolo de papel higiénico recomendando-lhe que se esforçasse. A verdade é que a sorte não se repetiu e o F.O. nunca mais teve boleia, mas também não teve que defecar sem vontade. As teias enleadas das superstições do jogo.
Retomando José Afonso, principalmente pelo génio que era, e porque nunca olvidarei o 25 de Abril de 1974 e a sua “Grandola Vila Morena”, acho que seria interessante escrever-se sobre a conturbada digressão de José Afonso, Fausto, Adriano Correia de Oliveira a Angola em 1975 com Ruy Mingas, Liceu Vieira Dias Beto Gourgel, Filipe Zau e outros, para lembrar o que foram tempos de intolerância, perseguição e ameaça física de tempos que queremos mesmo esquecer.
Era um bom trabalho e a homenagem de muitos a quem muito deu sem nada pedir em troca: Zeca!!
Fernando Pereira
23/4/2011
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