Rosa de Porcelana
“Por enquanto não passa de uma noção,
mas penso que posso obter o dinheiro suficiente para fazer dela um conceito e,
mais tarde, transformá-la numa ideia.”
Woody Allen em Annie Hall
A
caminho dos 443 anos de vida, Luanda, curiosamente fundada durante o reinado
que os portugueses consideram ser um dos piores reis da sua história, D.
Sebastião, morto numa expedição africana e que levou à perda da independência
de Portugal.
Tinha
tudo para não ser um lugar vivível, e paradoxalmente hoje é uma urbe com quase
7.000.000 de habitantes. Carente de água, sem vegetação, com um calor e uma
humidade permanente e sem árvores foi durante séculos um lugar muito pouco
atrativo para todos.
Gosto de Luanda e invariavelmente traz-me
sempre à memória a frase de Marguerite
Yourcenar: “Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o
presente tal como sobrevive na memória.”.
Nasci
na pachorrenta Luanda de meados dos anos 50, numa clinica de um bairro que o
meu pai chamava o “Bairro da Exposição Feira”, e que nós passámos a conhecer
como o “Bairro do Miramar”, perto do cemitério dos Ingleses, que depois passou
a ser conhecido pelo “Alto das Cruzes”, vulgo “cemitério velho”, hoje lugar de
eleição para “repouso etéreo” das proeminentes figuras do dominante politico e
económico destes novos tempos de Angola. A avenida ia com asfalto até ao limite
do Bairro do Miramar começando a partir daí o “fecha a janela”, quando nos
cruzávamos com outro carro, tanta era a poeirada, que se fazia soltar da
maioria das ruas dos subúrbios da nossa “cidade capital”.
Quando
fui viver para o Braga, já se chamava “Bairro do Café”, nascido e desenvolvido
pelo dinheiro de um tempo de grande subida do preço do café no mercado
internacional do pós-guerra! Fez uma parte de Luanda e os prédios das avenidas
novas na então cidade capital do “Império”, Lisboa.
O
asfalto ia tomando conta do areal, mas ainda me chega a lembrança, por exemplo,
da “António Barroso” (Marian Ngouabi) ter uma picada desde o início da subida
até aos depósitos da água contíguos a um bairro clandestino, onde se construía
em todo o canto e que curiosamente se chamava Bairro Salazar. Não deixa de ser
algo bizarro que os bairros clandestinos no tempo colonial eram todos de
dignitários do regime colonial, veja-se o Bairro Salazar, Américo Tomaz,
Adriano Moreira e Silva Tavares, entre outros!
Com
o 4 de Fevereiro de 1961 Luanda mudou, e começámos a ver as ruas com gente
diferente, muitos militares, e os musseques a terem que se afastar cada vez mais
do centro. A estratificação social existente passou a ser mais evidenciada, e a
convivência quotidiana entre brancos e negros é cada vez mais dificultada por
razões de toda a ordem.
Luanda nasceu
feia, e só a baia lhe dava alguma graça, e foi crescendo sem qualquer nexo. O
avulsíssimo e o pato-bravismo transformaram uma cidade, que tinha crescido
paulatinamente com um modelo de “português-suave” adaptado aos trópicos, que
até era inovadora num determinado contexto de arquitetura, num espaço anárquico
com construções em altura em que as identidades se foram perdendo.
Luanda
teve sempre uma identidade muito própria, até mesmo solidária nalguns aspetos,
apesar do sistema colonial marcar bem as fronteiras entre as raças numa hierarquização
perfeitamente soez da sociedade. Os quintais, os bares, as cantinas, as lojas,
os largos, os terrenos libertos eram sítios de encontro, de cumplicidades, de
brincadeiras e tudo isso se foi perdendo nos tempos finais do sistema colonial.
A Luanda colonial asfixia-se nas suas contradições e quando chega a hora da
decisão, os colonos que assistiram acomodados a um espaço posto e imposto
sentem que essa terra não era sua, e encaixotaram o que puderam e embarcaram o
rancor para com os que provavelmente foram os menos culpados da situação, os
militares portugueses e as novas autoridades angolanas.
Com
o advento da independência os Luandenses voltaram a dispor da sua cidade, onde
cresceu uma vontade algo pueril de fazer tudo diferente e bom, mas que
efetivamente redundou num período de grandes dificuldades com carências e com a
degradação do parque habitacional e as infraestruturas a colapsarem por falta
de manutenção.
Luanda
voltou ao acumular do lixo, aos esgotos a escorrerem pelos prédios e ruas, em
síntese o início de um tempo que se tem prolongado e que nenhuma operação de
cosmética tem conseguido inverter, mormente a partir do momento em que a
esfarrapada desculpa da guerra deixou de ter significado.
Luanda
hoje cheira à parte de traz de um circo, o que não é grande referencia para as
pituitárias. Quando Luanda vai a caminho de Catete, de Porto-Quipiri ou das
Palmeirinhas, o que temos não é uma cidade, é um território pouco harmonioso,
sem identidade, impessoal e sem futuro.
Nesta
Luanda não há passado, há passados e a memória é plural.
Como
já sou novo há muitos anos posso dizer com certo orgulho, que nasci nas
Ingombotas, porque Luanda como era raros a reconhecem, e cada vez menos as
pessoas se revem na de hoje!
“Só
podemos esquecer o tempo servindo-nos dele” Luandino Vieira (Papeis da Prisão)
Fernando
Pereira
20/5/2018
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