4 de outubro de 2018

Um Adeus Africano / África 21/ Luanda Setembro 2018




Um Adeus Africano              
           
Recentemente deixou-nos Kofi A. Annan, o africano que mais tempo esteve como Secretário Geral da ONU, e o segundo a ocupar esse lugar.
            No esquema de rotatividade que estava consensualizado até ser quebrado com a eleição de António Guterres para o atual mandato, África substituiu a América Latina em 1992 e fez eleger o egípcio Boutros-Ghali como secretário-geral.
              O egípcio Boutros Boutros-Ghali (1922-2016), substituído por Kofi Annan, só conseguiu fazer um mandato enquanto SG da ONU, já que as suas divergências com a política externa dos EUA impediram que a sua candidatura a segundo mandato tivesse êxito.
            Boutros-Ghali fez frente à influencia dos EUA na ONU e teve um mandato difícil, em que os Americanos apostavam no desmembramento de Angola e da então república federativa da Jugoslávia entre outras intervenções. Os EUA não terão conseguido impor a sua vontade na solução da crise do Ruanda, que se traduziu num dos maiores massacres que se viveram na África contemporânea. O SG foi acusado de ter ignorado avisos sobre a deterioração da situação no Ruanda e não se livrou de críticas de muitos que o acusaram de alguma sobranceria.
            Foi responsabilizado por fracassos inerentes aos muitos conflitos que assolaram o mundo de um tempo pós-guerra-fria, e os atritos com a administração Clinton foram continuados, tendo-lhe sido criado um ambiente insustentável na cena internacional e também no interior da própria organização. Tudo foi anotado no seu livro de memórias Unvanquished: A U.S.-U.N. Saga (1999), e algumas situações conseguem ser bizarras no quotidiano de seriedade das relações internacionais.
            Entre vários incidentes contou que a meio do seu mandato recebeu um embaixador Americano que lhe transmitiu que o presidente Clinton queria que ele se demitisse e fazia uma festa de homenagem para ele não sair "pela porta traseira"! Recusou e nem com o forte apoio da França, claramente a sua maior aliada, conseguiu apoios para uma segunda magistratura.
            A solução de compromisso para que África mantivesse um elemento do seu espaço, para o segundo mandato exigiu soluções de compromisso, entre os vários membros do Conselho de Segurança e como resultado de tudo a solução surgiu dentro da própria instituição, com a subida a secretário-geral do então adjunto Kofi Annan, que vai exercer o lugar entre 1997 e 2017.
            Foi o primeiro cidadão negro à frente da ONU, e também até hoje o único da África subsariana.
            Kofi-Annan herda uma ONU envolvida numa série de problemas, estruturalmente desorganizada, e sem capacidade económica para dar resposta às múltiplas intervenções que se exigiam às Nações Unidas, que dispunha ao tempo de um efetivo de 70.000 soldados e uma pesada máquina burocrática que era muito exigente do ponto de vista financeiro e algo ineficaz nas respostas que a organização tinha celeridade em dar.
            Este Ganês que fez toda a sua carreira em organizações internacionais até entrar definitivamente em 1980 na ONU como secretário-geral adjunto em três situações consecutivas: Gestão dos Recursos Humanos e Coordenador para as Medidas de Segurança do Sistema das Nações Unidas (1987–1990); Subsecretário-Geral para Planeamento de Programas, Orçamento e Finanças e de Controlador (1990–1992); e Operações de Manutenção da Paz (março de 1993 – dezembro de 1996).
            Muito mais conciliador que o secretário-geral anterior, passou a ser olhado com simpatia pelos americanos que viram o ataque ao Kosovo e o bombardeamento à Sérvia serem apoiados pelo novel Secretário-Geral da ONU.
             Do mandato anterior “herdou” a má imagem que a Organização deixou na intervenção americana na Somália, a desorganização das forças de intervenção nos diferentes teatros de guerra, que eram caras e de eficiência discutível no terreno.
            Kofi Annan fez um toque a reunir e iniciou um processo de reorganização administrativa e uma aposta clara no reequilíbrio financeiro das Nações unidas obrigando de forma draconiano ao pagamento das prestações em falta por parte de um conjunto significativo de países membros.
            O mundo começava a sarar das feridas herdadas da guerra fria, e Kofi Annan tentou que a ONU fosse o fórum ideal para o estudo de uma enorme vontade de alterar o modelo económico e social prevalecente no mundo.
            Tarefa ciclópica e de certa forma algo utópica, mas Kofi Annan com a paciência do cidadão africano foi afirmando na ONU valores de liberdade, equidade, solidariedade, tolerância, não violência, respeito pela natureza e responsabilidade partilhada.
            Kofi Annan dizia na Conferencia do Milénio em 2000 no contexto do texto “Nós os Povos, o papel das Nações Unidas no século XXI”: “Se a globalização oferece grandes oportunidades, nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. O que é certo é que, até hoje, os seus benefícios foram distribuídos de uma forma muito irregular, enquanto o seu custo é suportado por todos. Assim, o grande desafio que enfrentamos hoje é certificarmo-nos de que, em vez de deixar para trás milhares de milhões de pessoas que vivem na miséria, a globalização se torne uma força positiva para todos os povos do mundo. Uma globalização que favoreça a inclusão deve assentar na dinâmica do mercado, mas esta, só por si, não é suficiente. É preciso irmos mais longe e construirmos juntos um futuro melhor para a humanidade inteira, em toda a sua diversidade”.
            Annan apesar de ser acusado de pró-americanismo nunca cedeu aos EUA no ataque ao Iraque, e apenas tentou ganhar tempo para que os inspetores enviados no âmbito da ONU para a verificação de armas de destruição em massa estivessem em segurança, depois de em inúmeros relatórios terem concluído que não existiam essas armas em território iraquiano. À revelia da ONU, já que a França não alinhava com os EUA no ataque ao Iraque, os EUA e a Grã-Bretanha unilateralmente atacaram o Iraque.
            O SG da ONU deixa uma mensagem no seu discurso nessa conferencia: “Nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. Não há aspiração mais nobre, nem responsabilidade mais imperiosa do que ajudar os homens, as mulheres e as crianças do mundo inteiro a viverem melhor. Só quando isso começar a acontecer é que saberemos que a globalização está de facto a favorecer a inclusão, permitindo que todos partilhem as oportunidades que oferece.”
            Kofi Annan deixou-nos recentemente, mas os seus valores, assumidos sempre com a eterna referencia à sua “alma mater” Kwame Nkrumah, tem que valer num mundo que se perpetua eternamente desigual de mais.
            Com a sua morte o mundo perde um cidadão proeminente, África perde um dos seus filhos valorosos!

Fernando Pereira 3/9/2018

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