18 de janeiro de 2013

OH MUSA DO MEU FADO…/ Ágora / Novo Jornal nº261/ Luanda 18-1-2013




Acompanhei, de forma quase militante, os trinta e seis episódios de “ A Guerra”, série documental coordenada pelo Joaquim Furtado, um dos mais prestigiados jornalistas portugueses, presente na “história” do 25 de Abril de 1974 por ter lido os primeiros comunicados do MFA a partir dos estúdios da Rádio Clube Português em Lisboa.
A série é, provavelmente, o trabalho mais honesto que se fez sobre um tema que só há pouco tempo começou a ser possível discutir e tratar nos media portugueses sem os constrangimentos que o mantiveram como um tabu na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política em Portugal e nas ex-colónias.
Durante dez anos, Joaquim Furtado e uma multidisciplinar equipa, procuraram fazer um trabalho isento, ouvindo centenas de depoimentos, manuseando milhares de documentos. Finalmente, ficou um legado de grande valor e rigor jornalístico propiciador de múltiplos caminhos.
Depois de um trabalho em livro de João de Melo,” Os Dias da Guerra”, que inclui a fotobiografia da “Guerra Colonial” editada em 1988 pelo Circulo dos Leitores, e outros depoimentos avulsos em livros que têm aparecido no universo editorial da lusofonia, esta série é, indiscutivelmente, o melhor que se conseguiu fazer.
Acaba com mitos que nos foram sendo servidos anos a fio pelas forças em confronto, e de certa forma repõe a verdade de algumas coisas. O proselitismo com que abraçávamos algumas causas pode ser abalado aqui e ali por um ou outro depoimento, mas, em rigor, esta série não vai alterar, no essencial, a convicção de que o que alguns de nós defendíamos estava certo; o que provavelmente estaria errado era sonharmos que podia ser de outro modo ou, como dizem os antigos da resistência ao colonialismo: “Não foi nada disto que combinámos”.
Alguns dos depoentes já faleceram, mas deixaram testemunhos importantes que irão certamente alterar alguns aspetos da histografia oficial de Portugal e ex-colónias, principalmente no que foram os anos do fim do regime de Salazar e Caetano.
Vi a série toda, revi alguns episódios, principalmente os que tinham a ver com a realidade angolana. Surpreenderam-me alguns depoimentos de certas pessoas, fora da lógica da linguagem oficial. Situaram-se num contexto de abjurar algo do seu discurso circunstancial e, simultaneamente, num exercício catártico relativo a situações com que foram confrontadas, numa realidade que nada tinha a ver com o quotidiano dos que hoje olhamos para os episódios de um trabalho magnífico, e que tenta ser sério e o mais revelador possível do cinzentismo dos dias do fim do colonialismo.
O episódio trinta e seis, o último, todo sobre Angola, mostra a situação militar no dealbar dos anos setenta, as divergências no seio do MPLA, a estreita colaboração da UNITA com as autoridades coloniais e a quase nula atividade da FNLA, restringida aos seus santuários no ex-Zaire.
Para além das intervenções de múltiplas figuras, há uma realidade que, involuntariamente, fica a pairar depois de ouvirmos todos os depoimentos: a de que " a guerra em Angola estaria militarmente ganha, já que as atividades dos movimentos eram incipientes e demonstravam uma desorganização enorme, aliada a uma desmoralização evidente entre os guerrilheiros mal preparados, mal equipados, desnutridos e sem capacidade combativa.”
Curiosamente, apenas Adolfo Maria diz: “ Uma guerra de guerrilha não se ganha”, e também um capitão dos Flechas, Tropa da PIDE-DGS, diz: “Nós movimentávamo-nos à vontade em toda a Angola, mas os guerrilheiros também”. Tudo o resto atesta a supremacia, ao que se julga evidente, da tropa portuguesa no teatro de guerra angolano.
Há no conjunto dos episódios uma questão que acabou por me escapar sobre a guerra colonial, e que tem a ver com a necessidade de manter o recrutamento regular de mais de 160.000 efetivos para três teatros de guerra, num Portugal em que se emigrava em catadupa, e onde a maior parte dos emigrantes eram jovens ou refractários da tropa. Acho que a série peca por isso, já que foi "a pergunta não feita" e cuja resposta teria de certa forma dado outro conteúdo à discussão sobre o tema. Em 1974, Lisboa, Porto, Paris, S. Paulo, Luanda e Lourenço Marques eram as maiores cidades portuguesas do mundo em população, o que evidenciava a enorme emigração portuguesa.
Aqui terá estado o verdadeiro “Nó Górdio” do fim da perpetuação militar portuguesa em África, e tudo o resto não passa de justificadilhos. A guerra colonial estava perdida do ponto de vista político e o colapso militar viria mais cedo que tarde, porque a retaguarda estava exangue de gente para mobilizar.
Em jeito de sugestão, agradeço a leitura deste texto com o fundo musical do “Fado Tropical” de Rui Guerra e Chico Buarque.

Fernando Pereira
15/1/2013

2 comentários:

Retornado disse...

Se a Guerra-de-joaquim-furtado explicasse o mínimo do que se passou, ficava explicado como um exército despreparado e desmotivado aguentou 13 longos anos, contra o mundo inteiro: ONU, Papas, Igrejas, Cuba e U. Soviética e o descontentamento lusitano.

O que não aconteceu, antes pelo contrário, até confunde e torna inexplicável a longevidade tanto daquela guerra como da colonização.

Perante um dos momentos mais marcantes da história secular de Portugal, e da formação de 5 novos países lusófonos, que movimentou forças e interesses internacionais de toda a ordem, é demasiado incompleto ver o momento histórico tão importante de 6 países resumido àquele retrato da «guerra-de-joaquim-furtado».

Sem explicar que Timor só não ficou para traz por um triz.

Desapareceu Gôa e São João Baptista de Ajudá, que mereciam alguns capítulos.

Mas somos assim!

Fernando Ribeiro disse...

O episódio do programa de Joaquim Furtado que refere, sobre a fase final da guerra em Angola, acabou por dar uma visão muito distorcida da referida fase. Nele, praticamente só se falou das divisões internas do MPLA e da situação militar no Leste, como se no Norte já não houvesse guerra. E havia. Muita.

Por exemplo, em Cabinda o MPLA estava a fazer um combate muito intenso e eficaz às tropas portuguesas aquarteladas no interior do enclave (Buco Zau, Lândana, etc.), feito a partir da então chamada República Popular do Congo.

A FNLA, por seu lado, não estava, de maneira nenhuma, «restringida aos seus santuários no ex-Zaire». Nem pouco mais ou menos. A FNLA estava ativa e bem ativa em algumas zonas dos então distritos do Zaire e Uíje e nos Dembos, ao mesmo tempo que se preparava para alargar a sua ação ao Kuanza Norte, onde já tinha grupos móveis movimentando-se no terreno. Havia mesmo quem desse notícia da presença de guerrilheiros nas matas circundantes da cidade de Ndalatando! Que eu saiba, Ndalatando não é um santuário no ex Zaire...

O antigo embaixador português em Kinshasa, António Monteiro, foi aliás muito claro quando disse a Joaquim Furtado que, dos três movimentos de libertação angolanos, era a FNLA aquele que estava mais ativo. O que induziu muitos telespectadores em erro foi a afirmação, feita no final do programa, por Arlindo Barbeitos, que minimizou a ação desempenhada pelo movimento liderado por Holden Roberto. Ora acontece que Arlindo Barbeitos militava no MPLA e, ainda por cima, esteve no Leste e não no Norte. Como poderia ele saber qual era a real situação militar no Norte?

Da FNLA só foi entrevistada uma única pessoa, Ngola Kabango, que se limitou a pronunciar meia dúzia de palavras, acabando por não dizer nada de substantivo. O que não chega, de maneira nenhuma, para esclarecer o que quer que seja que diga respeito à FNLA.

Involuntariamente, por certo, Joaquim Furtado falhou estrondosamente no último episódio de "A Guerra".

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