Guardo propositadamente o tema do título para o final e entretanto vou-me entretendo com outras efemérides.
Há quarenta anos a prestigiada editora francesa “Le Chant du Monde” publica um dos discos marcantes da música brasileira de intervenção: “Brésil Sertão & Favelas”, na bela voz da quase esquecida Zélia Barbosa.
O disco tem músicas que se tornaram iconográficas no contexto de luta contra as ditaduras que polvilhavam a América do Sul e Central, África e europeias no dealbar dos anos setenta, num mundo em que o que é a globalização chamava-se então imperialismo. Léxico diferente para os mesmos resultados, num ano em que se comemora o quinquagésimo aniversário do assassinato de Patrice Lumumba, defensor de uma África onde riqueza fosse distribuída pelos seus povos.
Voltando ao disco, onde estão canções como “A canção da terra”, “Funeral do Lavrador”, “Pau da Arara”, retenho os versos da “Cicatriz” : "Pobre não é um/pobre é mais de dois,/ muito mais de três./E vai por ai e vejam só: Deus dando a paisagem/metade do céu já é meu/Pobre nunca teve gosto ;/ a tristeza é a sua cicatriz./Reparem bem que só de vez em quando/pobre é feliz"...
Por muito disto é que despercebo porque é que o reino dos céus é para os pobres. Não seria melhor repartirmos e o reino da terra e dos céus e tudo ser para todos por igual? Porque é que há-de haver privilegiados no Eden?
Vários autores anunciaram a saída de vários discos em Luanda, e não sei se a propósito lembro-me de um episódio ocorrido nas páginas de um jornal de efémera existência, o “Página Um”! José Jorge Letria é um talentoso poeta, excelente músico e dinâmico activista cultural, mas com a voz que de canora tinha pouco. Era pejorativamente alcunhado pelo “Bardo” numa associação ao cantor Assurancetourix, trovador da aldeia gaulesa de Astérix, a intemporal BD de Goscinny e Uderzo.
Quando anunciou que ia sair com novo disco o comentário do articulista de música foi “Chiça, mais um?”. Letria indignou-se e exigiu o direito de resposta, argumentando que já tinha uma vasta obra de dez títulos publicados, etc., ao que o articulista colocou em nota de rodapé: “Por causa exactamente disso é que te pedimos insistentemente que pares”. Tenho ideia que JJ Letria nunca mais gravou nenhum disco e dedicou-se apenas à poesia e ao conto, onde de facto é excelente. Acautelem-se pois os que prometem novos discos, porque alguns já nos andam a azucrinar os ouvidos há décadas, e pode haver quem dê voz ao “atentado”
Falou-se de gente que foi fazendo coisas bonitas e conseguiram ser coerentes com a beleza das coisas que produziam. Houve outros que fizeram coisas bonitas, fizeram sonhar milhões de crianças ao longo de muitas gerações, mas que se revelaram no seu comportamento político e cívico como autênticos biltres, para não ser mais incisivo e poder escorregar para o destempero da linguagem.
Faz cem anos que nasceu Walt Disney, o criador do Mickey Mouse, do Pato Donald e uma miríade de figuras da banda desenhada que correu o mundo ao mesmo ritmo que a Coca-cola, General Motors e a omnipresença americana se espalhava pelo mundo no pós-guerra.
Disney foi uma figura incontornável de um universo de sonho, contudo não deixou de se enredar na lama quando passou a ser colaborador do MacCartismo através de uma sórdida organização: "Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses", que arruinou carreiras e vidas de actores, realizadores, fotógrafos, argumentistas, escritores, um conjunto enorme de intelectuais que foram banidos por simples menção a um eventual alinhamento de algo que tivesse a ver com ideias de esquerda. Um homem que teve tudo para ser uma lenda e pelo seu anti-comunismo associado aos seus traumas de infância, acabou por se juntar à baixaria que promoveu uma época de terror na intelectualidade estadounidense.
Depois não digam que não falei das manifestações em Luanda. Basta ver o título!27-9-2011
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