7 de março de 2019

AS MALHAS QUE A REVOLUÇÃO TECEU! /Novo Jornal / Luanda 8-03/2019






AS MALHAS QUE A REVOLUÇÃO TECEU!
                Acabei de ler “São Paulo, Prisão de Luanda” escrito por Carlos Taveira (Piri) um dos poucos da OCA (Organização Comunista de Angola) que eram de fora de Luanda, preso no Lobito pela DISA, quando se preparava para entrar num apartamento para uma reunião “conspirativa”
                O livro, editado pela “Guerra e Paz”, é uma descrição interessante dos seus tempos de “estadia” numa prisão herdada da PIDE, e que é hoje prisão hospital e frequentada por gente que foi capa da “Caras” em algumas circunstancias.  Um relato despretensioso, sem amargura, aqui ou ali polvilhado de histórias engraçadas, sobre situações que ao tempo eram mais de desgraça do que de graça. Um livro para ler, por todos, para se ter consciência que não foi só a guerra que prejudicou o País.
                As sucessivas prisões e assassinatos de gente da OCA, Comités Henda, Comités Amílcar Cabral,”fraccionistas” , e outros, o que terão conseguido foi destruir uma parte significativa do melhor capital de entusiasmo e diferenciação intelectual e técnica que sobrou com a saída dos colonos portugueses. Era gente culturalmente bem formada, todos com vontade de construir, trabalhar e também determinados a mudar o estado das coisas, com a irreverencia da juventude. Muitos dos que saíram são hoje quadros de enorme valia espalhados pelo mundo, e Angola exangue teve que recorrer a muito pior, pagando mais e os resultados aí estão à vista de todos.
                Estou à vontade para escrever porque nunca aderi a esses movimentos, que alguns deles pouco mais representavam uma mesa do Vilela transportada para a sociedade angolana. Algumas destas organizações se quisessem fazer um comício, com mobilização o máximo que conseguiriam seria encher um balneário da Cidadela.
                O poder teve medo, ou melhor alguns pícaros tiveram receio de se verem confrontados com gente bem preparada para desenvolver um País, e quando começou essa debandada e a morte abandonada, o País entrou numa espiral de asneiras suportadas por palavras de ordem e a eterna busca de procurar inimigos exteriores para justificar a nossa impreparação e a falta de coragem para fazer parar os excessos.
                A história vai fazer-se um dia, e talvez os herdeiros dos filhos dos da minha geração quando analisarem o que aconteceu concordem com o que disse Chico Buarque: “A memória é uma vasta ferida”. Convém também lembrar antecipadamente que, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, como disse o brasileiro Nelson Rodrigues.
                Das histórias bizarras desse tempo, e que são verdade porque quase todos as fomos vivendo num quotidiano da Luanda de uns tempos em que se respirava um ar angustiado, mas ao mesmo tempo ternurento e solidário quando se olhava para o quotidiano de mingua de que se vivia no dia a dia.
                Piri conta que teve que ir ao dentista, e é transportado numa viatura até ao Hospital Militar. A consulta atrasa-se e a viatura tem outro serviço, ou outra função e desaparece. Acabada a consulta, perante o desaparecimento do veículo, o guarda que o acompanhava, obviou logo a situação e mandou parar um carro qualquer e “requisitou” logo ali o carro e o motorista para “levar o preso a São Paulo”. E lá foram perante o olhar desconfiado do condutor!
                Veio-me à memória a única vez que fui cangado num recolher obrigatório. Tinha um livre de transito renovável e apesar de saber que o controlo era feito na esquina da Avenida Hoji-Ya-.Henda resolvi nem procurar alternativas, tão certo estava de ter o documento comigo. Mandaram-me parar e pediram os documentos delicadamente, e mostrei o livre transito. Foi junto ao farol confirmar se estava tudo em ordem e veio de lá dizendo que o livre transito tinha acabado às 12h do dia anterior. Lá tentei explicar ao militar que me tinha esquecido de o ir buscar ao gabinete, tinha tido uma reunião e mais uns argumentos algo pueris que não convenciam ninguém. O FAPLA ouviu o arrazoado de justificações e no fim diz-me com grande serenidade: “O camarada é dirigente, tem que dar o exemplo, e não devia ter esquecido o seu livre-trânsito, portanto vai ficar aqui como os outros”! Nada feito, eram duas da manhã e ali fiquei a assistir à atividade. Fiquei na conversa com ele, a fumar Hermínios, que recusou porque não tinham filtro. Às quatro disse-me que tinha de ir com ele levar uns cangados à 7ª esquadra móvel, ao tempo na Estrada de Catete. Lá nos apertámos na Renault4 e fiz esta viagem duas vezes porque o carro que supostamente nos levaria não apareceu. A única compensação que tive dessa noite desdormida foi ele ter-me mandado embora quando despejei a segunda carrada à porta do posto.
                Já que se está a falar de recolher obrigatório, reproduzo-a fielmente como me contaram. No largo da Maianga um FIAT 132 azul é mandado parar (Importa dizer que ao tempo era o carro de ministro ou vice-ministro que não pertencesse ao Comité Central do MPLA, já que o destes era um FIAT 132 branco). O condutor era um vice-ministro de que já não me lembro o nome. Pediram os documentos e o livre transito, e o homem não o tinha consigo. Disseram que o camarada teria que ficar por ali, pois eles não o conheciam. Parou entretanto, o Elias Dia Kimuezo e entre os “zeladores da noite” cresce um grande entusiasmo por estarem perante um ídolo. Ele olha e vê acabrunhado o ministro que conhece bem, e pergunta que está ali a fazer, e o governante diz que está detido por falta de documentos. O cantor vira-se para o chefe e diz: “Este camarada é o vice-ministro fulano de tal, e não devia ser detido!”; prontamente o camarada responsável pelo controlo deu “ordem de soltura” ao ministro e balbuciou algo do tipo: “Ele disse-nos, mas anda por aí tanto bandido, que não acreditámos”!
                Houve um tempo que eu não tinha carro e morava na Casa do Desportista, não privatizada, (uma desgraça nunca vem só) e como gostava de andar a pé saía do Kinaxixe de casa de uns amigos e aí ia eu até à ilha, tentando sempre passar pelo controlo na entrada da ponte, antes da meia noite. Normalmente eles eram deixados ali por volta das 11h30m e invariavelmente perguntavam-me as horas, e eu lá lhes dizia. Um dia vinha atrasado e perguntaram-me as horas e eu disse que eram meia noite e vinte e logo um deles disse que eu estava detido. Eu argumentei que me tinha atrasado, que estava perto de casa e que não havia necessidade nenhuma de me deter. O único argumento que acabou por prevalecer foi o ter dito que fui eu que lhe disse as horas e podia ter-lhe dito outra. Aí os dois guardas conferenciaram e lá me deixaram ir com a preocupação que não fosse pela estrada porque podia ser interpelado pelo jeep patrulha, e os problemas sobravam para eles.
                Há muitas histórias deste tipo numa Angola dos anos 80 que deixou algumas saudades, e que se detesta por outras.


Fernando Pereira 
10/02/2019

22 de fevereiro de 2019

100 ANOS ESCRITOS A OURO! / Jornal de Angola / Luanda 22/2/2019





100 ANOS ESCRITOS A OURO!
A 22 de Fevereiro de 1919 era exarada a Portaria nº51, assinada pelo então Governador Geral Filomeno da Camara Mello Cabral que cria o “Liceu Central na cidade de Luanda”.
                Materializava-se uma recorrente reivindicação dos colonos que exerciam atividade económica na cidade e do conjunto de famílias africanas, ao tempo ainda não espoliadas do enorme prestígio e património assinalável. Todos queriam que os seus filhos fizessem o seu percurso secundário em Angola, pois era quase impossível enviá-los para a então metrópole. As escolas que existiam eram particulares e de duvidosa qualidade.
                Terá havido ao tempo uma grande unidade em torno da constituição do Liceu de Luanda, que pelo artigo 2º, da portaria 51, conseguindo vingar que “O Liceu Central de Luanda terá uma organização semelhante à dos liceus da metrópole”.
                A portaria determinava que o Liceu iniciaria a sua atividade regular a 15 de Março de 1919, o que sucedeu, sendo Álvaro Galiano o seu aluno nº1.
                As descrições da época sobre esta “histórica decisão” foram de grande entusiasmo, numa cidade que tinha tudo de muito pouco bom para ser um espaço urbano vivível. A iluminação pública dependia dos particulares que quisessem as cercanias das suas casas iluminadas. As ruas áridas e com a areia vermelha eram lugares de pouca higiene e a água que vinha do Bengo era escassa e tinha que ser filtrada de forma a evitarem-se as doenças que faziam de Luanda um lugar conhecido pela insalubridade.
                O grande impulsionador do movimento em torno do Liceu, que passou a Liceu Central de Salvador Correia a 30 de Janeiro de 1924, quando este “estabelecimento de ensino passa a equiparar-se para todos os efeitos a todos os liceus da metrópole”, foi Monsenhor Alves da Cunha, provavelmente a figura maior do seculo XX do território. Foi a pessoa que mais unanimidade concitou entre todos os cidadãos da cidade de Luanda, que viam os governadores enviados pela potencia colonial com passagens meteóricas, procurando que se alterasse o mínimo para não haver desequilíbrios. Alves da Cunha, em vários domínios, desde o ensino, à solidariedade, ao urbanismo, à florestação da cidade e ao desenvolvimento de pequenas unidades industriais foi um incansável batalhador, sem ter tirado qualquer provendo para si. Morreu pobre, mas reconhecido por toda a população da cidade, independentemente do seu status económico ou social!
                É interessante que na sanha “desapeadora” das estátuas que se assistiu no pós-independência, a sua foi a única que não foi beliscada e lá continua a pairar sobre a sua cidade. Conseguiu unir grupos desavindos de interesses em objetivos comuns e de facto fez por acontecer tanta coisa, em que o Liceu será a sua obra mais relevante, já que foi seu reitor até 1929, e membro do seu corpo docente inicial desde a instalação, na exígua casa da sede da Companhia do Ambaca, ali para os lados da Misericórdia.
                Em Outubro de 1919 as instalações passaram para a Avenida do Hospital, num edifício demolido há 46 anos para se construir o atual Palácio da Justiça.
                Como as condições não eram as melhores, dada a afluência de alunos, foi decidido em 30 de Junho de 1933 cabimentar verbas para a construção do edifício onde funcionou o Liceu Salvador Correia de 1942 a 1975, e a partir de então a Escola Mutu-Ya-Kewela, de há um ano a esta parte uma escola do magistério primário, depois de vultuosos e excelentes trabalhos de recuperação. Uma sábia decisão da tutela para preservar para a Educação um espaço físico e de memória de eleição.
                O Liceu, num projeto do Arquiteto José da Costa e Silva, edificado nuo alto da cidade, em estilo denominado de “Português Suave” torna-se a partir do dealbar dos anos 40 na edificação mais proeminente na cidade. À sua volta a cidade começa a crescer, e o liceu é a marca indelével de um novo tipo de sociedade que se impõe em Angola.
                Muitas gerações de pessoas transpuseram as portas daquele Liceu, desde alunos, professores e funcionários, e em todos ficou sempre alguma coisa que terá marcado para a vida, mesmo que tenha sido de raspão a sua passagem.
                Para além da excelência do seu corpo docente, das suas instalações, o Liceu foi um espaço onde se cruzaram gentes com propósitos bem definidos na luta pela Independência do País, e o contrário também!
                O Liceu que comemora cem anos neste 22 de Fevereiro, teve entre os seus alunos os dois primeiros Presidentes da República do País (Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos) e um conjunto interminável de gente que lutou empenhadamente por uma Angola independente e diferente da que vamos vivendo por ora.
                Para além da participação política, o Liceu foi o local onde se deram os primeiros passos para brilhantes cientistas, médicos, professores universitários, empresários de sucesso, economistas, jornalistas, em suma um conjunto significativo de gente que cobre de glória as paredes do vetusto edifício que continua a olhar a cidade que em determinada altura cresceu mal a seus pés.
                Fui aluno de 1966 a 1972 e apesar de ter frequentado episodicamente outros estabelecimentos de ensino (em Coimbra) o Salvador Correia entranhou-se, e ainda hoje muitos dos meus companheiros de “viagem”, os que sobram, são exatamente os mesmos que estavam comigo naquele espaço que nunca nos deixa indiferente quando por lá passamos ao pé.
                Na Casa Amarela fizemos tanto de bom, que ao longo dos anos nos reencontramos uma vez por ano, a contar e a recontar coisas do antanho, a comermos e a bebermos o possível para nos lembrarmos que fazemos parte dos cem anos daquela casa. Vamos vendo  morrer alguns, mas é a lei da vida e uma parte do futuro que hoje somos foi o passado que o Salvador Correia nos deu.
                No caminho pelo Salvador Correia, dos que estão e dos que foram vem a frase batida de Mia Couto: “Não morre quem se ausenta, morre quem é esquecido”!
                Engraçado, que para além dos meus amigos, companheiros de Liceu, funcionários, professores lembro-me que foi aí que me apresentaram Hegel, Marx, Nkrumah, Sartre, Camus, e tanta outra malta que me tem dado um prazer enorme ler e ter ao longo da vida!
                Nesta hora dos cem anos do Liceu de Luanda, Viva a Malta do Liceu!!!

Fernando Pereira
19/02/2019.

15 de fevereiro de 2019

A FARRA DO INTERIOR / O Interior/ Guarda 14/02/2018





A FARRA DO INTERIOR

Como se previa, aquele movimento de valorização do interior de Portugal foi mais um nado-morto. Mediaticamente foi um arranque medíocre, mas de na realidade foi a única coisa que as pessoas, com memória, ainda se vão lembrando cada vez mais a espaços.
                Para ajudar a esta festa de cinismo politico elevado ao coeficiente mais alto, o governo resolveu instalar uma Secretaria de Estado em Castelo Branco, com o propósito de melhor “ se conhecerem os problemas do interior e poder haver uma resposta rápida para os mesmos”!  Como bem escreveu Lampedusa, “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”.
                O governo, com a pompa e circunstancia habitual nestes eventos, veio a terreiro divulgar a disponibilidade para entregar às autarquias um conjunto de estruturas e serviços a saírem da administração central. Quiseram promover a “regionalização da tesura”, tentando replicar pela via administrativa o que os portugueses rejeitaram em referendo há uns anos, num contexto de desinformação e com vergonhosas falácias, que levaram ao resultado que os centralistas de Lisboa e Vale do Tejo sempre desejaram, que foi ter o País a seus pés. Só não conseguiram os seus intentos de dar novas atribuições porque o outro envelope, o principal, está vazio!
                Como é evidente, o interior de hoje é bem diferente do de há 44 anos, quando fizemos as campanhas de dinamização do MFA, e se iniciou o Serviço Médico à Periferia, embrião de um SNS todos os dias violentado por muitos que desejam a “liberalização” da saúde!
                O interior há muito que é olhado como um enfado pelos que nos governam, e até pelas oposições, para quem Portugal é pouco mais que a Grande Lisboa! Houve alguém que terá dito: “Em tempos de crise, para que os vossos sapatos durem mais, deem passos maiores”. É de um tempo que vai sendo cada vez mais repetido!
                Em 1965, o Subsecretário de Estado do Tesouro, Ricardo Faria Blanc teve que substituir Ulisses Cortês ao tempo Ministro das Finanças, então doente, na preparação da Lei de Meios e do Orçamento para 1966. Apercebe-se de uma verba irrisória para “os melhoramentos rurais”. Convencido que estava que devia ser triplicada essa verba, já que iria melhorar o interior do País, levou a proposta a Oliveira Salazar.  Com aquele ar sinistramente cético Salazar pergunta: - “Mas ao certo, o que é que o senhor tem em vista? O Subsecretário responde: - “Bom trata-se de modernizar mais depressa as terras do interior, levando-lhes benefícios do progresso: canalização de água em casa, eletricidade, telefone, eliminação das fontes de chafurdo, etc., etc.”. Salazar pergunta-lhe de chofre: - “O Senhor donde é natural?”. - “Sou de Azeitão, Sr. Presidente, aqui a dois passos de Lisboa”. – “Pois então não tem terra. O senhor não conhece o interior de Portugal. Sabe? As pessoas que ali vivem estão muito arreigadas às suas tradições e modo de vida seculares. Se lhe levamos o progresso de repente, perturbaremos gravemente os seus equilíbrios naturais. Por exemplo se acabarmos com as fontes e lhe levarmos a água a casa, as mulheres já não terão de ir todas as manhãs com o cântaro à fonte: como é que elas hão-de poder pôr a conversa em dia umas com as outras?”. Claro que não houve reforço de verba nenhuma!!
                Este diálogo mostra bem como há décadas se trilham e retrilham os   sórdidos caminhos do Interior pelo poder instalado em Lisboa, engordado pelos que para lá vão.
                “Tudo é velho onde fui em novo” Álvaro Campos.
Fernando Pereira
8/2/2019
               

19 de janeiro de 2019

Ao Silvo da Locomotiva




Ao Silvo da Locomotiva



Em Lisboa e Luanda tem acontecido apresentações de livros em catadupa.
                Nunca me lembro de um tempo tão profícuo das letras angolanos, nem de tanto livro sobre Angola. memórias, reflexões, vivencias, poesia, coletâneas, história, estórias, e tudo o resto. O ritmo é tão grande que as posses de um qualquer remediado não podem dar vazão a tamanho movimento.
                Já li algumas coisas que saíram, algumas até mediatizadas até à medula, e de facto sinto-me impotente para vir aqui falar do muito que não gostei e vou-me limitar a escrever sobre um dos poucos que admirei, repetindo-me que me faltou o folego para tanta coisa que saiu!
                O livro de Bruno José Navarro Marçal, que assenta no seu trabalho de doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, editado pela Colibri, “Um império projetado pelo silvo da locomotiva” é uma obra de grande interesse para se perceber como nasceram algumas linhas férreas em Angola e Moçambique, como se desenvolveram e quais foram os entraves para que algumas tivessem ficado nas boas intenções de quem as sonhou.
                O autor, um jovem que não tem rigorosamente nada a ver com Angola ou Moçambique, segundo julgo saber, e desempenha neste momento as funções de diretor do Museu de Foz Coa e do Parque Arqueológico do Vale do Coa, num dos afluentes do Douro internacional, numa zona polvilhada de quintas e vinhedos propriedade de alguns angolanos, que terão optado desenvolver-se por estas paragens!
                Este livro, um trabalho científico, naturalmente muito documentado, poderia até dizer em linguagem de rua, “demasiado picuinhas”, é o primeiro instrumento rigoroso que me chega às mãos sobre as incidências do que foi a batalha para construir caminhos de ferro em Angola, e sobretudo perceber o que foi o desenvolvimento do País em torno do carril, enquanto valor acrescentado.
                Este livro leva-nos a uma Angola imensa num primeiro terço do século XX onde tudo era difícil, e onde as diferentes linhas e ramais do comboio conseguiram ligar o interior ao litoral, juntar gentes, multiplicar recursos e promover a unidade do território. Os avanços e recuos de algumas linhas, as incertezas da sua rendibilidade e as guerras de interesses que se instalaram e que para além das liças parlamentares em Lisboa, levaram a desafios de pancadaria entre mui nobres senhores pelas opções em presença!
                Não venho pormenorizar o que li no livro, mas quero lembrar que não há muitos anos, no tempo em que Angola pensava em grande, esquecendo-se que tinha que resolver o que era maioritariamente pequeno, houve uma ideia que também andou na cabeça do “colono” que seria ligar o Caminho de Ferro de Benguela via Zâmbia pelo saliente de Cazombo, ou na” bota do Dilolo” como também é conhecida a zona sul do Luau, que até 1927 pertencia ao então Congo Belga. Esse estudo, que terá sido pago a “peso de ouro” como vem sendo normal nos muitos que estão nas múltiplas gavetas estatais e privadas, orçava a construção dessa linha em 12biliões de dólares, e para além de ninguém ter tido coragem de avançar com o projeto, terá havido algum decoro em dizer quando haveria um retorno do capital investido! As linhas que a Angola tece. Seria mais um elefante branco, dos muitos que vamos alimentando com tenra erva de ouro.
                Estas decisões e indecisões sobre a via férrea não é coisa de agora! Ficaram umas pontes, uns projetos de um Caminho de Ferro do Congo que ligaria Luanda ao Caxito, Ambriz e iria em direção a Leopoldville, mas não houve financiamento e ficou uma ideia de que muito poucos se lembram.
                Talvez nem tenha muito a ver com o assunto, mas vejam este texto:”. Em qualquer caso, teremos que produzir em boas condições económicas-e essas condições, por vários motivos, não se verificam na colónia. Angola continua, de um modo geral a produzir caro e a não poder economicamente explorar muitas das suas possibilidades. Vários fatores para isso concorrem. Todos eles derivam, em ultima análise, do abandono a que tem sido votados importantes problemas de fomento, que ao Estado, que não aos colonos compete solucionar. Pode, verdadeiramente, dizer-se que nunca se estabeleceu um programa de conjunto, atinente ao desenvolvimento de Angola, em que se compreendessem a racional utilização das múltiplas fontes de riqueza e aproveitamento dos seus imensos recursos- que nesse programa se tivesse entrado em franca execução e que esta fosse levada a cabo. A única tentativa seria ou digna desse nome foi a do Alto Comissário Norton de Matos- e a deplorável sequencia dos acontecimentos, de que temos sucinta notícia diz-nos eloquentemente do fracasso a que, por falta de meios e continuidade essa tentativa conduziu. Assim se descurou a organização do crédito em bases capazes de criar as grandes iniciativas e de assegurar o útil rendimento do esforço dos colonos. O problema dos transportes e comunicações, tanto por caminho de ferro, como por estradas e via fluvial, está infinitamente longe da solução que a área geográfica, o potencial de produção de certas regiões e até a disciplina e metódica utilização do existente exigem. Este é sem dúvida um dos fatores que mais se faz sentir em detrimento da economia de Angola onerando sobremaneira a produção.”
                “O problema da energia, como fonte de desenvolvimento industrial e agrícola tem sido quase totalmente descurado- sem que faltem em Angola imensas possibilidades naturais de aproveitamentos hidroelétricos. Idêntico é o panorama que a colónia oferece em obras de hidráulica agrícola que a levassem à utilização de grandes áreas, ainda abandonadas, e ao racional aproveitamento de outras em benefício do seu rendimento. Nunca pensámos, a fundo e a sério, no problema científico de Angola, que a todos os outros substancialmente domina nos seus aspectos geográfico, geológico, botânico e zoológico, quando é certo que pela sua solução será possível o conhecimento perfeito da colónia e as directizes em que deve assentar a sua reconstrução económica.”
                Este texto foi retirado do livro de Álvaro de Freitas Morna, governador geral de Angola em 1942 e 1943. O livro é “A situação económica de Angola” de 1945, traz um conjunto de problemas, e não deixa de ser curioso como “A história repete-se, a primeira vez como farsa, a segunda como tragédia” (Karl Marx em 18 Brumário de Luis Bonaparte).
                Um discurso coerente nos dias de hoje!!!

Fernando Pereira
28/11/2018

                 

11 de janeiro de 2019

A manipular a gente não se entende! / o Interior / 10/1/2019





A manipular a gente não se entende

A 15 de Fevereiro de 1898, o couraçado USS Maine, da Marinha norte-americana, explodiu no porto de Havana(Cuba). Morreram 266 soldados. Hoje não se consegue perceber porque é que o Maine se afundou, mas pelo menos já se sabe que não foi colocada por uma mina colocada por um terrorista espanhol ! Ao tempo a opinião publica americana convenceu-se que a explosão tinha sido de facto provocada pelo espanhol.
                William Randolph Hearst, que inspirou Orson Wells no “Citizen Kane”, era um dos pioneiros do jornalismo cor-de-rosa ou sensacionalista, enviou umas semanas antes o seu desenhador mais famoso, para que mostrasse as “barbaridades “que ali se cometiam. A situação na ilha era tão normal que, quando chegou, o desenhador Frederic Remington enviou um telegrama a Hearst: “Está tudo calmo. Não há guerra. Quero regressar.” A resposta do magnata é famosa: “Forneça as ilustrações, que eu trato da guerra”.
                Hearst construiu através de uma imprensa pouco rigorosa e venal um império da comunicação social, um dos grandes conglomerados privados dos EUA, apesar da vida não lhe ter corrido bem depois do crash de 1929 e ter-se esquecido de uma verdade que ele vivificou: “ A opinião publica pode ser manipulada, desde que se lhe diga aquilo que ela quer ouvir”. Daí para a frente entrou em declínio apesar da família Hearst ainda hoje possuir nos EUA 15 diários, 38 semanários, perto de 200 revistas, 28 canais de TV, editoras e uma forte presença em sites e domínios da internet.
                O recente episódio protagonizado na TVI com a presença de uns protos nazis num programa de um dos canais mais manipuladores da comunicação social portuguesa já tem alguma coisa de extraordinário, que é o facto do apresentador Goucha, e o diretor de programas Azevedo aparecerem  tipo “virgens ofendidas”, a indignarem-se contra os que repudiaram a presença dessa gentalha, quase que dizendo que todos os que não querem ver fascistas na TV, onde me incluo, são castradores da liberdade de informação.
                Não é rigorosamente nada disso. O que está em causa é que essa gente, que já começa a sentir que há cada vez menos pessoas a indignarem-se por eles andarem por aí quando estiverem no poder tiram a liberdade de imprensa, a liberdade de opinião e impõem de forma coerciva a sua forma de usar e pensar. Eles são racistas, xenófobos, misóginos, violentos para além de defenderem políticas anti-imigrantes, algo que galvaniza muitos sectores da sociedade, apesar da verve cristã!
                As TVs privadas começam  vezes demais a perder o bom senso, e a forma continuada como fazem a manipulação da justiça por exemplo, é um dos atropelos a um estado democrático que se vai fragilizando, nos seus alicerces fundamentais.
                Os políticos que nos governam, e os que nos representam apresentam demasiadas fragilidades, o que assume alguma perigosidade num futuro próximo.
                Não basta a um político possuir certezas, é preciso mostrar que as tem ou fingir que as tem. O Poder não deve desculpar-se sob pena de se suicidar. A humildade nunca foi um método de governação e muito menos uma virtude política.
                Bom Ano de 2019!

Fernando Pereira
6/1/2019


10 de novembro de 2018

NOVEMBRO SEMPRE / Novo Jornal/ Luanda 9-11-2018




NOVEMBRO SEMPRE
“O que faz uma nação grande não é tanto os seus grandes homens, mas a estrutura dos seus inumeráveis medíocres”
                Ortega e Gasset

Felizes fomos, os que pudemos assistir ao nascimento da Republica Popular de Angola a 11 de Novembro de 1975.
                A maioria dos angolanos de hoje já não viveram esse dia, e para muitos essa data é algo que já terá sido atirado para as calendas gregas do nosso imaginário coletivo.
                A sociedade da informação, que hoje faz aparecer factos a uma velocidade vertiginosa, é a mesma que enterra quase ao mesmo ritmo tudo que se foi passado num lapso de tempo relativamente curto.
                Por tudo isto a extrema direita e tudo que lhe está associado como a xenofobia, o racismo, a intolerância ideológica, e a construção de mitos em torno de fátuas figuras, tem vindo a crescer a um ritmo avassalador demasiado por todo o mundo. O fascínio pelos caudilhos que personificam este novo modelo de domínio político é evidente, e as religiões através das suas múltiplas versões tem dado um contributo ideológico de tomo para a edificação do novo status de poder institucional.
                Os culpados de toda esta situação, que começa a fazer pairar enorme preocupação, não se circunscreve às igrejas, à comunicação social manipulada ou à participação cada vez maior dos grandes grupos económicos na política.
As razões de tudo isto deve-se também aos que nas democracias “se deixam embalar em sossego”! A falta de respostas à insegurança crescente nas metrópoles, a falta de emprego, o “amiguismo” no aparelho de estado, a fraudulenta utilização do património público, uma justiça timorata no julgamento de todos por igual, e alguma desresponsabilização por parte dos governantes perante má gestão da coisa pública, são o pasto perfeito para que de uma forma paciente comecem a surgir os focos de revolta, aproveitados na perfeição por gente que mais cedo que tarde vai impor a sua “ordem e progresso”, para não termos que “nadar” muito.
“Os que condenam o passado estão condenados a repeti-lo” (George Santayana) e o que vamos assistindo nestes 43 anos da “dipanda” é que cada vez vemos mais gente a repetir em vários locais que no “tempo do colono é que era bom”! O medo pensa demais, e às vezes é completamente inútil tentar demonstrar a quem viveu esses tempos que o colonialismo era aviltante para qualquer cidadão angolano.
Com o argumento de que “hoje é que se rouba”, “são uma cambada de corruptos”, “no tempo do colono não havia fome”, “antigamente havia ordem e disciplina” e por aí fora vamos assistindo a uma nostalgia de um tempo que a maioria não viveu, e que as circunstancias do País dizimado pela guerra, com famílias divididas não conseguiu mostrar quão duro foram os tempos coloniais para a grande maioria da população angolana.
Documentos como o certificado de residência, cartão de trabalho, caderneta do indígena, cartão do assimilado, e por aí fora foram mecanismos para legalmente separarem os angolanos que tinham direito a bilhete de identidade, uma minoria, e os que não tinham.
Confesso que gosto pouco de andar aqui com lembranças de coisas tristes, e que nesta fase já terão pouco interesse estarem a ser desenterradas, mas tudo que vai acontecendo são sinais preocupantes do que poderá acontecer no futuro, pois Angola importa tanto de outras latitudes que não será descabido pensar, que  poderá importar sistemas políticos autocráticos travestidos de democracia plena.
Como diria José Gomes Ferreira, “Tenho saudades de não poder inventar o futuro”.
Nada me entristece quando comemoro um dos dias mais felizes da minha vida, que foi esse longínquo, mas presente 11 de Novembro de 1975! Também terá de ser mais um dia de festa para os angolanos, porque a liberdade tem que ser um espaço coletivo!
Dizem alguns amigos que vem da luta de libertação: “Não foi isto que combinámos”! Percebo a sua deceção, mas também terão combinado a coisa num tempo de esperança e raras vezes a esperança se materializa! Como dizia o saudoso Millor Fernandes, “Há duas coisas que ninguém perdoa: as nossas vitórias e os nossos fracassos”.
Convém lembrar que o recentemente falecido Gerald Bender, um dos que mais de perto acompanhou Angola nos últimos cinquenta anos teve uma fase que foi premonitória e que de certa forma condicionou o passado e espera-se que não seja presente no futuro:  “MPLA never lost an  opportuniy do lose an opportunity” (trad: O MPLA nunca perdeu uma oportunidade de perder uma oportunidade)
Porque ainda vamos a tempo de tudo e de combinar coisas novas e devolver as estrelas ao povo, partilho com muitos a mesma alegria de todos os anos neste sempre bom comemorar o Novembro da esperança.

Fernando Pereira
8/11/2018




9 de novembro de 2018

Ephemera / O Interior / 8-11-2018




Tenho um grupo heterogéneo no pensar e nos gostos que invariavelmente à quinta feira de tarde se junta para a confraternização semanal.
                Há alguns como eu que somos novos há muito tempo, há uns quantos mais novos, mas que pensam velho e há os mais velhos que nalgumas coisas pensam novo e noutras sentimos que as suas ideias foram envelhecendo.
                É boa gente, e seguramente não se junta pela qualidade da comida, porque já fomos sofrendo algumas deceções.
                Estes jantares para além do afiar a língua viperina são simultaneamente uma partilha saudável de opiniões numa mesa de alguns extremos. Discute-se politica local e nacional, comenta-se o quotidiano da cidade, fala-se de bola, degustam-se em palavras alguns vinhos e outras miudezas no meio de umas vitualhas.
                No meio deste estendal de mil e uma coisas vamos também partilhando outro tipo de fazeres desde a viagens a visitar património, ajudar a promover obras de alguns honoráveis cidadãos da urbe, ou ações solidárias com instituições que nos merecem respeito e que dignificam a atividade associativa no distrito.
                Todos vão tendo o seu percurso pessoal, profissional e de atividade social  na sociedade sem grandes razões para críticas especiais, para além das que são habituais por algumas pessoas não gostarem de fulano, sicrano ou beltrano.
                Vamos ao que interessa. Este grupo foi desafiado para promover a instalação de um ponto de recolha da Ephemera na Guarda. Naturalmente que não irão ser os “comensais da quinta”, que irão desenvolver todo o trabalho de instalação de um local que promova a recolha de documentação para um centro em boa hora criado na Marmeleira pelo Dr. Pacheco Pereira.
                Conseguimos que a Associação de Jogos Tradicionais da Guarda fique com a responsabilidade de recolher todos os documentos que acharem uteis ajudando a fazer a primeira triagem e  a construir um local que seja o  primeiro depósito para posterior  catalogação e colocada à disposição do publico de tudo o que possa ajudar a história contemporânea do País.
                Claro que isto não será algo estanque, mas será fundamentalmente aglutinador de um conjunto de pessoas que possa ajudar a colocar mais um centro “Ephemera”, igual ao que há em muitas capitais de distrito ou cidades do País, num trabalho que tem a vindo a ser crescentemente valorizado.
                O projeto Ephemera é extraordinário pelo pioneirismo ao nível português e quase único a nível europeu, e quando o Dr. Pacheco Pereira foi por nós desafiado a resposta foi pronta e entusiasmante. A Guarda não vai ficar mal e dia 15 de Novembro está prevista a sua vinda para explicar em detalhe o que é a Ephemera.
                Porque nenhum de nós anda com projetos políticos em carteira, ou porque desejamos protagonismo achamos que este movimento se pode alargar e vai permitir recolher e colocar à disposição de investigadores de todo o mundo, documentos, ou outro tipo  de objetos que permitam conhecer um passado que faça conhecer melhorar no futuro.
                Aproveitei a minha crónica regular para sensibilizar as pessoas a aderir a esta iniciativa, e que dela surjam outras que coloquem o distrito e as suas gentes como fazedoras de coisas, que enobreçam a investigação e promovam conhecimento para afirmar com cada vez mais relevância a história e a cultura contemporânea portuguesa.
                Também estamos avisados pela frase de Hemingway: “O primeiro esboço de qualquer coisa é sempre uma merda!”.

Fernando Pereira
2/11/2018

1 de novembro de 2018

A VIDA NÃO PASSA DE UMA TROCA DE CHEIROS / Novo Jornal / Luanda 1-11-2018




A VIDA NÃO PASSA DE UMA TROCA DE CHEIROS

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem livremente, nas condições por eles escolhidas, mas sim nas condições diretamente determinadas e legadas pela tradição. A tradição das gerações mortas pesa como um sonho mau no cérebro dos vivos. E até mesmo quando parecem ocupados em transformar-se, a si e às coisas, em criar algo que ainda não tenhamos visto, é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que evocam com inquietação os espíritos do passado, pedindo-lhes emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, os seus costumes, para entrarem na nova cena da história debaixo desse disfarce venerável e com essas palavras emprestadas.”
                                                                               Karl Marx in Early Texts

                Apesar de a partir de determinada altura se rejeitar na sociedade angolana o marxismo, transformando-a num misto de neoliberalismo e capitalismo selvático (diferente de selvagem) não devemos deixar de fazer reflexões sobre qual será a nova matriz ideológica do País.
                Passámos de um tempo de arremedo de marxismo-leninismo, ou socialismo científico, como alguns gostavam de o propalar nas intermináveis reuniões do partido nos ministérios ou empresas, para um petro-marxismo em que tudo gira em função do preço do barril.
                Angola deixou “a moda do marxismo-leninismo”, como disse em determinada altura Dino Matross, quando se referiu, de uma forma algo infeliz, a um período de Angola pós Novembro de 1975, para passar para uma situação híbrida que foi o navegar à vista ao sabor do preço do Brent.
                O angolano, que fruto da necessidade de afirmação no contexto de dificuldades inerentes à independência do País, criou um “umbiguismo”  endógeno, que o estado de abastança do petróleo hiperbolizou. Angola era o centro do mundo e tudo o resto rodava à volta do País. Não nos perguntávamos se éramos suficientemente melhores, ou até mesmo suficientes para sermos de facto o que julgávamos ser, com alguma soberba de permeio.
                Hoje navegamos na desesperança e nem a mudança do “sloganguismo” consegue dar um rumo aos novos tempos tantas vezes prometidos, e penosamente adiados.
                Pepetela no Mayombe na personagem Sem Medo: “queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios”. Foi premonitória esta frase da figura central dum dos livros maiores da literatura angolana.
                Angola foi durante demasiados anos a mata, ou a “guerrilha” na cidade, com todas as suas convicções, com o seu determinismo, e com a vontade de fazer, mas foi simultaneamente o lugar de desconfianças, de intrigas, de violência, de traição e também do amiguismo.
                João Lourenço acaba com um ciclo que já devia ter acabado há uns anos! O fim dos da guerrilha no aparelho do Estado, nas Empresas e na condução dos destinos da economia e da política do País.
                Quando Neto morreu e José Eduardo dos Santos emerge como Presidente da Republica pairou a ideia que iria haver um maior enfoque na hierarquia das competências, já que a experiencia vivida até então, com muito voluntarismo à mistura tinha transformado o País num estado desolador mormente na economia.
                Na altura dizia-se em surdina que “Angola ganharia muito se desse aos guerrilheiros uma vivenda no Mussulo, uns criados, carros e outras mordomias diversas e que se mantivessem afastados da direção económica e política do País”. Obviamente que este tipo de retórica vinha de sectores muito críticos da evolução política do País, e que anos mais tarde fizeram parecerias e sociedades com os que na altura vilipendiavam.
                O novo Presidente da Republica consegue inverter um ciclo que só poderia ser possível com o desaparecimento físico dos que emergiram da guerrilha.  Isso abre algumas novas oportunidades aos cidadãos, porque se acaba de vez com essa honorável, mas a partir de determinada altura dispensável condição de guerrilheiro, para se subir na hierarquia, ou ter direitos mais que adquiridos.
                “…a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia?
                Existem, no entanto, e eu sou um deles. Sem medo também o sabia. Mas insistia que era um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde.” Mayombe-Pepetela

                Fernando Pereira
                29/10/2019
               

22 de outubro de 2018

VENEZUELA, OS PASSOS PERDIDOS / África 21/ Luanda/ Outubro 2018




VENEZUELA, OS PASSOS PERDIDOS

                Aproveitei para título deste artigo um dos mais belos, e simultaneamente menos conhecidos romances da literatura sul americana, escrito em 1953 pelo cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que viveu na Venezuela entre 1945 e 1959.
                Este romance é a imagem de um mundo que começa no grande rio Orenoco, o maior da Venezuela e um dos maiores da América do Sul. É a subida desde a foz até à sua nascente para encontrar a “raiz da vida”, e onde cada personagem define o que é o poder, e as suas lógicas, a atmosfera selvagem e abrupta, o que ele chamou do “real maravilhoso americano”.
                A Venezuela é a pátria do libertador Simão Bolivar, o mais conhecido combatente pela independência das colónias espanholas na América do Sul e o seu verdadeiro unificador. A Republica Bolivariana da Venezuela teve a sua autonomia aquando da sua separação da Grã-Colômbia, território partilhado com a Nova GranadaEquador e Panamá, surgida por altura do falecimento de Bolivar.
                Sempre marcada por alternância entre democracias e ditaduras, a Venezuela consegue ser das poucas republicas americanas a manter ininterruptamente uma democracia desde 1958, apesar de pontualmente irem aparecendo focos de guerrilha e nalguns casos algum projeto tipo “Coronel Tapioca”, icónica personagem dos livros de Tintim, do belga Hergé, que corporizava as revoluções em vários países na América Latina.
                A Venezuela era antes da exploração petrolífera nos anos 20 do século passado, um dos países com razoável aproveitamento dos recursos agrícolas, nomeadamente o café e o cacau, para além de uma agricultura de subsistência que ia permitindo uma dieta alimentar razoável à população. O peixe de uma zona costeira riquíssima era um complemento para a alimentação dos cidadãos e produto não negligenciável no quadro das exportações.
                A exploração do petróleo levou a que a agricultura fosse perdendo cada vez maior importância, e num curto espaço de tempo a Venezuela passa a ter 80% da sua população, hoje de 32.000.000 de habitantes, que vive em cidades, com todas as inerentes consequências.
                A Venezuela é hoje o 3º maior produtor de petróleo, e o 2º exportador mundial. Tem as maiores reservas mundiais de gaz e é um dos países com maiores reservas hídricas do planeta. Acresce a tudo isto a rica fauna da sua zona exclusiva marítima!
                Neste quadro a Venezuela, com a Standard Oil americana como parceira, começa a desenvolver uma industria de siderurgia, de cimentos, metalomecânica, refinação e outras o que leva a uma crescente urbanização da sua população tornando as urbes em megacidades, que transformaram o País como um dos de maior violência urbana em todo o mundo.
                Em 1976, três anos depois da crise petrolífera de 1973, e com a eleição do social democrata Carlos Andrés Peres, a Venezuela nacionaliza o petróleo e procura desenvolver rapidamente o País com a construção de novas e melhoradas infraestruturas, bairros sociais que permitissem alojar deslocados do campo para as cidades, hospitais, em suma um projeto desenvolvimentista que criou uma dívida externa quase incomensurável, fruto das quebras petrolíferas nomeadamente a de 1980. A classe média venezuelana cresceu percentualmente de forma mais rápida que em toda a América Latina, e começaram a agudizar-se os conflitos aliados a uma corrupção endémica que tinha como figura de tomo o Presidente da República.
                Neste quadro cada vez mais as forças armadas ganham alguma influencia, e começa a emergir a figura de Hugo Chavez, um misto de caudilho e esperança para uma população que vive cada vez pior, e assiste impotente ao desbaratar dos recursos por uma elite que se apossou do aparelho do estado e das empresas publicas.
                Naturalmente que Chavez é olhado com desconfiança pelos EUA, sempre ligados ideologicamente às teses do “Big Stick” do presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) e economicamente aos interesses das grandes companhias americanas.
                Hugo Chavez apesar de acossado pela elite venezuelana, acolitada pela administração americana, inicia com as receitas do petróleo em alta, um conjunto de reformas que procuram dar resposta ás ansiedades da população mais desfavorecida da Venezuela. Com alguns laivos de demagogia, Chavez começa a criar escolas, hospitais, promulga legislação que proteja os mais pobres, criando a cesta básica. Promove projetos para a edificação de casas para alojar os que moram em favelas e assume-se como um verdadeiro leader dos povos que se tentam emancipar na América latina.
                Escusado será dizer que os EUA e seus aliados regionais e locais tudo tentaram para o destruir, através de greves, fuga de capitais, boicotes, mas eleitoralmente ele reforçava o seu poder em cada votação. A sua doença foi a única coisa que não conseguiu vencer, e morre em 2013 sendo substituído pelo seu vice-presidente Nicolas Maduro.
                Com a queda abrupta do peso do petróleo, com a falta de financiamento internacional, com os juros da dívida a estrangularem a economia os inimigos do “Chavismo” tem tentado tudo para acabar com o legítimo governo da Venezuela sufragado nas urnas.
                Tem sido lançada uma campanha para denegrir o regime Venezuelano, com sanções de toda a espécie, e com a criação de um ambiente de “crise humanitária global” que leve à intervenção militar, para justificar isso sim uma guerra de contornos sórdidos para uma intervenção económica na Venezuela, a favor dos que intervém há muitos anos na América latina, feudo privilegiado das companhias americanas e dos seus interesses instalados na Casa Branca.
                A insuspeita ONU num recente relatório fez saber que as sanções impostas desde 2015 pelos EUA e União Europeia contra a Venezuela “agravaram muito a escassez de alimentos e medicamentos, causaram sérios atrasos na distribuição e desencadearam o fenómeno da emigração maciça para os países vizinhos”! O Enviado da ONU à Venezuela foi categórico ao afirmar que o que acontece na Venezuela é “uma crise económica que não pode ser comparada às crises humanitárias em Gaza, Iémen, Líbia, Síria, Iraque, Haiti, Mali, RCA, Sudão do Sul, Somália, Myanmar, entre outros”. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação divulgou recentemente 2 relatórios (dezembro 2017 e março de 2018 referindo que a Venezuela não está entre os 37 países do mundo que passam crises alimentares.
                Convém esclarecer que não gosto particularmente do estilo e discurso de Nicolas Maduro, a quem não reconheço a estrutura intelectual e o carisma de Hugo Chavez, mas acho que a Venezuela só passa por tudo isto que está a passar pela cobiça de agentes económicos pelas riquezas de um dos territórios mais ricos do mundo e que vai lutando pela sua soberania e defesa dos seus interesses!
Fernando Pereira    3/10/2018

4 de outubro de 2018

Um Adeus Africano / África 21/ Luanda Setembro 2018




Um Adeus Africano              
           
Recentemente deixou-nos Kofi A. Annan, o africano que mais tempo esteve como Secretário Geral da ONU, e o segundo a ocupar esse lugar.
            No esquema de rotatividade que estava consensualizado até ser quebrado com a eleição de António Guterres para o atual mandato, África substituiu a América Latina em 1992 e fez eleger o egípcio Boutros-Ghali como secretário-geral.
              O egípcio Boutros Boutros-Ghali (1922-2016), substituído por Kofi Annan, só conseguiu fazer um mandato enquanto SG da ONU, já que as suas divergências com a política externa dos EUA impediram que a sua candidatura a segundo mandato tivesse êxito.
            Boutros-Ghali fez frente à influencia dos EUA na ONU e teve um mandato difícil, em que os Americanos apostavam no desmembramento de Angola e da então república federativa da Jugoslávia entre outras intervenções. Os EUA não terão conseguido impor a sua vontade na solução da crise do Ruanda, que se traduziu num dos maiores massacres que se viveram na África contemporânea. O SG foi acusado de ter ignorado avisos sobre a deterioração da situação no Ruanda e não se livrou de críticas de muitos que o acusaram de alguma sobranceria.
            Foi responsabilizado por fracassos inerentes aos muitos conflitos que assolaram o mundo de um tempo pós-guerra-fria, e os atritos com a administração Clinton foram continuados, tendo-lhe sido criado um ambiente insustentável na cena internacional e também no interior da própria organização. Tudo foi anotado no seu livro de memórias Unvanquished: A U.S.-U.N. Saga (1999), e algumas situações conseguem ser bizarras no quotidiano de seriedade das relações internacionais.
            Entre vários incidentes contou que a meio do seu mandato recebeu um embaixador Americano que lhe transmitiu que o presidente Clinton queria que ele se demitisse e fazia uma festa de homenagem para ele não sair "pela porta traseira"! Recusou e nem com o forte apoio da França, claramente a sua maior aliada, conseguiu apoios para uma segunda magistratura.
            A solução de compromisso para que África mantivesse um elemento do seu espaço, para o segundo mandato exigiu soluções de compromisso, entre os vários membros do Conselho de Segurança e como resultado de tudo a solução surgiu dentro da própria instituição, com a subida a secretário-geral do então adjunto Kofi Annan, que vai exercer o lugar entre 1997 e 2017.
            Foi o primeiro cidadão negro à frente da ONU, e também até hoje o único da África subsariana.
            Kofi-Annan herda uma ONU envolvida numa série de problemas, estruturalmente desorganizada, e sem capacidade económica para dar resposta às múltiplas intervenções que se exigiam às Nações Unidas, que dispunha ao tempo de um efetivo de 70.000 soldados e uma pesada máquina burocrática que era muito exigente do ponto de vista financeiro e algo ineficaz nas respostas que a organização tinha celeridade em dar.
            Este Ganês que fez toda a sua carreira em organizações internacionais até entrar definitivamente em 1980 na ONU como secretário-geral adjunto em três situações consecutivas: Gestão dos Recursos Humanos e Coordenador para as Medidas de Segurança do Sistema das Nações Unidas (1987–1990); Subsecretário-Geral para Planeamento de Programas, Orçamento e Finanças e de Controlador (1990–1992); e Operações de Manutenção da Paz (março de 1993 – dezembro de 1996).
            Muito mais conciliador que o secretário-geral anterior, passou a ser olhado com simpatia pelos americanos que viram o ataque ao Kosovo e o bombardeamento à Sérvia serem apoiados pelo novel Secretário-Geral da ONU.
             Do mandato anterior “herdou” a má imagem que a Organização deixou na intervenção americana na Somália, a desorganização das forças de intervenção nos diferentes teatros de guerra, que eram caras e de eficiência discutível no terreno.
            Kofi Annan fez um toque a reunir e iniciou um processo de reorganização administrativa e uma aposta clara no reequilíbrio financeiro das Nações unidas obrigando de forma draconiano ao pagamento das prestações em falta por parte de um conjunto significativo de países membros.
            O mundo começava a sarar das feridas herdadas da guerra fria, e Kofi Annan tentou que a ONU fosse o fórum ideal para o estudo de uma enorme vontade de alterar o modelo económico e social prevalecente no mundo.
            Tarefa ciclópica e de certa forma algo utópica, mas Kofi Annan com a paciência do cidadão africano foi afirmando na ONU valores de liberdade, equidade, solidariedade, tolerância, não violência, respeito pela natureza e responsabilidade partilhada.
            Kofi Annan dizia na Conferencia do Milénio em 2000 no contexto do texto “Nós os Povos, o papel das Nações Unidas no século XXI”: “Se a globalização oferece grandes oportunidades, nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. O que é certo é que, até hoje, os seus benefícios foram distribuídos de uma forma muito irregular, enquanto o seu custo é suportado por todos. Assim, o grande desafio que enfrentamos hoje é certificarmo-nos de que, em vez de deixar para trás milhares de milhões de pessoas que vivem na miséria, a globalização se torne uma força positiva para todos os povos do mundo. Uma globalização que favoreça a inclusão deve assentar na dinâmica do mercado, mas esta, só por si, não é suficiente. É preciso irmos mais longe e construirmos juntos um futuro melhor para a humanidade inteira, em toda a sua diversidade”.
            Annan apesar de ser acusado de pró-americanismo nunca cedeu aos EUA no ataque ao Iraque, e apenas tentou ganhar tempo para que os inspetores enviados no âmbito da ONU para a verificação de armas de destruição em massa estivessem em segurança, depois de em inúmeros relatórios terem concluído que não existiam essas armas em território iraquiano. À revelia da ONU, já que a França não alinhava com os EUA no ataque ao Iraque, os EUA e a Grã-Bretanha unilateralmente atacaram o Iraque.
            O SG da ONU deixa uma mensagem no seu discurso nessa conferencia: “Nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. Não há aspiração mais nobre, nem responsabilidade mais imperiosa do que ajudar os homens, as mulheres e as crianças do mundo inteiro a viverem melhor. Só quando isso começar a acontecer é que saberemos que a globalização está de facto a favorecer a inclusão, permitindo que todos partilhem as oportunidades que oferece.”
            Kofi Annan deixou-nos recentemente, mas os seus valores, assumidos sempre com a eterna referencia à sua “alma mater” Kwame Nkrumah, tem que valer num mundo que se perpetua eternamente desigual de mais.
            Com a sua morte o mundo perde um cidadão proeminente, África perde um dos seus filhos valorosos!

Fernando Pereira 3/9/2018

13 de setembro de 2018

Um adeus estival / O Interior 13-9-2019




Um adeus estival!
Como previ num dos artigos que escrevi recentemente, o tal “Movimento pelo Interior” tem-se esfumado em realizações.
                Depois da pompa e circunstância que rodearam a sua criação, com uma linguagem demolidora para com a situação prevalecente, encontramo-nos hoje perante um nado-morto. Nada que os que por aqui vivem não estejam habituados.
                Vamos falar de coisas sérias. Mais uma vez os professores voltam à berlinda, e os seus detratores aproveitam as suas justas reivindicações, para zurzirem nos seus líderes sindicais ou nos representantes das suas organizações profissionais. Um País que não respeite os seus professores não respeita nada nem ninguém. O maior inimigo dos professores bons, que são a maioria, são os maus profissionais, que sendo uma minoria servem para que certa incompetente gente os utilize e faça “bulling” sobre alguém a quem se entrega o melhor que temos: os nossos filhos.
                A democracia evoluiu, mas a democraticidade nas escolas ainda não terá ultrapassado tiques de anarquismo misturadas com um autoritarismo disfarçado de um período de pré 25 de Abril de 1974. A fórmula encontrada para a gestão das escolas é do mais canhestro que há, e transforma o espaço escola num lugar de continuada campanha eleitoral, privilegiando os votantes em detrimento do universo dos alunos.
                A degradação do ensino passa por isto, e a figura do diretor de agrupamento deixou de ser pautada pela competência e afirmação coerente de responsabilidades e transformada na do “tipo porreiro”, que dá a resposta adequada às circunstâncias que lhe agradem em função de renovação de mandato.
                É urgente eliminar o “nacional-porreirismo” das escolas, e fazer-se um esforço para que as avaliações sejam feitas para que todos os professores tenham bom e muito bom, porque é isso que promove o laxismo e a desconsideração por uma classe que devia ser a de maior prestígio no País.
                Ninguém pode querer igualdade nas classificações, tem que se exigir igualitarismo na avaliação rigorosa e competente dos educadores, para que se estabeleça uma hierarquia de competências que prestigie um modelo de ensino que deixe de ser cataventista.
                Os sindicatos defendem o que os professores julgam querer ver defendidos, como qualquer outra organização de classe, e as pessoas não devem estar sempre a matraquear em cima de dirigentes eleitos só porque não se gosta da cor da camisola que envergam. Os sindicatos são indispensáveis para construir o edifício educativo do País, pelo que alguma sordidez nos ataques pessoalizados aos seus dirigentes passam a ter um efeito boomerang e quem passa a vítima passam a ser os alunos que a perpetuar-se a situação acumulam maus hábitos, e levam para a vida alguma “caosificação” em que se transforma o modelo do ensino em Portugal.
                Como em tudo há uma tabela alargada entre o muito bom e o mau. Não consigo é admitir que sejam todos muito bons!
Fernando Pereira
7/9/3017

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