27 de julho de 2012
Citius, Altius, Fortius / Ágora/Novo Jornal 236/ Luanda 27/7/2012
Quando a chama olímpica se acender neste fim de Julho de 2012, Londres prepara-se para ser a primeira cidade a receber pela terceira vez os Jogos Olímpicos da era moderna. A primeira em 1908 e a segunda quarenta anos depois, 1948, na ressaca da segunda guerra mundial.
Numa Europa marcada pela recessão, estes jogos mercantilizados, numa escala inimaginável pelos seus criadores, serão talvez marcados pelo facto de o Reino Unido passar uma imagem de modernidade e romper com o classicismo vitoriano surgido no século XIX e que perpassou todo o século XX.
O nosso País vai estar presente, pela sétima vez, com os seus atletas, e antevejo que nos iremos quedar pelas primeiras eliminatórias nas modalidades individuais; uma presença simpática no basquetebol feminino; e uma esperança numa honrosa participação da equipa feminina de andebol.
Não vale a pena chorar sobre o leite derramado pela inabitual ausência do selecionado masculino de basquetebol, mas é seguramente importante que comece uma discussão alargada sobre o futuro da educação física e desporto angolanos, num quadro de desenvolvimento interno, de participação vitoriosa dos nossos atletas a nível continental e, inerentemente, uma digna representação em torneios internacionais.
Todos sabem que há Jogos Olímpicos de quatro em quatro anos desde 1896, exceto o período entre Estocolmo 1912 e Antuérpia 1920 e entre Berlim 1936 e Londres em 1948, hiatos motivados pelas duas guerras mundiais. O COA e as entidades reitoras do desporto angolano devem planear atempadamente a participação nos jogos e programar nesse quadriénio a preparação dos atletas que irão representar o País. Exijam-se às federações planos exequíveis para uma participação condigna, mas simultaneamente dotem-nas de recursos humanos e financeiros para que os resultados previsíveis apareçam, e nada possa falhar, e onde as habituais desculpas da inépcia recorrente não sejam sempre fundamentadas na falta de cumprimento de promessas.
Os dirigentes terão que passar a ser confrontados com resultados e não alijarem responsabilidades para os elos mais vulneráveis: técnicos e praticantes.
Não podemos olhar para os Jogos Olímpicos como em tempos encarávamos as nossas participações nas “Espartaquíadas” em que “íamos lá fazer uma perninha”. Também não estou a dizer que vamos fazer medalhados, o que alvitro é que deve haver um planeamento cuidado e com objetivos rigorosos de lutar pelo melhor possível e ir o mais longe que se puder, mas com profissionalismo e denodo.
Em tempos idos, as nossas seleções obrigavam-nos a estar acordados, e nunca olvidarei a vitória de Angola à Espanha nos J.O. de Barcelona (83-63) em basquetebol, num tempo em que as vitórias tinham outras conotações que extrapolavam o campo meramente desportivo.
A primeira participação de Angola em Jogos Olímpicos foi em Moscovo 1980. Em 1976 foi convidada a estar presente em Montreal, mas declinou o convite por solidariedade com os países africanos que impuseram ao COI um boicote pela presença da Nova Zelândia, que tinha furado o boicote ao apartheid sul-africano ao participar num torneio de rugby. Os jogos realizaram-se sem a presença de atletas africanos.
A discreta participação em Moscovo da delegação angolana tem uma história curiosa das muitas que vamos colecionando nestes 37 anos de País que levamos. Havia um hábito normal, nos países do socialismo científico, de enviarem, com as delegações desportivas nas viagens ao estrangeiro, alguns elementos da segurança de estado. Dizia-se que seria para evitar aliciamentos, deserções, para que não fossem tentados a participar em ações contrarevolucionárias, etc.. Os responsáveis da então “Segurança de Estado” da então R. P. Angola começaram a enviar esses agentes, um mau hábito que felizmente durou pouco.
Na delegação a Moscovo lá foram, e normalmente tentavam ser tão discretos que não raras vezes acabavam por ser os únicos a dar nas vistas, o que incomodava toda a gente. A determinada altura, no avião, uns atletas malandrecos começaram a perguntar-lhes “que modalidades iam disputar”, se “tinham roupão para a natação” e outras brincadeiras do género. Na aldeia olímpica, e como eles dormiam junto dos atletas, abundavam os dichotes do tipo “Quando é que vocês entram em competição?” “Treinavam quem?”, etc. Quando regressavam a Luanda, os atletas contavam estas histórias que motivavam um riso pegado e talvez tenha sido mais um bom argumento para deixarem de ir como penduras.
“Declaro abertos os Jogos Olímpicos de Londres 2012”.
Fernando Pereira 24/7/2012
20 de julho de 2012
Mudar para que tudo fique na mesma? / O Interior / 20-7-2012
No Brasil costuma-se dizer que rico de cidade é imediatamente “doutor” e proprietário agrícola é logo “coronel”. Não tem nada de especial, pois temos recebido do Brasil futebolistas, telenovelas, empregados de hotelaria, professores, dentistas e outras profissões multifacetadas, portanto também temos pleno direito de reproduzir os seus status. Eça dizia que «o brasileiro tem os defeitos dos portugueses só que dilatados pelo calor».
Uma prévia declaração de interesses: “dessou” licenciado.
Volta e meia lá vem este folhetim das licenciaturas. Agora é o ministro Relvas, que nada tem a ver com o distinto republicano José Relvas (1858-1929), este sim, um impoluto político ribatejano, que anuncia a 5 de Outubro de 1910 a instauração da República do alto da varanda da Câmara Municipal de Lisboa.
Não gosto particularmente deste Relvas, pelos mesmos motivos políticos porque não gosto dos que lá estiveram antes. Ando preocupado com a “histeria nacional” em volta da licenciatura do ministro, mas apenas porque considero isto uma cortina de fumo para que não se discutam os verdadeiros problemas com que os portugueses se confrontam, e esses sim, deviam ser mobilizadores para uma maior participação na rejeição. O Relvas fez o mesmo que a maioria dos que andam por lá calados fizeram, que foi pedir um diploma para colocar numa moldura por cima de um cão de porcelana, no hall de entrada da casa.
Há dezenas de anos que sei de diplomas deste tipo em universidades públicas e privadas e institutos, a maior parte deles privados de um mínimo de dignidade para darem os velhos cursos do “Álvaro Torrão”, quanto mais cursos de “Epistemologia das Ciências Sociais” ou “ Técnico de turismo final”, como agora chamam aos cangalheiros com licenciatura.
Sou do tempo das passagens administrativas que muito profissional prestigiado na nossa praça usufruiu; Sou do tempo dos exames para militares, em que podiam quase ter um exame de dois em dois meses; Sou do tempo em que o IARN aprovou licenciaturas feitas “além-mar” em locais onde nem uma escola de artes e ofícios havia; sou do tempo em que o instrutor de educação física, mestre de artes, professor de lavores, professores primários e por aí adiante passou tudo a licenciados com um golpe de magia, tipo Conde de Aguilar, e ninguém ligou ou fez que se ligasse.
Podia estar aqui a desfolhar milhares de situações deste tipo, mas acho que a opinião mais feliz sobre o assunto veio do Jerónimo de Sousa: «…antigamente chamavam-se os doutores da mula ruça»!
Por absurdo, ninguém pensou que pode estar o Miguel Relvas a rir-se porque o governo vai saindo com legislação em catadupa, privatizações em riste e outras manobras ultrajantes, enquanto se discute o diploma de licenciatura, sem tampouco se saber quem é do GOL alto ou da Soberana da Malta, esses sim, os verdadeiros mandantes do país.
Neste amadorismo circense ainda há tempo para aparecer o senilocrata Soares a dizer sobre o Euro: «Se não há dinheiro emitam-se notas», algo do tipo Maria Antonieta quando lhe disseram que «O povo não tem pão» e ela retorquiu «Se não tem pão coma brioches». Pelo menos esta ficou sem cabeça para não reproduzir mais dislates.
«No es necessário decir todo lo que se pensa, lo que si es necessário es sentir e pensar todo lo que se dice», Quino.
Texto escrito recorrendo a uma ortografia que não sei se é a antiga se é a posterior ao acordo.
Por: Fernando Pereira
Revisitar é preciso! / Novo Jornal 235/ Ágora/ Luanda 20-7-2012
A derrota da seleção angolana de basquetebol, frente à congénere russa, no recente play-off de apuramento para os Jogos Olímpicos de Londres, deixou no quotidiano desportivo nacional um sentimento enorme de desilusão e frustração.
Há alguns tempos a esta parte que vamos assistindo a sucessivos insucessos no quadro competitivo das seleções nacionais, e nem as recentes vitórias dos selecionados femininos de andebol e basquetebol conseguem esconder o estado pré-comatoso do desporto nacional.
Se olharmos em redor, vemos que o futebol angolano não consegue ultrapassar a mediania no continente, quer a nível de clubes quer ao nível das diferentes seleções. O basquetebol, apesar do mérito indiscutível da conquista do campeonato africano por parte da seleção feminina, vê o seu selecionado masculino a soçobrar porque a renovação não foi feita no tempo devido. No andebol feminino vamos mantendo a hegemonia, mas no andebol masculino vamos sendo cada vez piores. As outras modalidades coletivas começam a estar apenas a um patamar acima do desporto de recreação, o que as torna irrelevantes no quadro competitivo. Nas modalidades individuais o marasmo é demasiado evidente. O estado geral do desporto angolano, depois de um período de mobilização de vontades, de dinamismo organizativo, de participação massiva, com políticas desportivas objetivas conseguiu guindar o desporto angolano para a primazia ao nível continental e para o galarim das grandes competições internacionais.
Não vale a pena procurar culpados pela situação atual, porque a realidade tem a ver com a ausência de políticas económicas e sociais perenes no País e consequentemente a desarticulação das políticas sectoriais, onde a cultura física e o desporto é uma vertente com alguma importância na promoção e formação da juventude angolana.
Enquanto se vai deixando abastardar a política desportiva, que teve os seus cabocos no início da década de oitenta do século passado, vamos assistindo a um cada vez maior divórcio entre a juventude e a prática desportiva regular, por vários motivos onde avulta a falta de organização das estruturas e a desmotivação que se vai instalando, mercê do aparecimento de novas conceções impactantes na chamada “sociedade de mercado”.
As federações desportivas foram-se transformando em lugares de discussão estéril e de afirmação para alternativas que a maior parte das vezes pouco têm a ver com o desporto. Durante as eleições discutem-se pessoas e não se consegue vislumbrar programas de trabalho onde se promova a área formativa de técnicos e dirigentes, mobilização de recursos tendentes a possibilitar uma adesão massiva de crianças, adolescentes e jovens, desenvolver o quadro competitivo nos diferentes escalões e alargá-lo a todo o País, e no fim assumir a seleção nacional como reflexo de todo um trabalho continuado e largamente participado.
A manter-se esta situação, vamos ver regredir, mais rápido do que aparentemente se julga, o desporto angolano para algo do tipo “quintal” que era mais ou menos aquilo a que se assistiu no estertor do tempo colonial.
É absolutamente indispensável um grande debate sobre a cultura física e o desporto, com caracter de urgência, e que daí saiam, para a nova Assembleia Nacional, propostas de legislação que permitam mobilizar a juventude, aliciá-la para uma atividade física regular e incutir-lhe valores de solidariedade, lealdade e respeito tão queridos na sã competitividade.
Obrigar o Estado a dar verbas suficientes para a formação e motivar as empresas para contribuírem para a sustentabilidade da atividade competitiva nacional e nas competições internacionais, são apenas algumas das muitas propostas que têm que ter enquadramento legal e cumprimento obrigatório de forma a não deixarmos sectores tão importantes ao sabor dos balanços do “mercado”, da volatilidade da “mercadoria” e claro dos “sabores e dissabores” de alguma gente.
A cultura física e o desporto têm que voltar a ter a mesma importância que a saúde, a educação e a cultura, num quadro de uma sociedade que se pretende mais harmoniosa e menos ostensiva e pedante ao nível da afirmação de valores.
Quando se mudarem dirigentes desportivos, tem que se ter em consideração que o mais importante mesmo é mudar-se de política. Era muito bom que cada vez mais tivéssemos aberto melhorados caminhos à política desportiva encetada por Ruy Mingas e a sua equipa há mais de trinta anos, mas a realidade demonstra à saciedade que a regressão nalguns casos é demasiado evidente, o que não deixa de ser preocupante.
Fernando Pereira
16/7/2012
13 de julho de 2012
O PASSADO PRESENTE / Ágora / Novo Jornal 234/ Luanda 13-7-2012
Só agora li o livro de Mário Moutinho de Pádua “No Percurso de Guerras Coloniais 1961-1969”, das edições Avante, e o que se me oferece dizer é que estamos perante um trabalho interessante, politicamente comprometido e revelador de que a distância entre as convicções do idealismo e a realidade vivida no quotidiano é, em muitos casos, diametralmente diferente.
O médico Mário Moutinho de Pádua, filho de um conhecido e respeitado advogado e notário na Luanda dos anos enta (50-60), foi o primeiro-oficial português a desertar na guerra colonial em Outubro de 1961 e a juntar-se aos movimentos de libertação. Ao tempo foi uma pedrada no charco na sociedade luandense, já que, para além da histeria dos colonos ainda muito presente em função do 4 de Fevereiro e do 15 de Março de 1961, o alferes Mário Pádua era branco e abastado.
O livro é um depoimento importante que acrescenta novos detalhes de um período da guerra de libertação, onde as situações não foram, nem de perto nem de longe, o idílio que muitas vezes nos querem transmitir, numa história algo ficcionada do que foi a guerrilha e os seus contornos, lutas de poder internas em que as traições eram urdidas com base no tribalismo e no racismo, a sordidez das relações pessoais de permanente desconfiança, na realidade tudo ao contrário do que os manuais defendiam, e que a propaganda fazia ecoar para o exterior dos movimentos.
Ao longo do livro, Mário Pádua não deixa transparecer nenhum azedume, apesar da forma violenta e aviltante como foi tratado tentando, tanto quanto possível, encontrar justificações para tudo nos diferentes colonialismos, ou melhor, no mesmo colonialismo de feições diferenciadas.
Um dos lugares onde Mário Pádua esteve a trabalhar foi na Argélia, a partir de 1963.
A Argélia ascendeu à independência em 5 de Julho de 1962, há 50 anos precisamente, depois de uma longa luta contra a potência colonial, a França, e as organizações paramilitares dos colonos que se mobilizaram na OAS, estrutura terrorista de direita que endureceu a guerra de libertação. Sobre este momento e a vontade dos argelinos de se juntarem à FLN, no filme “A batalha de Argel “[The Battle of Algiers] (1966) estão superiormente documentadas algumas fases dessa luta, neste que foi o primeiro filme argelino feito depois da independência.
A França teve que acolher cerca de dois milhões de “pied noir”, termo pejorativo pelo qual eram tratados os franceses na Argélia, Tunísia e Marrocos, situação parecida com os portugueses brancos nascidos nas colónias onde eram conhecidos como “portugueses de 2ª”.
A Argélia logo se transformou num local de acolhimento para nacionalistas africanos e refugiados políticos de várias ditaduras da Europa e da América latina, um verdadeiro farol de liberdade num mundo totalitário. O “Senhor Ben Bella” como depreciativamente a Emissora Nacional portuguesa e a sua dependente Emissora Oficial de Angola tratavam o 1º presidente da Argélia, em 1964 passou a apoiar o GRAE em detrimento do MPLA e isso levou a que a UPA alterasse a sua sigla para FNLA, inspirada na FNL. Felizmente que Houari Boumédiène voltou novamente a apoiar o MPLA, e a Argélia esteve sempre na vanguarda da defesa da luta contra o sistema colonial português em África, como também esteve sempre na primeira fila na luta pela restauração da liberdade em Portugal.
No dealbar dos anos setenta vim estudar para Coimbra, ainda para o Liceu, e num dos primeiros dias de aula, o diretor de ciclo chamou-me ao gabinete e fez-me inúmeras perguntas sobre Angola, que já teria visitado integrado numa visita de orfeonistas ou tunas da cidade. Ao fim de uns minutos, oferece-me o livro de Jacques Soustelle, “Carta aberta às vítimas da descolonização”. Pede-me para ler referindo que mais tarde “trocaríamos algumas ideias sobre o assunto”. O autor era um membro das OAS e só conseguiu parir uma porno-chachada literária hecatombótica sobre a Argélia, De Gaulle e a “necessidade de combater o comunismo que irrompia por todo o lado”. Nunca percebi porque é que o Dr. José Bandeira me deu aquilo, porque na realidade fomos poucos os escolhidos para o receber. A verdade é que, em determinada altura, quis que me inscrevesse numa estrutura que se chamava “Centro de Estudos Ultramarinos” e sinceramente não me inscrevi por razões que ao tempo nada tinham de políticas, mas vontade de fazer outras coisas que me eram mais motivadoras. Ainda hoje tenho o livro na estante, acompanhado na prateleira de múltiplos livros que “os retornados” escreveram e inundaram o panorama livreiro português durante décadas.
Como dizia Proust em “La Recherche du temp perdu”: “ La véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher de nouveaux paysages, mais à avoir de nouveaux yeux”.
Fernando Pereira
11/7/2012
6 de julho de 2012
ANALOGIA SILENCIOSA./ Ágora / Novo Jornal 233/ Luanda 6-7-2012
Os órgãos de informação, que noutros tempos foram de “difusão massiva”, trouxeram para a ribalta as mais recentes descobertas em torno do santuário megalítico de Stonehenge, situado nas planícies de Salisbury, no Sul de Inglaterra.
Depois de muitas opiniões e estudos, na comemoração recente do solstício de Verão, surgiu a convicção de que as pedras deste extraordinário espaço arqueológico terão sido trazidas de vários pontos da meridional Inglaterra e do País de Gales. A teoria fundamenta a tese de que vários povos desta alargada zona teriam transportado as pedras dos seus locais para as oferecer aos deuses e daí a sua diversidade em consistência, dureza e multiplicidade cromática.
Stonehenge é um local fascinante e que provavelmente pouco terá a ver com Luanda, mas lembrei-me, nem sei a que propósito, de que no antigo Largo do Baleizão, em redor de um monumento edificado pela cooperação cubana para simbolizar a unidade do País, se colocaram dezoito grandes pedras a simbolizar cada uma das províncias de Angola. As pedras foram escolhidas com algum critério em cada uma das províncias e colocadas em redor de um monumento que substituiu o que estava erigido ao Infante D. Henrique. Um acrescido valor simbólico ao largo.
Sem surpresa, e mais uma vez com o arrojo estulto do desconhecimento, veio a ordem peregrina para as pintar de cor de laranja. A partir daí deixaram de simbolizar o que quer que fosse. Com o arranjo da “4 de Fevereiro”, as pedras foram tiradas e o largo encontra-se em intervenção dentro do plano geral de requalificação da “Marginal”.
As antigas instalações industriais da Congeral estão a ser objeto de uma intervenção notável para a instalação do futuro Museu das Forças Armadas, o que não deixa de ser um trabalho de reconhecido mérito. Das minhas alegres visitas regulares de criança ao “Baleizão”, ainda me permanece na memória o intenso cheiro a sabão que impregnava o largo.
Outra novidade recente tem a ver com a notícia da separação de Tom Cruise e de Katie Holmes. As razões da separação terão a ver com o fanatismo do ator pela “Cientologia” , religião a que aderiu na década de 80, tendo sido mais tarde considerado pelos líderes da seita o "Cristo" da cientologia. Fundada nos Estados Unidos, em 1954, pelo escritor de ficção científica Ron Hubbard, a filosofia prega a imortalidade do ser humano e estimula a limpeza da alma e da mente. Para os adeptos, o homem é um ser imortal, composto de três partes: corpo, mente e espírito. Sua experiência vai muito além de uma só vida, acreditando na reencarnação. A salvação depende de si mesmo, de seus semelhantes e da sua relação com o universo.
Ressalvando que não tenho a mínima inclinação para qualquer tipo de igreja ou crendice, aconteceu-me uma história interessante numa visita a Londres, no templo da tal “Igreja da Cientologia”.
Acompanhado de um amigo deslocava-me ao longo da Queen Victoria Street para atravessar a Ponte do Milénio em direção à magnífica Tate Modern. Começa uma chuvada que nos obriga a recolher num umbral de uma porta, curiosamente a sede da “Cientologia” em Londres. O meu amigo, entusiasmado porque sabia que Travolta, Chick Korea, Bono, e outros professavam este culto, arriscou sugerir entrarmos e ver o que “afinal era isto”.
Entrámos nas instalações sumptuárias de uma casa vitoriana requintadamente decorada e fomos a uma receção onde manifestámos interesse em conhecer “algo sobre a Cientologia”. A rapariga inquiriu-nos das razões de estarmos ali, de onde éramos, em suma, o habitual. Fomos seguidamente para um extraordinário escritório todo forrado com madeiras exóticas onde uma senhora, que presumi ter alguma diferenciação na hierarquia, nos começou a explicar o “bê-á-bá” do credo. Manifestou-se particularmente agradada por eu ser angolano, e anteviu uma hipótese de participar na instalação de alguma eventual “sucursal” em Angola. Preparava-se para me dar uma quantidade de livros e documentos, mas o meu agnosticismo e o excesso de peso do material, fizeram-me recusar, tendo levado apenas um livro em brasileiro do tal Ron Hubbard, que li até meio, e que me pareceu mesmo ficção científica.
Durante cerca de um ano fui recebendo telefonemas, documentos, mails e tentativas de abordagem diversa no sentido de me entusiasmarem como “missionário da Cientologia” em Angola, mas como ainda vou tendo alguns pruridos em relação ao absurdo, fui declinando cada vez menos educadamente a proposta.
Em determinada altura perguntaram-me se havia alguém que pudesse estar sensível a esta tarefa. Lembrei-me de tanta gente a quem não me importaria de embaraçar!... Mas a partida ficou em carteira para pregar a alguém, um dia destes!
Fernando Pereira
5/6/2012
29 de junho de 2012
Perguntas de um Operário Letrado/ Ágora/ Novo Jornal 232/ Luanda 29-6-2012
Perguntas de um Operário Letrado
Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas
Bertold Brecht (1898-1956)
Com este novo “shuttle” entre Angola e Portugal desenvolveram-se novas apreciações sobre o nosso País por parte dos expatriados contratados com o objetivo de trabalharem por cá em empresas que localmente não encontram quadros para cumprir cabalmente as exigências do mercado.
A maior parte das vezes há cá trabalhadores qualificados, mas faz-se uma manigância nas condições de concurso que impede encontrar angolanos para a empreitada. Talvez ainda se chegue ao tempo em que só poderá concorrer um engenheiro civil que tem que ao tempo do concurso viver na R. S. António à Lapa nº 18 em Lisboa ou um arquiteto da Torre da Mantinha lote 4-16 no Seixal e por aí fora!
Olho com alguma preocupação o germinar de alguns conflitos que pontualmente começam a ensombrar as relações de trabalho entre estrangeiros e angolanos, o que acabará por se generalizar e as consequências decorrentes passam a assumir foros de outro tipo de segregação bem mais perigosa e com consequências desagradabilíssimas.
Porque já começo a ter idade e vivências suficientes para ter memória sempre foi recorrente chamar-se indolentes e irresponsáveis aos trabalhadores angolanos, algumas vezes para justificar erros de planeamento.
Vamos por partes, desde tempos imorredoiros que o angolano é tratado com particular virulência por todos os que por Angola demandaram na busca da “vida boa que procuro e não encontro cá”, como diz o estribilho de uma canção alentejana de emigração.
O léxico que invariavelmente anda em torno da indolência do trabalhador angolano fez-me recordar Brecht, e o seu “perguntas de um operário letrado”, como também me lembro de perguntar quando circulo nas cidades de Angola, todas feitas pelos seus cidadãos trabalhando muitas vezes em condições inumanas e aviltantes da sua dignidade de cidadão e trabalhador com direitos.
A Angola dos portugueses que chegam e de onde os progenitores, tios, amigos ou simples conhecidos que zarparam do País em 1975 foi integralmente feita por angolanos, e não foi por serem indolentes que deixaram por fazer espaços urbanos e vias de comunicação que os colonos se orgulhavam.
É da mais elementar justiça que se respeite o angolano e isso urge ser feito com novas leis de proteção, menor diferenças no leque salarial, apoio à saude, ao ensino, cultura e acima de tudo proteger as realidades culturais com que o povo angolano se identifica e se reconhece.
Ninguém pode ou deve em circunstância alguma questionar o absentismo por causa de um komba pois faz parte de uma tradição secular entre os povos de cultura bantu, e que os tecnocratas de gravata albardada contestam com o argumento da defesa da sacrossanta “produção e o mercado”.
O expatriado vai para Angola ganhar dinheiro, não vai para mais nada, pelo que se dispensam dichotes ou comentários que os locais que os acolhem não merecem em circunstancia alguma, pois recebem-nos como a maioria não os receberia nas suas terras.
Numa recente visita a Bath, perto de Bristol no Sudoeste de Inglaterra, visitei alguns colégios que conheci há alguns anos e onde fiz então algumas amizades. Num tradicional chá das 5h, com scones quentinhos ouvi lastimarem-se professores de dois prestigiados colégios internos ingleses, um em Bath outro em Salisbury, pela falta de alunos ingleses de família da média-alta burguesia, principais utilizadores desses estabelecimentos.
Perguntei as razões e fiquei petrificado quando eles me disseram que a nova onda é enviar estudantes de muitos países da Commonwealth para colégios privados na India. As razões que me foram apontadas têm a ver com o rigor da disciplina, que os colégios ingleses foram obrigados a aligeirar para cumprirem determinações do ministério da educação inglesa, que proibiam castigas dos mais insignificantes. Os colégios da India têm também excelentes projetos pedagógicos, magníficos professores, muito bem equipados e com um sucesso na empregabilidade muito bom.
Os meus amigos dizem-me que todo o ensino de top inglês anda alarmado e que o entusiasmo dos pais ingleses é tão grande nesta inovação que cada vez mais novos levam as crianças para os colégios da “maior democracia do mundo”.
Antes que acabe peço-vos que leiam de novo o poema de Brecht que é capaz de dar para muita coisa nos tempos que se avizinham!
Fernando Pereira
29/06/2012
22 de junho de 2012
Fotografia a la minute/ Ágora/ Novo Jornal 231/ Luanda 22-6-2012


Com a proliferação de demolições, gruas, tapumes e condicionamentos de toda a ordem no Kinaxixe, veio-me à lembrança a enorme mafumeira que por lá havia num tempo em que as pessoas de Luanda julgavam conhecer toda a gente na cidade.
Ciclicamente, todo o largo e as lagoas anexas se cobriam com um ténue manto branco, que invariavelmente me fazia espirrar ininterruptamente pois a minha rinite não se compadecia com a sumaúma que, depois de recolhida, servia para encher almofadas e um ou outro colchão de alguém mais abonado que tivesse meios para substituir o colchão de folha e sabugo de milho seco.
A mafumeira, que não sabia a idade, era o verdadeiro centro do largo e local que acolhia um conjunto de pessoas que tinham misteres diversos. Entre os profissionais que os ramos frondosos da árvore abrigavam estava o “fotógrafo de rua”, profissão que hoje desapareceu de todo, com o advento das máquinas digitais e telemóveis que dão para tudo.
Todos os dias lá estava a sua máquina com tripé, com fotos a cobri-la, e aquele pano preto longo, que me fascinava em miúdo, porque imaginava tudo o que lá pudesse haver dentro sem conseguir ter qualquer certeza; No chão, o balde, a corda com as molas onde secavam as fotos e um lençol branco esticado numa espécie artesanal de estirador num canto, onde estava pendurada a gravata e o casaco, indispensáveis para que qualquer um fosse fotografado a rigor. Um caixote de sabão, cadeirinha e um espelho completavam o quadro que eternamente me fascina, hoje como uma saudade distante. A mafumeira já foi há muito ano deitada abaixo; o fotógrafo também se transferiu para outra mafumeira que ficava no que é hoje o Largo da Independência, e que também foi destruída para dar lugar à que hoje é a Av. Ho-Chi-Min. Com ela desapareceu o homem que metia a cabeça no pano preto e com a mão fazia de sinaleiro para a melhor posição do fotografado.
Já que falo de fotos, vem-me à lembradura uma situação curiosa que ocorreu comigo uns anos depois da independência. Amiúde ia à baixa comprar café numa casa esconsa que ficava ao lado do Quintas e Irmão (hoje loja da Moviflor) e que dava àquela rua um cheiro inigualável. O ritual era passar no “Aníbal de Melo”, ver as fotografias que por lá colocavam regularmente relativas a eventos de “Estado e Partido” em Luanda e nas províncias. Costumava deixar o carro em frente à “Lusolanda”, e como as montras nesse tempo eram pouco apelativas, nem sequer olhava para ver o que quer que fosse. Um dia, nem sei bem a que propósito, olhei para um expositor do que era a “Foto Castro”, e digo para alguém que me acompanhava: “Deixa cá ver quem são os colonos que estão aqui na foto!”. No meio de uma quantidade de fotos a preto e branco, desbotadas e empoeiradas, dou com uma foto minha num postal de Natal, que mirei e remirei vezes sem conta para ver se era efetivamente eu, e recordei-me então de ter tirado aquela foto na primeira metade dos anos sessenta. Poucos anos mais tarde quando a quis mostrar a um familiar, vi que o expositor tinha sido vandalizado e as fotos tinham desaparecido, admitindo contudo que não terá sido por minha causa.
No tempo em que se tentavam edificar os caboucos da sociedade socialista de Angola havia algumas bizarrices que hoje são recordadas com particular nostalgia e vão fazendo parte do historial humorístico do quotidiano do País.
Certa vez no Lubango, por ocasião de uma viagem de serviço, passeava no “Picadeiro”, nome por que se designava a “Pinheiro Chagas”, fazendo tempo para jantar. Entrei na “Tirol”, que era uma pastelaria emblemática da colonial “Sá da Bandeira”, e entre espelhos primorosamente limpos, vi que havia três balcões de vidro. Num deles havia um expositor cheio de rebuçados de cores diversas e com magnífico aspeto. Perguntei às duas meninas que estavam ao balcão o preço dos drops e elas responderam que “não sabiam porque o camarada responsável por aquele balcão não estava, nem já viria nesse dia”. Procurei perceber a lógica e então compreendi que cada vitrina tinha um responsável, e que, na ausência de qualquer um deles, "despodíamos" ter acesso aos poucos produtos que havia. No dia seguinte ainda lá voltei, mas o “camarada responsável pelos rebuçados e correlativos”, e que tinha consigo a chave do balcão, não tinha aparecido, ficando sem poder adoçar a boca.
Isto aconteceu quando o ex-Beatle Paul MacCartney tinha cerca de quarenta anos. Já que ele fez esta semana setenta, todos conseguem, com umas continhas, determinar em que ano sucedeu este episódio “Tirolês”.
Parabéns Sir Paul e obrigado por tudo o que nos ajudaste a sonhar com o que compuseste e cantaste.
Fernando Pereira
19/6/2012
19 de junho de 2012
Um homem perdido no baldio de ser

Deslembro que no passado 10 de junho fez 35 anos que Jorge de Sena discursou na cidade da Guarda, na ocasião do “Dia de Portugal de Camões e das Comunidades”, o primeiro realizado depois do 25 de abri de 1974, felizmente longe do ambiente enlutado do Terreiro do Paço, local normalmente centro das comemorações e das condecorações. Por causa de ontem e de hoje lembro-me da letra de Carlos Té: «Que eu nunca vi pátria assim, pequena e com tantos peitos».
…«Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se veem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, é não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camonianas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.
Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça. Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral. O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspetos que a representa: o pertencer-se direta ou indiretamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção, que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora»…
Foi só o evento mais importante da Guarda na segunda metade do século XX, mas continuadamente deslembrado.
Fernando Pereira
16 de junho de 2012
O nome da ausência./ Ágora / Novo Jornal 230 15-6-2012


Na passada semana resolvi arrumar as minhas atulhadíssimas estantes. Os livros já começam a estar em terceira fila, e revistas, documentos, pastas com textos diversos, são colocados nas velhinhas malas de porão recuperadas depois de tanto cruzarem os mares e escaparem às térmitas e ao salalé.
Acreditem que é um exercício cansativo e simultaneamente demorado, dura alguns dias, e no fim fica tudo atulhado na mesma, com menos espaço, mas com a vantagem de ter avivado a memória relativa a obras que me vou esquecendo que estão por lá.
Redescobri o “Velho e o Mar” de Ernest Hemingway, traduzido para português por Jorge de Sena, um dos mais incompreendidos e esquecidos enormes escritores da língua portuguesa. Datado de 1951, foi o indiciador de que, a seguir a um Pulitzer, em 1953, lhe seria atribuído o Nobel, em 1954 e terá sido um dos romances que comigo funcionou como iniciação à literatura de qualidade.
"Um homem pode ser destruído, mas não derrotado" é o mote desta comovente saga de um ser frágil em luta desigual contra as mais inclementes forças da natureza. "Hei-de lutar enquanto tiver remos", diz para si próprio o velho pescador Santiago, protagonista do livro. No final, perdido o espadarte que pescara no alto mar e esgotadas as forças, basta-lhe a recompensa de nunca ter virado a cara à luta - mensagem que transcende épocas e modas, tornando-se numa alegoria da condição humana.
Cojimar, uma belíssima baía de Cuba, foi o lugar central desta novela e Jorge de Sena escreveu no prefácio à edição portuguesa do livro: "Esta é uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo".
A recordar o “Velho e do Mar” e simultaneamente a assistir às imagens da saída das tropas angolanas da República da Guiné-Bissau, no âmbito da “Missang”, lembrei-me com saudade do Viriato Pã.
Meu contemporâneo em Coimbra no dealbar dos anos setenta, Viriato Pã era um guineense que causava uma enorme empatia em todos os que com ele se cruzassem no quotidiano de farra e folia que ia reinando nos estudantes das colónias que por lá viviam nesse tempo.
O Viriato Pã, Balanta, era assumidamente um adversário da fórmula que Amílcar Cabral e o PAIGC preconizavam para a Guiné, o que irritava bastante os cabo-verdianos adeptos confessos desse projeto finado em 14 de Novembro de 1980, com o golpe de Estado de Nino Vieira. Foi deposto Luis Cabral, acusado de tudo que de mau tinha acontecido na Guiné, desde o assassinato dos comandos africanos, tropa de elite portuguesa recrutada localmente, até à míngua de produtos no circuito comercial. A velha máxima de que a “história dos vencidos é escrita pelos vencedores”, sempre presente no quotidiano.
Viriato Pã era um brilhante comunicador, com uma capacidade argumentativa notável e não se furtava a discussão nenhuma, fosse com quem fosse, quando o tema era a Sua Guiné Bissau. Foi no tempo em que esteve em Coimbra, onde iniciou o curso de direito, um dos poucos indivíduos da Guiné que partilhava companhia com toda a gente, o que de facto não acontecia com os seus conterrâneos que inclusivamente chegavam ao ponto de chantagear colegas que manifestassem desejo de participar em farras ou eventos desportivos e culturais em que os estudantes das ex-colónias arranjavam motivos para conviver.
Era intransigente na defesa de algumas posições próximas da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné) e naturalmente que, depois do 25 de Abril de 1974, as situações extremaram-se com os defensores do PAIGC. Nunca deixou contudo de manter as suas posições como também nunca alterou a sua postura em relação ao convívio com outros ou a amizades entretanto constituídas.
Foi para Lisboa, onde finalizou com grande brilhantismo o seu curso, e de vez em quando encontrávamo-nos e lá vinha a eterna conversa sobre a Guiné-Bissau e a “sua subordinação a Cabo-Verde". Aquando do golpe de 14 de Novembro de 1980, Viriato Pã regressa a Bissau cheio de sonhos que acabam todos quando é vítima de fuzilamento, um dos muitos de um País que cada vez menos faz por merecer o respeito da comunidade internacional e a indiferença generalizada dos cidadãos e estruturas de países da CPLP.
Foi com muita tristeza que soube do seu cobarde fuzilamento, por parte de Nino Vieira que, de uma penada e de forma soez, afastou quem ousava fazer-lhe frente, ou talvez nem isso!
Aliás, o posterior assassinato selvagem de Nino Vieira não me mereceu qualquer espécie de comiseração, apesar de o ter idolatrado na minha juventude pela sua figura de um guerrilheiro intrépido, a quem depois passei a olhar com desprezo.
Ao Viriato Pã a minha homenagem sincera, ainda que peque por tardia.
Fernando Pereira
11 /6/2012
8 de junho de 2012
Escrever na areia./ Ágora/ Novo Jornal nº229/ Luanda 8-6-2012


Rui Ramos é um jornalista angolano que conheceu as agruras das prisões do colonialismo português, e na Angola independente voltou ao cárcere pois sempre se afirmou coerente na luta por uma sociedade angolana igualitária, em liberdade e democracia.
Hoje, reformado, depois de um percurso profissional por diversos órgãos da comunicação social, mantém viva a sua militância no MPLA. Há muitos que são hoje do “Maioritário”, mas Rui Ramos é convictamente do MPLA desde um tempo em que era muito difícil parecê-lo, quanto mais sê-lo.
Rui Ramos tem aproveitado o espaço e o alcance extraordinário das redes sociais para fazer um trabalho de pedagogia importante, mormente para as gerações de angolanos mais novos; tem colocado diariamente posts de particular interesse relativos à história recente do País, dos que lutaram num tempo em que era difícil fazê-lo, e ainda posts de cultura, etnologia, antropologia que começam a ter muitos seguidores participantes ativos nas discussões.
A ideia que vai prevalecendo entre alguns angolanos que participam em vários fóruns de discussão na blogosfera é a de que não tem sido feito um trabalho continuado para dar aos muitos que ajudaram a construir o País a visibilidade e a notoriedade que merecem, pois foram obreiros de um projeto que está aqui presente e dinâmico apesar das inerentes contradições.
Por vezes, há panegíricos desmesurados em relação a uma ou outra figura, mas isso não tolda o ambiente da discussão, aparecendo, pontualmente, um ou outro “desaguisado” verbal, algo normal nestes fóruns. Assiste-se a um interesse generalizado por parte do angolano em conhecer o passado do seu País. Podemos dizer que o acesso à internet é muito limitado por parte dos cidadãos, e os que o têm não representam o tecido social de Angola. Sobre isto não discordamos, mas há um fator importante que tem ressaltado, que se revela no quotidiano da população de Angola e que é salutar: a angolanidade é hoje tão presente como a necessidade de beber um copo de água.
Que o trabalho do Rui Ramos se multiplique para que a Angola sofrida seja conhecida da geração que felizmente usufrui da paz, democracia e liberdade.
Mudando de assunto, vem-me à lembrança uma história que se contava amiúde, nos anos sessenta, sobre dois médicos, na pacata cidade de Luanda. Na moralidade balofa do salazarismo, onde a prostituição era um devaneio de outros lugares, exigia-se às meretrizes que frequentavam cabarets e correlativos, estar na posse do cartão de sanidade actualizado. Aviltante da dignidade das mulheres, assumia contornos de racismo soez quando essa obrigatoriedade excluía nas colónias “as nativas”.
Na rua que ladeia a Igreja do Carmo, num prédio que tinha no rés-do-chão uma casa de desporto, propriedade de um pescador inveterado e campeão em muitas provas no território, havia um conjunto de consultórios, um dos quais o do médico que “fiscalizava “ as prostitutas finas; do outro lado, havia o consultório de um médico que, suponho, era dentista, e que fazia parte da lista de deputados de Angola à Assembleia Nacional portuguesa pela União Nacional.
Um dia, um casal reverente q.b. bate levemente à porta do médico das meretrizes: “ Boa tarde senhor deputado!”. O clínico diz: “ Desculpem, mas eu sou o médico do putedo, o meu colega da frente é que é o deputado”.
Se lerem isto cacofoniando, vão perceber da mesma forma como o Dr. Mário Soares, no seu francês “esmerado”, apresenta a esposa e a sogra num evento: “Ma femme et la mère delle”. Se não entenderem, paciência, peçam som!
Há muitas coisas que aparentemente «correm bem», não se desse o caso de estar trocado o tempo em que acontecem e o modo como acontecem, ou até as pessoas com as quais acontecem. Como escreveu Winston Churchill, «o jantar teria sido esplêndido se o vinho estivesse tão gelado como a sopa, o bife tão mal-passado como o serviço, o brandy tão velho como o peixe, e a criada tão disponível como a duquesa».
Fernando Pereira
5/6/2012
1 de junho de 2012
CAMINHOS DAS PEDRAS /Ágora /Novo Jornal 228/ Luanda 1-6-2012
Fernando Batalha viveu muito, lucidamente, e o seu desaparecimento deixa um vazio enorme nas corroídas trincheiras da defesa do património histórico em Angola.
A morte acaba por ser um detergente eficaz para limpar inúmeras situações desagradáveis com que as pessoas se vão confrontando ao longo da vida; o histórico acaba por ser desanuviado quando se deixa o mundo, e invariavelmente as pessoas passam a ter qualidades que dificilmente se lhes reconhecem em vida.
Fernando Batalha viveu em Angola de 1935 a 1991 onde encetou, dinamizou e lutou pela preservação do património histórico no território. Fê-lo com a mesma convicção na Angola colonial como o fez na Angola independente, embora a luta tivesse contornos de quixotismo, pois os interesses imobiliários e outro género de prioridades relegaram a preservação do património para as prateleiras poeirentas dos serviços onde aguardam despachos.
Tinha uma conceção de certa forma ligada a uma história de Angola que era muito mais próxima dos valores defendidos pelo colonialismo do que por uma Angola independente que olhava com desconfiança para monumentos que “ perpetuavam a opressão do povo angolano”, exacerbando demasiado o contexto ideológico. Por isso, era sempre olhado com reserva, mesmo pelos seus colegas, com quem mantinha relações algo encrespadas.
Havia no meio de tudo isto a vontade inabalável do homem na defesa das suas convicções e não hesitava em confrontar as pessoas para fazer valer a sua vontade de ver o património histórico de Angola como alguma coisa que desse ao passado um futuro de que Angola e Portugal se orgulhassem. Conheci-o, li os seus trabalhos publicados, vi alguns dos seus esquissos e projetos amarelecidos, mas nunca gostei da sua exagerada obstinação. Por isso evitei alguns encontros, não deixando nunca de lhe dar valor como o maior defensor do património edificado no País.
Há uns dias, num evento social, encontrei umas pessoas com quem ocasionalmente mantinha umas discussões. Começámos a partir de certo momento a divergir e a dada altura, um dos intervenientes resolveu utilizar o argumento do cartão. Mostrou-nos um que “legitimava “ estar ele melhor colocado para discutir um determinado assunto “já que era militante do Partido”. Naturalmente que perante o “arrojo” do argumento deixámos cair a discussão, mas fiz-lhe lembrar que ser militante não lhe dava supremacia argumentativa numa discussão ideológica; debalde, diga-se de passagem!
Mais a propósito disto que a despropósito, recuei ao ano de 1978, numa ocasião em que fui à festa do jornal comunista francês “L’ Humanité” no Bosque de Vincennes nos arredores de Paris. A atração principal eram os “Genesis” e a festa de “L’ Huma” era um verdadeiro espaço em que se misturavam velhos resistentes comunistas com jovens anarquistas e gente que não era nem uma coisa nem outra.
Habituado à militância de certas festas ideologicamente mais “purificadas”, a festa parisiense parecia-me mais uma feira popular culturalmente um pouco mais arrojada.
Uma das situações que me deixou perplexo foi a entrega de uns impressos para aderirmos ao PCF, assim algo do tipo de preencher um formulário para algum concurso de uma qualquer marca de aspiradores que estivesse a fazer o seu lançamento no mercado.
Em toda a feira havia uns placards gigantes que estavam sempre a mudar números. Era, nem mais nem menos, a contagem dos militantes arregimentados pelo PCF durante a festa. Esses enormes quadros eletrónicos tinham o patrocínio da Pepsi-Cola, o que me deixou algo chocado, apesar de só ser um sucedâneo da “água-suja do imperialismo”, como então se chamava a Coca-Cola na ortodoxia comunista. Não me caiu mal venderem a Pepsi-Cola no recinto, o que de facto me desgostou foram as mensagens publicitárias sobre a Pepsi e outras que se ouviam entre as manifestações de júbilo dos locutores cada vez que o número de filiados alcançava dois ou três dígitos.
Entre a música de Ferrat, Regianni, Mikis Theodorakis, Brassens, Johnny Hallyday, Mirelle Mathieu e outros, lá ia aparecendo o spot publicitário que marcava o anúncio de que “o PCF passou a ter mais uns quantos militantes na última hora”.
Habituado às regras algo espartanas da militância ativa, a situação com que me confrontava era no mínimo aviltante dos princípios do marxismo-leninismo, e a deceção da festa acabou por ser então grande. Hoje, no entanto, é completamente normal porque as realidades são diferentes e talvez nos importem pouco alguns detalhes.
Nesses tempos, no segundo fim-de-semana de Setembro, lá se ia em romagem, de mochila às costas e uma tenda remendada, na busca do que serão hoje os “salteadores da ideologia perdida”.
Fernando Pereira
28/5/2012
27 de maio de 2012
Laranja amarga e doce! / Ágora/ Novo Jornal nº227 / Luanda 25-5-2012
A Embaixada de Portugal em Luanda vai realizar uma merecida homenagem a um dos mais talentosos cineastas portugueses, João César Monteiro (1939-2003), com a exibição de três dos seus filmes, dos quais, numa escolha particularmente difícil, “As Bodas de Deus” merece a minha preferência.
Enquanto decorria o que, durante anos, foi o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, íamo-nos cruzando, nas noites, em bares que circundavam o Casino Peninsular, com os protagonistas dos filmes a concurso, com uma parafernália de críticos, realizadores, produtores, atores e público que enchia de gente a cidade, lhe dava um colorido especial e, de certa forma, marcava o final da época balnear, na que era então a mais prestigiada praia da costa portuguesa. No distante ano de 1976 conheci João César Monteiro, que me foi apresentado pelo saudoso músico Mário Simões. Confesso que, nesse único contacto, fiquei francamente dececionado pela forma deselegante como se referia a todos que passavam no “Picadeiro”, designação comum do passeio das vaidades onde circulam as pessoas no estio figueirense.
Talvez pela deceção provocada, comecei a ver os filmes de JCM com alguma reserva, mas rapidamente me confrontei com uma obra a raiar a genialidade. Nem o “obscuro” Branca de Neve conseguiu beliscar o muito que gosto de toda a sua controversa obra. “Recordações da Casa Amarela” é provavelmente o melhor da sua filmografia.
Já que se fala do Festival é bom lembrar que o primeiro prémio internacional de cinema ganho por Angola foi precisamente na Figueira da Foz em 1981, na ocasião em que o “Prémio Glauber Rocha” foi outorgado a António Ole com “No Caminho das Estrelas”.
A recente visita da argentina Cristina Kirchner a Luanda fez-me recordar que, nos tempos das visitas de “ Amizade, Partido e Estado”, na ex-República Popular de Angola, fazia-se uma distribuição de bandeirinhas aos meninos das escolas para agitar à passagem dos ilustres visitantes. Desses tempos, entre recordações várias, lembro com saudade as tolerâncias de ponto que nos aliviavam um pouco do “espírito voluntário” dos “Sábados Vermelhos”.
Uma dessas visitas foi a de Erich Honecker (1912-1994), SG do Partido Socialista Unificado da Alemanha, Presidente da RDA, que trouxe uma grande delegação para assinar projetos de cooperação em várias áreas. Entre os ministros vinha sua esposa, Margot Honecker, que detinha a pasta da Educação. Uma delegação da SEEFD foi apresentar cumprimentos de boas vindas e, na verdade, deparámo-nos com uma alemã, para quem qualquer tamanho “S” ficaria inadequadamente grande. Eu, do alto dos meus 1,87m de talento e altura, fui obrigado a vergar-me bem mais que outros colegas que estavam mais ao nível, e a verdade é que a senhora só balbuciou:"Was so groß angolanischen" (que angolano tão grande) e lá foi sorridente a distribuir beijos a esmo, nenhum ao nível daquele que o marido deu a Brejnev e que é uma foto iconográfica do capitalismo provisoriamente triunfante no centro da Europa.
Integravam essa delegação o director da FDTJ, organização que geria o desporto na RDA, e alguns técnicos. Após um conjunto de reuniões, teve lugar um jantar no ex-Hotel Costa do Sol, localizado no morro da Corimba onde, nos anos 60, os luandenses mostravam a cidade ao longe a quem nos visitava.
Num ambiente distendido estulticiamente, resolvi contar ao dirigente e aos técnicos a célebre anedota das laranjas:“ Uma criança alemã ocidental estava no muro de Berlim a brincar com uma laranja e a fazer pirraça a uma criança alemã oriental: não tens laranjas,eh,eh! O miúdo da RDA foi para casa danado e contou ao pai, que o ensinou a responder a essa provocação com a frase: não tens socialismo. A cena repete-se no dia seguinte, tendo o miúdo da RDA argumentado como o pai lhe ensinara. A criança da RFA vai para casa, conta ao pai, que lhe promete que também há-de ter socialismo. No dia seguinte, no muro, a mesma ladainha: não tens laranjas/ não tens socialismo. Ao que o miúdo da RFA responde: hei-de ter socialismo. O miúdo da RDA então responde, perante a perplexidade do outro: quando tiveres socialismo nunca mais terás laranjas.“
Escusado será dizer que não caiu nada bem esta história. O silêncio dos alemães foi ensurdecedor e o riso amarelo, aliado à gaguez da tradutora, terá conduzido à minha saída de cena de forma o mais discreta possível.
Quando vi o“Good Bye, Lenine“(Adeus Lenine-2003) de Wolfgang Becker perguntei-me de que lado estavam os meus interlocutores daquela noite quente de há trinta e poucos anos.
Citando Millor Fernandes: "Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado." Ao tempo, nem imaginava o que era ter quarenta anos, quanto mais o que era estar calado.
Fernando Pereira
21/5/2012
18 de maio de 2012
Fernando Tavares Pimenta é doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, onde frequenta uma bolsa de pós-doutoramento financiada pela FCT. È simultaneamente colaborador do Instituto de História Contemporânea de Ferrara e da Universidade de Bolonha.
Acedeu a ser entrevistado pelo Novo Jornal, na qualidade de investigador da história de Angola no século XX.
NJ- Nascido depois do 25 de Abril de 1974 (1980), em Soure, num concelho rural do distrito de Coimbra, com nenhumas afinidades familiares a Angola, o que o levou há já uns anos a interessar-se por um tema que aparentemente tem muitas “estórias” mas pouca história?
FP – O meu interesse por Angola foi sempre de carácter historiográfico, nomeadamente pelas suas estreitas ligações a Portugal. Interessei-me pela história dos brancos angolanos, em especial pela identidades e comportamentos políticos dessa minoria, por ser um assunto que considero fulcral para um correcto entendimento da historia quer do colonialismo português, quer do nacionalismo angolano. Contudo, antes da publicação dos meus estudos, essa temática era praticamente ignorada pela historiografia. Havia uma lacuna de conhecimento, que contrastava com a relativa abundância de estudos para outros países africanos, por exemplo a África do Sul, o Quénia ou o Zimbabwe. No fundo, foi isso o que levou a interessar-me pelo tema.
NJ- Surpreende-me, e admito com satisfação, ver um tão grande número de jovens investigadores portugueses, com nenhuma ligação familiar, económica ou afectiva a Angola, desenvolver trabalhos que dão hoje contributos indispensáveis a uma História de Angola que se pretende despartidarizada e despida de preconceitos. Provavelmente admite que já começa a ser citado com alguma insistência por angolanos em trabalhos científicos, artigos de opinião ou tertúlias em Angola? Isso deixa-o confortado?
FP – Fico satisfeito pelo meu trabalho servir para uma clarificação da Historia de Angola. Mas o mais importante é ter a consciencia de ter realizado um trabalho sério e rigoroso e que contribui de algum modo para a construçao de um conhecimento mais estruturado do passado angolano.
NJ- Fernando Tavares Pimenta, Claudia Castelo, Nuno Moreira de Sá, Margarida Calafate Ribeiro e alguns outros investigadores tem acabado por trazer para a história recente de Angola contribuições que, quer se queira ou não, acabam por fazer cair alguns dogmas, que se transformaram em quase palavras de ordem para a independência e vida colectiva de Angola enquanto País independente. Naturalmente que gostava de ter a sua opinião de investigador de uma ciência com método e objectivo próprio sobre isto.
FP – A historiografia é uma ciencia social com métodos especificos e que se fundamenta na leitura de fontes documentais. Por isso, a historiografia nao pode ser conivente com a existencia de dogmas – muito menos de dogmas do foro politico. Dogmas e mitos nao podem – ou pelo menos nao devem – interferir na pesquisa historica, que deve ser efectuada com isenção e rigor científico. Isto aplica-se à história de Angola e de todos os paises. Na minha investigaçao procuro sempre manter essa isenção – é essa a minha formação, e julgo que muitos outros historiadores se pautam pelo rigor nas suas pesquisas.
NJ – Há relativamente pouco tempo, em conversa com o nosso comum amigo, Fernando Catroga, insigne catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, homem de grandes cumplicidades políticas e ideológicas com muito angolano, estudantes em Coimbra nos anos 60, e que depois abraçaram a causa independentista, dizia-me algo consternado, que não havia mais jovens historiadores angolanos a trabalhar em áreas que ainda hoje permanecem “nebulosas” na história de Angola. Tem sido procurado por colegas seus de Angola para alguma partilha de conhecimentos?
FP – Tenho poucas relaçoes com a historiografia angolana. Alias, nunca fui “procurado” – em termos cientificos – por nenhuma instituiçao angolana. Contudo, mantenho alguns contactos informais com alguns historiadores angolanos, nomeadamente com Maria da Conceiçao Neto, cujo trabalho aprecio. Certamente, seria positivo haver maiores contactos entre as historiografias portuguesa e angolana.
NJ- Citando Catroga:” Historia e memórias partilham uma mesma feição de ser: são ambas narrativas, formas de dizer o mundo, de olhar o real. São discursos, pois. Falas que discorrem, descrevem, explicam, interpretam, atribuem significados à realidade.”, e lembrando que tem morrido recentemente angolanos protagonistas de lutas de libertação e cabouqueiros de Angola enquanto País, o mais recente Paulo Jorge, não acha que se devia apelar à memória dos que ainda são vivos para legar vivencias para memória futura?
FP – Os testemunhos e os depoimentos dos agentes historicos sao sempre importantes para a conservaçao da memoria e para a investigaçao historica, na medida em que sao fontes que os historiadores nao devem ignorar no seu trabalho de pesquisa. Em termos historiograficos, cada testemunho é uma fonte, cuja valencia cientifica deve ser apurada através de uma analise criteriosa e critica. Neste sentido, seria salutar que esses agentes historicos escrevessem as suas memorias ou transmitissem doutra forma os respectivos testemunhos para que nao se perca uma parte significativa da memoria do passado.
NJ- Tem acompanhado o trabalho de alguns centros de investigação e documentação em Angola, a título de exemplo a Associação Tchiweka?
FP – Acompanho os progressos da historiografia angolana, que julgo serem significativos, bem como os esforços desenvolvidos por algumas instituiçoes e pessoas no sentido da preservaçao da memoria historica. Mas, tal como jà referi, nao tenho qualquer ligaçao a nenhuma instituiçao angolana.
NJ- O seu livro, editado pela Minerva de Coimbra “Brancos de Angola – Autonomismo e Nacionalismo”, acabou por motivá-lo para um trabalho mais detalhado na obra editada pela Afrontamento (2008), os “Brancos e a Independência”. Há na esteira destes dois trabalhos mais alguma obra em preparação sobre o tema?
FP – Continuo a trabalhar sobre a realidade colonial angolana em termos de artigos, capitulos de livros, conferencias ou mesmo aulas, mas para jà nao tenho nenhum outro livro em preparaçao sobre Angola. Neste momento estou mais interessado em Moçambique, cuja realidade colonial tenho estudado nos ultimos tempos. Embora diferente da angolana, a historia moçambicana também é muito interessante.
NJ- Sei que um académico não gosta de se ver envolvido em questões de vulgar discussão política, mas tem que admitir que a sua obra “Angola no percurso de um nacionalista. Conversas com Adolfo Maria” terá sido a sua obra mais lida, comentada e controvertida no seio da sociedade política angolana! Só procurou história nessa entusiasmante conversa?
FP – O meu interesse por Angola é puramente cientifico. Esse livro tem um intuito historiografico e de conservaçao da memoria de um agente da historia angolana, neste caso o senhor Adolfo Maria. Nao tenho interesse na discussao politica angolana. É algo que nao me diz respeito. Julgo, porém, que esse livro deu um contributo importante para uma clarificaçao da historia recente de Angola, sobretudo para o periodo da guerra de independencia.
NJ- A título de informação tenho que lhe dizer que é uma obra muito procurada, e a realidade é que a paupérrima distribuição faz com que não se encontre esse livro no circuito convencional em Portugal ou Angola. Não está a pensar reeditar o livro, com novas conversas com Adolfo Maria, que talvez por causa dessa obra começou a ser olhado duma forma mais respeitada num País que muitas vezes convive mal com a sua própria memória?
FP – Esse livro é fruto de um trabalho concluido em 2006. Nao faz parte da minha agenda efectuar “novas conversas” ou entrevistas com o senhor Adolfo Maria. Contudo, o livro acaba de ser reeditado – no formato original – pela Afrontamento. Espero que seja feita uma boa distribuiçao da obra.
NJ- No fim desta nossa pequena entrevista posso perguntar-lhe com que olhos vêem uma Angola que apenas conhece no mapa, pois não teve a dolorosa experiencia de seus pais de terem que saber que a serra maior de Angola era Tala Mungongo, que o caminho de ferro de Luanda tinha o ramal do Dondo e que o rio Cunene limitava Angola no sul, entre outras aparentes estultices. Os angolanos eram obrigados a estudar o goiveiro em ciências naturais, a linha do Douro, estações e apeadeiros, o monte Ramelau em Timor e outras bizarrices do tipo, que faziam de Portugal uma imitação serôdia da Inglaterra, num conceito de uma “Nação onde o sol nunca se punha”.
FP – Angola é um grande pais, com muito potencial humano, para além de economico. A sua historia ainda està em larga medida por investigar, mas a historiografia està a fazer passos importantes no sentido de produzir um conhecimento mais aprofundado sobre o passado angolano. O futuro depende sobretudo do trabalho dos proprios angolanos, que tem a oportunidade de construir um pais melhor para si e para os seus filhos e netos. Embora nao tenha ligaçoes pessoais a Angola, desejo paz e prosperidade a todo o Povo Angolano.
NJ- Muito obrigado por esta entrevista e a convicção que Angola vai aproveitar o seu contributo quando se fizer a “história de Angola”.
Fernando Pereira
20/11/2011
Quem muito viu! / Ágora/ Novo Jornal 226/Luanda 18-5-2012
Benguela comemorou a 17 de Maio de 2012 os seus trezentos e noventa e cinco anos de “idade”, fundada que foi pelo Cerveira Pereira, um pouco maltratado pelo Pepetela, no seu o “a Sul, o Sombreiro”, o seu mais recente romance.
A incontornável macrocefalia de Luanda acaba por não dar o devido relevo ao desenvolvimento que se vai assistindo um pouco por todo o País e ignora-se como Benguela se tem afirmado num polo de desenvolvimento económico e cultural do centro sul de Angola, conseguindo recuperar alguma da auréola que o Lobito foi usurpando na fase final da ocupação colonial, mercê da posição privilegiada do seu porto e do terminal do CFB.
As gentes de Benguela foram sempre muito ciosas na defesa da sua cidade, e veja-se a luta que travaram quando o Caminho de Ferro de Benguela, a então majestática empresa inglesa se preparava para atravessar a cidade, como fez no Lobito, Huambo e outras vilas no seu percurso até ao Luau. A população não deixou, e nem as promessas da administração do CFB, acolitados pela indiferença cumplice das autoridades, conseguiram demover a população para que a cidade fosse dividida. Este é apenas um dos múltiplos exemplos da tenacidade das gentes da cidade, a segunda fundada pelos portugueses na costa do que veio mais tarde a ser a colónia de Angola.
Outra vetusta povoação de Angola, outrora um grande porto de exportação de café tem o seu rico património a degradar-se sem que se veja uma atitude coerente e incisiva por parte das autoridades para manter de pé uma vila que durante muitos anos foi marco importante no tecido económico do território. O Ambriz, situada na foz do Loge vê os seus edifícios a degradarem-se, nomeadamente a torre sineira da Camara Municipal, que era só um dos edifícios do início do século XX, orgulho das suas gentes e de características únicas no País.
Lembro-me, ainda que vagamente, da horrível estrada que ligava Luanda ao Uige, num total de 386km, no meio de lamaçais que passava no Cacuako, Kifangondo, Libongo, Capulo, Ambriz, Toto, Bembe, Lukunga, Songo e finalmente Uíge. O stress da viagem para além da necessidade de enfrentar lodaçais onde chegavam a estar atolados centenas de viaturas dias a fio, aumentava quando havia necessidade de se chegar a tempo das jangadas que placidamente cruzavam os rios Loge e Dande (Dange, na provincia do Uíge). Se perdesse a jangada Luanda ficava para o dia seguinte e lá tinham as pessoas que se arrumar numa sórdida pensão, que era a única solução para mitigar o desespero dos viajantes.
Há ainda que em mau estado um conjunto harmonioso de vivendas e lojas que atestam a vitalidade dos tempos áureos do café principalmente nos anos 50 com o boom do preço do “ouro negro” de então. Luanda e Lisboa crescem com prédios, bairros e avenidas novas, a construção civil dispara e nessas cidades surgem novas centralidades e um novo ordenamento do perímetro urbano.
Este alerta para a recuperação da vila do Ambriz é extensível ao património arquitetónico e cultural do País alertando que na antiga fazenda Tentativa, paredes meias com o Caxito, ainda era possível juntar algum material para perpetuar o duro trabalho da cana e a sua transformação em açúcar e álcool, criando-se um núcleo de arqueologia industrial que se revelaria útil para memória futura dos cidadãos.
O Ambriz perde toda a sua importância como porto de exportação, quando Luanda passa a ser o destino final da chamada “Estrada do Café”, que sai do Caxito, Sassa, Ucua, Puri, Quibaxe, Aldeia Viçosa, Vista Alegre, Quitexe e Uige. Esta estrada esteve sempre fechada ao tráfego normal no tempo colonial, recorrendo-se às colunas militares. A insofismável verdade que mesmo com a 1ª região político-militar do MPLA debilitada por razões sobejamente conhecidas, as tropas coloniais nunca conseguiram pacificar-se em relação à realidade quotidiana da guerra colonial nesta região dos Dembos, naquela que é das estradas mais bonitas do País, com o verde extasiante da sua paisagem ao logo dos 340km que ligam Luanda à capital da província.
Já que se falou no rio Dange não gostava de deixar de referenciar uma obra de grande probidade intelectual de um antigo habitante do Quitexe já falecido, João Nogueira Garcia, que ao longo de um livro pouco mais de cem páginas conta detalhadamente, com recurso a fotos e a documentos, o que foi o 15 de Março de 1961. João Garcia viveu esses dias e faz uma análise muito cuidada dos antecedentes e revela as vicissitudes desses dias que marcaram o futuro da guerra colonial e determinaram o princípio do fim da presença portuguesa em Angola enquanto colónia.
Um livro que merece uma leitura, sendo que talvez o mais difícil será mesmo encontrar. Sugiro que procurem um blog interessante sobre o Quitexe onde o filho, Engº João Garcia tem estado a postar partes do livro e outras histórias que não foram ainda publicadas em livro.
Fernando Pereira
16/5/2012
11 de maio de 2012
“Nas Brumas da Memória” / Ágora / Novo Jornal nº 225/ Luanda 11-5-2012
Um destes dias tive necessidade de recorrer ao livro “Desporto e Estruturas Sociais”, do professor José Esteves, para tirar uma dúvida sobre o número de praticantes desportivos numa determinada modalidade, em Portugal, na primeira metade dos anos sessenta e assim corrigir, com precisão, um amigo sobre o assunto.
Como sempre acontece quando estou com algum livro do professor José Esteves, continuo a relê-lo e gostaria de partilhar aqui algumas histórias que marcaram o quotidiano político do “Portugal uno e indivisível”.
O Diretor Geral dos Desportos era, no distante ano de 1958, o tenente-coronel Sacramento Monteiro que, cheio de boas intenções, resolve pedir uma audiência a Salazar para a discussão de um plano de construção de instalações desportivas em Portugal e colónias.
Com a frieza habitual com que recebia os subalternos, mesmo que titulares de cargos de responsabilidade governativa, recebeu o Diretor que lhe entregou um dossier. Salazar perguntou que era aquilo. “ Trata-se de um plano de construção de piscinas, para o fomento da natação entre a nossa juventude, Sr. Presidente”. O militar Sacramento Monteiro contou ainda: “o homem olhou para mim, olhou para o dossier, afastou-o logo a seguir, com um dedo só, com um ar de muito desprezo e despede-me com esta simples frase: Senhor Diretor Geral, está muito frio para tratar desse assunto. Venha lá mais para o Verão!”.
Em 1959, numa visita efetuada ao Estádio Universitário de Lisboa, ao verificar, na planta geral das instalações, que havia um espaço destinado a uma piscina, ali mesmo decidiu a eliminação pura e simples de tal hipótese. O homem abominava a natação.
A verdade é que em Angola, a iniciação à natação e a sua prática competitiva era apenas dirigida a sectores bem determinados da sociedade angolana, no caso a filhos da burguesia colonial, ou a funcionários de companhias majestáticas como era o caso da “Diamang” e “CFB”.
Em Angola, a primeira piscina olímpica, ainda a única no País, está em Luanda e foi inaugurada em 1969. Tudo o resto eram tanques e piscinas de vinte e cinco e trinta e três metros, como a velhinha do Nun’Álvares, hoje Clube Náutico da Ilha.
No elitista Lobito Sports Club e no Ferroviário de Nova Lisboa, hoje Huambo, havia duas piscinas que, para além de estarem ligadas à natação enquanto modalidade competitiva, eram usadas para práticas de lazer dos funcionários e familiares do CFB. Em determinada altura a construção de piscinas passou a ser uma obra de grande visibilidade dos governadores e administradores nomeados pela administração colonial, mas quase nenhuma delas desenhadas para a prática da natação enquanto modalidade desportiva. Curiosamente nem a “Bufa”, corruptela que correntemente designava a Mocidade Portuguesa, tão ligada a desportos náuticos como a vela e o remo, manifestava algum interesse em desenvolver a natação.
No contexto continental continuamos infelizmente ao nível da maioria dos Países no quadro da iniciação e competição da natação, onde a Républica da África do Sul domina em toda a linha, com alguns medalhados olímpicos de permeio.
Como estou com o livro do José Esteves entre mãos, e porque tenho muita consideração e estima pelo Ruy Mingas, gostaria de lembrar uma entrevista sua concedida ao jornal “A Bola” de 17-6-1974. Referindo-se ao panorama sociodesportivo do seu País dizia: “os negros nunca puderam beneficiar da integração, mesmo mínima, ao nível da atividade desportiva (…). Mesmo assim, no entanto, os negros ainda conseguiram afirmar uma certa posição, ainda que muito relativa, no desporto. Sem escolas, sem empregos decentes, sem nível económico que lhes permita chegar aos divertimentos que, então ao alcance dos brancos, os negros têm como único escape para a sua vida oprimida- para não dizer, já, escravizada- o desporto e a música. E é assim que interligam e interpenetram ambas. Jogar com uma bola, correr ao lado de um camarada e dançar ao som da música feita por mãos a percutir madeira, não custa dinheiro”.
Já agora alguém me pode explicar porque é que quase toda a gente chama falta de luz à falta de eletricidade? Confesso que nunca vi ninguém chamar falta de fogão à falta de gás, ou falta de torneira à falta de água!..
«Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra?» Agostinho da Silva (1906-1996)
Fernando Pereira
8/5/2012
4 de maio de 2012
QUEM VÊ CARAS NÃO ESCUTA VOZES.../ Ágora / Novo Jornal 224 / Luanda 4-5-2012
A geofinança esmaga a geoeconomia, e a comunidade internacional chama geopolítica à antipolítica, que tanto mata repúblicas como não deixa renascer a república universal. Por outras palavras, há uma inversão de valores. É na Europa e no mundo.
Esperemos que a legitimidade regresse. A estrela do norte da política sempre foi a justiça e, sem esta medidas, não há democracia, porque não há liberdade sem igualdade e ambas, sem fraternidade. É urgente repolitizar o Estado e os Estados, em síntese, o mundo. De outra maneira, virão os despotismos. Sobretudo os privados, aqueles que já clandestinamente nos condicionam e proíbem.
Há dias, o Gustavo Costa indignou-se, e justificadamente, com a utilização abusiva de uma parte da Escola Nzinga Mbandi para casamentos, batizados e outras farras. Acho que as escolas têm que ser preservadas, e não devem recorrer a expedientes deste tipo para conseguir recursos destinados a preservar e remodelar instalações e material pedagógico. Em 1961, o espaço que foi o Liceu Guiomar de Lencastre (que não sei quem foi) e que é o Liceu Nzinga Mbandi (que sei quem foi) foi o local que alojou os primeiros militares em Abril de 1961, quando chegaram a Angola e se começou a construir o Grafanil. Na altura estavam em curso obras terminais para a instalação da escola, que só abriu como liceu feminino no ano letivo de 1962/63. Aqueles corredores, salas e ginásio continuam a acompanhar a “história”.
Recupera-se periodicamente a história da Ilha de Páscoa, território chileno com cinco mil habitantes, a maior parte deles idos do continente. A ilha de Páscoa é famosa pelas suas inúteis estátuas. Num filme, Rapa Nui, contava-se a história dos Moai, povo que, vindo da Polinésia,se tinha instalado na ilha, onde desenvolveu uma civilização. As gigantescas estátuas de pedra, património da Humanidade certificado pela UNESCO, eram construídas como oferendas a divindades e, naturalmente, para serem transportadas até ao seu destino final onde estão esculpidas, houve necessidade de abater árvores para as arrastar desde a pedreira. Esse foi o princípio do fim dos Moai, segundo o filme que afinal corrobora a opinião da maior parte dos investigadores. Em determinada altura começaram algumas tribos a digladiar-se com o objetivo de atingir a supremacia de uns sobre os outros, e cada um dos vencedores ia fazendo estátuas maiores para oferecer às divindades. A guerra acabou, provavelmente por falta de guerreiros, míngua de árvores e de Moai em número suficiente para obter os favores ou aplacar as fúrias dos sempre silenciosos deuses. As árvores eram mais necessárias que os Moai, mais férteis, e ofereciam sombra e abrigo contra os ventos oceânicos. Sem elas, depressa os solos se degradaram e a ilha ficou desértica. O ecossistema da ilha foi destruído e acabou para se revelar insuficiente para alimentar a população de dezenas de milhares de pessoas. Quando os primeiros europeus ali aportaram, num qualquer domingo de Páscoa, encontraram pouco mais de dois mil habitantes, depauperados fisicamente, sem a grandeza dos Moai, que acabaram por legar ao futuro uma ilha deserta, inóspita e habitada por continentais que vivem do turismo, a sua única fonte de receita. As doenças que os europeus trouxeram acabaram com o que restava dos Moai, porque os habitantes não tinham defesas para elas.
Esta história estava para ser contada quando se comemoraram os dez anos de paz em Angola, mas houve outras de maior atualidade, e esta só hoje aqui coloco.
Tambien, como la tierra yo pertenezco a todos.
no hay una sola gota de odio en mi pecho.
Abiertas van mis manos esparciendo las uvas en el viento
Pablo Neruda
Fernando Pereira 1/5/2012
27 de abril de 2012
Duração do aroma/ Ágora/ Novo Jornal 223/ Luanda 27/4/2012
Esta era a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Trinta e oito anos depois da madrugada libertadora do 25 de Abril de 1974, tento manter vivo o sonho que perpassou por todos que sentiram a vertigem da liberdade e do fim da opressão. Muitos dizem que o 25/4/1974 acabou, outros nem se lembram, para a maior parte é uma data demasiado longínqua para ser vivida com a emoção igual à de todos os que a vivemos. Felizmente que Abril não precisa de ser recordado quotidianamente porque valores aparentemente tão comezinhos como liberdade, dignidade e solidariedade estão intrinsecamente ligados às lutas quotidianas das pessoas no encontrar de melhores dias.
O 25 de Abril de 1974 continuou em 11 de Novembro de 1975, e hoje os dois países caminham juntos na resolução dos seus problemas comuns, aprofundam as suas trocas comerciais, partilham experiências culturais e fazem objetivamente tudo que foi adiado por décadas de intolerância e divisões de diversa ordem. Há muita história vivida nesses tempos de inebriante alegria coletiva, e hoje ocorre-me lembrar que, quando o dia da libertação era já um dado adquirido, a preocupação de todos foi dirigirmo-nos, em Coimbra, para as instalações da sinistra PIDE-DGS, onde os agentes e os malsins dessa polícia política estavam sitiados pela multidão vigilante, que não arredava pé.
A PIDE estava localizada na Rua Antero Quental, bem perto das repúblicas do Kimbo dos Sobas e dos Mil-y-onários, que foram durante anos visadas pelas visitas constantes de agentes, que prenderam alguns estudantes engajados nos movimentos de libertação das colónias, principalmente de Angola. Naturalmente que estava lá e sentei-me num telhado sobranceiro à vivenda sitiada com o Carrilho, estudante moçambicano que anos mais tarde foi Procurador-Geral da República em Moçambique e julgo que Ministro da Justiça. Por ali ficámos horas esquecidas, até que os militares entraram com “Chaimites” para levar os PIDEs à cadeia. Fomos desmobilizando e, em grupo , lá fomos ocupar outras instalações onde estavam sedeadas estruturas políticas ligadas ao regime deposto, como por exemplo o “Centro de Estudos Ultramarinos”, que transformámos em “Casa dos Estudantes das Colónias”, e onde tivemos atividade importante em determinada fase do processo de descolonização, principalmente na sua fase embrionária. Passados uns anos, o meu amigo José Alberto Teixeira, jurista, capitão da seleção de voleibol de Angola e administrador da Agropromotora mostrou-me em Luanda um conjunto de fotografias do nosso tempo de Coimbra. Fomos contemporâneos por lá e, surpreendentemente, num conjunto delas sobre esse assalto à PIDE, lá se vêem no telhado eu e o Carrilho a olhar distraidamente para as movimentações que levaram ao fim da hedionda polícia política de António de Oliveira Ndalatando, como alguém já disse com muita piada sobre Salazar.
De vez em quando passo os olhos pela atividade de Universidades de Angola e em algumas vejo que têm instituído o “Conselho de Sábios”, onde pontificam nalguns, amigos e ex-colegas de serviço. Isto faz-me lembrar que tive um professor de “Hermenêutica do texto filosófico”, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que na primeira aula, entre várias vulgaridades, falava de ter ido à Grécia, tendo-se sentado na pedra onde Sócrates habitualmente falava aos seus prosélitos, e tinha ido a uma reunião de eméritos professores de filosofia em Delfos onde “só sábios éramos dez”. Tive que ouvir esta conversa durante dois anos, porque o Dr. Morujão resolveu chumbar-me da primeira vez, talvez para que eu ficasse com a matéria bem solidificada.
Em jeito final, não deixaria de manifestar a minha admiração por algumas publicações que se fazem em Angola, e em que a quase totalidade dos colaboradores são angolanos. A “Austral”, revista de bordo da TAAG, é um exemplo de um belíssimo trabalho de alguns anos que se lê com enorme prazer. Excelente grafismo, artigos com um português rigoroso e temas com grande interesse histórico ou de atualidade. Na minha subjetividade, fico com a sensação de que os artigos são demasiadamente longos para uma revista de bordo. É a única "pecha" que lhe reconheço e a “Austral” dignifica, e de que maneira, a nossa companhia aérea.
Fernando Pereira
24/4/2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)