21 de outubro de 2011
ELECTOCARDIOTRAMA / Ágora/ Novo Jornal nº196/ Luanda 21-10-2011
Umas vezes casamo-nos, outras acasomo-nos e as circunstâncias mudam-nos sempre por mais rigorosos e certinhos que possamos eventualmente ser.
Por mero acaso, um destes dias estava a olhar para a estante, sem pensar em nada e entre um amontoado de livros que estavam a merecer urgentemente um espanador fui encontrar um dos livros que mais me entusiasmaram. “Os nus e os mortos” , do norte americano Norman Mailler é um livro na guerra, e também de guerra. Este livro é muito intenso, pesado, e por vezes cruel, descreve as relações humanas levadas ao seu máximo, a resistência física e moral de cada pessoa, as suas virtudes e os seus podres, mas faz-nos pensar também naquilo que realmente somos, na hipocrisia que está dentro de nós sem sabermos e no que nos poderemos tornar em situações de extremos como são as que acontecem no livro. Espero que ao reler este livro daqui por vinte e cinco anos, ainda consiga lembrar-me das emoções contraditórias que senti nesta revisitação a Mailler.
Por falar em Mailler, nunca deixem de ler o “Fantasma de Harlot”, e aí perceber-se-á que nunca andámos sozinhos em lado nenhum, “os olhos e ouvidos do rei” continuaram sempre organizados, conspiram e respiram nas costas de quem ouse, ou de quem eles ousem pensar, que há alguém que quer usurpar o poder, a quem se julga no direito absoluto de o possuir e controlar.
Depois deste início em volta de Norman Mailler (1923-2007), vou-vos falar de um verdadeiro cão de guerra, Bob Denard (1929-2007)
Há muita tralha em forma de livro do “coronel” Bob Denard, presença constante em muitos cenários de golpes de estado, rebeliões, tentativas de ocupação de territórios e lutas contra qualquer movimento de tendência socialista em África. De sargento lateiro na Indochina francesa, este transformado em “coronel” Bob Denard, o ícone do mercenário durante a segunda metade do século XX.
Era catraio e lembro-me de o ver sentado na esplanada do Arcádia ao pé do BNA, com a cara entrapada por causa de um estilhaço que o obrigou a recuar para Luanda em 1965/66, depois de ter instalado no Zaire uma rebelião de catangueses contra Mobutu, a quem ajudou a chegar ao poder. Com o belga Jean Schramme, tomam Lumumbashi e Bukavu, na fronteira com o Ruanda, mas entretanto há um corte entre os dois grupos e quando Denard vem a Kasai, na ponte do rio Luau um oficial português recebe-o com grande aparato militar, tenta estabelecer contactos de forma a permitir que os reabastecimentos continuem, como lhe foi prometido por Salazar, presume-se através de Jorge Jardim. O que aconteceu e que ficou conhecido pela “Invasão das Bicicletas”, foi uma fracassada operação militar conjunta da PIDE e serviços secretos franceses e sul-africanos, e que na realidade o único material que conseguiu levantar de Saurimo fora alguns mantimentos para apoiar tropas cercadas, algumas armas e muitas bicicletas, numa operação que ao tempo custou 3.500 contos. Schrammer e 42 mercenários, alguns gendarmes katangueses acabaram por sair de Bukavu e acoitaram-se no Rwanda sob a protecção da Cruz Vermelha Internacional em 1967.
Bob Dénard saiu de Angola para a então Rodésia, tendo com os bons auspícios e protecção do governo colonial de Salazar organizado o apoio ao regime secessionista do Biafra na luta contra o poder da Nigéria. A passagem por S. Tomé ainda é perpetuada no aeroporto pelas carcaças de aviões abandonados e hangares destruídos.
O seu périplo de golpes sucediam-se, entre 1969-1971 ao serviço de Omar Bongo na fronteira com o Congo- Brazaville,em 1974 no Curdistão contra os Iraquianos, em 1976 na Mauritania e ei-lo nesse mesmo ano no Rundu na Namíbia ao serviço da UNITA, na luta contra as FAPLA e o efectivo cubano. Com o apoio da CIA e dos Serviços Secretos franceses, Dénard recruta 35 “conselheiros técnicos”. 10 vão aterrar em Cabinda e dar apoio à FLEC, 25 engrossam as forças da UNITA no sul de Angola. Não se sabe exactamente qual foi o papel que teve, já que o sucesso então pareceu ser muito limitado. Em 1977 tenta no Benim um golpe de estado para derrubar o presidente Ahmed Kérékou, mas foi uma operação tão desastrada que no terreno ficam os documentos que comprovavam o que há muito se sabia: O envolvimento eterno dos Serviços Secretos franceses com Bob Denard. Em 1981 apoia a organização da guarda pessoal do golpista Hissene Habré no Tchad e de 1979 a 1989 continua a fazer golpes e contra-golpes nas Comores, repetindo o de 1975. Em 1995 já com 66 anos Denard faz o ultimo golpe nas Comores, mas os franceses já estavam cansados dele e “os boinas verdes” gauleses obrigam-no a negociar os termos do seu regresso a França, onde acaba por viver os seus últimos tempos, e apesar de julgado e condenado por crimes vários morre em Paris depois de um longo período de sofrimento com a doença de Alzheimer.
De 1948 na Indochina às Comores em 1995 Bob Denard foi um facínora, uma lenda, um soldado, um combatente, um oportunista, um tipo que só via dinheiro, um homem de convicções de direita, mas na realidade é que terá sido o mercenário mais famoso dos tempos modernos.
Fernando Pereira
15/10/2011
14 de outubro de 2011
LÁGRIMAS EM COMISSÃO /Ágora / Novo jornal nº195/ Luanda 14-10-2011
“LIBERDADE EM SEGURANÇA
Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e
viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os
réus? - Insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstâncias atenuantes e outras, declaro os três réus
inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E
silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida.
Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se
retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita.
E saíram. Pela porta da direita.
Saíram os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Saíram todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de
informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.”
Mário Henrique Leiria
Já não é a primeira vez que me socorro do MHL para ilustrar qualquer coisa que às vezes anda no ar, mas que não temos as palavras escorreitas para a definir com precisão. Fica mais uma deliciosa história do “Gin Tónic” para lembrarmos o quotidiano.
Uma das efemérides da semana transacta foi a passagem do quadragésimo quarto aniversário do assassinato de Che Guevara. Como bem dizia uma amiga: “Não o mataram, semearam-no”!
Li o último livro do António Lobo Antunes, “Comissão das Lágrimas”, e digo apenas: foi um esforço ciclópico conseguir acabá-lo. Só o tema sobre as vicissitudes de uma ex-guerrilheira do MPLA envolvida no 27 de Maio de 1977, fez com que não o tivesse largado quase no primeiro terço.
A fase actual do ALA enquanto romancista e “opinador” gera justificadas reservas, muito longe da aura do fim dos anos setenta do século passado, em que era uma das minhas referências primeiras no conjunto dos escritores de língua portuguesa, mas este livro era portador de algumas expectativas que podiam revelar-se interessantes, que só acabaram por justificar o que há algum tempo “dispenso” da sua obra.
Os três primeiros livros que publicou numa pequenina editora, a Vega, surgida duma “dissidência” da Assírio e Alvim, a partir de 1979, “Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Explicação dos Pássaros”, colocaram-no num pedestal tão elevado que nesta duradoura fase tem-no mantido perigosamente periclitante. Muitos dos seus livros e crónicas de outros tempos estão sublinhadas e são referências importantes numa forma idiossincrática de ver o mundo e a vida como me agradava. Os seus últimos trabalhos são penosos, e este livro é capaz de ter sido o ultimo que leio para evitar desiludir-me de forma irreparável o que não desejaria que acontecesse.
A meio dos anos sessenta a “Notícia”, uma revista referente no bom jornalismo que se fazia em Portugal e colónias, tinha uma colaboradora de grande qualidade, Natália Correia. Nessa revista, em que muitos dos seus exemplares são disputadíssimos em leilões de publicações, muita gente comprava-a pela qualidade dos trabalhos dos seus colaboradores. Dificilmente nas letras portuguesas houve alguma publicação que tenha tido colaboradores tão bons como um Pedro Tamen, Herberto Helder, Luis Pacheco, Mário Cesariny, Ernesto Lara Filho, Natália Correia e tantos outros, que no tempo do Charrula de Azevedo e do Manoel Vinhas transformaram uma revistinha de uma provinciana Luanda num espaço de cultura.
Já que se fala de cultura e escritores, leiam o último do Pepetela, “ A sul, o sombreiro”, porque é realmente cativante, na linguagem “gingada” que o autor já nos habituou, mesmo para falar de um período da história de Angola e de um Cerveira Pereira, que provavelmente o melhor que tinha e quiçá o mais confiável era o ultimo apelido.
Jorge de Sena observou um dia sobre os portugueses, que se adapta na perfeição aos angolanos: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
9/10/2011
13 de outubro de 2011
INSINSERAMENTE / O INTERIOR / 13-10-2011
“Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas"
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de matemática, com pouco sucesso diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luis Cília, quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neo-realismo, portador de palavras que eram de sonho, afecto e luta simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que pela relevância do seu percurso cultural na Vértice, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos oitenta um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até premiados. Neste século um arrivista da política, que de “namorado” só se terá reconhecido no seu perfil narcísico quando desfolha a “Caras” ou revistas do tipo, decidiu pura e simplesmente acabar com o referido prémio. Pedro Santana Lopes, que até já foi primeiro ministro de Portugal (!!!) substituiu “Prémio Joaquim Namorado”por foguetório para animar a populaça a banhos na Figueira da Foz.A quem colocou Chopin a tocar violino não se podia exigir mais!
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a administração local e central é a sua falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente, é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, “um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal” . É isso!
Contudo não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltou a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando participo em sessões ou jantares de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, na longa distância do exílio onde os tiranetes parecidos com alguns que por aí andam, o colocaram disse: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
10-10-2011
11 de outubro de 2011
Entrevista que fiz a André Mingas em 6-2-2011 e depois publicada no Novo Jornal nº165 de 18-3-2011 em Luanda /Colocada neste blog no dia da sua morte.
1-André Mingas, Nietzche definiu arquitecto como “música parada no tempo”. Partilha esta opinião de que homem músico, artista plástico e arquitecto são tudo o mesmo?
André - Não, de modo algum! Hoje a arquitectura, mais do que desenho, ela é a maior expressão das artes, na medida em que engloba não só o desenho das claves musicais expressas nos traços do arquitecto, mas também o teatro através da expressão, às vezes dramática ou alegórica tão comum a alguns edifícios na cidade, a dança, graças aos movimentos circulares (Niameyer) patentes na geometria descritiva, fonte inesgotável do acto conceptual. Mas ela vai mais longe, pois corporiza as artes plásticas que, mercê das formas e da estrutura cromática dos tons, se interligam com as cores dos interiores e exteriores das habitações, produzindo estados de espírito que vão desde a tranquilidade, ao desequilíbrio emocional, da energia à depressão, enfim, ao estado de entrega a novas actividades que geram saúde, disposição para a vida, predisposição para o amor e para a arte. O arquitecto é um gestor de vazios e silêncios, capaz de fazer surgir uma obra notável, num espaço onde antes apenas reinava impune, a subtileza do silêncio!
2-O AM acompanhou o crescimento de Luanda nos últimos sessenta anos, e simultaneamente foi actor e espectador de transformações sociais que houve neste período. Ajude-nos a perceber este crescimento no olhar de um arquitecto e simultaneamente agente cultural e político.
André-Luanda tinha duas opções no período pós-independência, a saber, uma primeira, que seria permanecer estruturalmente como era e, de forma multidisciplinar, definir critérios para a avaliação e preservação da sua história construtiva, valorizando a sua qualidade maior que seria a prestação de serviços sustentados pelas potencialidades turísticas que sugerem a ilha, a baía e uma marginal como a nossa; e a segunda, ser intervencionada na base da actualização do plano director da cidade, à época, gerando novas centralidades - aqui entendidas como núcleos autónomos, potenciados pelas necessidades essenciais dos seus habitantes. Infelizmente o advento da guerra precipitou um conjunto de situações que levaram às actuais sobrecargas a que a cidade está submetida, inviabilizando quaisquer programas de estruturação da mesma, não obstante os processos evolutivos levados a cabo pelo Governo e que me parecem notáveis e verificáveis.
3-Quando perspectivamos uma cidade, fazemo-lo num contexto de ser a melhor possível para o quotidiano de vida dos seus cidadãos. No contexto actual atrevo-me a dizer que pior é impossível. È irreversível alterar o quadro geral da “desorganização” da cidade?
André - A caracterização é sua! Mas não me parece que seja irreversível o actual quadro da cidade. Pode levar algum tempo, mas não a creio impossível. A imagem da cidade ou da província é sempre o resultado da organização funcional de cada um dos seus municípios. Qualquer cidade que consiga vincular os seus municípios a programas executivos claros, tendo como pressupostos da sua acção questões como: o saneamento básico, a segurança, a saúde, a educação, o entretenimento, espaços verdes estruturados em parques e praças (evitando deste modo os grandes níveis de impermeabilização dos solos), a autoridade e os serviços públicos desconcentrados, para gerar emprego com a componente de uma maior proximidade dos serviços aos seus munícipes, têm possibilidades inimagináveis de sucesso.
Outro dado fundamental é a interligação viária de cada um dos municípios com o resto da cidade (grandes eixos) como forma de incremento da mobilidade tornando-se naturalmente numa cidade desanuviada, organizada, e regularizada sob o ponto de vista funcional.
4-O contexto da cidade de Luanda deve ser encarado como uma cidade africana, em todos os seus vectores culturais e económicos, incrustados nas relações que se estabelecem entre os seus habitantes. Mas todas as cidades em qualquer parte do mundo têm o chamado centro cívico, que Luanda já teve no tempo colonial, mas que foi perdendo com o tempo. Não seria um bom começo, para o que ainda se pode vir a fazer pelo ordenamento da cidade?
André - O conceito de centro cívico, característico das cidades radioconcêntricas como Luanda, tinha subjacente a ideia da concentração num local da cidade de um conjunto de serviços de prestação de assistência ao cidadão, que, no caso em apreço, seria a Mutamba! As tendências (linhas) de evolução facilmente observáveis na cidade, conduzem-nos a uma nova interpretação da mesma: A cidade deve criar núcleos habitacionais sim, interligados sob o ponto de vista da malha viária, mas autónomos sob o ponto de vista funcional, gerando, concomitantemente à habitação, infraestruturas necessárias e níveis de proximidade dos serviços que contribuam para fixação das pessoas nos seus locais de habitação. A cidade é o grande palco cujos actores e artistas somos todos nós, por isso tem que ser vivenciada com criatividade pelos seus cidadãos com alegria e satisfação!
5-Luanda hoje é uma cidade engarrafada, e as soluções para a circulação e estacionamento das viaturas são esquecidas, quando os prédios cada vez mais altos invadem o centro da cidade. Nas sociedades modernas tirar automóveis do centro das mega-cidades transformou-se quase numa fobia. Porque é que cada vez mais continuamos a construir prédios altos e espelhados, e no que deviam ser parqueamentos, temos que colocar geradores enormes e grandes centrais de ar-condicionado, com todos os nefastos efeitos ambientais decorrentes?
André - O erro, salvo melhor opinião, não estará nos edifícios altos, desde que controlados os níveis de impermeabilização do solo pelo excesso de betão ou de asfalto. Uma cidade sufocada por habitações degradadas, com um núcleo urbano tão pequeno como o de Luanda, tem que gerir e rentabilizar da melhor forma possível, o espaço que possui. Daí que a construção em altura seja naturalmente recomendável sem descurar a qualidade estética e projectual da sua edificação. Só que este pensamento deve, concomitantemente, propicar como política de Estado, a circulação pedonal - enquanto acto de socialização e de saúde pública - zonas verdes na envolvente do edificado em altura, para contrapor os efeitos da incidência solar sobre o betão, gerador de ondas de calor que contribuem para o aquecimento global da cidade.
Finalmente, parece-me sensato e recomendável, um maior rigor na aplicabilidade da lei que obriga a criação de estacionamento subterrâneo ou em altura no edifício (nalguns casos vem sendo feito), como princípio conceptual do próprio projecto, o que permitirá libertar a cidade dos actuais níveis de tráfego, gerando espaços que previlegiem o ser humano e a humanização da sociedade.
6- Na ausência de um Plano Director Municipal, de Planos de Pormenor, de zonas classificadas, de uma catalogação recente de Monumentos Nacionais ou Imóveis de Interesse Local, e outra legislação, que instrumento tem sido usado para a contínua descaracterização da cidade, algo que já vinha do tempo colonial e que o actual “boom” económico só veio a evidenciar de forma negativa?
André - O Governo criou um instrumento (IPGUL) que, repensado, transformar-se-á num instrumento essencial à cidade e à Província. Entretanto, a opção tem sido o recurso aos planos de urbanização, como aconteceu agora com os bairros do Sambizanga, Bairro Operário e Cazenga, com soluções integradas no sistema viário para garantir maiores níveis de mobilidade urbana. Esta acção permitirá manter algum nível de controlo sobre o processo evolutivo da cidade, recenseando cidadãos, integrando zonas degradadas no espaço urbano, tirar cidadãos da clandestinidade conferindo-lhes cidadania, levar espaços e praças verdes como alimento à sede inesgotável de comunicção (que persiste como cultura nos musseques), controlar e combater o desemprego, a criminalidade, apostar na segurança e no incentivo a ciência e tecnologia através da vulgarização da internet garantindo assim conhecimento, cultura e qualidade de vida.
Por outro lado, far-se-á, de forma equilibrada, o aproveitamento de um espaço ímpar (musseques) para o crescimento e dignificação do cidadão e da cidade.
7-Não seria oportuno que se criasse com carácter de urgência para Luanda, algo do tipo “Sociedade de Reabilitação Urbana”, de forma a fazer rápido o que qualquer cidade tem que ter para se tornar local de vida e não um lugar de sobrevivência?
André- Em minha opinião, os movimentos cívicos são sempre muito importantes, pois dão-nos não só a percepção da real massa crítica da sociedade, mas também a possibilidade de melhor nos percebermos das opções dos cidadãos na procura da satisfação das suas necessidades. E neste particular, considero o exercício democrático da adopção do conceito da gestão particpativa das cidades, uma solução aplicável conduzindo a bons resultados na medida em que os cidadãos tomam contacto com as grandes acções a que o Estado se propõe, podendo contribuir, de forma positiva, para o enriquecimento da vida e da funcionalidade da sua comuna, município ou cidade, reforçando em definitivo o sentido de cidadania e o espírito democrático que subjaz à postura do Estado.
8-É ainda possível construir uma cidade com transportes públicos a funcionar, um equipamento escolar e de saúde acessível a um conjunto significativo de cidadãos, parques onde simultaneamente se estimulasse o convívio e o lazer dos moradores, estabelecimentos comerciais, serviços públicos, em síntese, algo que do tipo do que foi dito na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2000 que diz:” A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anónimos”?
André- Sem dúvida. Nós temos no País velhas vilas coloniais a que chamamos cidades. Em minha opinião, precisamos/devemos intervir com planos estratégicos de desenvolvimento, aproveitando o facto de as nossas cidades se terem desenvolvido muito pouco, para gerar um novo conceito "de cidade", consubstanciado numa educação que tenha como base a ciência e a tecnologia, a cultura, a promoção e defesa do meio ambiente, através da preservação da pujante natureza de que somos portadores, atendendo à transversalidade desta matéria. É igualmente importante fomentar a criações de novos postos de trabalho como factor de fixação dos cidadãos nos seus locais de habitação, assim como a mobilidade, a segurança, o bem-estar social e a circulação pedonal que torna permeável a socialização.
9- Porque isto é uma entrevista “sem rede”, em que o AM se disponibilizou a responder a tudo, posso perguntar-lhe que sentiu um arquitecto quando deitaram abaixo o Palácio D. Ana Joaquina, os Coqueiros, o mercado do Kinaxixe ou ainda mais recentemente a emblemática estação de Caminho de Ferro da Catumbela?
André - Angola deve corporizar à imagem da sua história construtiva com obras notáveis realizadas pelos seus filhos, incluindo as peças emblemáticas deixadas pelos seus colonizadores, cuja história não se apaga naturalmente. Mas não se pode negar à Nação, o direito de definir o que, sob o ponto de vista histórico, arquitectónico e estético, deve ou não permanecer nos seus principais centros urbanos, como elementos referenciais da sua história construtiva, particularmente quando o conjunto de memórias pertence apenas a uma ou duas gerações específicas.
A história deste Estado Novo e Democrático que vem ganhando corpo, não pode ser feita apenas com o rosto da tortura, da escravatura, das dores acumuladas pelas humilhações de que foram vítimas os nossos ancestrais durante vários séculos, relatos de derrotas e imagens do pensador. Enquanto Nação, temos uma história gloriosa e ela deve estar patente nas formas físicas da cidade incluindo na estatuária. Este é o meu tempo e como cidadão e arquitecto, recuso-me a adoptar uma cultura de contemplação relativamente ao que, ousadamente, as outras gerações nos legaram. É preciso reivindicar o direito e o espaço que o tempo nos confere, para deixar marcas da minha e nossa geração no território, fazendo história!
10- O que sente o arquitecto, quando vemos o Dondo, Massangano, Cambambe e outros centros históricos, monumentos e sítios a degradarem-se de tal forma que torna irreversível o seu talvez desejável desaparecimento?
André - É uma questão de sensibilidade extensiva a todos os cidadãos independentemente das suas qualificações, visto que o património diz respeito a todos nós. Mas, por outro lado, é preciso não generalizar a ideia segundo a qual o edificado torna-se património apenas porque é antigo e nunca como parte integrante e indissociável das nossas memórias. No caso em apreço, que se traduz num detalhe gritante e apelativo a todos, é preciso que as instituiçoes a quem o Governo atribuiu responsabilidades, proponham planos e programas de revitalização histórica, planos suficientemente sustentáveis, de salvaguarda do património, para que sejam convincentes e se tornem objecto de orçamentos direccionados para a preservação da história física da cidade.
11- O ensino da arquitectura em Angola desde a fundação da primeira faculdade no fim dos anos setenta tem permitido aumentar a qualidade dos formados pelo que perguntaria se tem sido simultaneamente dadas condições aos docentes para potenciarem novas experiencias adequadas à realidade angolana em transformação nestes trinta anos de “mobilidade politica, ideológica e económica”?
André- Mais do falar mal da escuridão é preciso acender uma vela.
Por questões deontológicas não quero, não devo, nem posso pôr em causa o esforço notável dos meus colegas que se dedicam actualmente, ao ensino da arquitectura. Mas sinto cada vez mais necessária e imperiosa a criação de dispositivos de suporte e de apoio ao trabalho que estas instituições de classe realizam de modo a que tragam para as faculdades de arquitectura - pela interacção que ela gera com o cidadão - mais-valias que se traduzam em apostas claras na ciência e tecnologia, através de protocolos de intercâmbio com as grandes faculdades do mundo.
Só assim será possível trazer a Angola pessoas para vivenciarem o pensamento novo gerado pelos aquitectos angolanos, fazendo das nossas cidades referências de tal grandeza, que mais ninguém saia de Angola e se deslumbre com Paris, o Rio, ou Roma.
12-Qual é a posição do arquitecto angolano, quando vê implantar num local da cidade um edifício igualzinho a outro que existe noutra qualquer latitude do mundo, e vê serem pagas fortunas por um projecto que não passa de uma fraudulenta fotocópia a uns arquitectos estrangeiros pouco escrupulosos?
André Mingas - Como deve imaginar, é dolorosa esta constatação, mas não se pode responsabilizar tão-somente o Governo. Neste caso concreto, a ordem dos Arquitectos terá que intervir propondo critérios que contribuam acima de tudo para a valorização e estímulo do trabalho dos arquitectos angolanos. Mas como deve imaginar é extremamente difícil gerir uma cidade onde noventa por cento dos cidadãos se considera arquitecto, produzindo, por iniciativa própria, alterações nas suas habitações, desactualizando o cadastro da cidade, gerando uma desestruturação generalizada do bairro e da cidade de um modo geral. A responsabilidade recai naturalmente sob quem aceita e aprova estes projectos, não reage, concede licenças e não pune!
13- Vamos sair de Luanda e vamos ao Lobito, Benguela, Namibe, Lubango e Huambo, onde talvez seja possível fazer alguma coisa, já que a voracidade do cifrão ainda não é tão acentuada!
André- Luanda e Benguela são hoje os maiores centros de emprego do País e é justificável que as pessoas procurem as cidades do litoral num esforço de sobrevivência. A viragem para o interior através da criação de polos regionais de desenvolvimento, com apostas claras, por exemplo, na agricultura, indústria extractiva quer de minérios, quer de produtos pesqueiros e materiais de construção, pode constituir um fantástico gerador de emprego, suficientemente atractivo para provocar o boom do desanuviamento de Luanda na busca de melhores condições de vida. Estes factores, aliados a serviços como a saúde pública, a educação, a preservação ambiental, a identidade e as culturas regionais, pesarão bastante nas opções de deslocação para a capital.
14- Qual o papel do arquitecto na Angola do futuro?
André - Pensar o País e perspectivá-lo como uma Nação que se comprometa com o futuro, pensando e projectando para lá do edifício sem se deixar afectar pelo imediatismo. Tendo como base a riqueza da versatilidade da sua formação, os arquitectos e urbanistas angolanos de hoje e do futuro são uma classe potencialmente privilegiada, porquanto são profissionais que têm pela frente um País fantástico, sedento de acções que o dignifiquem, "abençoado por Deus", de beleza inegável, inexplorado e com esta grandeza espacial, que se constitui num incomensurável mundo de oportunidades para idealizar verdadeiros sonhos de cidades e centralidades.
É fundamental interiorizar a ideia segundo a qual, o projecto de arquitectura, mais do que uma obra, tem de ser gerador de uma nova cultura estética, construtiva de base identitária, assente nos valores da cultura local, à qual tem que estar subjacente, um compromisso claro com o futuro e a contemporaneidade, a bem do cidadão, das cidades e da Nação Angolana!
Entrevista feita por Fernando Pereira a André Rodrigues Mingas Junior em 6-02-2011
Neste dia triste em que morreu uma voz que em vida nunca se calou pelo melhor para Angola!
7 de outubro de 2011
DE MAO A PIAO / Ágora / Novo Jornal nº 194/ Luanda 7-10-2011
Quando cheguei aos cinquenta e cinco comecei a dar-me conta que não terei tantos cacimbos como os que já tive e dificilmente tornarei a ter tempos tão bons, por mais estabilidade que tenha na minha vida pessoal, profissional, e situação económico.
"Se há coisa de que tenho pena é o cinismo que traz a idade. Tenho saudades do tempo em que acreditava que tudo era possível, que podia mudar o mundo, que não havia limites para o meu engenho e perseverança. Ganha-se em maturidade o que se perde em sonho".
Mudando de assunto, porque não é absolutamente nada importante estar a fazer exercício catártico, acabei de me lembrar que faz este mês trinta e cinco anos que morreu Rex Stout, o criador do Nero Wolf, detective obeso, amante das orquídeas e da boa mesa e que na obra completa editada pela saudosa “Colecção Vampiro” , apenas saiu de casa uma vez num total de quarenta e seis livros. Sem acabar por ser o meu herói, esse é mesmo Philip Marlowe de Raymond Chandler, o Nero Wolf e o seu ajudante Archie Goodwin eram os que me ajudavam a descobrir prazeres, hoje corriqueiramente designados de gourmet, no meio de absurdos enredos policiais. Era um Sherlok Holmes com mais requinte e menos cabotino na acção.
Em Setembro comemorou-se o trigésimo quinto aniversário do falecimento de Mao Tsé-Tung, provavelmente a figura política mais controversa e “omitica” de todo o século XX.
Aqui há uns anos fiquei entusiasmado com a leitura dos “Cisnes Selvagens”, de Jung Chang, uma professora doutorada no Reino Unido em York em 1982, depois de um percurso que passou desde guarda vermelha, agricultora, metalúrgica e electricista, tendo estudado inglês o que lhe valeu tornar-se leitora assistente na Universidade de Sichuan.
Há cerca de quatro anos, num fôlego li um “tijolo” de oitocentas e cinquenta páginas do livro “Mao, a História Desconhecida” de Jung Chang em colaboração com o seu marido Jon Halliday, especialista na história da União Soviética. Este livro é uma pungente descrição do que foi a ascensão do Maoismo na China, em que autora viveu, conviveu, partilhou e apoiou muitas das situações que hoje parecem-se no mínimo do domínio de um quase estado de catatonia colectiva.
Nunca partilhei ideias maoistas, mesmo num tempo em que começaram a ser moda em universidades na Europa nos anos sessenta e setenta, um pouco para combater algum imobilismo em que tinha caído o movimento comunista internacional após as sucessivas subidas ao poder de Krutschev e Brejnev na União Soviética. O “aburguesamento” e a “burocracia” eram as acusações que o maoísmo fazia ao período post-Staline em relação aos partidos comunistas alinhados com o PCUS.
Este livro é uma história terrível de um mundo que urge ser expurgado de determinadas mentalidades que não permitam desmandos que a coberto de uma “revolução cultural” se desprezaram valores caros ao marxismo e à construção de uma mentalidade de homem solidário e participativo numa sociedade onde as diferenças de classes se esbatessem.
Mao foi um sátrapa, e é assim que a história tem que ser reescrita.
Para não ser tudo mau conto-vos a história de um quadro dirigente angolano numa visita à China num contexto de uma visita de “Amizade e Estado”. Iam num comboio visitar uma cidade onde havia um centro siderúrgico importante, e depois de algumas horas de viagem, o homem diz: “Estes tipos ainda falam mal de nós, há duas horas que só vejo capim”; Escusado será dizer que estava a falar de campos de trigo! Quando se começou a aproximar da cidade, que me deslembro o nome, e era de noite, virou-se para o resto da comitiva e disse: “Uma cidade como o Uije”.; A cidade tinha uma população de setecentos mil habitantes e era só um dos maiores centros de industria pesada do País. Nalguns detalhes somos inultrapassáveis.
Sem querer alimentar discussão estéril, começo a achar que o José Agualusa usa a questão da poesia do Agostinho Neto como marketing, pois faz coincidir esta polémica normalmente quando tem um novo livro para apresentar. Tem sido recorrente nos últimos tempos isso acontecer, mas acho que é completamente desnecessário esse recurso já que escreve magnificamente e tem um publico fiel que o aprecia, onde me incluo. Li “A educação sentimental dos pássaros”, um conjunto de onze contos, e apesar de não ter sido o melhor “Agualusa” é um livro interessante que destoa positivamente da vulgaridade. Desprecisa mesmo de procurar chamar a atenção com outras coisas. Basta escrever!
Fernando Pereira
4-9-2011
1 de outubro de 2011
A MINHA MANIFESTAÇÃO É MAIOR QUE A TUA!/ Ágora / Novo Jornal nº 193 / Luanda / 30-9-2011
Guardo propositadamente o tema do título para o final e entretanto vou-me entretendo com outras efemérides.
Há quarenta anos a prestigiada editora francesa “Le Chant du Monde” publica um dos discos marcantes da música brasileira de intervenção: “Brésil Sertão & Favelas”, na bela voz da quase esquecida Zélia Barbosa.
O disco tem músicas que se tornaram iconográficas no contexto de luta contra as ditaduras que polvilhavam a América do Sul e Central, África e europeias no dealbar dos anos setenta, num mundo em que o que é a globalização chamava-se então imperialismo. Léxico diferente para os mesmos resultados, num ano em que se comemora o quinquagésimo aniversário do assassinato de Patrice Lumumba, defensor de uma África onde riqueza fosse distribuída pelos seus povos.
Voltando ao disco, onde estão canções como “A canção da terra”, “Funeral do Lavrador”, “Pau da Arara”, retenho os versos da “Cicatriz” : "Pobre não é um/pobre é mais de dois,/ muito mais de três./E vai por ai e vejam só: Deus dando a paisagem/metade do céu já é meu/Pobre nunca teve gosto ;/ a tristeza é a sua cicatriz./Reparem bem que só de vez em quando/pobre é feliz"...
Por muito disto é que despercebo porque é que o reino dos céus é para os pobres. Não seria melhor repartirmos e o reino da terra e dos céus e tudo ser para todos por igual? Porque é que há-de haver privilegiados no Eden?
Vários autores anunciaram a saída de vários discos em Luanda, e não sei se a propósito lembro-me de um episódio ocorrido nas páginas de um jornal de efémera existência, o “Página Um”! José Jorge Letria é um talentoso poeta, excelente músico e dinâmico activista cultural, mas com a voz que de canora tinha pouco. Era pejorativamente alcunhado pelo “Bardo” numa associação ao cantor Assurancetourix, trovador da aldeia gaulesa de Astérix, a intemporal BD de Goscinny e Uderzo.
Quando anunciou que ia sair com novo disco o comentário do articulista de música foi “Chiça, mais um?”. Letria indignou-se e exigiu o direito de resposta, argumentando que já tinha uma vasta obra de dez títulos publicados, etc., ao que o articulista colocou em nota de rodapé: “Por causa exactamente disso é que te pedimos insistentemente que pares”. Tenho ideia que JJ Letria nunca mais gravou nenhum disco e dedicou-se apenas à poesia e ao conto, onde de facto é excelente. Acautelem-se pois os que prometem novos discos, porque alguns já nos andam a azucrinar os ouvidos há décadas, e pode haver quem dê voz ao “atentado”
Falou-se de gente que foi fazendo coisas bonitas e conseguiram ser coerentes com a beleza das coisas que produziam. Houve outros que fizeram coisas bonitas, fizeram sonhar milhões de crianças ao longo de muitas gerações, mas que se revelaram no seu comportamento político e cívico como autênticos biltres, para não ser mais incisivo e poder escorregar para o destempero da linguagem.
Faz cem anos que nasceu Walt Disney, o criador do Mickey Mouse, do Pato Donald e uma miríade de figuras da banda desenhada que correu o mundo ao mesmo ritmo que a Coca-cola, General Motors e a omnipresença americana se espalhava pelo mundo no pós-guerra.
Disney foi uma figura incontornável de um universo de sonho, contudo não deixou de se enredar na lama quando passou a ser colaborador do MacCartismo através de uma sórdida organização: "Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses", que arruinou carreiras e vidas de actores, realizadores, fotógrafos, argumentistas, escritores, um conjunto enorme de intelectuais que foram banidos por simples menção a um eventual alinhamento de algo que tivesse a ver com ideias de esquerda. Um homem que teve tudo para ser uma lenda e pelo seu anti-comunismo associado aos seus traumas de infância, acabou por se juntar à baixaria que promoveu uma época de terror na intelectualidade estadounidense.
Depois não digam que não falei das manifestações em Luanda. Basta ver o título!27-9-2011
23 de setembro de 2011
Chato do Xissa! / Ágora/ Novo Jornal nº192 - Luanda 23-9-2011
Dessei se esta história é inventada mas a realidade é que faz parte das muitas que ia havendo entre os quadros da administração colonial colocados nos recônditos lugares da colónia de Angola nos anos que precederam a 2ª Guerra Mundial.
Contou-me um antigo administrador de Massango, Forte Republica, distante 155km de Kalandula, sede de administração, que os jornais e cartas de Luanda demoravam cerca de quinze dias a um mês a chegar-lhe à mão o que os obrigava a ler entusiasmados notícias que em princípio teriam tido desenvolvimentos, apesar de o tempo então correr devagar.
Ele dava-se por muito feliz em relação a outros, como por exemplo o administrador de Cahungula, sede da circunscrição de Camaxilo. Porque o administrador já estava meio contaminado com o isolamento, e vivia com a esposa, a sogra e dois filhos pequenos, teve uma ideia que pôs em prática e que foi a seguinte: para ter a impressão que vivia em Lisboa, todos os dias à noite, entregava um exemplar dos jornais diários de Luanda, que recebia em maços a um cipaio, e este logo de manhã cedo, passando por baixo da janela do quarto do administrador, todos os dias anunciava: “Olha o diário; Quem quer o diário!”.O administrador abria a janela e dizia:”Oh rapaz dá-me o Diário de Luanda." O cipaio entregava-lhe o jornal, o administrador entregava-lhe a respectiva moeda e fechava a janela. O cipaio ia para a administração, punha o dinheiro do jornal na secretária, para o voltar a receber no dia seguinte pelo mesmo trabalho. O administrador do concelho lia o jornal na cama como se estivesse em Lisboa, depois levantava-se e ia para a administração. Nada era mais inventivo de que esta cena teatral autêntica.
Na província de Malange, na região da Baixa do Cassange, no posto de Xissa há uma campa na berma da estrada, com um ar abandonado onde está sepultado um dos mais famosos “salteadores” portugueses do século XIX. O verdadeiro Robin Hood português, já que roubava aos ricos para distribuir pelos muitos pobres, o famoso Zé do Telhado (1816-1875), José de Matos, alcunhado de Telhado porque era o único numa aldeia minhota que tinha a casa com telha ao contrário de todas as outras que eram cobertas com colmo. O seu bando saqueou anos a fio casas de nobres e burguesas da província portuguesa do Minho, e todo o espólio do roubo era distribuído pelos mais necessitados para tentar mitigar a fome que grassava, o que lhe granjeou enorme popularidade e respeito entre as populações do norte de Portugal.
Acabou preso e privou na prisão da relação do Porto com o sublime escritor português Camilo Castelo Branco, preso por paixões improváveis e simultaneamente possíveis, que inspiraram argumentos ao cinema português ao longo dos anos.
Enviado para Angola, local de eleição dos presidiários portugueses até ao primeiro consulado de Norton de Matos, Zé do Telhado evade-se da prisão com a conivência das autoridades e fixa-se na Baixa do Cassange, dedica-se à agricultura e morre serenamente em 1875, com o respeito das populações locais que mantém a sua campa, com telhado, sempre limpa e arranjada. A guerra obrigou as pessoas a abandonarem a região e a campa acabou por se ir deteriorando.
José do Telhado é tema de filmes, romances, novelas, canções, peças de teatro e também homenagens diversas na zona onde teve actividade, elevando-o a uma figura mítica e referenciada no contexto dos portugueses notáveis, o que de certa forma não deixa de ser bizarro.
Em Malanje, brincava-se com o assunto, pois dizia-se que a campa do Zé do Telhado, ficava em Xissa que ainda por cima tinha um chefe de posto Chato. De facto o chefe de Posto de Xissa era Tobias de Sousa Chato, um homem que percorreu muitas terras na província de Malange e que para além da invulgaridade do apelido, destacou-se na defesa intransigente da Palanca Negra, movendo uma verdadeira cruzada contra caçadores furtivos e guardando dia e noite as crias contra ataques de outros animais ou de homens ávidos de lucro e da vã glória de predador.
Num dia em 1949 o governador de Angola, Comandante Lopes Alves, resolveu visitar a então província de Malange. Angola ao tempo estava administrativamente dividida em províncias, estas em concelhos e circunscrições, e estas últimas em postos administrativos.
Mas voltando àquele dia, o dito governador pretendeu contactar todas as autoridades administrativas, através dos aparelhos sem fios P19, como eram conhecidos. Através do operador do rádio foi ouvida uma voz que entrando em antena disse:”Daqui fala o Chato do Xissa passo à escuta”. O Governador mandou logo suspender as comunicações e quis explicações que eram afinal simples: o chefe do Posto chamava-se Tobias de Sousa Chato e o posto onde estava colocado era o posto do Xissa. Logo ali o Governador sentenciou: Isto não pode ser, ou se transfere o chefe, ou se muda o nome ao posto. O mais fácil foi alterar a toponímia do posto que por Portaria publicada no Boletim Oficial passou a denominar-se de Mucari, nome que ainda hoje conserva.
Agradeço algumas dicas ao mais velho António Ferreira Alves, um homem que percorreu todos os lugares na então administração ultramarina em Angola desde 1949, que era um deleite ouvi-lo.
Fernando Pereira
20/09/11
17 de setembro de 2011
Minhas coisas, palavras de outros!/ ágora/ Novo Jornal nº191/ Luanda 16-9-2011
Flaubert, um persistente estudioso da estupidez humana, concluiu ao cabo de anos de aturada investigação: "Estupidez, egoísmo e boa saúde são as três condições da felicidade; se bem que, faltando a estupidez, tudo estará perdido."
“Os dois Cês do momento - Caciquismo e Carreirismo:
1ºCê: Caciquismo
O Imperador logo de manhãzinha arrastava a figura de dinossauro e dava bons dias a si mesmo diante dos espelhos.
Perguntava: Espelho, fiel espelho, onde é que neste reino houve alguém que desafiasse o tempo como eu?
Jamais, Senhor, jamais. A vida regrada, o saber e a palavra tornam o homem Imortal, respondiam os espelhos ensinados”.
José Cardoso Pires, Dinossauro Excelentíssimo, Bertrand, Lisboa-1972 (pag. 74)
2ºCê: Carreirismo
“Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do Senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chaufeur fardado. Era director Geral das Polícias. Seu pai teve um enfarte”. – Página 19 das Contas de Gin Tónic de Mário Henrique Leiria.
Porque hoje estou com duvidoso discernimento para falar de muita coisa que ocorre ou ocorrerá, e ao mesmo tempo falta-me motivação e palavras. Há momentos assim quando se aproxima o dia em que temos que entregar a crónica, e por muito que tente nada flui com a necessidade de me fazer entender perante os poucos que me vão lendo, onde naturalmente tenho os meus detractores de estimação com assídua e aturada presença.
Li um livro que saiu editado pela Leya da jovem jornalista portuguesa Rita Garcia, “S.O.S. Angola, os dias da Ponte Aérea”, e sinceramente a única coisa que me moveu para o acabar foi a certeza de vos poder dizer com toda a frontalidade, evitem-no .
Paupérrimo na abordagem, nada diferente dos livros que “enxamearam” os quiosques lisboetas no fim dos anos setenta, e que invariavelmente acabaram guilhotinados porque nem quase de borla as pessoas se arriscavam a adquirir. Rita Garcia, pode vir a fazer melhor, mas julgo que se o quiser, terá que procurar melhores interlocutores porque a maioria dos que ali foram citados só empobrecem qualquer argumento, tendo em conta o “lixo” que em tempos publicaram.
Fico a aguardar o último livro do português António Lobo Antunes, que julgo estar a sair e o tema tem a ver com o MPLA e a guerra colonial, e ainda um outro de contos do luso-angolano-brasileiro José Agualusa, que resolveu recentemente voltar à liça com uns despropositados dislates, que nada tem a ver com os seus interessantes trabalhos literários, que aprecio.
“1948: O meu pai foi às finanças fazer um requerimento, e como de costume fez questão de que eu o acompanhasse.
Para “aprender a vida”
Em casa explicou-me minuciosamente a fórmula e o motivo do requerimento. No fim meteu dentro da folha uma nota de cinquenta escudos, e disse-me: “Esta é a parte mágica da fórmula. Quando tiveres um pedido a fazer, já sabes, o segredo é este.
Passados uns meses enviei a minha primeira declaração de amor, e como 50 escudos era para as minhas posses, juntei uma moedinha de vinte e cinco tostões. Nunca tive resposta, decerto foi por ser tão pouco”. In Alberto Pimenta/ Repetição do Caos – Edições & Etc.
Hoje foi assim porque nem sempre estou assim, raras vezes sou assim!
Fernando Pereira 12/9/2011
JOGOS DA ÀFRICA CENTRAL, UM MODO DE TER ESTADO!/ Novo Jornal nº 191/ Luanda 16/9/2011
“Dentro de momentos, num acto pleno de significado, o Presidente da Republica Popular de Angola, declarará solenemente abertos os IIºs Jogos da África Central, manifestação que representa o vértice da actividade da Zona de Desenvolvimento Desportivo nº4 do Conselho Superior dos Desportos de África.
A realização destes jogos em Angola não acontece por acaso, nem é fachada vistosa que utilizamos para esconder as debilidades dum desporto sem princípios, sem organização e sem praticantes. E nem persegue sequer outros objectivos do que aqueles e bem generosos eles são que norteiam as relações desportivas internacionais, particularmente entre os Países do nosso continente”
Há trinta anos, 20 de Agosto de 1981, Ruy Alberto Vieira Dias Mingas, ao tempo Secretário de Estado de Educação Física e Desportos, e Presidente em exercício da Zona 4 do Conselho Superior dos Desportos de África, com estas palavras inicia o discurso de abertura da maior manifestação desportiva que há memória no País.
A realização dos 2ºs Jogos da África Central surge em Angola cinco anos depois dos primeiros em 1976 em Liberville, onde a então R. P. Angola participou como convidada.
Angola candidata-se em 1979, já com a equipa liderada por Ruy Mingas na ex-SEEFD a organizar em Angola os Jogos da África Central e simultaneamente a RPA fica com a sede da 4ª Zona de Desenvolvimento desportivo em África. Era secretário geral, o saudoso Fernando Matos Fernandes acolitado por um “espalhafatoso” André Milton Kilandamoko, controversa figura que em 1992 concorreu à Presidência da Republica de Angola e instado a responder pelo desvio de umas dezenas de milhares de dólares no Secretariado da Zona 4, respondeu com o seu proverbial à vontade: “ Os angolanos nunca conseguiram crescer e passar daqui, quando numa hora importante como esta se preocupam com miudezas”.
Logo que se teve conhecimento que seria Angola a organizar os jogos, mobilizaram-se vontades, motivaram-se pessoas e entusiasmaram-se os agentes desportivos e políticos de uma Republica Popular de Angola imberbe em termos de organização, mas excessivamente voluntariosa no querer participar em prol de conquistas políticas então alcançadas.
Simultaneamente começaram a fazer-se os planos mais hiperbolizantes para os jogos, algo recorrente nas organizações de eventos desportivos recentes em Angola.
Luanda, Benguela, Lubango e Huambo seriam os locais onde se iriam realizar os jogos, numa primeira triagem depois de se ter conseguido convencer os delegados provinciais de outras províncias que não haveria lá jogos, mas talvez jogos de preparação ou estágios de selecções pudessem por lá acontecer. As promessas inerentes às circunstancias!
As propostas de reabilitação de complexos desportivos, de infra-estruturas aeroportuárias, hoteleiras e urbanas eram de uma dimensão de tal forma empolada que para ser tudo levado a bom termo exigia-se que tudo tivesse começado no mínimo dois anos antes.
Piscinas novas ou reequipadas, campos de futebol relvados, pavilhões, centros de estágio, hotéis, edifícios públicos, tudo seria objecto de requalificação ou construção de raiz.
Com a aproximação da data dos jogos, muitas das propostas foram caindo e aí o Ruy Mingas e os seus próximos passaram a decidir com o argumento dos factos e do calendário, embora o seu dinamismo e a sua capacidade de mobilização e entusiasmo nos motivassem a todos, obrigando-nos a superar problemas que em determinadas circunstâncias pareciam-nos irresolúveis.
Algo que muita gente não sabe é que os jogos estavam para se realizar de 20 de Julho a 3 de Agosto de 1981, e o Ruy Mingas num dos últimos dias de Janeiro reúne-nos, depois de uma reunião do conselho de ministros e comunica-nos a decisão de adiar o início dos jogos um mês. Saíram da reunião vários grupos que visitaram todos os Países envolvidos e que entregariam a carta aos titulares dos cargos reitores do desporto com os argumentos ponderáveis para a alteração do evento, que não levantou o menor obstáculo por parte de ninguém. Não se deslocou ninguém ao Tchad, que ao tempo vivia uma guerra civil entre as forças partidárias de Hissène Habré e do presidente Goukouni Oueddei.
A realidade é que apesar do ciclópico trabalho e à medida que o dia se aproximava sentia-se que os jogos iriam ser um êxito, como realmente foram mesmo, por muito que se tente omitir esse facto.
A determinada altura descartou-se o Lubango e Benguela como locais dos jogos, perante o desalento do dinâmico delegado desta província, Victor Geovetti Barros.
Restou Luanda, onde em oito dias teve que se mudar o terceiro tartan da Cidadela, e o Huambo, que apresentava problemas de segurança complicados, como se observou no decorrer de estágios de preparação de diferentes selecções de Angola, como basquetebol (masculino e feminino), futebol e boxe, a maioria das quais alojadas no antigo Hotel Mondego, transformado em Casa do Desportista, junto ao Bairro de S. João.
Alojar, arranjar a logística apropriada, apoio médico, transporte de mil e trezentas pessoas entre atletas, árbitros, dirigentes, etc. foi uma tarefa particularmente complicada num País que ao tempo vivia dificuldades enormes.
Mobilizar voluntários para quadros humanos, apoio a delegações, tradutores, Intérpretes, comissários de provas, secretariado, em suma um conjunto de gente que garantisse o normal funcionamento dos jogos e simultaneamente conseguisse manter níveis de organização aceitáveis para a realização do evento pôs à prova a capacidade de organização do País.
Ruy Mingas seria naturalmente o principal responsável por um eventual fracasso dos Jogos, na realidade como correram bem houve a normal partilha dos louros. A forma brilhante como geriu esses tempos nunca poderá ser obliterada, muitas vezes tendo que vir a terreiro apagar fogueiras que as circunstancialmente se ateavam aqui e ali, conseguindo unir as pessoas pelo afecto, pela confiança, pela identidade de pontos de vista e pela bonomia que colocava em todo o seu relacionamento connosco.
A sua equipa, onde com muita honra participei não pode ser esquecida nesta singela passagem destes trinta anos da realização dos 2ºs jogos da África Central. Sardinha de Castro, Helder Moura, Paulo Murias, José Martins, José Cohen, Franklim Dias, Espírito Santo, Raquel Grácio, os já desaparecidos Juca Figueiredo, Sande Lemos e Matos Fernandes, entre alguns outros que o tempo faz desmemoriar.
Quando o falecido Evaristo Domingos Kimba, na qualidade de comissário provincial de Luanda faz o seu discurso de boas vindas aos visitantes passa a contribuir com um novo léxico: “ Atletas e atletistas, bem vindos a Luanda”!
A Cidadela nesse dia 20 de Agosto de 1981 engalanou-se a preceito para receber os atletas do Burundi, Rwanda, S. Tomé e Principe, Gabão, a então Republica do Zaire, Republica Popular do Congo, Tchad, e Camarões. A Republica Centro-Africana não compareceu por razões políticas e económicas, e a Guiné Equatorial não deu qualquer justificação para a ausência.
Como não se conseguiu acabar o estádio fizeram-se intervenções interessantes que acabaram por não ser perceptíveis para os que encheram o Estádio nesse dia pouco soalheiro de Agosto.
O presidente José Eduardo dos Santos declarou abertos os jogos depois dos discursos de Ruy Mingas, Evaristo Kimba e da atleta Filomena Maurício ter ateado a tocha na pira situada num dos extremos do estádio. Convém recordar que o ministro centro-africano dos desportos Georges Petro—Koni-Zeze, presente na abertura dos jogos já estava demitido das suas funções por causa de um golpe de estado que decorria em simultâneo.
A cerimónia de abertura e encerramento dos jogos foram inesquecíveis pelo colorido emprestado pelas delegações, a garridice dos quadros humanos e a coreografia perfeitíssima de todos os executantes, mobilizados nas escolas de Luanda, e que tão boa conta deram de si.
Durante treze dias Luanda transfigurou-se com o bulício dos jogos, não só pelas actividades desportivas que “calcorrearam” as ruas da cidade, nomeadamente em modalidades como o ciclismo e o atletismo, na sua disciplina de maratona, como também no movimento de atletas entre locais de alojamento, jogos e treinos.
Desportivamente Angola ganhou apenas sete medalhas de ouro, muito longe dos Camarões que ganharam 28, o Congo com 9 e o Gabão com 8, mas a realidade é que fomos vencedores porque conseguimos organizar uns jogos de grande competitividade e com o elevado espírito organizativo que muito nos orgulha.
Angola foi muito grande, e convém recordar que em boxe foi medalha de ouro José Paulo Mohongo (48kg), Eduardo Candido (71 Kg), em Judo João Merino (71kg) e no atletismo o bis de Bernardo Manuel (5000 e 10.000m), António Reais no Martelo e José Ernesto na Maratona.
Um dos momentos de grande simbolismo retratado pelo Carlos Pinhão nas páginas da “Bola”, terá sido quando o antigo recordista “português” do salto em altura Ruy Mingas coloca a medalha de prata no peito do então recordista angolano Orlando Bonifácio. Bonitos e assertivos os textos do saudoso Carlos Pinhão na “Bola”!
Atletismo, Futebol, Andebol, Boxe, Ciclismo, Voleibol, Judo e Basquetebol foram as modalidades dos Jogos, com participação entusiasmada de atletas e com forte presença de público, que não queria perder pitada dos eventos desportivos e da componente cultural associada, que trouxe muitos artistas africanos de renome a Luanda.
Se tinha que se fazer um esforço enorme para arranjar locais para disputa dos jogos, as dificuldades eram acrescidas para os treinos das equipas. Acrescente-se a tudo isto a disparidade horária das refeições, os transportes das equipas na cidade e o alojamento disperso por vários locais, para além de se salvaguardarem as condições dos árbitros, técnicos, médicos, dirigentes federativos e governamentais, dirigentes de confederações internacionais de diferentes modalidades, jornalistas e gente da imprensa. Admita-se que tudo conseguiu correr quase na perfeição, o que era completamente impossível de prever quinze dias antes, em que a placa do aeroporto 4 de Fevereiro parecia um acampamento com o descarregar de material diverso, alimentação, atoalhados, equipamento desportivo, tudo o que se achava que seria importante para que os 2ºs Jogos da África Central corressem bem.
O que acabou por ensombrar os jogos, nada teve a ver com a sua organização. A 23 de Agosto de 1981 a Republica Popular de Angola é invadida pelas tropas da África do Sul na sua fronteira com a Namíbia, ocupando 250km para o interior do País. Foi a ofensiva que acaba por marcar de forma indelével o princípio do fim do apartheid, pois a partir desse dia a comunidade internacional endureceu de forma significativa a sua posição contra o regime racista sul-africano.
Desapetece-me fazer extrapolações que ultrapassem a razoabilidade, mas se há algo que não bate a “bota com a perdigota”, como dizem os portugueses, são as razões que levam um regime a endurecer a sua posição militar num momento em que a visibilidade sobre Angola era grande, pelo facto de se estarem a disputar jogos com muitos Países africanos, com muitos atletas prestigiados e com a presença de muito profissional da informação. Há muita coisa que se despercebe na política internacional, mas na realidade esta ofensiva militar neste momento parecia ilógica! Comentou-se que Angola saberia previamente dessa situação e marcou os jogos para essa altura, para recolher benefícios no campo da diplomacia. Foi um dos múltiplos cenários que se colocaram, e o que acabou por suceder foi que no domínio da visibilidade informativa interna e externa as atenções viraram-se naturalmente para esta afronta à soberania da então Republica Popular de Angola.
No discurso de encerramento dos jogos, Ruy Mingas: “No panorama desportivo Africano de hoje não pode passar em claro, nem deixar de ter um significado bem forte, o facto de 9 países da África Central se terem reunido numa vasta competição multidisciplinar, onde se aliaram a dimensão notável da própria realização, um nível desportivo de relevo em todas as modalidades, um clima de festa permanente que tornou mais transparentes os laços entre desporto e cultura e um ambiente de camaradagem e amizade que garantiu aos Jogos o selo de unidade sob o signo da qual eles foram promovidos” (3-09-2011).
Trinta anos depois, fica a mensagem que resume esses dias: “ Angola ganhou!”
Fernando Pereira
4-9-2011
8 de setembro de 2011
O TEMOR NÃO MORA AQUI / Ágora/ Novo Jornal 190/ Luanda 7-9-2011
No passado 29 de Agosto de 2011 comemorou cem anos Vo Nguyen Giap.
Poucos se terão lembrado disso, mas certamente lembram-se que Giap foi provavelmente o maior estratego militar da segunda metade do século XX. Obrigou a capitular os franceses na definitiva batalha de Dien Bien Phu (13/3/1954 - 7/5/1954) e conseguiu expulsar em condições dramáticas o exército americano de Sai
gão (Ho-Chi-Minh) em Abril de 1975, impondo aos americanos a primeira derrota militar da sua história, trauma ainda hoje evidente na sociedade americana.
Giap manteve-se até 1991 como ministro da defesa da Republica do Vietname, resignando ao cargo, mas mantendo-se um cidadão politicamente activo e respeitado por todo um povo, que nele reconhece valores de dedicação à causa do socialismo e à luta contra o colonialismo. Giap foi sempre muito discreto e a sua probidade era exultada pelos seus próprios adversários e inimigos, o que o transformou numa das enormes figuras do “Terceiro Mundo”.
Não copio os maoistas a desejar “Longa vida ao general Vo Nguyen Giap”, porque felizmente tem uma vida longa e o seu exemplo multiplica-se num mundo onde a luta de classes não passou para o “memorial da história”. É bom tê-lo entre nós!
A Líbia, sessenta anos depois é revisitada pelos mesmos protagonistas de El Alamein unidos numa pretensa “Operação Humanitária”. O Afrika Korps de Rommel em 1941 uniu-se às forças do marechal Montgmery e às bizarrices de Mussolini, para lutarem contra uma figura de opereta, Kadhafi, que já é ditador há décadas, e que só agora pelas razões mais cínicas, terão premeditado esta aliança espúria para o derrubar.
Não me surpreende que a Libia não tivesse armamento sofisticado, já que quando posta à prova a fanfarronice do seu leader, a resposta em termos militares foi sempre paupérrima; O maior argumento de Kadhafi é o pulmão, num jeito de “agarrem-me já senão desfaço-o”.
Não gosto de lideranças políticas assentes em pressupostos religiosos, e como sempre defendi a laicidade total dos estados, a separação entre igrejas e estado, o que me parece existir cada vez menos, principalmente quando os chefes vão sendo cada vez mais idosos e esperam que com essa união possam ter acesso às “mil virgens” ou ao reino dos céus ou à companhia de outras Isís, Vénus e quejandos. Justifica Woody Allen: “ Interessa-me o futuro porque é o lugar onde vou passar o resto da vida”.
Uma das situações que me surpreendem na Líbia é o facto de a guerra ser muito parecida com um Paris-Dakar com gente pendurada em veículos de todo-o-terreno, cheia de armamento ligeiro e a dispararem para qualquer lado à aproximação de qualquer câmara de TV.
Penso que á partida a grande vencedora da confrontação da Líbia é a Toyota, porque são emblemáticas as pick-ups que vão andando num afã de um lado para o outro, sem percebermos muito bem para que “lado é a guerra”. Vou continuar expectante para saber se a “varridela selectiva dos ditadores” vai alargar-se a prepotentes sultanatos, onde a mulher é aviltada nos mais elementares direitos humanos e de cidadania.
Porque estamos em tempos de efemérides, lembro-me de ouvir contar que há cinquenta anos, no dealbar da guerra de libertação em Angola, Salazar faz um daqueles discursos roufenhos e sensaborão, entrecortados com uns gritos imperceptíveis por parte dos seus apoiantes, sempre disponíveis a promover em todo o território manifestações patrioteiras de glorificação do “chefe supremo da nação”. Em Coimbra no edifício ocupado pela Legião Portuguesa, contíguo ao Governo Civil, onde se realizou uma “espontânea” manifestação, estava desfraldado uma enorme tarja que dizia:”Angola 1961, o temor não mora aqui!”; No edifício da frente, uma bela república de estudantes, os irreverentes moradores pegam numa tarja e com letras garrafais colocam na varanda: “Aqui também não”, o que provocou a ira dos apoiantes do regime, autoridades, PIDE e simultaneamente o gáudio e a hilaridade dos muitos que presenciaram a cena.
Ah, esquecia-me, havia um anúncio que dizia no fim dos anos sessenta: “E quando passa todos dizem: Toyotahuéee” !
Fernando Pereira
1-9-2011
RIQUINHO DE PORTUGAL! /O INTERIOR/ 7-9-2011
Desculpem o arrojo desta crónica, mas tantos a lixarem-me julgo ter direito a este devaneio, porque como diria Chaplin, “tenho a impressão que os homens estão perdendo o dom de rir”, ou mesmo do mesmo "Através do humor nós vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental”Hoje resolvi introduzir este tema!
Por falar em introduzir, hoje vou falar do paquete Infante D. Henrique, essa jóia da ex- Companhia Colonial de Navegação, onde viajei algumas vezes entre Lisboa e Luanda e ” versa ou vice”.
Para falar do paquete em causa, tenho de começar por falar do próprio Infante. O Henrique de Lencastre era filho do João e Filipa, que já nesse tempo era um nome da moda, e fazia parte da Ínclita Geração, e de facto era uma significativa parte da visão do que se tentava incutir na «raça» portuguesa ao longo dos séculos.
Essa tal ínclita geração tinha de tudo um pouco! Um gestor da treta que cavalgava em toda a sela, mas que se esquecia de deveres conjugais mínimos, que eram usurpados por outros cavaleiros e quiçá alguns pajens; Estou a falar do Duarte, depois um Pedro que era galfarro, e também enchia páginas da "Caras", e outras revistas mundanas ou “nundanas” do tempo, havia o Fernando, que levou na mona dos mouros em Ceuta, que virou santo, o que hoje seria fácil ao ritmo a que são feitas beatificações. Aqui uma certa semelhança com o F. C. Porto no tempo do fascismo, em que os clubes de Lisboa tudo ganhavam, com o beneplácito do regime. Roger Moore era Santo, porque atacava umas moças em filmes de alguma acção e beijoca a esmo.
Ainda havia duas infantas, que nunca entraram na dita ínclita geração, e devem ter sido sepultadas em Mouriscas do Vouga, pois não estão ao pé da “malta” na Batalha das Imperfeitas Capelas, ao pé de um infeliz, ou um conjunto de ossadas de uns infelizes, a quem em vida nunca perguntaram se porventura se importariam de ser soldado desconhecido, só para ser guardado toda a eternidade por infelizes conhecidos, com horário rígido copulado com um “faceas” esfíngico.
O quarto da Ínclita, já que eu a bem dizer ainda prefiro os quatro de Liverpool, era o Infante D. Henrique!
O Henriquinho de Lencastre era um tipo mal vestido, todo de negro, tipo anúncio da Sandeman, com uma tez de quem sofria da figadeira, com um bigode tipo anúncio da Gillett nos anos 60, complementado com um chapéu aparentemente com a aba muito ensebada. Ele lá corria as praias todas, com os cosmógrafos e compassos italianos na sua peugada, e era bom e bonito, o que eles faziam nas falésias de Sagres ou na” Meia Praia ao pé de Lagos”, como 500 anos depois cantava José Afonso.
Enquanto os italianos se entretinham com as cartas de marear, o Infante ia mareando nas faldas da Serra de Monchique, à procura de padrões de aspecto fálico para colocar em todas as possessões a achar, de forma a perpetuar em "Novos Mundos ao Mundo", também a sua ousada opção sexual, que a coberto da linhagem, possibilitava que a Igreja fosse permissiva” indulgendo” um pecaminoso nobre.
E eis que Portugal penetrava, pelos vistos por penetração também na epopeia dos achamentos.
E eu que ia falar do paquete “Infante D. Henrique”, que tinha um pianista que presumivelmente tocava melhor que o Bill Evans, mas havia gente que discordava, sem tampouco o terem ouvido numa dessas viagens de vice-versa!
Desculpem, esta linguagem homofóbica, mas calhou!
Fernando Pereira
1/9/2011
2 de setembro de 2011
CRÓNICA BREJEIRA / Ágora / Novo Jornal 189 / Luanda 2-9-2011
Sou um admirador confesso do Luis Pacheco.
Luis Pacheco (1925-2008) foi só o mais virtuoso provocador das letras portuguesas. Colaborador da revista angolana “Notícia” entre 1968 e 1973 brindou-nos com crónicas que são constantemente reeditadas em antologias diversas. Era um homem pouco atreito a regras e multiplicador de inimigos, corrosivo bastante para provocar iras e alimentava debates constantes, muitos publicados que já fazem parte do acervo literário português. Provocador indocumentado, muito poucos conseguia escapar ao gume das suas palavras.
Era recorrente não ter dinheiro e recorria aos amigos para lhe valerem nos seus cada vez mais curtos ciclos de aflição, que a determinada altura passaram a eternos; Costumava classificar os amigos em função de quanto lhe emprestavam: amigos de vinte escudos (muitos), de cinquenta (muitos ainda), cem (uns poucos), quinhentos (raros) e mil (um apenas, o nosso conhecido Manoel Vinhas).
Em determinada altura os amigos davam-lhe trabalhos de tradução para ajudar a minorar os seus eternos apertos financeiros. Numa ocasião, o tradutor Bruno da Ponte resolve entregar-lhe uma parte da versão francesa do “Dicionário Filosófico” de Voltaire, já que na circunstância os prazos eram curtos e sempre ajudava o Pacheco a ganhar algum. O Luis recebeu o dinheiro mas a tradução demorava a sair, mesmo por insistência do Bruno da Ponte que estava a ser pressionado pela Editorial Presença, pois precisava do livro para distribuição. Depois de muito esforço o Luis Pacheco numa noite sentou-se em frente à sua máquina de escrever, e sem nenhum dicionário de apoio “aviou” a tradução. Acontece que havia palavras e termos que desconhecia, e colocou-as a vermelho para posteriormente as emendar; As palavras a vermelho eram um chorrilho de asneiras do mais ordinário possível, em que as palavras “merda” e “puta” eram indiscutivelmente as mais brandas. Foi dormir e nunca mais se lembrou do assunto. De manhã telefonam-lhe pela enésima vez a solicitarem a tradução e pegou nela, foi ao Correio e mandou-a para Lisboa para o Bruno da Ponte, que sem ler a entregou ao editor e este sem rever enviou para a tipografia. Os tipógrafos tinham um princípio de nunca alterar uma linha ao que lhe era enviado, porque julgavam que todas as palavras a vermelho faziam parte do texto, tipo “coisa de intelectuais”, e o que fizeram foi colocá-las em itálico. A edição começou a ser feita e o Luis Pacheco, num rebate tardio de lembrança resolve sair das Caldas da Rainha, onde morava, e vem a Lisboa à pressa tentar travar a impressão, o que só foi possível em parte. A verdade é que os exemplares que existem dessa edição atingiram um preço proibitivo, porque quem a possui não se quer desfazer dela por nada. Convenhamos que o nome do Luis Pacheco não aparece, e o Bruno da Ponte ainda hoje diz ter passado a maior vergonha da vida.
Já que se fala em gafes recordo que nos anos sessenta o jornal portuense “Primeiro de Janeiro” mandou para a rua uma edição matinal em letras garrafais, na primeira página, que dizia “Publicadas as contas gerais do Estado”; O detalhe importante foi que a tipografia omitiu o “T” na palavra “contas” e o resultado ficou bem à vista em todos os quiosques e ardinas, até a edição ter sido toda recolhida, já que no jornal ninguém tinha previamente visto com cuidado a página principal.
Em Coimbra existe um vetusto jornal conhecido como o “Al Calinas”, uma derivação do célebre jornal egípcio “Al Aran”,o Diário de Coimbra, que de vez em quando brindava-nos com títulos deste tipo: “Octogenária de oitenta anos caiu do eléctrico e ficou contusa”ou “ Arma de dois anos fere gravemente criança de dois canos” ou “Faltou a luz no estádio da mesma”, e por aí fora.
Nunca nos haveremos de esquecer “das propriedades afro-asiáticas” de uma planta com propriedades afrodisíacas, como bem dizia uma jovem locutora da TPA, nos tempos em que esta era ainda Popular e não Publica e a caminhar para a Privada!
Acham por isso que alguém se surpreende pelo anedótico da revista portuguesa “Sábado” num recente artigo sobre Luanda. Brejeirice total!
Fernando Pereira
27/08/2011
MÁRIO PALMA: A SUSTENTÀVEL IDEIA DE VENCER / Novo Jornal / Luanda 2-9-2011
O Novo Jornal (NJ) deslocou-se a Coimbra para entrevistar Mário Palma, o mais titulado dos treinadores angolanos, que levou a selecção portuguesa pela segunda vez na história do basquetebol luso à fase final do campeonato da Europa de basquetebol, a disputar na Lituânia.
Esclareça-se que esta entrevista foi feita durante a primeira fase do campeonato africano de basquetebol a disputar em Madagáscar, e a pedido do entrevistado evitou-se que se fizesse qualquer referência à selecção angolana que defende o título.
NJ- Mário Palma recorda-se o título de 1980, que afinal foi o primeiro de 27 títulos conquistados em Angola, entre os quais seis campeonatos africanos seniores?
MP- Lembro-me perfeitamente desse campeonato africano de juniores em 1980 pelo entusiasmo de jogadores, técnicos, dirigentes e publico que permitiu que Angola conquistasse o seu primeiro campeonato continental, que foi um poderoso incentivo para colocar o basquetebol como a modalidade de maior visibilidade no País. Quem pode esquecer aquela final épica na Cidadela?
NJ- Regressa ao “1º de Agosto” num dos momentos piores do clube no contexto dos campeonatos de basquetebol. Admite que é um desafio com alguns contornos de risco?
MP- Quem anda em competição sabe que há momentos em que se ganha e momentos em que se perde; Faz parte do nosso quotidiano de treinador, e quando temos razões de sobra que o nosso trabalho é sério, é apoiado, é profissionalmente assumido com muitas certezas que ao longo da carreira se tornaram inabaláveis, permite-me aceitar o desafio num contexto que certamente iremos dar muitas alegrias a um clube para quem tenho uma dívida.
NJ- Dívida? Explique lá isso.
MP- Em 2005/6 pela 1º vez em toda a minha vida senti que desiludi todos que comigo trabalhavam, principalmente os jogadores e pessoas do clube com quem tinha grande afectividade. Conjugaram-se uma série de factores desde problemas de saúde, aliado a um desequilíbrio emocional , que não conseguia dar-me uma estabilidade indispensável para um trabalho profícuo e que desse ao clube os títulos que todo o seu empenho na modalidade exigiam.
NJ- Não estará à espera que o seu regresso seja do agrado de todos?
MP- Claro que não, e não seria desejável que isso acontecesse, pois o monolitismo é sempre redutor em todas as vivencias colectivas, e só a divergência e a crítica permite melhorar o nosso desempenho no campo profissional e no nosso comportamento inserido numa sociedade de valores onde a seriedade e a ética tem que ser traves mestras de todo o edifício onde vivemos. Regresso a Luanda disposto a trabalhar e promover algum debate, porque os meus quarenta e cinco anos de Angola atribuem-me responsabilidade que acho que não devo alijar. Não estou disposto a abrir guerras pueris, mas também não estou disponível a que ser alvo de avaliações soezes de carácter, quando a única crítica que tenho que admitir tem que ser fundamentadas pela discordância das minhas opções em jogo, pois sou um técnico qualificado, e digo-o com justificada vaidade que tenho um palmarés que poucos a nível mundial se orgulham de o ter.
NJ- Voltando ao seu regresso ao “1º de Agosto”, que expectativas traz, quando já ganhou no clube tudo que havia para ganhar enquanto técnico?
MP- Costuma ser lugar-comum dizer-se que não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz. Nunca devia recusar o convite feito para continuar às pessoas que insistiam comigo para ficar em 2006 e aos que afectivamente estou ligado .O Lutonda dizia insistentemente: “ O Prof não pode sair daqui” e expressava bem o carinho de todos, que eu provavelmente ao tempo avaliei de forma demasiado superficial, mas foi assim!
Quero colocar o “1º de Agosto” no seu lugar de topo no basquetebol angolano e quero ajudar a desenvolver estruturas que ajudem o clube a renovar-se e simultaneamente a formar jogadores, técnicos e dirigentes que o potenciem como o maior clube angolano de basquetebol.
NJ- O Mário Palma está a dar uma entrevista defensiva, sem querer falar do basquetebol angolano, selecção, clube e técnicos, a maior parte dos quais trabalharam consigo enquanto jogadores e começaram consigo como técnicos.
MP- Admita que seria deselegante da minha parte fazer abordagens críticas à FAB, à selecção, a técnicos ou jogadores, isto para me circunscrever aos agentes activos do basquetebol. Tenho as minhas ideias, partilho pontualmente as minhas concepções, mas acho que não é importante para o basquetebol angolano abrir guerras artificiais, autofágicas que apenas beneficiam os nossos adversários e fragilizam o muito de bom que se tem feito no País no domínio desportivo. Penso que por vezes exigir-se-ia à FAB uma melhor política de comunicação, de forma a dar visibilidade a um trabalho esforçado e dedicado do Gustavo da Conceição e seus colegas de direcção.
Conheço três gerações de jogadores ganhadores de Angola, treinei a maior parte deles, naturalmente que tenho que ter opinião, o que não devo é antes de chegar mandar recados, porque isso seria uma prática condenável. Admito sem rebuço que o Olimpio é potencialmente um dos melhores jogadores do Mundo na posição 2, como Lutonda que tem 40 anos e o Carlos Almeida deveriam ter sido convocados para a selecção nacional. Está a ver que não fujo a nada, mas há momentos para tudo, e este é o momento para regressar e trabalhar no propósito de alcandorar o 1º de Agosto aos patamares cimeiros do basquetebol africano.
NJ- E a selecção de Angola? Pensa um dia voltar a sentar-se como timoneiro da selecção?
MP- Sou um profissional de basquetebol, já passei por muito sítio, por isso nunca ponho de lado a hipótese de novos desafios ou repetir situações vividas com sucesso. Neste momento tenho um contrato com a selecção portuguesa que termina em Setembro de 2012. A selecção de Angola tem um corpo técnico a trabalhar, por isso parece-me extemporânea a pergunta. “ O Caminho faz-se caminhando” como dizia o poeta espanhol António Machado.
NJ- Na minha opinião já devia ter sido dada a nacionalidade Angolana ao Mário Palma, não apenas pelas suas décadas em Angola, mas também por ter sido obreiro de grandes alegrias que Angola vem vindo a ter em termos desportivos há trinta anos. Que expectativa leva para uma Angola, diferente da que deixou em 2006?
MP- Gostava de ser cidadão angolano, e também partilho consigo a ideia que o mereço, mas isso não me cabe a mim resolver, ou melhor talvez venha a pedi-la, porque afinal sempre aqui vivi e o tempo que cá não vivi, vivia por aqui.
No meu regresso vou gostar de visitar o País todo sem constrangimentos de qualquer ordem. Ir por estrada a locais onde já não vou há mais de trinta e cinco anos e que me marcaram na minha juventude vivida numa Luanda crioula dos anos 50 e 60. Vai ser um complemento excelente do basquetebol e revigorante para mim que sempre quis ver este País em paz e a desenvolver-se como parece acontecer a um ritmo interessante.
NJ- Muito obrigado e felicidades no seu “Reviver o passado no 1º de Agosto”, e fica já aprazada nova conversa no fim da época para uma avaliação.
Fernando Pereira
Hotel Tivoli Coimbra 22/8/2011
26 de agosto de 2011
O ADEUS ÀS ARMAS?´/ Ágora / Novo Jornal nº188 /LUanda 26/8/2011
"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso. Mas esse regime só pode ser concebido, realizado e sustentado por homens que saibam que não sabem tudo, que se recusem a aceitar a condição proletária e nunca se conformem com a miséria dos outros, mas que recuse, justamente, a agravá-la em nome de uma teoria ou de um messianismo cego."
Albert Camus, Novembro de 1948
Há sessenta anos Camus dá um “murro” nos conceitos da esquerda francesa quando faz sair o livro L´Homme révolté , “ O Homem Revoltado”, o que o leva a zangas com anteriores “compagnons de route” como por exemplo Jean Paul Sartre, com quem nunca mais reatou relações.
Esse livro contextualizado num tempo em que Mao emergia na China como um libertador e um guia de uma revolução, no país mais populoso do mundo, quando MacArthur, o vitorioso general americano da guerra do Pacífico pedia bomba atómica sobre a China, no momento em que os americanos já intervinhamna Coreia, uma obra que punha em destaque a completa inutilidade das revoluções, era no mínimo espantoso.
Argumentava Camus que as três revoluções que eclodiram em França, reportando-se principalmente à de 1789, criticando a sua elevada violência, não conseguindo trazer à França um padrão de vida melhor que países escandinavos e os ingleses conseguiram sem grandes tumultos optando por transições pacíficas moderadas.
As críticas de Camus aos destemperos das revoluções não pararam por aí, visto que acreditava que os seus líderes no poder, mais tarde ou mais cedo, se tornavam repressores ou heréticos, policiais ou loucos!
Já há muito que não me lembrava deste livro de Camus e nem sei bem a que propósito, resolvi reler páginas que sublinhei há trinta anos, acrescidos de pontos de interrogação e exclamação, que reflectiam as minhas certezas em relação a certas passagens. Essas referências no texto eram nem mais nem menos que as minhas certezas de então, que a teimosia dos factos acabou por alterar para uma cada vez maior quantidade de dúvidas em relação à vida, ao mundo e às relações entre os homens num quadro que não pode ser limitado só à luta de classes, mas também não deve ser liminarmente abolido, como se tenta fazer quotidianamente na defesa do sacrossanto domínio de uma quase divindade chamada mercado.
Esta releitura de Albert Camus, um existencialista que me obrigou a ler tudo o que publicou, desde ensaio, romance ou teatro trouxe-me angústias, que julgava repelidas pela voragem dos tempos algo niilistas que vamos vivendo.
Uma das preocupações que tenho, e julgo que partilhada com algumas pessoas com quem vou discutindo ideologia e política tem a ver com a ausência total do ideológico no quadro político angolano.
Aparentemente muitos acham que a política é dispensável, mas não se coíbem de utilizar a sordidez de outras formas de manipulação para atingir a chefia dos chamados grupos de status, no nosso caso o racismo, as prerrogativas familiares, o regionalismo, e partirem daí para afirmações de um grande coração angolano, com as veias cavas oleadas em saborosas notas de dólar.
Como não existe democracia num estado puro. Não existe democracia no vazio. A democracia é sempre portadora de um conteúdo de classe, fico-me por uma citação de um livro comprado na ex-livraria Che Guevara em Cabinda há muitos anos, e que hoje também desfolhei sem particular interesse, e nessa altura sublinhei a vermelho, preto e amarelo: «As ideias nunca podem levar a ultrapassar um antigo estado do mundo, apenas podem permitir ultrapassar as ideias do antigo estado de coisas. Falando de uma maneira geral, as ideias nunca podem executar nada. Para executar as ideias, são necessários os homens, que põem em acção uma força prática».Karl Marx e Friedrich Engels, A Sagrada Família, Editorial Presença, 1974, p.179.
Não sei se vem a propósito, mas há mil e uma razões para não comprar um Rolls-Royce; a primeira é a falta de dinheiro… as outras, assim sendo já não interessam.
Fernando Pereira
20/08/11
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