11 de outubro de 2011
Entrevista que fiz a André Mingas em 6-2-2011 e depois publicada no Novo Jornal nº165 de 18-3-2011 em Luanda /Colocada neste blog no dia da sua morte.
1-André Mingas, Nietzche definiu arquitecto como “música parada no tempo”. Partilha esta opinião de que homem músico, artista plástico e arquitecto são tudo o mesmo?
André - Não, de modo algum! Hoje a arquitectura, mais do que desenho, ela é a maior expressão das artes, na medida em que engloba não só o desenho das claves musicais expressas nos traços do arquitecto, mas também o teatro através da expressão, às vezes dramática ou alegórica tão comum a alguns edifícios na cidade, a dança, graças aos movimentos circulares (Niameyer) patentes na geometria descritiva, fonte inesgotável do acto conceptual. Mas ela vai mais longe, pois corporiza as artes plásticas que, mercê das formas e da estrutura cromática dos tons, se interligam com as cores dos interiores e exteriores das habitações, produzindo estados de espírito que vão desde a tranquilidade, ao desequilíbrio emocional, da energia à depressão, enfim, ao estado de entrega a novas actividades que geram saúde, disposição para a vida, predisposição para o amor e para a arte. O arquitecto é um gestor de vazios e silêncios, capaz de fazer surgir uma obra notável, num espaço onde antes apenas reinava impune, a subtileza do silêncio!
2-O AM acompanhou o crescimento de Luanda nos últimos sessenta anos, e simultaneamente foi actor e espectador de transformações sociais que houve neste período. Ajude-nos a perceber este crescimento no olhar de um arquitecto e simultaneamente agente cultural e político.
André-Luanda tinha duas opções no período pós-independência, a saber, uma primeira, que seria permanecer estruturalmente como era e, de forma multidisciplinar, definir critérios para a avaliação e preservação da sua história construtiva, valorizando a sua qualidade maior que seria a prestação de serviços sustentados pelas potencialidades turísticas que sugerem a ilha, a baía e uma marginal como a nossa; e a segunda, ser intervencionada na base da actualização do plano director da cidade, à época, gerando novas centralidades - aqui entendidas como núcleos autónomos, potenciados pelas necessidades essenciais dos seus habitantes. Infelizmente o advento da guerra precipitou um conjunto de situações que levaram às actuais sobrecargas a que a cidade está submetida, inviabilizando quaisquer programas de estruturação da mesma, não obstante os processos evolutivos levados a cabo pelo Governo e que me parecem notáveis e verificáveis.
3-Quando perspectivamos uma cidade, fazemo-lo num contexto de ser a melhor possível para o quotidiano de vida dos seus cidadãos. No contexto actual atrevo-me a dizer que pior é impossível. È irreversível alterar o quadro geral da “desorganização” da cidade?
André - A caracterização é sua! Mas não me parece que seja irreversível o actual quadro da cidade. Pode levar algum tempo, mas não a creio impossível. A imagem da cidade ou da província é sempre o resultado da organização funcional de cada um dos seus municípios. Qualquer cidade que consiga vincular os seus municípios a programas executivos claros, tendo como pressupostos da sua acção questões como: o saneamento básico, a segurança, a saúde, a educação, o entretenimento, espaços verdes estruturados em parques e praças (evitando deste modo os grandes níveis de impermeabilização dos solos), a autoridade e os serviços públicos desconcentrados, para gerar emprego com a componente de uma maior proximidade dos serviços aos seus munícipes, têm possibilidades inimagináveis de sucesso.
Outro dado fundamental é a interligação viária de cada um dos municípios com o resto da cidade (grandes eixos) como forma de incremento da mobilidade tornando-se naturalmente numa cidade desanuviada, organizada, e regularizada sob o ponto de vista funcional.
4-O contexto da cidade de Luanda deve ser encarado como uma cidade africana, em todos os seus vectores culturais e económicos, incrustados nas relações que se estabelecem entre os seus habitantes. Mas todas as cidades em qualquer parte do mundo têm o chamado centro cívico, que Luanda já teve no tempo colonial, mas que foi perdendo com o tempo. Não seria um bom começo, para o que ainda se pode vir a fazer pelo ordenamento da cidade?
André - O conceito de centro cívico, característico das cidades radioconcêntricas como Luanda, tinha subjacente a ideia da concentração num local da cidade de um conjunto de serviços de prestação de assistência ao cidadão, que, no caso em apreço, seria a Mutamba! As tendências (linhas) de evolução facilmente observáveis na cidade, conduzem-nos a uma nova interpretação da mesma: A cidade deve criar núcleos habitacionais sim, interligados sob o ponto de vista da malha viária, mas autónomos sob o ponto de vista funcional, gerando, concomitantemente à habitação, infraestruturas necessárias e níveis de proximidade dos serviços que contribuam para fixação das pessoas nos seus locais de habitação. A cidade é o grande palco cujos actores e artistas somos todos nós, por isso tem que ser vivenciada com criatividade pelos seus cidadãos com alegria e satisfação!
5-Luanda hoje é uma cidade engarrafada, e as soluções para a circulação e estacionamento das viaturas são esquecidas, quando os prédios cada vez mais altos invadem o centro da cidade. Nas sociedades modernas tirar automóveis do centro das mega-cidades transformou-se quase numa fobia. Porque é que cada vez mais continuamos a construir prédios altos e espelhados, e no que deviam ser parqueamentos, temos que colocar geradores enormes e grandes centrais de ar-condicionado, com todos os nefastos efeitos ambientais decorrentes?
André - O erro, salvo melhor opinião, não estará nos edifícios altos, desde que controlados os níveis de impermeabilização do solo pelo excesso de betão ou de asfalto. Uma cidade sufocada por habitações degradadas, com um núcleo urbano tão pequeno como o de Luanda, tem que gerir e rentabilizar da melhor forma possível, o espaço que possui. Daí que a construção em altura seja naturalmente recomendável sem descurar a qualidade estética e projectual da sua edificação. Só que este pensamento deve, concomitantemente, propicar como política de Estado, a circulação pedonal - enquanto acto de socialização e de saúde pública - zonas verdes na envolvente do edificado em altura, para contrapor os efeitos da incidência solar sobre o betão, gerador de ondas de calor que contribuem para o aquecimento global da cidade.
Finalmente, parece-me sensato e recomendável, um maior rigor na aplicabilidade da lei que obriga a criação de estacionamento subterrâneo ou em altura no edifício (nalguns casos vem sendo feito), como princípio conceptual do próprio projecto, o que permitirá libertar a cidade dos actuais níveis de tráfego, gerando espaços que previlegiem o ser humano e a humanização da sociedade.
6- Na ausência de um Plano Director Municipal, de Planos de Pormenor, de zonas classificadas, de uma catalogação recente de Monumentos Nacionais ou Imóveis de Interesse Local, e outra legislação, que instrumento tem sido usado para a contínua descaracterização da cidade, algo que já vinha do tempo colonial e que o actual “boom” económico só veio a evidenciar de forma negativa?
André - O Governo criou um instrumento (IPGUL) que, repensado, transformar-se-á num instrumento essencial à cidade e à Província. Entretanto, a opção tem sido o recurso aos planos de urbanização, como aconteceu agora com os bairros do Sambizanga, Bairro Operário e Cazenga, com soluções integradas no sistema viário para garantir maiores níveis de mobilidade urbana. Esta acção permitirá manter algum nível de controlo sobre o processo evolutivo da cidade, recenseando cidadãos, integrando zonas degradadas no espaço urbano, tirar cidadãos da clandestinidade conferindo-lhes cidadania, levar espaços e praças verdes como alimento à sede inesgotável de comunicção (que persiste como cultura nos musseques), controlar e combater o desemprego, a criminalidade, apostar na segurança e no incentivo a ciência e tecnologia através da vulgarização da internet garantindo assim conhecimento, cultura e qualidade de vida.
Por outro lado, far-se-á, de forma equilibrada, o aproveitamento de um espaço ímpar (musseques) para o crescimento e dignificação do cidadão e da cidade.
7-Não seria oportuno que se criasse com carácter de urgência para Luanda, algo do tipo “Sociedade de Reabilitação Urbana”, de forma a fazer rápido o que qualquer cidade tem que ter para se tornar local de vida e não um lugar de sobrevivência?
André- Em minha opinião, os movimentos cívicos são sempre muito importantes, pois dão-nos não só a percepção da real massa crítica da sociedade, mas também a possibilidade de melhor nos percebermos das opções dos cidadãos na procura da satisfação das suas necessidades. E neste particular, considero o exercício democrático da adopção do conceito da gestão particpativa das cidades, uma solução aplicável conduzindo a bons resultados na medida em que os cidadãos tomam contacto com as grandes acções a que o Estado se propõe, podendo contribuir, de forma positiva, para o enriquecimento da vida e da funcionalidade da sua comuna, município ou cidade, reforçando em definitivo o sentido de cidadania e o espírito democrático que subjaz à postura do Estado.
8-É ainda possível construir uma cidade com transportes públicos a funcionar, um equipamento escolar e de saúde acessível a um conjunto significativo de cidadãos, parques onde simultaneamente se estimulasse o convívio e o lazer dos moradores, estabelecimentos comerciais, serviços públicos, em síntese, algo que do tipo do que foi dito na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2000 que diz:” A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anónimos”?
André- Sem dúvida. Nós temos no País velhas vilas coloniais a que chamamos cidades. Em minha opinião, precisamos/devemos intervir com planos estratégicos de desenvolvimento, aproveitando o facto de as nossas cidades se terem desenvolvido muito pouco, para gerar um novo conceito "de cidade", consubstanciado numa educação que tenha como base a ciência e a tecnologia, a cultura, a promoção e defesa do meio ambiente, através da preservação da pujante natureza de que somos portadores, atendendo à transversalidade desta matéria. É igualmente importante fomentar a criações de novos postos de trabalho como factor de fixação dos cidadãos nos seus locais de habitação, assim como a mobilidade, a segurança, o bem-estar social e a circulação pedonal que torna permeável a socialização.
9- Porque isto é uma entrevista “sem rede”, em que o AM se disponibilizou a responder a tudo, posso perguntar-lhe que sentiu um arquitecto quando deitaram abaixo o Palácio D. Ana Joaquina, os Coqueiros, o mercado do Kinaxixe ou ainda mais recentemente a emblemática estação de Caminho de Ferro da Catumbela?
André - Angola deve corporizar à imagem da sua história construtiva com obras notáveis realizadas pelos seus filhos, incluindo as peças emblemáticas deixadas pelos seus colonizadores, cuja história não se apaga naturalmente. Mas não se pode negar à Nação, o direito de definir o que, sob o ponto de vista histórico, arquitectónico e estético, deve ou não permanecer nos seus principais centros urbanos, como elementos referenciais da sua história construtiva, particularmente quando o conjunto de memórias pertence apenas a uma ou duas gerações específicas.
A história deste Estado Novo e Democrático que vem ganhando corpo, não pode ser feita apenas com o rosto da tortura, da escravatura, das dores acumuladas pelas humilhações de que foram vítimas os nossos ancestrais durante vários séculos, relatos de derrotas e imagens do pensador. Enquanto Nação, temos uma história gloriosa e ela deve estar patente nas formas físicas da cidade incluindo na estatuária. Este é o meu tempo e como cidadão e arquitecto, recuso-me a adoptar uma cultura de contemplação relativamente ao que, ousadamente, as outras gerações nos legaram. É preciso reivindicar o direito e o espaço que o tempo nos confere, para deixar marcas da minha e nossa geração no território, fazendo história!
10- O que sente o arquitecto, quando vemos o Dondo, Massangano, Cambambe e outros centros históricos, monumentos e sítios a degradarem-se de tal forma que torna irreversível o seu talvez desejável desaparecimento?
André - É uma questão de sensibilidade extensiva a todos os cidadãos independentemente das suas qualificações, visto que o património diz respeito a todos nós. Mas, por outro lado, é preciso não generalizar a ideia segundo a qual o edificado torna-se património apenas porque é antigo e nunca como parte integrante e indissociável das nossas memórias. No caso em apreço, que se traduz num detalhe gritante e apelativo a todos, é preciso que as instituiçoes a quem o Governo atribuiu responsabilidades, proponham planos e programas de revitalização histórica, planos suficientemente sustentáveis, de salvaguarda do património, para que sejam convincentes e se tornem objecto de orçamentos direccionados para a preservação da história física da cidade.
11- O ensino da arquitectura em Angola desde a fundação da primeira faculdade no fim dos anos setenta tem permitido aumentar a qualidade dos formados pelo que perguntaria se tem sido simultaneamente dadas condições aos docentes para potenciarem novas experiencias adequadas à realidade angolana em transformação nestes trinta anos de “mobilidade politica, ideológica e económica”?
André- Mais do falar mal da escuridão é preciso acender uma vela.
Por questões deontológicas não quero, não devo, nem posso pôr em causa o esforço notável dos meus colegas que se dedicam actualmente, ao ensino da arquitectura. Mas sinto cada vez mais necessária e imperiosa a criação de dispositivos de suporte e de apoio ao trabalho que estas instituições de classe realizam de modo a que tragam para as faculdades de arquitectura - pela interacção que ela gera com o cidadão - mais-valias que se traduzam em apostas claras na ciência e tecnologia, através de protocolos de intercâmbio com as grandes faculdades do mundo.
Só assim será possível trazer a Angola pessoas para vivenciarem o pensamento novo gerado pelos aquitectos angolanos, fazendo das nossas cidades referências de tal grandeza, que mais ninguém saia de Angola e se deslumbre com Paris, o Rio, ou Roma.
12-Qual é a posição do arquitecto angolano, quando vê implantar num local da cidade um edifício igualzinho a outro que existe noutra qualquer latitude do mundo, e vê serem pagas fortunas por um projecto que não passa de uma fraudulenta fotocópia a uns arquitectos estrangeiros pouco escrupulosos?
André Mingas - Como deve imaginar, é dolorosa esta constatação, mas não se pode responsabilizar tão-somente o Governo. Neste caso concreto, a ordem dos Arquitectos terá que intervir propondo critérios que contribuam acima de tudo para a valorização e estímulo do trabalho dos arquitectos angolanos. Mas como deve imaginar é extremamente difícil gerir uma cidade onde noventa por cento dos cidadãos se considera arquitecto, produzindo, por iniciativa própria, alterações nas suas habitações, desactualizando o cadastro da cidade, gerando uma desestruturação generalizada do bairro e da cidade de um modo geral. A responsabilidade recai naturalmente sob quem aceita e aprova estes projectos, não reage, concede licenças e não pune!
13- Vamos sair de Luanda e vamos ao Lobito, Benguela, Namibe, Lubango e Huambo, onde talvez seja possível fazer alguma coisa, já que a voracidade do cifrão ainda não é tão acentuada!
André- Luanda e Benguela são hoje os maiores centros de emprego do País e é justificável que as pessoas procurem as cidades do litoral num esforço de sobrevivência. A viragem para o interior através da criação de polos regionais de desenvolvimento, com apostas claras, por exemplo, na agricultura, indústria extractiva quer de minérios, quer de produtos pesqueiros e materiais de construção, pode constituir um fantástico gerador de emprego, suficientemente atractivo para provocar o boom do desanuviamento de Luanda na busca de melhores condições de vida. Estes factores, aliados a serviços como a saúde pública, a educação, a preservação ambiental, a identidade e as culturas regionais, pesarão bastante nas opções de deslocação para a capital.
14- Qual o papel do arquitecto na Angola do futuro?
André - Pensar o País e perspectivá-lo como uma Nação que se comprometa com o futuro, pensando e projectando para lá do edifício sem se deixar afectar pelo imediatismo. Tendo como base a riqueza da versatilidade da sua formação, os arquitectos e urbanistas angolanos de hoje e do futuro são uma classe potencialmente privilegiada, porquanto são profissionais que têm pela frente um País fantástico, sedento de acções que o dignifiquem, "abençoado por Deus", de beleza inegável, inexplorado e com esta grandeza espacial, que se constitui num incomensurável mundo de oportunidades para idealizar verdadeiros sonhos de cidades e centralidades.
É fundamental interiorizar a ideia segundo a qual, o projecto de arquitectura, mais do que uma obra, tem de ser gerador de uma nova cultura estética, construtiva de base identitária, assente nos valores da cultura local, à qual tem que estar subjacente, um compromisso claro com o futuro e a contemporaneidade, a bem do cidadão, das cidades e da Nação Angolana!
Entrevista feita por Fernando Pereira a André Rodrigues Mingas Junior em 6-02-2011
Neste dia triste em que morreu uma voz que em vida nunca se calou pelo melhor para Angola!
7 de outubro de 2011
DE MAO A PIAO / Ágora / Novo Jornal nº 194/ Luanda 7-10-2011
Quando cheguei aos cinquenta e cinco comecei a dar-me conta que não terei tantos cacimbos como os que já tive e dificilmente tornarei a ter tempos tão bons, por mais estabilidade que tenha na minha vida pessoal, profissional, e situação económico.
"Se há coisa de que tenho pena é o cinismo que traz a idade. Tenho saudades do tempo em que acreditava que tudo era possível, que podia mudar o mundo, que não havia limites para o meu engenho e perseverança. Ganha-se em maturidade o que se perde em sonho".
Mudando de assunto, porque não é absolutamente nada importante estar a fazer exercício catártico, acabei de me lembrar que faz este mês trinta e cinco anos que morreu Rex Stout, o criador do Nero Wolf, detective obeso, amante das orquídeas e da boa mesa e que na obra completa editada pela saudosa “Colecção Vampiro” , apenas saiu de casa uma vez num total de quarenta e seis livros. Sem acabar por ser o meu herói, esse é mesmo Philip Marlowe de Raymond Chandler, o Nero Wolf e o seu ajudante Archie Goodwin eram os que me ajudavam a descobrir prazeres, hoje corriqueiramente designados de gourmet, no meio de absurdos enredos policiais. Era um Sherlok Holmes com mais requinte e menos cabotino na acção.
Em Setembro comemorou-se o trigésimo quinto aniversário do falecimento de Mao Tsé-Tung, provavelmente a figura política mais controversa e “omitica” de todo o século XX.
Aqui há uns anos fiquei entusiasmado com a leitura dos “Cisnes Selvagens”, de Jung Chang, uma professora doutorada no Reino Unido em York em 1982, depois de um percurso que passou desde guarda vermelha, agricultora, metalúrgica e electricista, tendo estudado inglês o que lhe valeu tornar-se leitora assistente na Universidade de Sichuan.
Há cerca de quatro anos, num fôlego li um “tijolo” de oitocentas e cinquenta páginas do livro “Mao, a História Desconhecida” de Jung Chang em colaboração com o seu marido Jon Halliday, especialista na história da União Soviética. Este livro é uma pungente descrição do que foi a ascensão do Maoismo na China, em que autora viveu, conviveu, partilhou e apoiou muitas das situações que hoje parecem-se no mínimo do domínio de um quase estado de catatonia colectiva.
Nunca partilhei ideias maoistas, mesmo num tempo em que começaram a ser moda em universidades na Europa nos anos sessenta e setenta, um pouco para combater algum imobilismo em que tinha caído o movimento comunista internacional após as sucessivas subidas ao poder de Krutschev e Brejnev na União Soviética. O “aburguesamento” e a “burocracia” eram as acusações que o maoísmo fazia ao período post-Staline em relação aos partidos comunistas alinhados com o PCUS.
Este livro é uma história terrível de um mundo que urge ser expurgado de determinadas mentalidades que não permitam desmandos que a coberto de uma “revolução cultural” se desprezaram valores caros ao marxismo e à construção de uma mentalidade de homem solidário e participativo numa sociedade onde as diferenças de classes se esbatessem.
Mao foi um sátrapa, e é assim que a história tem que ser reescrita.
Para não ser tudo mau conto-vos a história de um quadro dirigente angolano numa visita à China num contexto de uma visita de “Amizade e Estado”. Iam num comboio visitar uma cidade onde havia um centro siderúrgico importante, e depois de algumas horas de viagem, o homem diz: “Estes tipos ainda falam mal de nós, há duas horas que só vejo capim”; Escusado será dizer que estava a falar de campos de trigo! Quando se começou a aproximar da cidade, que me deslembro o nome, e era de noite, virou-se para o resto da comitiva e disse: “Uma cidade como o Uije”.; A cidade tinha uma população de setecentos mil habitantes e era só um dos maiores centros de industria pesada do País. Nalguns detalhes somos inultrapassáveis.
Sem querer alimentar discussão estéril, começo a achar que o José Agualusa usa a questão da poesia do Agostinho Neto como marketing, pois faz coincidir esta polémica normalmente quando tem um novo livro para apresentar. Tem sido recorrente nos últimos tempos isso acontecer, mas acho que é completamente desnecessário esse recurso já que escreve magnificamente e tem um publico fiel que o aprecia, onde me incluo. Li “A educação sentimental dos pássaros”, um conjunto de onze contos, e apesar de não ter sido o melhor “Agualusa” é um livro interessante que destoa positivamente da vulgaridade. Desprecisa mesmo de procurar chamar a atenção com outras coisas. Basta escrever!
Fernando Pereira
4-9-2011
1 de outubro de 2011
A MINHA MANIFESTAÇÃO É MAIOR QUE A TUA!/ Ágora / Novo Jornal nº 193 / Luanda / 30-9-2011
Guardo propositadamente o tema do título para o final e entretanto vou-me entretendo com outras efemérides.
Há quarenta anos a prestigiada editora francesa “Le Chant du Monde” publica um dos discos marcantes da música brasileira de intervenção: “Brésil Sertão & Favelas”, na bela voz da quase esquecida Zélia Barbosa.
O disco tem músicas que se tornaram iconográficas no contexto de luta contra as ditaduras que polvilhavam a América do Sul e Central, África e europeias no dealbar dos anos setenta, num mundo em que o que é a globalização chamava-se então imperialismo. Léxico diferente para os mesmos resultados, num ano em que se comemora o quinquagésimo aniversário do assassinato de Patrice Lumumba, defensor de uma África onde riqueza fosse distribuída pelos seus povos.
Voltando ao disco, onde estão canções como “A canção da terra”, “Funeral do Lavrador”, “Pau da Arara”, retenho os versos da “Cicatriz” : "Pobre não é um/pobre é mais de dois,/ muito mais de três./E vai por ai e vejam só: Deus dando a paisagem/metade do céu já é meu/Pobre nunca teve gosto ;/ a tristeza é a sua cicatriz./Reparem bem que só de vez em quando/pobre é feliz"...
Por muito disto é que despercebo porque é que o reino dos céus é para os pobres. Não seria melhor repartirmos e o reino da terra e dos céus e tudo ser para todos por igual? Porque é que há-de haver privilegiados no Eden?
Vários autores anunciaram a saída de vários discos em Luanda, e não sei se a propósito lembro-me de um episódio ocorrido nas páginas de um jornal de efémera existência, o “Página Um”! José Jorge Letria é um talentoso poeta, excelente músico e dinâmico activista cultural, mas com a voz que de canora tinha pouco. Era pejorativamente alcunhado pelo “Bardo” numa associação ao cantor Assurancetourix, trovador da aldeia gaulesa de Astérix, a intemporal BD de Goscinny e Uderzo.
Quando anunciou que ia sair com novo disco o comentário do articulista de música foi “Chiça, mais um?”. Letria indignou-se e exigiu o direito de resposta, argumentando que já tinha uma vasta obra de dez títulos publicados, etc., ao que o articulista colocou em nota de rodapé: “Por causa exactamente disso é que te pedimos insistentemente que pares”. Tenho ideia que JJ Letria nunca mais gravou nenhum disco e dedicou-se apenas à poesia e ao conto, onde de facto é excelente. Acautelem-se pois os que prometem novos discos, porque alguns já nos andam a azucrinar os ouvidos há décadas, e pode haver quem dê voz ao “atentado”
Falou-se de gente que foi fazendo coisas bonitas e conseguiram ser coerentes com a beleza das coisas que produziam. Houve outros que fizeram coisas bonitas, fizeram sonhar milhões de crianças ao longo de muitas gerações, mas que se revelaram no seu comportamento político e cívico como autênticos biltres, para não ser mais incisivo e poder escorregar para o destempero da linguagem.
Faz cem anos que nasceu Walt Disney, o criador do Mickey Mouse, do Pato Donald e uma miríade de figuras da banda desenhada que correu o mundo ao mesmo ritmo que a Coca-cola, General Motors e a omnipresença americana se espalhava pelo mundo no pós-guerra.
Disney foi uma figura incontornável de um universo de sonho, contudo não deixou de se enredar na lama quando passou a ser colaborador do MacCartismo através de uma sórdida organização: "Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses", que arruinou carreiras e vidas de actores, realizadores, fotógrafos, argumentistas, escritores, um conjunto enorme de intelectuais que foram banidos por simples menção a um eventual alinhamento de algo que tivesse a ver com ideias de esquerda. Um homem que teve tudo para ser uma lenda e pelo seu anti-comunismo associado aos seus traumas de infância, acabou por se juntar à baixaria que promoveu uma época de terror na intelectualidade estadounidense.
Depois não digam que não falei das manifestações em Luanda. Basta ver o título!27-9-2011
23 de setembro de 2011
Chato do Xissa! / Ágora/ Novo Jornal nº192 - Luanda 23-9-2011
Dessei se esta história é inventada mas a realidade é que faz parte das muitas que ia havendo entre os quadros da administração colonial colocados nos recônditos lugares da colónia de Angola nos anos que precederam a 2ª Guerra Mundial.
Contou-me um antigo administrador de Massango, Forte Republica, distante 155km de Kalandula, sede de administração, que os jornais e cartas de Luanda demoravam cerca de quinze dias a um mês a chegar-lhe à mão o que os obrigava a ler entusiasmados notícias que em princípio teriam tido desenvolvimentos, apesar de o tempo então correr devagar.
Ele dava-se por muito feliz em relação a outros, como por exemplo o administrador de Cahungula, sede da circunscrição de Camaxilo. Porque o administrador já estava meio contaminado com o isolamento, e vivia com a esposa, a sogra e dois filhos pequenos, teve uma ideia que pôs em prática e que foi a seguinte: para ter a impressão que vivia em Lisboa, todos os dias à noite, entregava um exemplar dos jornais diários de Luanda, que recebia em maços a um cipaio, e este logo de manhã cedo, passando por baixo da janela do quarto do administrador, todos os dias anunciava: “Olha o diário; Quem quer o diário!”.O administrador abria a janela e dizia:”Oh rapaz dá-me o Diário de Luanda." O cipaio entregava-lhe o jornal, o administrador entregava-lhe a respectiva moeda e fechava a janela. O cipaio ia para a administração, punha o dinheiro do jornal na secretária, para o voltar a receber no dia seguinte pelo mesmo trabalho. O administrador do concelho lia o jornal na cama como se estivesse em Lisboa, depois levantava-se e ia para a administração. Nada era mais inventivo de que esta cena teatral autêntica.
Na província de Malange, na região da Baixa do Cassange, no posto de Xissa há uma campa na berma da estrada, com um ar abandonado onde está sepultado um dos mais famosos “salteadores” portugueses do século XIX. O verdadeiro Robin Hood português, já que roubava aos ricos para distribuir pelos muitos pobres, o famoso Zé do Telhado (1816-1875), José de Matos, alcunhado de Telhado porque era o único numa aldeia minhota que tinha a casa com telha ao contrário de todas as outras que eram cobertas com colmo. O seu bando saqueou anos a fio casas de nobres e burguesas da província portuguesa do Minho, e todo o espólio do roubo era distribuído pelos mais necessitados para tentar mitigar a fome que grassava, o que lhe granjeou enorme popularidade e respeito entre as populações do norte de Portugal.
Acabou preso e privou na prisão da relação do Porto com o sublime escritor português Camilo Castelo Branco, preso por paixões improváveis e simultaneamente possíveis, que inspiraram argumentos ao cinema português ao longo dos anos.
Enviado para Angola, local de eleição dos presidiários portugueses até ao primeiro consulado de Norton de Matos, Zé do Telhado evade-se da prisão com a conivência das autoridades e fixa-se na Baixa do Cassange, dedica-se à agricultura e morre serenamente em 1875, com o respeito das populações locais que mantém a sua campa, com telhado, sempre limpa e arranjada. A guerra obrigou as pessoas a abandonarem a região e a campa acabou por se ir deteriorando.
José do Telhado é tema de filmes, romances, novelas, canções, peças de teatro e também homenagens diversas na zona onde teve actividade, elevando-o a uma figura mítica e referenciada no contexto dos portugueses notáveis, o que de certa forma não deixa de ser bizarro.
Em Malanje, brincava-se com o assunto, pois dizia-se que a campa do Zé do Telhado, ficava em Xissa que ainda por cima tinha um chefe de posto Chato. De facto o chefe de Posto de Xissa era Tobias de Sousa Chato, um homem que percorreu muitas terras na província de Malange e que para além da invulgaridade do apelido, destacou-se na defesa intransigente da Palanca Negra, movendo uma verdadeira cruzada contra caçadores furtivos e guardando dia e noite as crias contra ataques de outros animais ou de homens ávidos de lucro e da vã glória de predador.
Num dia em 1949 o governador de Angola, Comandante Lopes Alves, resolveu visitar a então província de Malange. Angola ao tempo estava administrativamente dividida em províncias, estas em concelhos e circunscrições, e estas últimas em postos administrativos.
Mas voltando àquele dia, o dito governador pretendeu contactar todas as autoridades administrativas, através dos aparelhos sem fios P19, como eram conhecidos. Através do operador do rádio foi ouvida uma voz que entrando em antena disse:”Daqui fala o Chato do Xissa passo à escuta”. O Governador mandou logo suspender as comunicações e quis explicações que eram afinal simples: o chefe do Posto chamava-se Tobias de Sousa Chato e o posto onde estava colocado era o posto do Xissa. Logo ali o Governador sentenciou: Isto não pode ser, ou se transfere o chefe, ou se muda o nome ao posto. O mais fácil foi alterar a toponímia do posto que por Portaria publicada no Boletim Oficial passou a denominar-se de Mucari, nome que ainda hoje conserva.
Agradeço algumas dicas ao mais velho António Ferreira Alves, um homem que percorreu todos os lugares na então administração ultramarina em Angola desde 1949, que era um deleite ouvi-lo.
Fernando Pereira
20/09/11
17 de setembro de 2011
Minhas coisas, palavras de outros!/ ágora/ Novo Jornal nº191/ Luanda 16-9-2011
Flaubert, um persistente estudioso da estupidez humana, concluiu ao cabo de anos de aturada investigação: "Estupidez, egoísmo e boa saúde são as três condições da felicidade; se bem que, faltando a estupidez, tudo estará perdido."
“Os dois Cês do momento - Caciquismo e Carreirismo:
1ºCê: Caciquismo
O Imperador logo de manhãzinha arrastava a figura de dinossauro e dava bons dias a si mesmo diante dos espelhos.
Perguntava: Espelho, fiel espelho, onde é que neste reino houve alguém que desafiasse o tempo como eu?
Jamais, Senhor, jamais. A vida regrada, o saber e a palavra tornam o homem Imortal, respondiam os espelhos ensinados”.
José Cardoso Pires, Dinossauro Excelentíssimo, Bertrand, Lisboa-1972 (pag. 74)
2ºCê: Carreirismo
“Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do Senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chaufeur fardado. Era director Geral das Polícias. Seu pai teve um enfarte”. – Página 19 das Contas de Gin Tónic de Mário Henrique Leiria.
Porque hoje estou com duvidoso discernimento para falar de muita coisa que ocorre ou ocorrerá, e ao mesmo tempo falta-me motivação e palavras. Há momentos assim quando se aproxima o dia em que temos que entregar a crónica, e por muito que tente nada flui com a necessidade de me fazer entender perante os poucos que me vão lendo, onde naturalmente tenho os meus detractores de estimação com assídua e aturada presença.
Li um livro que saiu editado pela Leya da jovem jornalista portuguesa Rita Garcia, “S.O.S. Angola, os dias da Ponte Aérea”, e sinceramente a única coisa que me moveu para o acabar foi a certeza de vos poder dizer com toda a frontalidade, evitem-no .
Paupérrimo na abordagem, nada diferente dos livros que “enxamearam” os quiosques lisboetas no fim dos anos setenta, e que invariavelmente acabaram guilhotinados porque nem quase de borla as pessoas se arriscavam a adquirir. Rita Garcia, pode vir a fazer melhor, mas julgo que se o quiser, terá que procurar melhores interlocutores porque a maioria dos que ali foram citados só empobrecem qualquer argumento, tendo em conta o “lixo” que em tempos publicaram.
Fico a aguardar o último livro do português António Lobo Antunes, que julgo estar a sair e o tema tem a ver com o MPLA e a guerra colonial, e ainda um outro de contos do luso-angolano-brasileiro José Agualusa, que resolveu recentemente voltar à liça com uns despropositados dislates, que nada tem a ver com os seus interessantes trabalhos literários, que aprecio.
“1948: O meu pai foi às finanças fazer um requerimento, e como de costume fez questão de que eu o acompanhasse.
Para “aprender a vida”
Em casa explicou-me minuciosamente a fórmula e o motivo do requerimento. No fim meteu dentro da folha uma nota de cinquenta escudos, e disse-me: “Esta é a parte mágica da fórmula. Quando tiveres um pedido a fazer, já sabes, o segredo é este.
Passados uns meses enviei a minha primeira declaração de amor, e como 50 escudos era para as minhas posses, juntei uma moedinha de vinte e cinco tostões. Nunca tive resposta, decerto foi por ser tão pouco”. In Alberto Pimenta/ Repetição do Caos – Edições & Etc.
Hoje foi assim porque nem sempre estou assim, raras vezes sou assim!
Fernando Pereira 12/9/2011
JOGOS DA ÀFRICA CENTRAL, UM MODO DE TER ESTADO!/ Novo Jornal nº 191/ Luanda 16/9/2011
“Dentro de momentos, num acto pleno de significado, o Presidente da Republica Popular de Angola, declarará solenemente abertos os IIºs Jogos da África Central, manifestação que representa o vértice da actividade da Zona de Desenvolvimento Desportivo nº4 do Conselho Superior dos Desportos de África.
A realização destes jogos em Angola não acontece por acaso, nem é fachada vistosa que utilizamos para esconder as debilidades dum desporto sem princípios, sem organização e sem praticantes. E nem persegue sequer outros objectivos do que aqueles e bem generosos eles são que norteiam as relações desportivas internacionais, particularmente entre os Países do nosso continente”
Há trinta anos, 20 de Agosto de 1981, Ruy Alberto Vieira Dias Mingas, ao tempo Secretário de Estado de Educação Física e Desportos, e Presidente em exercício da Zona 4 do Conselho Superior dos Desportos de África, com estas palavras inicia o discurso de abertura da maior manifestação desportiva que há memória no País.
A realização dos 2ºs Jogos da África Central surge em Angola cinco anos depois dos primeiros em 1976 em Liberville, onde a então R. P. Angola participou como convidada.
Angola candidata-se em 1979, já com a equipa liderada por Ruy Mingas na ex-SEEFD a organizar em Angola os Jogos da África Central e simultaneamente a RPA fica com a sede da 4ª Zona de Desenvolvimento desportivo em África. Era secretário geral, o saudoso Fernando Matos Fernandes acolitado por um “espalhafatoso” André Milton Kilandamoko, controversa figura que em 1992 concorreu à Presidência da Republica de Angola e instado a responder pelo desvio de umas dezenas de milhares de dólares no Secretariado da Zona 4, respondeu com o seu proverbial à vontade: “ Os angolanos nunca conseguiram crescer e passar daqui, quando numa hora importante como esta se preocupam com miudezas”.
Logo que se teve conhecimento que seria Angola a organizar os jogos, mobilizaram-se vontades, motivaram-se pessoas e entusiasmaram-se os agentes desportivos e políticos de uma Republica Popular de Angola imberbe em termos de organização, mas excessivamente voluntariosa no querer participar em prol de conquistas políticas então alcançadas.
Simultaneamente começaram a fazer-se os planos mais hiperbolizantes para os jogos, algo recorrente nas organizações de eventos desportivos recentes em Angola.
Luanda, Benguela, Lubango e Huambo seriam os locais onde se iriam realizar os jogos, numa primeira triagem depois de se ter conseguido convencer os delegados provinciais de outras províncias que não haveria lá jogos, mas talvez jogos de preparação ou estágios de selecções pudessem por lá acontecer. As promessas inerentes às circunstancias!
As propostas de reabilitação de complexos desportivos, de infra-estruturas aeroportuárias, hoteleiras e urbanas eram de uma dimensão de tal forma empolada que para ser tudo levado a bom termo exigia-se que tudo tivesse começado no mínimo dois anos antes.
Piscinas novas ou reequipadas, campos de futebol relvados, pavilhões, centros de estágio, hotéis, edifícios públicos, tudo seria objecto de requalificação ou construção de raiz.
Com a aproximação da data dos jogos, muitas das propostas foram caindo e aí o Ruy Mingas e os seus próximos passaram a decidir com o argumento dos factos e do calendário, embora o seu dinamismo e a sua capacidade de mobilização e entusiasmo nos motivassem a todos, obrigando-nos a superar problemas que em determinadas circunstâncias pareciam-nos irresolúveis.
Algo que muita gente não sabe é que os jogos estavam para se realizar de 20 de Julho a 3 de Agosto de 1981, e o Ruy Mingas num dos últimos dias de Janeiro reúne-nos, depois de uma reunião do conselho de ministros e comunica-nos a decisão de adiar o início dos jogos um mês. Saíram da reunião vários grupos que visitaram todos os Países envolvidos e que entregariam a carta aos titulares dos cargos reitores do desporto com os argumentos ponderáveis para a alteração do evento, que não levantou o menor obstáculo por parte de ninguém. Não se deslocou ninguém ao Tchad, que ao tempo vivia uma guerra civil entre as forças partidárias de Hissène Habré e do presidente Goukouni Oueddei.
A realidade é que apesar do ciclópico trabalho e à medida que o dia se aproximava sentia-se que os jogos iriam ser um êxito, como realmente foram mesmo, por muito que se tente omitir esse facto.
A determinada altura descartou-se o Lubango e Benguela como locais dos jogos, perante o desalento do dinâmico delegado desta província, Victor Geovetti Barros.
Restou Luanda, onde em oito dias teve que se mudar o terceiro tartan da Cidadela, e o Huambo, que apresentava problemas de segurança complicados, como se observou no decorrer de estágios de preparação de diferentes selecções de Angola, como basquetebol (masculino e feminino), futebol e boxe, a maioria das quais alojadas no antigo Hotel Mondego, transformado em Casa do Desportista, junto ao Bairro de S. João.
Alojar, arranjar a logística apropriada, apoio médico, transporte de mil e trezentas pessoas entre atletas, árbitros, dirigentes, etc. foi uma tarefa particularmente complicada num País que ao tempo vivia dificuldades enormes.
Mobilizar voluntários para quadros humanos, apoio a delegações, tradutores, Intérpretes, comissários de provas, secretariado, em suma um conjunto de gente que garantisse o normal funcionamento dos jogos e simultaneamente conseguisse manter níveis de organização aceitáveis para a realização do evento pôs à prova a capacidade de organização do País.
Ruy Mingas seria naturalmente o principal responsável por um eventual fracasso dos Jogos, na realidade como correram bem houve a normal partilha dos louros. A forma brilhante como geriu esses tempos nunca poderá ser obliterada, muitas vezes tendo que vir a terreiro apagar fogueiras que as circunstancialmente se ateavam aqui e ali, conseguindo unir as pessoas pelo afecto, pela confiança, pela identidade de pontos de vista e pela bonomia que colocava em todo o seu relacionamento connosco.
A sua equipa, onde com muita honra participei não pode ser esquecida nesta singela passagem destes trinta anos da realização dos 2ºs jogos da África Central. Sardinha de Castro, Helder Moura, Paulo Murias, José Martins, José Cohen, Franklim Dias, Espírito Santo, Raquel Grácio, os já desaparecidos Juca Figueiredo, Sande Lemos e Matos Fernandes, entre alguns outros que o tempo faz desmemoriar.
Quando o falecido Evaristo Domingos Kimba, na qualidade de comissário provincial de Luanda faz o seu discurso de boas vindas aos visitantes passa a contribuir com um novo léxico: “ Atletas e atletistas, bem vindos a Luanda”!
A Cidadela nesse dia 20 de Agosto de 1981 engalanou-se a preceito para receber os atletas do Burundi, Rwanda, S. Tomé e Principe, Gabão, a então Republica do Zaire, Republica Popular do Congo, Tchad, e Camarões. A Republica Centro-Africana não compareceu por razões políticas e económicas, e a Guiné Equatorial não deu qualquer justificação para a ausência.
Como não se conseguiu acabar o estádio fizeram-se intervenções interessantes que acabaram por não ser perceptíveis para os que encheram o Estádio nesse dia pouco soalheiro de Agosto.
O presidente José Eduardo dos Santos declarou abertos os jogos depois dos discursos de Ruy Mingas, Evaristo Kimba e da atleta Filomena Maurício ter ateado a tocha na pira situada num dos extremos do estádio. Convém recordar que o ministro centro-africano dos desportos Georges Petro—Koni-Zeze, presente na abertura dos jogos já estava demitido das suas funções por causa de um golpe de estado que decorria em simultâneo.
A cerimónia de abertura e encerramento dos jogos foram inesquecíveis pelo colorido emprestado pelas delegações, a garridice dos quadros humanos e a coreografia perfeitíssima de todos os executantes, mobilizados nas escolas de Luanda, e que tão boa conta deram de si.
Durante treze dias Luanda transfigurou-se com o bulício dos jogos, não só pelas actividades desportivas que “calcorrearam” as ruas da cidade, nomeadamente em modalidades como o ciclismo e o atletismo, na sua disciplina de maratona, como também no movimento de atletas entre locais de alojamento, jogos e treinos.
Desportivamente Angola ganhou apenas sete medalhas de ouro, muito longe dos Camarões que ganharam 28, o Congo com 9 e o Gabão com 8, mas a realidade é que fomos vencedores porque conseguimos organizar uns jogos de grande competitividade e com o elevado espírito organizativo que muito nos orgulha.
Angola foi muito grande, e convém recordar que em boxe foi medalha de ouro José Paulo Mohongo (48kg), Eduardo Candido (71 Kg), em Judo João Merino (71kg) e no atletismo o bis de Bernardo Manuel (5000 e 10.000m), António Reais no Martelo e José Ernesto na Maratona.
Um dos momentos de grande simbolismo retratado pelo Carlos Pinhão nas páginas da “Bola”, terá sido quando o antigo recordista “português” do salto em altura Ruy Mingas coloca a medalha de prata no peito do então recordista angolano Orlando Bonifácio. Bonitos e assertivos os textos do saudoso Carlos Pinhão na “Bola”!
Atletismo, Futebol, Andebol, Boxe, Ciclismo, Voleibol, Judo e Basquetebol foram as modalidades dos Jogos, com participação entusiasmada de atletas e com forte presença de público, que não queria perder pitada dos eventos desportivos e da componente cultural associada, que trouxe muitos artistas africanos de renome a Luanda.
Se tinha que se fazer um esforço enorme para arranjar locais para disputa dos jogos, as dificuldades eram acrescidas para os treinos das equipas. Acrescente-se a tudo isto a disparidade horária das refeições, os transportes das equipas na cidade e o alojamento disperso por vários locais, para além de se salvaguardarem as condições dos árbitros, técnicos, médicos, dirigentes federativos e governamentais, dirigentes de confederações internacionais de diferentes modalidades, jornalistas e gente da imprensa. Admita-se que tudo conseguiu correr quase na perfeição, o que era completamente impossível de prever quinze dias antes, em que a placa do aeroporto 4 de Fevereiro parecia um acampamento com o descarregar de material diverso, alimentação, atoalhados, equipamento desportivo, tudo o que se achava que seria importante para que os 2ºs Jogos da África Central corressem bem.
O que acabou por ensombrar os jogos, nada teve a ver com a sua organização. A 23 de Agosto de 1981 a Republica Popular de Angola é invadida pelas tropas da África do Sul na sua fronteira com a Namíbia, ocupando 250km para o interior do País. Foi a ofensiva que acaba por marcar de forma indelével o princípio do fim do apartheid, pois a partir desse dia a comunidade internacional endureceu de forma significativa a sua posição contra o regime racista sul-africano.
Desapetece-me fazer extrapolações que ultrapassem a razoabilidade, mas se há algo que não bate a “bota com a perdigota”, como dizem os portugueses, são as razões que levam um regime a endurecer a sua posição militar num momento em que a visibilidade sobre Angola era grande, pelo facto de se estarem a disputar jogos com muitos Países africanos, com muitos atletas prestigiados e com a presença de muito profissional da informação. Há muita coisa que se despercebe na política internacional, mas na realidade esta ofensiva militar neste momento parecia ilógica! Comentou-se que Angola saberia previamente dessa situação e marcou os jogos para essa altura, para recolher benefícios no campo da diplomacia. Foi um dos múltiplos cenários que se colocaram, e o que acabou por suceder foi que no domínio da visibilidade informativa interna e externa as atenções viraram-se naturalmente para esta afronta à soberania da então Republica Popular de Angola.
No discurso de encerramento dos jogos, Ruy Mingas: “No panorama desportivo Africano de hoje não pode passar em claro, nem deixar de ter um significado bem forte, o facto de 9 países da África Central se terem reunido numa vasta competição multidisciplinar, onde se aliaram a dimensão notável da própria realização, um nível desportivo de relevo em todas as modalidades, um clima de festa permanente que tornou mais transparentes os laços entre desporto e cultura e um ambiente de camaradagem e amizade que garantiu aos Jogos o selo de unidade sob o signo da qual eles foram promovidos” (3-09-2011).
Trinta anos depois, fica a mensagem que resume esses dias: “ Angola ganhou!”
Fernando Pereira
4-9-2011
8 de setembro de 2011
O TEMOR NÃO MORA AQUI / Ágora/ Novo Jornal 190/ Luanda 7-9-2011
No passado 29 de Agosto de 2011 comemorou cem anos Vo Nguyen Giap.
Poucos se terão lembrado disso, mas certamente lembram-se que Giap foi provavelmente o maior estratego militar da segunda metade do século XX. Obrigou a capitular os franceses na definitiva batalha de Dien Bien Phu (13/3/1954 - 7/5/1954) e conseguiu expulsar em condições dramáticas o exército americano de Sai
gão (Ho-Chi-Minh) em Abril de 1975, impondo aos americanos a primeira derrota militar da sua história, trauma ainda hoje evidente na sociedade americana.
Giap manteve-se até 1991 como ministro da defesa da Republica do Vietname, resignando ao cargo, mas mantendo-se um cidadão politicamente activo e respeitado por todo um povo, que nele reconhece valores de dedicação à causa do socialismo e à luta contra o colonialismo. Giap foi sempre muito discreto e a sua probidade era exultada pelos seus próprios adversários e inimigos, o que o transformou numa das enormes figuras do “Terceiro Mundo”.
Não copio os maoistas a desejar “Longa vida ao general Vo Nguyen Giap”, porque felizmente tem uma vida longa e o seu exemplo multiplica-se num mundo onde a luta de classes não passou para o “memorial da história”. É bom tê-lo entre nós!
A Líbia, sessenta anos depois é revisitada pelos mesmos protagonistas de El Alamein unidos numa pretensa “Operação Humanitária”. O Afrika Korps de Rommel em 1941 uniu-se às forças do marechal Montgmery e às bizarrices de Mussolini, para lutarem contra uma figura de opereta, Kadhafi, que já é ditador há décadas, e que só agora pelas razões mais cínicas, terão premeditado esta aliança espúria para o derrubar.
Não me surpreende que a Libia não tivesse armamento sofisticado, já que quando posta à prova a fanfarronice do seu leader, a resposta em termos militares foi sempre paupérrima; O maior argumento de Kadhafi é o pulmão, num jeito de “agarrem-me já senão desfaço-o”.
Não gosto de lideranças políticas assentes em pressupostos religiosos, e como sempre defendi a laicidade total dos estados, a separação entre igrejas e estado, o que me parece existir cada vez menos, principalmente quando os chefes vão sendo cada vez mais idosos e esperam que com essa união possam ter acesso às “mil virgens” ou ao reino dos céus ou à companhia de outras Isís, Vénus e quejandos. Justifica Woody Allen: “ Interessa-me o futuro porque é o lugar onde vou passar o resto da vida”.
Uma das situações que me surpreendem na Líbia é o facto de a guerra ser muito parecida com um Paris-Dakar com gente pendurada em veículos de todo-o-terreno, cheia de armamento ligeiro e a dispararem para qualquer lado à aproximação de qualquer câmara de TV.
Penso que á partida a grande vencedora da confrontação da Líbia é a Toyota, porque são emblemáticas as pick-ups que vão andando num afã de um lado para o outro, sem percebermos muito bem para que “lado é a guerra”. Vou continuar expectante para saber se a “varridela selectiva dos ditadores” vai alargar-se a prepotentes sultanatos, onde a mulher é aviltada nos mais elementares direitos humanos e de cidadania.
Porque estamos em tempos de efemérides, lembro-me de ouvir contar que há cinquenta anos, no dealbar da guerra de libertação em Angola, Salazar faz um daqueles discursos roufenhos e sensaborão, entrecortados com uns gritos imperceptíveis por parte dos seus apoiantes, sempre disponíveis a promover em todo o território manifestações patrioteiras de glorificação do “chefe supremo da nação”. Em Coimbra no edifício ocupado pela Legião Portuguesa, contíguo ao Governo Civil, onde se realizou uma “espontânea” manifestação, estava desfraldado uma enorme tarja que dizia:”Angola 1961, o temor não mora aqui!”; No edifício da frente, uma bela república de estudantes, os irreverentes moradores pegam numa tarja e com letras garrafais colocam na varanda: “Aqui também não”, o que provocou a ira dos apoiantes do regime, autoridades, PIDE e simultaneamente o gáudio e a hilaridade dos muitos que presenciaram a cena.
Ah, esquecia-me, havia um anúncio que dizia no fim dos anos sessenta: “E quando passa todos dizem: Toyotahuéee” !
Fernando Pereira
1-9-2011
RIQUINHO DE PORTUGAL! /O INTERIOR/ 7-9-2011
Desculpem o arrojo desta crónica, mas tantos a lixarem-me julgo ter direito a este devaneio, porque como diria Chaplin, “tenho a impressão que os homens estão perdendo o dom de rir”, ou mesmo do mesmo "Através do humor nós vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental”Hoje resolvi introduzir este tema!
Por falar em introduzir, hoje vou falar do paquete Infante D. Henrique, essa jóia da ex- Companhia Colonial de Navegação, onde viajei algumas vezes entre Lisboa e Luanda e ” versa ou vice”.
Para falar do paquete em causa, tenho de começar por falar do próprio Infante. O Henrique de Lencastre era filho do João e Filipa, que já nesse tempo era um nome da moda, e fazia parte da Ínclita Geração, e de facto era uma significativa parte da visão do que se tentava incutir na «raça» portuguesa ao longo dos séculos.
Essa tal ínclita geração tinha de tudo um pouco! Um gestor da treta que cavalgava em toda a sela, mas que se esquecia de deveres conjugais mínimos, que eram usurpados por outros cavaleiros e quiçá alguns pajens; Estou a falar do Duarte, depois um Pedro que era galfarro, e também enchia páginas da "Caras", e outras revistas mundanas ou “nundanas” do tempo, havia o Fernando, que levou na mona dos mouros em Ceuta, que virou santo, o que hoje seria fácil ao ritmo a que são feitas beatificações. Aqui uma certa semelhança com o F. C. Porto no tempo do fascismo, em que os clubes de Lisboa tudo ganhavam, com o beneplácito do regime. Roger Moore era Santo, porque atacava umas moças em filmes de alguma acção e beijoca a esmo.
Ainda havia duas infantas, que nunca entraram na dita ínclita geração, e devem ter sido sepultadas em Mouriscas do Vouga, pois não estão ao pé da “malta” na Batalha das Imperfeitas Capelas, ao pé de um infeliz, ou um conjunto de ossadas de uns infelizes, a quem em vida nunca perguntaram se porventura se importariam de ser soldado desconhecido, só para ser guardado toda a eternidade por infelizes conhecidos, com horário rígido copulado com um “faceas” esfíngico.
O quarto da Ínclita, já que eu a bem dizer ainda prefiro os quatro de Liverpool, era o Infante D. Henrique!
O Henriquinho de Lencastre era um tipo mal vestido, todo de negro, tipo anúncio da Sandeman, com uma tez de quem sofria da figadeira, com um bigode tipo anúncio da Gillett nos anos 60, complementado com um chapéu aparentemente com a aba muito ensebada. Ele lá corria as praias todas, com os cosmógrafos e compassos italianos na sua peugada, e era bom e bonito, o que eles faziam nas falésias de Sagres ou na” Meia Praia ao pé de Lagos”, como 500 anos depois cantava José Afonso.
Enquanto os italianos se entretinham com as cartas de marear, o Infante ia mareando nas faldas da Serra de Monchique, à procura de padrões de aspecto fálico para colocar em todas as possessões a achar, de forma a perpetuar em "Novos Mundos ao Mundo", também a sua ousada opção sexual, que a coberto da linhagem, possibilitava que a Igreja fosse permissiva” indulgendo” um pecaminoso nobre.
E eis que Portugal penetrava, pelos vistos por penetração também na epopeia dos achamentos.
E eu que ia falar do paquete “Infante D. Henrique”, que tinha um pianista que presumivelmente tocava melhor que o Bill Evans, mas havia gente que discordava, sem tampouco o terem ouvido numa dessas viagens de vice-versa!
Desculpem, esta linguagem homofóbica, mas calhou!
Fernando Pereira
1/9/2011
2 de setembro de 2011
CRÓNICA BREJEIRA / Ágora / Novo Jornal 189 / Luanda 2-9-2011
Sou um admirador confesso do Luis Pacheco.
Luis Pacheco (1925-2008) foi só o mais virtuoso provocador das letras portuguesas. Colaborador da revista angolana “Notícia” entre 1968 e 1973 brindou-nos com crónicas que são constantemente reeditadas em antologias diversas. Era um homem pouco atreito a regras e multiplicador de inimigos, corrosivo bastante para provocar iras e alimentava debates constantes, muitos publicados que já fazem parte do acervo literário português. Provocador indocumentado, muito poucos conseguia escapar ao gume das suas palavras.
Era recorrente não ter dinheiro e recorria aos amigos para lhe valerem nos seus cada vez mais curtos ciclos de aflição, que a determinada altura passaram a eternos; Costumava classificar os amigos em função de quanto lhe emprestavam: amigos de vinte escudos (muitos), de cinquenta (muitos ainda), cem (uns poucos), quinhentos (raros) e mil (um apenas, o nosso conhecido Manoel Vinhas).
Em determinada altura os amigos davam-lhe trabalhos de tradução para ajudar a minorar os seus eternos apertos financeiros. Numa ocasião, o tradutor Bruno da Ponte resolve entregar-lhe uma parte da versão francesa do “Dicionário Filosófico” de Voltaire, já que na circunstância os prazos eram curtos e sempre ajudava o Pacheco a ganhar algum. O Luis recebeu o dinheiro mas a tradução demorava a sair, mesmo por insistência do Bruno da Ponte que estava a ser pressionado pela Editorial Presença, pois precisava do livro para distribuição. Depois de muito esforço o Luis Pacheco numa noite sentou-se em frente à sua máquina de escrever, e sem nenhum dicionário de apoio “aviou” a tradução. Acontece que havia palavras e termos que desconhecia, e colocou-as a vermelho para posteriormente as emendar; As palavras a vermelho eram um chorrilho de asneiras do mais ordinário possível, em que as palavras “merda” e “puta” eram indiscutivelmente as mais brandas. Foi dormir e nunca mais se lembrou do assunto. De manhã telefonam-lhe pela enésima vez a solicitarem a tradução e pegou nela, foi ao Correio e mandou-a para Lisboa para o Bruno da Ponte, que sem ler a entregou ao editor e este sem rever enviou para a tipografia. Os tipógrafos tinham um princípio de nunca alterar uma linha ao que lhe era enviado, porque julgavam que todas as palavras a vermelho faziam parte do texto, tipo “coisa de intelectuais”, e o que fizeram foi colocá-las em itálico. A edição começou a ser feita e o Luis Pacheco, num rebate tardio de lembrança resolve sair das Caldas da Rainha, onde morava, e vem a Lisboa à pressa tentar travar a impressão, o que só foi possível em parte. A verdade é que os exemplares que existem dessa edição atingiram um preço proibitivo, porque quem a possui não se quer desfazer dela por nada. Convenhamos que o nome do Luis Pacheco não aparece, e o Bruno da Ponte ainda hoje diz ter passado a maior vergonha da vida.
Já que se fala em gafes recordo que nos anos sessenta o jornal portuense “Primeiro de Janeiro” mandou para a rua uma edição matinal em letras garrafais, na primeira página, que dizia “Publicadas as contas gerais do Estado”; O detalhe importante foi que a tipografia omitiu o “T” na palavra “contas” e o resultado ficou bem à vista em todos os quiosques e ardinas, até a edição ter sido toda recolhida, já que no jornal ninguém tinha previamente visto com cuidado a página principal.
Em Coimbra existe um vetusto jornal conhecido como o “Al Calinas”, uma derivação do célebre jornal egípcio “Al Aran”,o Diário de Coimbra, que de vez em quando brindava-nos com títulos deste tipo: “Octogenária de oitenta anos caiu do eléctrico e ficou contusa”ou “ Arma de dois anos fere gravemente criança de dois canos” ou “Faltou a luz no estádio da mesma”, e por aí fora.
Nunca nos haveremos de esquecer “das propriedades afro-asiáticas” de uma planta com propriedades afrodisíacas, como bem dizia uma jovem locutora da TPA, nos tempos em que esta era ainda Popular e não Publica e a caminhar para a Privada!
Acham por isso que alguém se surpreende pelo anedótico da revista portuguesa “Sábado” num recente artigo sobre Luanda. Brejeirice total!
Fernando Pereira
27/08/2011
MÁRIO PALMA: A SUSTENTÀVEL IDEIA DE VENCER / Novo Jornal / Luanda 2-9-2011
O Novo Jornal (NJ) deslocou-se a Coimbra para entrevistar Mário Palma, o mais titulado dos treinadores angolanos, que levou a selecção portuguesa pela segunda vez na história do basquetebol luso à fase final do campeonato da Europa de basquetebol, a disputar na Lituânia.
Esclareça-se que esta entrevista foi feita durante a primeira fase do campeonato africano de basquetebol a disputar em Madagáscar, e a pedido do entrevistado evitou-se que se fizesse qualquer referência à selecção angolana que defende o título.
NJ- Mário Palma recorda-se o título de 1980, que afinal foi o primeiro de 27 títulos conquistados em Angola, entre os quais seis campeonatos africanos seniores?
MP- Lembro-me perfeitamente desse campeonato africano de juniores em 1980 pelo entusiasmo de jogadores, técnicos, dirigentes e publico que permitiu que Angola conquistasse o seu primeiro campeonato continental, que foi um poderoso incentivo para colocar o basquetebol como a modalidade de maior visibilidade no País. Quem pode esquecer aquela final épica na Cidadela?
NJ- Regressa ao “1º de Agosto” num dos momentos piores do clube no contexto dos campeonatos de basquetebol. Admite que é um desafio com alguns contornos de risco?
MP- Quem anda em competição sabe que há momentos em que se ganha e momentos em que se perde; Faz parte do nosso quotidiano de treinador, e quando temos razões de sobra que o nosso trabalho é sério, é apoiado, é profissionalmente assumido com muitas certezas que ao longo da carreira se tornaram inabaláveis, permite-me aceitar o desafio num contexto que certamente iremos dar muitas alegrias a um clube para quem tenho uma dívida.
NJ- Dívida? Explique lá isso.
MP- Em 2005/6 pela 1º vez em toda a minha vida senti que desiludi todos que comigo trabalhavam, principalmente os jogadores e pessoas do clube com quem tinha grande afectividade. Conjugaram-se uma série de factores desde problemas de saúde, aliado a um desequilíbrio emocional , que não conseguia dar-me uma estabilidade indispensável para um trabalho profícuo e que desse ao clube os títulos que todo o seu empenho na modalidade exigiam.
NJ- Não estará à espera que o seu regresso seja do agrado de todos?
MP- Claro que não, e não seria desejável que isso acontecesse, pois o monolitismo é sempre redutor em todas as vivencias colectivas, e só a divergência e a crítica permite melhorar o nosso desempenho no campo profissional e no nosso comportamento inserido numa sociedade de valores onde a seriedade e a ética tem que ser traves mestras de todo o edifício onde vivemos. Regresso a Luanda disposto a trabalhar e promover algum debate, porque os meus quarenta e cinco anos de Angola atribuem-me responsabilidade que acho que não devo alijar. Não estou disposto a abrir guerras pueris, mas também não estou disponível a que ser alvo de avaliações soezes de carácter, quando a única crítica que tenho que admitir tem que ser fundamentadas pela discordância das minhas opções em jogo, pois sou um técnico qualificado, e digo-o com justificada vaidade que tenho um palmarés que poucos a nível mundial se orgulham de o ter.
NJ- Voltando ao seu regresso ao “1º de Agosto”, que expectativas traz, quando já ganhou no clube tudo que havia para ganhar enquanto técnico?
MP- Costuma ser lugar-comum dizer-se que não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz. Nunca devia recusar o convite feito para continuar às pessoas que insistiam comigo para ficar em 2006 e aos que afectivamente estou ligado .O Lutonda dizia insistentemente: “ O Prof não pode sair daqui” e expressava bem o carinho de todos, que eu provavelmente ao tempo avaliei de forma demasiado superficial, mas foi assim!
Quero colocar o “1º de Agosto” no seu lugar de topo no basquetebol angolano e quero ajudar a desenvolver estruturas que ajudem o clube a renovar-se e simultaneamente a formar jogadores, técnicos e dirigentes que o potenciem como o maior clube angolano de basquetebol.
NJ- O Mário Palma está a dar uma entrevista defensiva, sem querer falar do basquetebol angolano, selecção, clube e técnicos, a maior parte dos quais trabalharam consigo enquanto jogadores e começaram consigo como técnicos.
MP- Admita que seria deselegante da minha parte fazer abordagens críticas à FAB, à selecção, a técnicos ou jogadores, isto para me circunscrever aos agentes activos do basquetebol. Tenho as minhas ideias, partilho pontualmente as minhas concepções, mas acho que não é importante para o basquetebol angolano abrir guerras artificiais, autofágicas que apenas beneficiam os nossos adversários e fragilizam o muito de bom que se tem feito no País no domínio desportivo. Penso que por vezes exigir-se-ia à FAB uma melhor política de comunicação, de forma a dar visibilidade a um trabalho esforçado e dedicado do Gustavo da Conceição e seus colegas de direcção.
Conheço três gerações de jogadores ganhadores de Angola, treinei a maior parte deles, naturalmente que tenho que ter opinião, o que não devo é antes de chegar mandar recados, porque isso seria uma prática condenável. Admito sem rebuço que o Olimpio é potencialmente um dos melhores jogadores do Mundo na posição 2, como Lutonda que tem 40 anos e o Carlos Almeida deveriam ter sido convocados para a selecção nacional. Está a ver que não fujo a nada, mas há momentos para tudo, e este é o momento para regressar e trabalhar no propósito de alcandorar o 1º de Agosto aos patamares cimeiros do basquetebol africano.
NJ- E a selecção de Angola? Pensa um dia voltar a sentar-se como timoneiro da selecção?
MP- Sou um profissional de basquetebol, já passei por muito sítio, por isso nunca ponho de lado a hipótese de novos desafios ou repetir situações vividas com sucesso. Neste momento tenho um contrato com a selecção portuguesa que termina em Setembro de 2012. A selecção de Angola tem um corpo técnico a trabalhar, por isso parece-me extemporânea a pergunta. “ O Caminho faz-se caminhando” como dizia o poeta espanhol António Machado.
NJ- Na minha opinião já devia ter sido dada a nacionalidade Angolana ao Mário Palma, não apenas pelas suas décadas em Angola, mas também por ter sido obreiro de grandes alegrias que Angola vem vindo a ter em termos desportivos há trinta anos. Que expectativa leva para uma Angola, diferente da que deixou em 2006?
MP- Gostava de ser cidadão angolano, e também partilho consigo a ideia que o mereço, mas isso não me cabe a mim resolver, ou melhor talvez venha a pedi-la, porque afinal sempre aqui vivi e o tempo que cá não vivi, vivia por aqui.
No meu regresso vou gostar de visitar o País todo sem constrangimentos de qualquer ordem. Ir por estrada a locais onde já não vou há mais de trinta e cinco anos e que me marcaram na minha juventude vivida numa Luanda crioula dos anos 50 e 60. Vai ser um complemento excelente do basquetebol e revigorante para mim que sempre quis ver este País em paz e a desenvolver-se como parece acontecer a um ritmo interessante.
NJ- Muito obrigado e felicidades no seu “Reviver o passado no 1º de Agosto”, e fica já aprazada nova conversa no fim da época para uma avaliação.
Fernando Pereira
Hotel Tivoli Coimbra 22/8/2011
26 de agosto de 2011
O ADEUS ÀS ARMAS?´/ Ágora / Novo Jornal nº188 /LUanda 26/8/2011
"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso. Mas esse regime só pode ser concebido, realizado e sustentado por homens que saibam que não sabem tudo, que se recusem a aceitar a condição proletária e nunca se conformem com a miséria dos outros, mas que recuse, justamente, a agravá-la em nome de uma teoria ou de um messianismo cego."
Albert Camus, Novembro de 1948
Há sessenta anos Camus dá um “murro” nos conceitos da esquerda francesa quando faz sair o livro L´Homme révolté , “ O Homem Revoltado”, o que o leva a zangas com anteriores “compagnons de route” como por exemplo Jean Paul Sartre, com quem nunca mais reatou relações.
Esse livro contextualizado num tempo em que Mao emergia na China como um libertador e um guia de uma revolução, no país mais populoso do mundo, quando MacArthur, o vitorioso general americano da guerra do Pacífico pedia bomba atómica sobre a China, no momento em que os americanos já intervinhamna Coreia, uma obra que punha em destaque a completa inutilidade das revoluções, era no mínimo espantoso.
Argumentava Camus que as três revoluções que eclodiram em França, reportando-se principalmente à de 1789, criticando a sua elevada violência, não conseguindo trazer à França um padrão de vida melhor que países escandinavos e os ingleses conseguiram sem grandes tumultos optando por transições pacíficas moderadas.
As críticas de Camus aos destemperos das revoluções não pararam por aí, visto que acreditava que os seus líderes no poder, mais tarde ou mais cedo, se tornavam repressores ou heréticos, policiais ou loucos!
Já há muito que não me lembrava deste livro de Camus e nem sei bem a que propósito, resolvi reler páginas que sublinhei há trinta anos, acrescidos de pontos de interrogação e exclamação, que reflectiam as minhas certezas em relação a certas passagens. Essas referências no texto eram nem mais nem menos que as minhas certezas de então, que a teimosia dos factos acabou por alterar para uma cada vez maior quantidade de dúvidas em relação à vida, ao mundo e às relações entre os homens num quadro que não pode ser limitado só à luta de classes, mas também não deve ser liminarmente abolido, como se tenta fazer quotidianamente na defesa do sacrossanto domínio de uma quase divindade chamada mercado.
Esta releitura de Albert Camus, um existencialista que me obrigou a ler tudo o que publicou, desde ensaio, romance ou teatro trouxe-me angústias, que julgava repelidas pela voragem dos tempos algo niilistas que vamos vivendo.
Uma das preocupações que tenho, e julgo que partilhada com algumas pessoas com quem vou discutindo ideologia e política tem a ver com a ausência total do ideológico no quadro político angolano.
Aparentemente muitos acham que a política é dispensável, mas não se coíbem de utilizar a sordidez de outras formas de manipulação para atingir a chefia dos chamados grupos de status, no nosso caso o racismo, as prerrogativas familiares, o regionalismo, e partirem daí para afirmações de um grande coração angolano, com as veias cavas oleadas em saborosas notas de dólar.
Como não existe democracia num estado puro. Não existe democracia no vazio. A democracia é sempre portadora de um conteúdo de classe, fico-me por uma citação de um livro comprado na ex-livraria Che Guevara em Cabinda há muitos anos, e que hoje também desfolhei sem particular interesse, e nessa altura sublinhei a vermelho, preto e amarelo: «As ideias nunca podem levar a ultrapassar um antigo estado do mundo, apenas podem permitir ultrapassar as ideias do antigo estado de coisas. Falando de uma maneira geral, as ideias nunca podem executar nada. Para executar as ideias, são necessários os homens, que põem em acção uma força prática».Karl Marx e Friedrich Engels, A Sagrada Família, Editorial Presença, 1974, p.179.
Não sei se vem a propósito, mas há mil e uma razões para não comprar um Rolls-Royce; a primeira é a falta de dinheiro… as outras, assim sendo já não interessam.
Fernando Pereira
20/08/11
19 de agosto de 2011
MARABUNTA / Ágora/ Novo Jornal nº 187/ Luanda 19-8-2011
Hoje vou ter que ir ao baú do muito que ouvi, do pouco que vi e do bastante que imaginei relativamente à “Marabunta”
Para os menos familiarizados com estas coisas: Marabunta (Cheliomyrmex andicola) é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. É de cor avermelhada, tamanho médio, parecida com o Kissonde. Suas mandíbulas são em forma de garra e armadas com grandes espinhos, semelhantes a dentes, que permitem que elas se prendam às suas presas durante o ataque. Suas picadas são extremamente dolorosas, irritantes e paralisantes. A dor que provoca assemelha-se com a da picada das "formigas de fogo".São a única espécie que remove e consome carne de vertebrados, como lagartos, serpentes e pássaros, inclusive de animais de maior porte, até o homem.
Não vem muito a propósito, mas retenho na minha memória a invasão de uma horda de kissonde a um terreiro circundante às residências de uma exploração de café no Norte de Angola. Era miúdo, e recordo-me de ver milhões de formigas a deixarem lisinho o terreno por onde passavam, e a irromperem em direcção à fogueira entretanto ateada com gasolina, única forma de as conseguir parar e exterminá-las.
Vou falar de outra “Marabunta”, uma personagem famosa da Luanda dos anos cinquenta e sessenta e que já só conheci numa fase em que a sua áurea se teria já desvanecido. Era uma madeirense que terá emigrado para Luanda, na busca de uma vida que dificilmente encontrava na sua Madeira.
Segundo as vozes a “Marabunta” era uma mulher que desafiava a morrinha quotidiana da provinciana Luanda do antanho. Mulher vistosa, loura, despreconceituosa, ambiciosa, deslocava-se sempre num Chevrolet Corvette vermelho garrido descapotável, insinuando-se numa cidade que parava literalmente para a ver.
Constava-se que esse Corvette era do Ferreira da Massa, que tinha umas fazendas de café, abriu o Bowling ao pé do Hospital Militar, uma fábrica de massas num edifício onde funciona a representação consular da África do Sul, ali para os Coqueiros.
A “Marabunta”, apenas sei que se chamava Gracinda, alimentou muitas histórias e muita galga na Luanda dos anos sessenta e setenta, e só vê-la passar em frente ao Salvador Correia era para os que se empoleiravam no muro um verdadeiro troféu, imaginando pelos joelhos da senhora o torneamento do resto das pernas.
A “Marabunta” era muito ciosa nas suas relações, e conta-se que um daqueles fazendeiros do café enriquecido, quis gozar com ela; Depois dos “preliminares”, passou-lhe um cheque de 20 contos (atenção estamos no fim dos anos 40 e era muita massa) sabendo que aquela conta só tinha 18, ela foi ao Banco de Angola, e como era sobejamente conhecida o banco depositou os dois contos e ela levantou o cheque. O fazendeiro acabou gozado quando pensou que estava a lidar com alguma “amadora”.
Em determinada altura na hoje Avenida Valódia, estabeleceu-se na “Vidraria dos Combatentes”, paredes meias com o ” Punta del Pazo” , tendo comprado todo o material da “vidraria Leiriense”, ao lado da Saratoga ao pé do edifício na Mutamba que hoje alberga o Ministério das Finanças. Na cidade faziam-se conjecturas diversas, como é que ela teria conseguido o dinheiro para montar um estabelecimento, que era passagem obrigatória de miudagem e graudagem, por razões que pouco tinham a ver com vidros ou espelhos. Constava-se que tinha sido novo-rico do café do Golungo-Alto, que estava com ela amiúde no “Sporting” na 1ª rotunda da ilha, e que dizia em voz alta: “O meu dinheiro é inacabável”. Parece que a “Marabunta” sem muito esforço, provou o contrário em pouco tempo, tendo-o deixado falido. A realidade é que a senhora juntou-se entretanto com um furriel do exército colonial, que as más línguas da cidade chamavam de “furriel consorte” , mudou de carro, tendo comprado um Chevrolet Camaro amarelo, aí por volta de 1970. Nessa altura já envelhecia e vendeu por muito bom preço o único Corvette descapotável que havia em Angola, e que tinha a matrícula AMF- -?
Duas décadas de ouro, para o carro e para a Marabunta, afinal uma mulher que toda a cidade conhecia e contava histórias, muitas inventadas, mas que ainda hoje é recordada nas conversas de um cada vez maior número de pessoas, que cada vez mais se lembram do que se passou há muitos anos, e não se conseguem recordar o que fizeram uns dias antes.
Para lá caminho também!
Fernando Pereira
15-8-2011
12 de agosto de 2011
"Massa Bruta" / Ágora / Novo Jornal nº 186/ Luanda 12/8/2011
O Negage no tempo colonial era uma cidadezinha (???) sem grande piada, que não destoava de todas no grande Congo Português.
A figura marcante do Negage durante décadas foi um ex-degredado de Valpaços, vila portuguesa transmontana, João Ferreira de sua graça.
Tinha um porte físico avantajado, sempre andrajoso com umas calças de serrobeco coçadas, uma camisa de xadrez que poucas vezes terá visto água e sempre nas costas com um casaco ensebado que nunca largava, fizesse frio ou calor argumentando que “o que tapa o frio tapa o calor”.
Segundo constava, este iletrado era provavelmente uma das maiores fortunas de Angola e à sua volta multiplicavam-se as histórias mais inverosímeis. Eu conheci-o em miúdo e nunca mais me esqueci da abundante pilosidade das suas mãos, sempre em movimento no meio de berros quase imperceptíveis.
Tinha uma actividade comercial fecunda e as suas cantinas proliferavam por todo o Norte de Angola desde o Ucua, Camabatela, Kimbele, Quitexe, Kalandula, Ambriz, Cangola, Tomboco, uma teia que percorria várias vezes por ano para fazer contas com empregados locais. Quando fazia as contas e o empregado se queixava que “o negócio estava mau”, o “Massa Bruta”, como também era conhecido, dizia ao feitor que o acompanhava que “faça contas com este tipo”; Perante a estupefacção do empregado dizia: “Um empregado meu tem que roubar para ele e para mim, só roubar para ele não é negócio ”.
Tinha umas fazendas de café, uma demarcação de gado e muitos prédios urbanos espalhados pelo norte de Angola, Luanda, Lisboa e Valpaços, onde quando ia de férias havia sempre uma festa programada com banda fanfarra e bailarico durante dias, onde as pessoas comiam por sua conta. Era um gastar à tripa-forra de uma pessoa que era avaro no que tocava a fazer face às suas obrigações, para com os contratados nas suas propriedades em África, muito pouco respeitados aliás.
Em Luanda, num terreno na Valódia onde até há bem pouco tempo havia um mercado numa miserável adaptação africana dos jardins do Dali em Figueras, o João Ferreira preparava-se para fazer o maior prédio de África, “donde se avistasse Catete”, que felizmente se ficou pelas intenções, frustradas pela evolução política angolana.
Contam-se histórias surpreendentes do João Ferreira, como aquela de ter ido ao BCA, no início dos anos 60, e com o ar andrajoso terá pedido 15.000 contos da sua conta, ao que o empregado disse que tivesse juízo; Como o Ferreira insistia que queria o dinheiro, o gerente do banco é chamado ao balcão e fica lívido quando se depara com a situação. O fanfarrão do Ferreira exigiu que o empregado fosse demitido e que lhe fosse dado todo o dinheiro que por lá tinha, algo que o Banco despodia fazer. Depois daí a história espalhou-se que seria para instalar o BCCI, que o dinheiro teria ido em camionetas para o mato em notas de vinte, que o caixa que contou o dinheiro se enganou na contagem e deu mais de mil contos, tendo ido ao Negage de avião e depois de sanado o erro, o Ferreira terá dito: “ Tome lá os mil contos, que dinheiro só quero o meu, e leve mais este molho de cem para os gastos e o susto”. Conta-se a história de ter comprado o “Hotel Mundial”, depois de lhe ter sido barrada a entrada por se apresentar sujo e andrajoso, tendo exigido o despedimento imediato do empregado.
O João Ferreira em determinada altura, numa atitude recorrente de “coronel” brasileiro do interior, quis impor no Desportivo do Negage algo que desagradava aos outros directores, que ousaram desafiá-lo. Não esteve com meias medidas, fundou o Sporting, mandou alguém a Lisboa comprar uns jogadores das reservas do Benfica, alguns já com varizes, e eis que nos deparamos no fim dos anos sessenta, uma vila do interior com duas equipas a disputar um campeonato de doze equipas, numa afirmação clara que o dinheiro abrutalhadamente conseguido vale mais que tudo.
Para muitos era uma figura notável, que colocou o Negage no mapa, tendo inaugurado em 1971 o Hotel Tombwaza à entrada na estrada que vinha de Camabatela, mas não passava de uma figura ridícula apaparicado porque tinha dinheiro, não sabia ler nem escrever, não sabia conduzir, não andava de avião, em síntese uma pessoa amiudadas vezes recordada pelos piores motivos.
Não respeitava a autoridade, porque entendia que era ele que a pagava, tratava toda a gente com sobranceria e era excessivamente grosseiro com os seus empregados principalmente com os trabalhadores negros; Não usava cheques e o seu mundo era limitado e talvez mesmo os seus maiores devaneios foram as garrafas de espumante marado que pagava a rodos nos cabarets luandenses Bambi, Marialvas, Embaixador etc., onde a sua boçalidade era insistentemente comentada.
Gente deste jaez era dispensável em Angola.
Fernando Pereira
8/08/2011
"Trinca-Fortes" / O Interior/ 11-8-2011
A Lusofonia tem as suas vacas sagradas, e admitamos sem rebuço que Luís de Camões é uma delas pois é um dos símbolos maiores da escrita em língua portuguesa!
Desvou escrever sobre Luís Vaz de Camões da forma hermética que o discurso oficial e oficioso da Lusofonia nos habituou, mas sim do verdadeiro "Trinca Fortes", com as características do português suave de Fernão Mendes Pinto miscigenado com o Fado Tropical de Chico Buarque.
Na linguagem da filosofia, tentou-se criar uma ciência independente: "A Semiótica"! Realmente a primeira proeminente figura da Semiótica mundial foi Luís de Camões, ombreando com o Capitão Gancho e mais recentemente com o antigo ministro da defesa israelita, Moshe Dyan. O comum destes tipos era só terem um olho, ou apropriadamente dizerem, trazer tudo debaixo de olho!
Falando de Luís Vaz de Camões, que tem para aí dez terras a assumirem que nasceu por lá! Lisboa (os lisboetas só ainda não assumiram que o Pinto da Costa nasceu lá, porque ainda é vivo, e inevitavelmente daqui a 500 anos irão, de certeza fazer-lhe uma estátua, colocarem uma lápide numa casa a dizer:”Aqui presumivelmente nasceu Jorge Nuno de Lima Pinto da Costa, homem sério, vencedor como nenhum outro, incompreendido no seu tempo!”). Santarém, Coimbra, Constança, Porto, Linhares da Beira, outras e paradoxalmente no meio de todas Olhão, que presumo por um devaneio humorístico, pois só faltaria, terem dito, que o homem teria nascido na avenida da Boavista no Porto.
O Luís de Camões fascina-me em muitos aspectos! Começando pelo seu fim, admitamos que personifica algum pechisbeckismo dos portugueses. Estar na miséria, e ter um escravo com nome económico, Jau, para mendigar por ele. Tinha uma tença, que revela bem que o problema das reformas é já um problema antigo, que não lhe dava para sobreviver, e vai daí arranja um escravo para cobrir alguma zona da cidade. Esta de ter um escravo para pedir esmola é coisa grande!
Outra coisa que me fascina, é o facto de ele ter atravessado o mar da China, com os Lusíadas numa mão no meio da tempestade. Sinceramente era demais, sem um olho e só com um braço, o homem merecia uma toalha da GANT á chegada, um chá e uns scones quentinhos! Como ainda não havia a indústria da petroquímica, nem os derivados do petróleo, não se pensava sequer nos sacos de polietileno, para embrulhar o notável canto IX dos Lusíadas, que no liceu só um professor de português numa de clandestinidade ousou mencionar. Houve alguém que insistiu presumir, que todo esse episódio aconteceu na Costa dos Esqueletos, perto do rio Cunene.
Já vem de longe, a falta de apoio aos criadores e à cultura, algo que não acontece com a gente dos mercados, tão apoiados sempre pelo dinheiro subtraído aos contribuintes.
Algo em que o olho é recorrente ou não estivéssemos a falar de Camões é vê-lo andar sempre metido com o olho pelas casadas, o que o obrigou a "ser olho por olho, dente por dente", prevalecendo no caso dele o “olho por olho”!
Deixo o “olho por olho” pois não faltaria muito para ser acusado de revelar alguma homofobia no que estou a escrever, fruto de leituras enviesadas que alguns fazem destes escritos.
Deixem-me pelo menos finalizar com duas breves citações do discurso do mal-amado Jorge de Sena no 10 de Junho de 1977 na Guarda sobre Camões e Portugal:
“Os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade”
“Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano”.
Fernando Pereira
7-08-2011
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