13 de abril de 2012

Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram! / Ágora /Novo Jornal 221/ Luanda 13/4/2012




Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram!
Durante o recolher obrigatório mais longo do mundo, a que o luandense se foi adaptando com a subtileza com que ultrapassava os escolhos em tempos hoje recordados com alguma nostalgia. Esses momentos tiveram o privilégio de deixar a marca solidária na sociedade angolana, que atualmente desvanecida pela inversão de valores.
Nessas noites tranquilas, nesse dealbar dos anos 80 descia do Kinaxixe a pé até à Casa do Desportista, onde tive poiso bastante mais tempo que esperava, e invariavelmente apanhava o “controle” a formar-se, saudavam-me com o “boa noite camarada”, perguntavam-me a hora, invariavelmente um quarto para a meia-noite, para chegar a casa a tempo.
Um dia atrasei-me, perguntaram-me as horas ao que respondi que eram meia-noite e vinte, logo me solicitaram os documentos e recebi voz de detenção. Contudo, provoquei uma enorme discussão entre os três militares porque perguntaram-me as horas, eu não menti, afinal o meu argumento mais virtuoso desde que comecei a ver o caso mal parado. Recebi a “alforria”, mas pediram-me para evitar a patrulha móvel, e lá fui a passo de corrida até à Casa do Desportista. A partir daí as horas que dizia eram as que me agradavam.
Numa noite de Março numa altura em que ainda não nos tínhamos habituado a ter ar condicionado, estávamos um conjunto de pessoas nas traseiras da Casa do Desportista, onde hoje está um conjunto de restaurantes e armazéns de duvidosa qualidade arquitetónica, ao tempo local aprazível e onde a brisa corria e amenizava a abafação da noite. Estávamos a conversar e entretanto surgem três soldados a pedir-nos os documentos, que naturalmente não estavam connosco, imediatamente a darem-nos voz de prisão porque estávamos a descumprir o “recolher obrigatório”. Argumentámos que aquilo era um quintal de uma propriedade privada, que o acesso à rua não era público, enfim mil e um argumentos que não convenciam o único graduado presente, que nem sequer conseguia fazer perceber a alguém como iríamos todos ser levados para a prisão já que o carro dele era um jeep pequeno. Começou a perceber que apesar da autoridade do fardamento faltava-lhe quase tudo o resto e acabou a ordenar-nos para “ir para a cama”, “desta vez passava”, e um conjunto de frases que só o iam cada vez mais cobrindo de ridículo.
Não se passou comigo, mas quem a contou merece-me todo o crédito. No Largo da Maianga estava um controle para ver os documentos e o livre-trânsito do recolher obrigatório. Um FIAT 132 azul, que era o carro distribuído aos vice-ministros do governo da então RPA, em tempos mais parcimoniosos na distribuição de viaturas aos dirigentes, é instado a parar.Dentro vinha o membro do governo sozinho, sem livre-trânsito, bem argumentava que era vice e os soldados não se deixavam demover, dizendo que “não o conheciam”, “se era membro do governo devia conhecer a lei”, o quadro recorrente nestas situações. Como ao tempo não havia telemóveis, o vice-ministro já se conformara em que iria ficar ali uns tempos. A certa altura mandam parar o Carlos Lamartine, e o júbilo foi grande entre os soldados que estavam ali perante um dos seus eleitos, meu também diga-se de passagem. Ele a certa altura olha para o FIAT e vê encostado o vice, e pergunta-lhe que está ali a fazer e a resposta: “Fui kangado”! O Carlos Lamartine perguntou aos soldados se não sabiam quem era, e prontamente os esclareceu, tendo-o “libertado” de uma noite no mínimo tediosa. Vale mais um cantor conhecido que um governante quase anónimo.
Uma noite, já muito tarde e confiadamente pensando que levava o meu livre-trânsito, nem me preocupou em “driblar” o controlo que sabia estar invariavelmente no início da Alameda Manuel Van-Dunem. A verdade é que quando lá cheguei dei-me conta que não tinha o documento, já que o tinha deixado em casa, e nenhum argumento demoveu um esclarecido militar com quem fiquei uns tempos agradáveis a conversar, já que era do Songo, onde vivi e conhecíamos muita gente em comum, para além de falarmos de tanta coisa pois estive ali, cerca de três horas, com mais cerca de cinquenta nas minhas condições. No fim pediu-me boleia para a 7ª esquadra, deu-me os documentos e desejou-me uma boa noite, agradecendo-me a companhia que lhe fiz. Arribeia casa já o sol começava a raiar por traz do prédio que em tempos foram as efémeras instalações da “Rádio Clube Português” na Hoji-ya-Henda.
Histórias suaves de um tempo onde nos habituámos a conviver com o recolher obrigatório e a tirar partido da situação que tivemos de 1977 a 1991.

Fernando Pereira
8/4/2012

12 de abril de 2012

Requiem por tudo e também por nada!




Requiem por tudo e também por nada!

Passámos do que estava para o que está. O que estará pode vir a ser aquilo que esteve. Se continuar o estar em vez do ser.

Já agora, Zweig no seu belíssimo O Mundo em que Vivi, que “é mil vezes mais fácil reconstruir os factos de uma época do que a sua atmosfera emocional”.

Vivemos simultaneamente o entediante espetáculo da politiquice serôdia e a desesperança num amanhã que a maioria acreditava ser diferentemente melhorado, nem que fosse apenas nas nossas férteis imaginações coloridas por telenovelas e anúncios que nos transportariam para quimeras de planuras sem obstáculos de tomo.

Por convicções políticas fui um dos que aderi às célebres e tão maltratadas campanhas de dinamização cultural do MFA, no distante ano de 1975. Fi-lo com a afirmação plena que o que estava a fazer era correto e mais razão me foi dada quando me embrenhei num interior de um Portugal que era tudo exatamente igual ao que no exterior era mostrado à saciedade.

Quando vi gente empenhada em aprender, pessoas que viram teatro, cinema, e outras manifestações culturais a primeira vez na vida ficávamos com a sensação que tudo viria a ser diferente. Muitos portugueses viram um médico pela primeira vez e acima de tudo sentiram que todos tentámos partilhar a ternura de um futuro que se queria definitivamente rompido com o passado.

Não o quiserem certas forças, apoiadas pela sordidez de alguns arautos de instituições milenares que se diziam donas da consciência dos cidadãos. A forma soez como foi tratada tanta gente de caracter, solidária e coerente na sua prática política sentir-se-ia hoje “desforrada”. A realidade que se vive no presente era o que nesse tempo se combatia, e as angustias de alguns são hoje partilhadas pela maioria da população.

Infelizmente, hoje estão no poder os filhos dos que armadilharam e boicotaram esses tempos de liberdade plena, onde se discutia quem devia deter as empresas produtivas, a banca, os seguros, as autoestradas, as gasolineiras, as terras e outras estruturas desmanteladas e desmazeladas pelos muitos que hoje se arrogam patrimónios da democracia. Hoje discute-se mais ou menos isso, mas com o aparelho produtivo quase aniquilado, uma agricultura que só residualmente produz para abastecer o mercado interno, umas pescas que desapareceram no País que tem a segunda maior área marítima exclusiva da Europa, em suma discute-se vamos vender uma empresa estratégica a Alemães, Franceses, Angolanos, Chineses ou aos habitantes permanentes da Disneylândia.

Sinceramente hoje já pouca coisa me indigna, porque na realidade por mais que o baralho mude de mão o jogo é o mesmo, e é-me completamente indiferente que acabem com freguesias, concelhos ou outras estruturas desconcentradas da administração central nas capitais de distrito, porque bem vistas as coisas a sociedade está moldada para que cresça o individualismo, construído meticulosamente pelos que destruíram o 25 de Abril de 1974.O poder foi legado aos seus herdeiros, que aparecem tipos “Grilo Falante” nos areópagos onde supostamente o cidadão julga que se decide tudo, e que não são mais que serventuários dos que sempre tiveram mão no pote.

Para termos ideia do que é a estratificação de uma sociedade e os seus códigos pego no exemplo do exército suíço, só o padeiro sabe que fardado, o universitário lhe é superior, à paisana é seu cliente.



“Se o homem nasceu livre, deve governar-se; se ele tem tiranos, deve destroná-los.” Voltaire



Por: Fernando Pereira

30 de março de 2012

Do Minho a Timor/ Ágora / Novo Jornal nº219/ Luanda 30/3/2012





"Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". Diógenes Laércio, o cínico.
Nestes últimos dias de Março de 2012 comemorou-se em Portugal, com alguma descrição diga-se em abono da verdade, os cinquenta anos da maior repressão policial que há memória sobre os estudantes portugueses, e que no léxico da resistência ao fascismo e colonialismo foi apodado de “Crise de 1962”.
O “acto” central foi Lisboa, embora o rastilho tivesse sido Coimbra, onde um conjunto de estudantes universitários na defesa da sua associação tinha sido preso pela PIDE. As razões de solidariedade acabaram por servir de mote à contestação ao regime e a um apelo à democratização, ao fim da guerra colonial e a implantação de um regime de liberdade.
A polícia de choque sem motivo justificado invadiu a cantina universitária, outros espaços da Universidade de Lisboa, e depois de inusitada violência prendeu um conjunto significativo de estudantes, entre os quais Jorge Sampaio, que anos mais tarde foi Presidente da Republica, entre outros que se foram notabilizando na vida política, social, cultural e cívica de Portugal.
A carga foi tão descabelada que o próprio reitor, o professor Marcelo Caetano pediu a demissão depois de exigir a saída da guarda pretoriana de Salazar, das instalações da universidade.
A participação de estudantes angolanos neste movimento foi relativamente insignificante, pois muitos já tinham optado por “dar o salto” para integrar os movimentos de libertação das então colónias, e os poucos que restavam reservavam-se pois desde o 4 de Fevereiro de 1961 eram olhados sempre com particular suspeita pelas autoridades.
Ontem como hoje, há manifestações boas ou más, consoante o ponto de vista, mas há pelo menos uma coisa que julgo que todos temos que estar de acordo e tem a ver com a condenação pela brutalidade excessiva das forças de intervenção, pois inevitavelmente só aumenta a razão dos que protestam.
Evocar os dias de Março de 1962 é também lembrar que 40% da população da então Metrópole era analfabeta, nas colónias era de 92% e o acesso à universidade só era possível aos filhos dos que dispunham de uma situação económica confortável. A realidade é que curiosamente também foram eles a cavar a sepultura de um regime que aparentemente os protegia.
Não sei o que será Timor-Leste depois da saída de Ramos Horta da presidência da Republica, mas pelo menos uma coisa talvez venha a saber: o pior que lhe podia suceder era ficar igual.
Fui durante anos um entusiasta da luta de Timor-Leste contra o regime de Suharto, mas nessa quase militância conheci uns poucos timorenses e a maioria deles muito mal formados. Em Angola tivemos alguns que não souberam aceitar a generosidade do País, que aliás era magnânimo até para alguns movimentos que pouco representavam em certos países.
Um dos exemplos flagrantes da falta de sentido patriótico dos dirigentes da resistência timorense foi uma reunião de vários dias num hotel de Peniche em 1998, já no estertor da presença indonésia no território, onde nem um documento mínimo conseguira apresentar, o que deixava transparecer dificuldades inultrapassáveis numa futura nação.
A demarcação de Ramos Horta e de Xanana Gusmão da Fretilin nunca foi muito bem explicada, e depois de manigâncias várias para a afastarem do poder, são cúmplices num dos maiores embustes da política democrática ao arredá-la da governação, quando foi o partido mais votado em eleições livres, tendo sido formado um governo de alianças espúrias entre partidos menores.
Timor-Leste começou a ser cobiçado pelas riquezas naturais na sua zona económica exclusiva, mas a realidade é que a população continua com os níveis de indigência que tem desde os tempos da presença de Portugal.
A Igreja timorense fortemente implantada nunca explicou o afastamento do Bispo D. Martinho Lopes da Costa, que morreu na miséria em Portugal, e da resignação intempestiva de Ximenes Belo. A Igreja não é uma democracia e não tem nada que explicar, mas também não tem nada que se imiscuir em assuntos de estados laicos. Um País que nasce de joelhos tem que fazer um esforço maior para se pôr de pé.
Talvez Timor-Leste acabe finalmente com trocas e baldrocas politiqueiras em que Ramos Horta e Xanana foram os rostos mais visíveis e se encare o progresso como alternativa coerente e viável ao determinante que o timorense tem que ser eternamente pobre.
Só se pede aos timorenses que não sigam o provérbio português: “Guarda o que não presta, encontrarás o que precisas”.

Fernando Pereira 26/3/2012

23 de março de 2012

Corpo de Delito ou Delitro? / Ágora / Novo Jornal nº218 / Luanda 23-3-2012





Em 1971 o mundo industrializado estava prestes a viver o primeiro choque petrolífero, provocada pela guerra do Kippur. A história nesse momento começaria a ser diferente e o político e jornalista francês Serban-Shreiber (1924-2006), fundador do L’Express em 1953, tão bem explicou no conjunto de artigos que foram coligidos em livro, “O Desafio Mundial” (D. Quixote 1982), e que ocasionalmente releio, para retemperar ideias e conceitos.
Na artificial modorra que Portugal parecia estar,  um grupo de diletantes resolveu pregar ao vetusto e prestigiado jornal “O Século” a maior partida que há memória na imprensa escrita de expressão portuguesa.
A notícia surgira, através de alguém da TAP, pelo que um membro do governo ter-se-á deslocado apressadamente de Coimbra para tentar um contacto com os visitantes, os quais talvez pudessem ser a chave para a flexibilização das condições altamente restritivas em que Portugal então vivia, no tocante a fornecimentos de petróleo. “Fonte muito bem informada” disse ao José Mensurado, recentemente falecido, que iriam estar algumas horas em Lisboa uns árabes próximos do Xeque Yamani, o senhor todo-poderoso da OPEP, para discutirem com Portugal a questão do petróleo contextualizando a então insipiente produção de Cabinda na discussão. Como a reunião era sigilosa os árabes iriam permanecer muito pouco tempo em Lisboa, chegando à Portela num voo da TAP de manhã, almoçariam no “Tavares Rico”, ao tempo o restaurante de topo em Lisboa, e regressariam a Paris no voo da tarde. O Rolls Royce de Jorge Correia de Campos , chega ao Tavares, sempre acompanhado desde o aeroporto de uma discreta segurança de duas motas, e o repórter Roby de Amorim que estava a acompanhar o “furo” pelo “Seculo” chama o José Mensurado, que aparece deixando “os árabes” aparentemente muito aborrecidos porque queriam a maior descrição possível. Os “xeiques” não falavam português e a pouca “lengalenga” era traduzida por um intérprete, que respondia às questões colocadas pelo chefe de redação José Mensurado que não escondia a indisfarçável euforia de ter nas mãos um furo deste calibre. Naquela encenação ainda cabia um “representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal” para dar maior legitimidade ao evento. Almoço aviado, umas fotos de permeio e ei-los a caminho da Portela, onde embarcaram segundo o testemunho do repórter do jornal.
No dia seguinte, a toda a largura da página em letras garrafais, o “Século” noticiava: “Árabes discutem petróleo em Lisboa”, e no subtítulo a referencia ao petróleo de Angola. Nas páginas centrais do jornal, a entrevista, as fotos e um texto encomiástico a tão ilustres personagens foram a cereja no cimo do bolo do que foi até hoje o maior “barrete” da história da imprensa escrita portuguesa.
Os “árabes” eram uns meninos de “china na bota e papá na algibeira” (Ary), que se vestiram a preceito, arranjaram um décor perfeito e conseguiram iludir toda a gente para que o jornal de maior tiragem de então propagandeasse tamanha partida. Gente com pedigree social na Lisboa de então, como o Chefe Michel da Costa, Manecas Mocelek, Jorge Correia de Campos e o nosso conhecido corredor de automóveis em Angola Nicha Cabral entre outros.
Não fora a censura e a história teria tido proporções maiores, mas a realidade é que esta história motivou a gargalhada geral no jornalismo português.
José Mensurado já tinha estado em evidência pelas piores razões, quando moderou a celebérrima mesa “arredondada” em 1965 em direto na RTP sobre a atribuição do prémio a Luuanda de Luandino Vieira pela Sociedade Portuguesa de Autores, que lhe valeu a vandalização das suas instalações seguida de ordem de encerramento. Nessa mesa, José Redinha, Amândio Cesar, Geraldo Bessa Victor e Mensurado, o mais que conseguiram foi tentar calar a voz dissonante de Mário António de Oliveira e fazerem um exercício que apenas serviu para justificar o injustificável assalto por parte de “milícias” enquadradas por legionários pedófilos a uma instituição de cultura.
Esta história sugeriu-me relembrar Brecht e a “Queima dos Livros”:
“Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira, um poeta
expulso, um dos melhores, ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! , escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não ma façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu
sempre a verdade nos meus livros? E agora
tratais-me como um mentiroso!
Ordeno-vos: Queimai-me!”

Fernando Pereira
20/3/2012

15 de março de 2012

No Antanho/Novo Jornal nº215/216/217 / Luanda / Ágora 16/9/2 de Março de 2012



NO ANTANHO!
(Iª PARTE)
Estou pouco para escrever, mais para copiar.
Esta carta de Luanda que por razões de espaço divido em três partes, é acima de tudo uma imagem bem ilustrativa de uma cidade de Luanda onde só parte da sua ambiência e as suas gentes são faladas. Era a vida!
Recordar Loanda Antiga através da pena de Henrique Paço D’Arcos faz-nos sentir como se lá tivessemos vivido nessa época hoje já longínqua em que a saudade e a esperança se misturam e desvanecem como fumo e sombras na bruma do tempo...
Pelo seu valor humano, histórico e literário, transcrevo na íntegra, e obedecendo à ortografia da época, o prefácio escrito por Henrique Paço d’Arcos dedicado ao seu amigo de juventude, colega de muitos anos no Banco de Angola, e distinto historiador luandense Manuel da Costa Lobo, na obra deste “Subsídios Para a História de Luanda” (edição do autor, Lisboa, 1967).


“Querido Manoel
Éramos naquele tempo dois rapazinhos novos que com o escasso intervalo de meses aportámos à velha cidade de São Paulo da Assumpção de Luanda.
A viagem para lá só se fazia então por mar, com escalas no Funchal e em São Tomé, e durava entre 17 e 20 dias.
No porto de Luanda os navios ficavam a uma distância enorme de terra sendo a ligação com esta feita por batelões e pelos gazolinas do Canelas e de mais dois ou três, uns melhores do que outros.
Na cidade, com a chegada do navio, era dia de São Vapor. Homens, mulheres e crianças, brancos, negros, mestiços - os homens com fato de brim e capacete colonial - íam nos gazolinas esperar os recém-vindos. O desembarque fazia-se, ao fim de uns quinze a vinte minutos de travessia, nas “Portas do Mar”.
Foi assim que um dia puzeste pé em São Paulo da Assumpção de Luanda, onde eu te havia precedido de uns meses.
Luanda era então uma pequenina cidade que do Morro da Fortaleza à Mãe Isabel, ao longo de uma praiasinha suja e semeada aqui e além de dongos, se debruçava sobre a baía. Tinha como limites a encosta vazia da Praia do Bispo, as quatro casas do Bairro do Saneamento, a Brito Godins e a Avenida do antigo Cemitério.
À Ilha, em frente, ía-se por uma velha ponte de madeira sobre pilares de cimento, que por baixo dava passagem às canoas de pescadores e aos gazolinas que demandavam em passeio turístico as praias de Belas ou as edénicas ilhas das bandas da Corimba.
As ruas não eram asfaltadas e alumiavam-se à base dos velhos «Petromax», salvo uma ou outra residência ou serviço público com gerador privativo que, como por cordelinhos, ia de extensão em extensão e aos soluços servindo a vizinhança amiga.
A àgua vinha, ainda como hoje, do famoso Bengo, mas não era tratada, sendo preciso decantá-la em pedras de Moçamedes e em filtros de velas para, fervendo-a, a tornar potável, e bem assim usar filtros de pressão nas torneiras e nos chuveiros para aligeirar no banho a sua côr de chocolate.
Em matéria de transportes públicos, havia os dois machimbombos do Crista - um deles mais parecendo feito de tábuas de caixote - com términus na Baixa, no Largo do Bíker, junto ao Clube dos Pés Frios, e, na Alta, em frente à Casa às Riscas. Havia as tipoias dos Barros e meia dúzia de automóveis de aluguer que hoje seríam objectos preciosos de museu e que faziam na praça no Largo D. Fernando. Pertenciam ao Joaquimzinho, aos Macedos, ao Carvalho, ao Sério, ao Tavares, ao Fonseca.
E houve ainda um mágico que resolveu montar um comboio bébé que pela Praia do Bispo ía até à Samba, empreza que foi um insucesso.
Pontos de reunião eram o Biker, o Gêlo, a Bijou, onde pontificava o Gonçalves, a Portugália, com o Faria à sombra da árvore secular, a Rotunda da ponte da Ilha, à tardinha, ou a «árvore» sobranceira à baía, para lá dos então terrenos da Marconi.
NO ANTANHO (IIª PARTE)
Na Ilha, com meia dúzia de casas, havia o Freitas banheiro e a Ermelinda onde se comiam mariscos.
A praia não tinha a estacaria que hoje tem e era frequentada (fracamente) durante a semana a horas mais que matutinas, antes do início das labutas diárias. Aos Domingos e feriados havia maior movimento, fazendo-se a pé a travessia da ponte.
Como outros divertimentos tinhamos o Cine-Parque - ainda não havia sequer o Nacional - onde tocava piano, nos intervalos, o maestro e escrivão Leão de Almeida; as comidas e bebidas no Canelas e na Casa Branca; as rebitas nas Ingombotas e os batuques nos Muceques; as caçadas a que quasi sempre me esquivei; as partidas de ténis nos Coqueiros; e - supra-sumo do chiquismo - os bailes no Naval. Tambem aos Domingos, uma vez por outra, os leilões do Mónis ou aqueles almoços no Cacuaco ou alhures, como incipiente e exclusiva actividade do nóvel e parodiante Club dos Rotários, cujos Estatutos, elaborados pelo Fiúza, consistia de um Artigo Único - «Chatices, não» - frase lapidante que concisamente expressava a filosofia dos rotariantes.
Éramos ao todo, então, uma vintena: os Pombais, Pais, filhas e filhos, morando naquela casa antiga que, na Cidade Alta, era ponto de reunião; o Zé Correia de Barros (o Pai dele e teu Tio era então o Director do Banco; o António Oliveira Monteiro, cheio de espírito e louco por correrias de automóveis; o Pai Ricciardi, que em breve regressaria a Lisboa, bafejado pela Sorte Grande que enlouqueceu Luanda; o Figueiredo; o Lipari (has visto a Figueiredo?); o Luis Câmara Leme; o Isidoro Martins dos Santos; o António Fiúza; os Estarrejas; os Brandões de Melo; o Gaspar Cunha Lima (este um pouco mais tarde); tu; e nós os dois P. A., Manoel e Henrique.
Raparigas, além das Pombais e da Eugénia Brandão de Melo, eram as Patos (o Calçado Espanhol, lembras-te?); as Soares de Campos (os olhos verdes da Lili); a Edith; as Leites (por afinidade); e, mais tarde, aquela que encheu de luz a tua vida, Maria Amélia, minha linda comadre.
Figuras gradas ou pelo menos características da Luanda desse tempo, eram os já falados Faria da Portugália e Gonçalves da Bijou, o Trinta e Um, mais tarde substituido na sua baiúca pelo Graça da Havaneza (depois Lusitânia); o Videira, com o seu monóculo e a sua verve; o Gil, com a Dona Chica, a cadela bull-dog para a qual guardava um prato ao almoço no Hotel Paris; o Simões Raposo, escondido com o seu valor e a sua asma; o Alberto Correia, de impecável fato branco e as longas barbas; o velho Dr. Cunha, a eminência parda, de barba em riste e sotaina; os médicos Cruz, Antunes e Ornelas e, mais tarde,o Levy e o Silveira Ramos; o nosso bom Sampaio e o seu irmão João (o frei João sem cuidados); o Avelino, o Costinha; o Chico Simões; o Assoreira; os irmãos Leite, um dos quais o Henrique, tinha com o Granaxo e o Alberto Teles a casa de modas elegantes desse tempo, que era o Matos & Teles, ali no Largo D. Fernando, ao lado do Correio; a familia Lé-lé da Farmácia; o Fernando Tavares; o Capitão Barros; a familia Brandão de Melo; o Noronha e a D. Ema, o Nolasco e a D. Fábia; o Alfaro; o Boaventura; o Azevedo da Vacuum e a sua Aninhas; o Guilherme Leitão e o primo Aníbal Gonçalves; o Berman e a Opperman, depois Mrs. Berman; o Virgilio Monteiro e a sua bengala; o Brito Pires, velhíssimo; o Major Amaro; o Amaral Fernandes e a D. Henriqueta; os Mexias; o Ricardo Pires; o casal Esquível da CAOP; o Hollis com os seus colarinhos; o velho Constantino Reis, em cuja casa alugada, tivémos a nossa primeira república; o Reis barbeiro, antecessor do Neves, em relação a nós; o Palege, enfermeiro; o Semeão Victória e a Mulher; o casal Lopes Alves, com o Nuno ainda infante; o Sousa Machado com a sua eterna luta; o velho Cochat; enfim, uma longa fileira de sombras.
NO ANTANHO (IIIª PARTE)
E entre elas, avultando, a nobre figura do meu Pai que, quando os Pais Correia de Barros saíram de Luanda, vos albergou a ti e ao Zé, na casa do Balão, onde nós vivíamos com ele, paredes meias - lembras-te? - com a simpatia do casal Pessa.
Com a vinda do meu Pai para a Europa, mudámo-nos para a tal casa do Constantino Reis - ali à Mutamba - e passámos depois para uma segunda república, no fim da então Avenida Neves Ferreira, hoje Avenida Serpa Pinto, frente à Estação da Cidade Alta (que há muito não existe). Vinhamos os dois então para o Banco por um caminho de pé posto, deserto de casas, a desembocar no fundo da Avenida do Hospital, à esquina das Obras Públicas.
A vida começava cedo. À 1 hora, acertavam-se os relógios pelo tiro da Fortaleza que dessa forma assinalava tambem a chegada do paquete da Metrópole com a mala ansiosamente esperada.
Bebia-se a rodos cerveja alemã - não havia entrado ainda em moda o Whisky ou as nossas algibeiras não davam para tanto. Os fósforos eram de graça. Tudo o mais se jogava. Jogava-se aos dados as bebidas e os almoços e quando já não havia que «endossar», jogavam-se fatos, gramofones, «raquettes» de tennis, e o Videira (ao que dizem) jogou uma vez o automóvel (não aquele com paisagens de caça pintadas no verde da carrosserie).
A imprensa era representada pela Provincia de Angola, depois passada a diário, pelo Comércio de Angola e pela folhinha de couve do Doutor Seabra (faz hoje anos que a nossa excelsa esposa...), seguidos tempos volvidos pelo Diário de Luanda e pelo Apostolado.
No jornalismo e na slides literárias surgiram os nomes do Adolfo Pina, do Albuquerque Cardozo, do Manoel de Rezende, do Júlio de Castro Lopo, do Melo (Jeremias Pacato), do Salinas de Moura, do próprio Videira, do Correia de Freitas, do Maximino Conde e, «the last but not the least», do inspirado Tomás Vieira da Cruz, passeando a sua Saudade Negra e a rompante cabeleira como uma flama de revolta contra a monotonia do oficio a que a profissão o escravizara. Nas artes davam os primeiros passos o Neves e Sousa e o Roberto Silva.
Livros - ainda não aparecêra a Lello - vendiam-se na Havaneza, na Minerva do Ramiro e no «Printemps», anexo do Matos & Teles, once creio ter feito uma das minhas primeiras aquisições em Luanda: as «Claridades Siderais» de Octávio Augusto (tu saberás completar o nome do autor). Compravam-se discos de gramofone no Centro Comercial e no Matos & Teles.
Não havia aparelhos de rádio (fomos nós dos primeiros a tê-lo, lembras-te? Uma espécie de barulhento receptor de bordo que um dos nossos companheiros manobrava, armado em Arturinho sem-filista); não havia frigoríficos; não havia ar-condicionado. Havia calor em barda e frio (!) no cacimbo.
Foi nesta paisagem tranquila que brotou para sempre a nossa amisade.
Durante anos, trabalhámos lado a lado no Banco, o já hoje velho Banco de Angola, no seu antigo edifício à Avenida Salvador Correia, que era então a Avenida dos Coqueiros (one estão eles, esses coqueiros, em fila, as altas copas ondulando?).
Ali vivemos intensamente a nossa vida de bancáriose, com elas, as altas e baixas marés da economia da Província.
Estou a ver-te mostrando-me na mão o telegrama de Lisboa, acabado de decifrar, mandando que se limitassem as transferências às coberturas à vista, prenúncio do grande calvário que foi por tanto tempo, como agora voltou a sê-lo, o problema cambial de Angola.
Os anos rolaram sobre os anos. Angola foi vencendo uma a uma as sucessivas crises, a quebra vertical das cotações, a praga dos gafanhotos, a guerra e os «navicerts», a euforia das altas cotações, como os alcatruzes, tudo isto entremeado de acidentes da política local mais ou menos graves, de que no vinte de Março chegaram a atingir foros de tragédia, e, por fim, o golpe profundissimo de 61 que nós, velhos peoneiros, ainda sentimos na alma.
Os anos rolaram sobre os anos. Luanda é hoje uma cidade maravilhosa, a querer rivalizar, da banda de cá do fosso atlântico, com a outra da canção brasileira. Angola, através das suas altas e baixas marés, é uma confirmação espantosa de vitalidade, num mundo em perdição.
Vai longa e fastidiosa esta carta. Relendo-a, acho-a sem encanto. Porque insisto pois em enviá-la?
Por que mesmo sem encanto, sem estilo, sem valor literário algum, haverá porventura nela um sabor agri-doce, que é o sal da saudade.
A culpa é tua. Amante de Angola e das suas velharias, criaste com os teus opúsculos, agora a reunir em livro, o pano de fundo onde aquelas sombras todas do nosso passado comum se veem mover contracenando com todas as outras que o teu poder de evocação foi arrancar ao limbo das velhas memórias de Angola.
Cenário de milagre este em que se dão as mãos, numa roda infindável, os grandes e os humildes, os mortos e os vivos, a saudade e a esperança.
Tu que tens filhos nascidos em Angola, eu que tenho filhos nascidos em Angola, damos a mão à esperança”.
Lisboa, Dezembro de 1966
Henrique Paço d’Arcos”

8 de março de 2012

O mando e o dogma/ O Interior /8 de Março 2012




“É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que quer e há-de ser” (Alexandre Herculano, na Carta aos Eleitores do Concelho de Sintra, de 1858).
O poder é um calvário. E é simultaneamente uma sedução. Tanto para aqueles que lhe imaginam as delícias, como para os que já lhe sofreram os espinhos.
Existe pois no bicho-homem seja o que for que o leva a pagar sem regateio o que o poder exige de quem o serve. Mesmo nos momentos em que a fé e as energias se esgotaram, mesmo quando o jugo das responsabilidades e o cárcere das aparências se tornam insuportáveis e tudo em nós grita por libertação, mesmo quando outro já espera nas antecâmaras da cobiça a oportunidade de nos render. Nem assim o homem do “poder” , que lhe bebeu a cicuta (Esta é muito óbvia)e lhe sofreu a tirania , acredita que chegou a hora do regresso a um viver normal. Ele apesar da consciência dividida , ainda está pronto a imolar-se para além dos fisiológicos limites da resistência física e moral.
Porque somos uma região de emigrantes e paradoxalmente têm IMI-grandes, vamo-nos entretendo com um onanismo de Bacalhau, vulgo salada de Bacalhau, que desde o Zambito à Maunça pouco mais há para discutir! Como estou entretido e lambuzado com bacalhau fininho, cebola, alho, colorau e azeite fico-me enchendo o texto com palavras de outros, para dizer o que se me vai ocorrendo no pensar!
“Era uma vez um surdo completamente surdo, um paralítico completamente paralítico e um calvo completamente calvo. Viviam juntos e de tanto se aborrecerem decidiram partir. A fim de alcançarem o ponto mais distante do mundo puseram-se a caminho a pé, ou seja: o paralítico ia deitado numa maca, porque era tão completamente paralítico que nem sequer se podia sentar, e o calvo e o surdo transportavam a maca. O surdo ia à frente.
A certa altura da viagem foi preciso atravessar uma floresta. Quanto mais os três homens penetravam nela mais o mato era denso e a folhagem cerrada: Por causa disso e do anoitecer, escurecia.
Iam a meio de uma clareira quando o surdo disse: «Poisa a maca.»E deixou de andar, o que obrigou o calvo a parar também. O calvo e o surdo puseram a maca no chão.
E o surdo disse assim: «Esta floresta está cheia de assassinos e malandros. Há já um bom bocado que oiço o restolhado deles.» O calvo respondeu: «Estou em crer nisso, porque sinto que os cabelos se me estão a pôr em pé.» Então o calvo e o surdo desataram a correr, seguindo o trilho que tinham aberto no mato.
O paralítico ficou sozinho na clareira. E ele pensou: «Não gosto de estar nesta floresta. Parece-me que vou mas é fugir daqui.»
“Directa” de Nuno Bragança
Fernando Pereira
6/3/2012

24 de fevereiro de 2012

SEM REMISSÃO ALGUMA/ Ágora / Novo Jornal nº214/ Luanda 24-2-2012




Acabei de ler “Loanda, Escravas, Donas e Senhoras” de Isabel Valadão, editado recentemente pela Bertrand e o que se oferece dizer é que estamos perante um livro interessante, um romance vivo e que nos transporta para um período da vida da cidade de Loanda pouco conhecido e divulgado.
Uma história em que as personagens centrais são duas senhoras, alforriadas e que marcam o seculo XVII de uma cidade masculinizada em todo a sua estrutura económica e política, onde as mulheres tinham um lugar de total subalternidade, sem qualquer visibilidade, numa sociedade onde a ordem era mantida a ferro, fogo e intriga.
A Igreja católica era o braço ideológico do fraco poder colonial, e as regras impunham-se num quotidiano de miscigenação cultural onde as religiões animistas, a feitiçaria, os ritos e mitos acabavam por desembocar num paradigma social que pontualmente prevalece hoje, passados séculos, regimes e revoluções várias.
A autora deste “Loanda” viveu em Angola um período de tempo, e agradece ao Pepetela a motivação, ainda que indireta, surgida depois da leitura da “Gloriosa Família”.
Já que se fala em mulheres com protagonismo não gostava de deixar de fazer uma referência positiva à interpretação de Meryl Streep, no papel de Margaret Thatcher no filme “ The Iron Lady”. Embora o filme seja assente na biografia da ex-primeira ministra britânica, e releva pouco a sua atividade política no contexto internacional que de braço dado a Ronald Reagan conseguiram transformar o mundo na desorganização global que hoje se vai assistindo.
Numa primeira fase Margaret Thatcher conseguiu suster a inflação na Grã-Bertanha através de políticas de desinvestimento no sector público, levando a cabo uma autêntica revolução quando privatizou a economia e cedeu uma parte do serviço nacional de saúde inglês à voracidade de grupos económicos e seguradoras privadas. Estendeu isso ao ensino e a realidade que se vive no Reino Unido hoje é bem diferente dos tempos em que a educação e o serviço nacional de saúde inglês eram referências para projetos noutros países onde se tentou levar à prática o slogan da OMS, “Saúde para todos no ano 2000”.
O Tatcherismo e o Reaganismo conseguiram, numa luta sem quartel a tudo que não tresandasse a neoliberalismo, montar uma economia mundial em que o aumento das desigualdades dispararam nos países desenvolvidos e tornaram-nas numa pandemia de proporções gigantescas em países em vias de desenvolvimento, sem que se almeje ver o futuro.
A experiencia do “laissez faire, laissez passer” é uma mezinha de parcos resultados na economia que a “dama de ferro” acolitada por Reagan impuseram durante quase uma dezena de anos, assente numa política de proteger a tirania e os vilões, entre os quais se destacou Pinochet.
Porque a omnipresença da Igreja Católica é quase recorrente em qualquer atividade política e social, não fiquei surpreendido quando a Republica de Angola, um Estado constitucionalmente assumido como laico recua, quando aventa a hipótese de regulamentar a interrupção voluntária da gravidez.
A Igreja Católica, sempre atenta às movimentações dos governos e suas oposições, mal ouviu falar que se preparava uma “lei do aborto” logo se multiplicou em declarações que de facto acabaram por se revelar decisivas para que o projeto nem passasse de uma mera declaração de intenções, o que é extraordinariamente aviltante para a sociedade e acima de tudo para a mulher angolana que é demasiado ostracizada e mal tratada no quotidiano machista do País.
Acho que a Igreja fez o que deveria ter feito, dentro da sua lógica de defesa dos seus princípios confessionais. Que as autoridades da Republica tenham recuado, sem sequer trazer para a discussão pública um tema, é determinante na sociedade angolana atual é revelador de uma insegurança e quiçá seguidismo completamente indesejável e indicia alguma fragilidade perante um quadro que devia estar balizado em termos de competências e responsabilidades.
Que o tema volte rapidamente à discussão, ou não acontecendo que se extinga o Ministério da Família e em seu lugar se crie o Ministério das Inter-Confissonalidades.
«À pessoa que descansa em si não lhe interessa o tempo; a evolução não deve levar o tempo em conta.»
Fernando Pereira
22/2/2012

16 de fevereiro de 2012

Aqueles a quem falta imaginação, não conseguem imaginar o que lhes falta!/ Ágora/ Novo Jornal nº213 / Luanda 18-2/2012




Comecei a ler Charles Dickens (1812-1870) influenciado por uma série inglesa de grande qualidade, “David Copperfield” que passou na bafienta TV em Portugal, corriao ano de 1968. O entusiasmo pela série levou-me a comprar o livro, que ainda tenho, numa pobre encadernação das edições Romano Torres. Era entediante, mas lá consegui acabá-lo, decepcionado em relação à adaptação televisiva. Estava a carpir a decepção, um professor dá-me o Oliver Twist (que depois vi em filme), e acho que foi a partir daí que terei iniciado o meu percurso de cidadão de esquerda e permanentemente inconformado.
Na comemoração dos duzentos anos do nascimento de um dos nomes maiores da escrita vitoriana, era impossível olvidar a efeméride, porque foi de certa forma Dickens que ilustrou a miséria que alavancou as posições assertivas de Marx e Engels num século XIX de enorme pujança na discussão filosófica, histórica e política.
Há cinquenta anos, Vinicius de Morais e Tom Jobim, habitués de muitos botequins no Rio de Janeiro, particularmente do “Bar Veloso”, compuseram uma das imorredoiras músicas da Bossa Nova, “ A Garota de Ipanema”. A musica de expressão portuguesa mais conhecida no mundo, tocada em todas as latitudes e gravada por centenas de intérpretes desde alguns famosos como Frank Sinatra, Armstrong a muitos que permanecerão incógnitos.
Hoje, o artigo é de efemerizações e como tal não posso esquecer que mais uma vez comemoramos o 4 de Fevereiro de 1961, e mais uma vez banaliza-se a data com comemorações demasiado repetitivas em que o acto político acaba por se transformar num ritual onde todos sabem antecipadamente o que vai ser dito e glorificado.
Quando olho para o estado de degradação do forte do Penedo, um dos locais que os homens do 4 de Fevereiro atacaram tentando libertar presos que estavam em risco de deportação, fico com a sensação de enorme impotência perante um edifício vulgar mas que merecia ser um local com alguma dignidade para evocar uma data importante no quotidiano histórico recente do País.
Olho para tanto gasto supérfluo que se vai fazendo, que acho que seria de toda a utilidade que se gastasse uma verba significativa na recuperação do forte e se instalasse no seu interior um “4 de Fevereiro de 1961” interactivo, de efeito potenciador no entusiasmo de crianças e jovens a quem a data vai dizendo cada vez menos, até cair no esquecimento.
Era muito importante fazê-lo, porque cada vez há menos gente para contar como foi o 4 de Fevereiro de 1961, e mesmo as descrições de alguns participantes tem hiatos que não permitem fazer um encadeamento consequente de tudo o que se passou nessa madrugada cada vez mais distante.
Completamente descabido continuarmos a querer uma cada vez maior envolvência das pessoas nas comemorações, daí talvez a necessidade de adaptarmos as datas a mostras com novas tecnologias, um “4 de Fevereiro de 1961 virtual”, mas que mostre a realidade do que foram esses momentos que marcaram a história recente do País.
Há exemplos desses pelo mundo todo, desde mostras muita elaborada a aplicações simples mas imaginativas e pedagogicamente com resultados de excelência. Já visitei muitas mostras desse tipo, e ainda recentemente em La Guernika, no País Basco Espanhol vi umano museu evocativo do bombardeamento alemão à localidade em 26 de Abril de 1937,assisti à réplica do que foi esse dia de horror para a pequena vila, magistralmente glorificada na tela de Picasso em exposição no Museu Reina Sofia em Madrid, visita que recomendo vivamente.
‎"A História é a puta mais deslavada e maltratada de que há memória, de quem toda a gente se serve e que ninguém respeita nem paga o devido preço pelo uso e, quantas vezes, abuso.”.
Desculpem o destempero, mas há palavras de outros que serão melhores que as nossas para expressar o que queremos.
Fernando Pereira
14/2/2012

10 de fevereiro de 2012

I CAN 2012./ Ágora / Novo Jornal 212/ Luanda 10-2-2012





Não percebo a decepção das pessoas por causa da participação da nossa selecção no CAN 2010, nem consigo admitir que toda a ira caia em cima do seleccionador.
Não sou treinador, percebo muito pouco de futebol para vir para a praça pública invectivar equipa dirigente da FAF, equipa técnica e jogadores, numa competição em que normalmente Angola tem feito pouco melhor que isto.
Como dirigente desportiva estive sempre interessado na valorização de uma cultura física e desportos ligado à formação integral do cidadão, e ao desenvolvimento e envolvimento da juventude numa educação plena num contexto de valores e referências de matriz diferente desta realidade que vamos vivendo.
Acho que o facilitismo do “mercado” acaba por mostrar a sua face negativa, quando temos que nos expor em situações que comparativamente temos que nos confrontar com outras realidades e outros modelos organizativos.
Para o melhor na maioria das vezes, e para o pior algumas delas o angolano tem um ego do tamanho do mundo. Nada a opor quando isso é importante para exprimir a vontade colectiva e a defesa dos valores e interesses do País. Quando o ego tolda o raciocínio dos que tem responsabilidade, em vez de assumirem alguma dose de culpa e fazerem exercícios de expiação assobiam para o ar, arranjando um bode expiatório para justificar erros colectivos.
Angola vai passar a ter muito revés ao nível das selecções, e o aviso começou no basquetebol masculino no último Afro-Basquete em Madagáscar, e novamente agora no CAN no Gabão e Guiné Equatorial. São sinais evidentes que há muita coisa mal no desporto no País e nem o undecacampeonato de andebol feminino nem o africano de basquetebol feminino conseguem disfarçar a falta de uma política desportiva coerente, adaptada à realidade do País num quadro de cultura e desporto acessível à juventude, nem mais nem menos que o grosso da nossa população.
Vale muito pouco andar de candeia acesa à procura de culpados, pois a responsabilidade pela degradação da situação é partilhada por muitos desde agentes desportivos, dirigentes, jornalistas, técnicos, atletas e professores.
Quando há muitos anos, nos momentos que se seguiram à independência se procurou optar por uma política coerente, adaptada à realidade angolana num quadro de organização desportiva africana, teve-se em conta que só uma grande participação de jovens, enquadradas por clubes, escolas, associações, orientadas por animadores, monitores e técnicos desportivos qualificados poderiam criar um alfobre para as modalidades de alta competição, ou de alto rendimento como hoje é corrente dizer-se.
O futebol, por razões que se prendem com o facto de haver enormes investimentos em África, por vezes para servir interesses de afirmação pessoal, política e económica de alguns baronetes exigia maior comedimento, e o seu crescimento em Angola devia criar expectativas limitadas no quadro continental.
Penso que a voracidade que acompanha o dinheiro fácil esquecemo-nos um pouco de tudo isso, e o que vamos assistindo é que se vão fazendo investimentos avultados, mas pouco consistentes na sua componente organizativa global e de resultados imediatos paupérrimos.
Enquanto os órgãos reitores do desporto angolano, não despirem a gravata, arregaçarem as mangas e voltarem a discutir, organizar e promover uma cultura física e desporto coerente tendo em atenção a disponibilidade dos angolanos para a sua prática regular, o que vamos assistindo é a um cada vez maior estado de degradação das nossas representações desportivas no exterior, e de facto acaba por ser não apenas reflexo do que não fazemos no contexto do desporto e também vai pondo a nu os nossos frágeis remendos nas políticas de juventude no nosso imberbe tecido social.
Até lá, só temos que ficar à espera que o que se passou de muito mau no CAN 2012 se repita!

Fernando Pereira
5/2/2012

9 de fevereiro de 2012

"“Memórias de Adriano” só mesmo da Marguerite Yourcenar!" / O Interior-9-2-2012




Começo a ter a convicção que devem ter virado o mundo ao contrário, ou estarei a assistir a exercícios de expiação tardios de certa gente que foi qualquer coisa de inapreciável politicamente noutras fases de longas vidas.
Esta semana ouvi o professor Adriano Moreira, numa entrevista na SIC ao António José Teixeira, e a determinada altura belisquei-me para saber se estava a ouvir e a ver a mesma pessoa que foi ministro de Salazar e que reabriu o Campo prisional do Tarrafal em 1961, depois de encerrado em 1954, por pressões internacionais e contestação interna, pelas condições degradantes que lhe trouxeram o aviltante nome de “Campo da morte lenta”.
Qualquer alienígena que tivesse aterrado neste planeta esta semana ficava completamente banzado com as críticas assertivas que o Prof. Adriano Moreira faz às medidas draconianas do governo do PSD /CDS, na esteira do que fez o governo liderado por José Sócrates.
Com noventas, putativo delfim de Salazar, ministro do Ultramar num momento particularmente sensível nas colónias, Moreira defendeu posições que basicamente a esquerda, que nunca esteve no poder, defende coerentemente há muitos anos, como questões tão comezinhas como a estabilidade no emprego, uma saúde e uma educação em que todos os cidadãos tivessem iguais direitos, num Estado Social que desse oportunidades a todos na defesa de um bem-estar, e mais alguns lugares comuns, que são do agrado dos muitos que o ouvem e admiram com alguma reverência, talvez pelo seu ar professoral e a sua provecta idade.
Ficaria estarrecido se não soubesse do seu percurso nos últimos sessenta anos, ou foram um embuste perfeito ou então está a reinar com todos que o ouvem. Desculpe professor, mas para este peditório já dei!
Também ouvi esta semana o Dr. Mário Soares a falar sobre os períodos da sua intervenção política a seguir ao 25 de Abril de 1974, e confesso que a minha indiferença é praticamente igual à que senti quando ouvi o Professor Adriano Moreira. Não quero ter nada a ver com este filme:”Aos costumes disse nada”.
Acho que estes programas deviam ir para a RTP Memória, pois tem já por lá o “reprise” Hermano Saraiva a destilar a sua verve ultra-direitista, e assim juntava-se por lá tudo que hoje se anda a recolher no baú da política.
Na Rádio Altitude, também ouvi partes do “Recordar o passado na Guarda”, mas desaguentei e mudei de registo pois sinceramente desapetece-me de todo permanecer continuadamente a ouvir alijar responsabilidades para outros, um pouco na esteira do Prof. Moreira ou do Dr. Soares, que afinal nunca tiveram a ver com nada!
Começo a perceber porque é que “O Artista” foi nomeado para dez Óscares. Estamos no tempo de mudez, e só aos gerontos lhe é dada palavra.
Aguardem pela Páscoa, quarenta dias depois de um Entrudo que já era, para que eu faça uma crónica adocicada.
Fernando Pereira
5/2/2012

3 de fevereiro de 2012

Fado tropical/ Ágora/ Novo Jornal 211 / Luanda/ 3--2-2011





Agustina Bessa Luís é talvez uma das portuguesas que melhor escreve, embora os seus romances sejam algumas vezes entediantes no conteúdo, mas perfeitos na forma. Numa reflexão Agustina escreveu em tempos que “O medo faz as pessoas extravagantes, mas não as faz originais", e ainda "Uma nação não nasce duma ideia. Nasce dum contrato de homens livres que se inspiram nas insubmissões necessárias ao ministério dos povos sobre os seus infortúnios".
Esta introdução sugere-me, não sei se apropriadamente, que na transformação política de Angola passou-se de uma fase embrionária num marxismo-leninismo remendado, para uma fase actual de arremedo de narcisismo-leninismo. Vou tentar explicar: Vive-se com alguns preconceitos marxistas, estruturas policiais e politicas nalguns casos eivadas de leninismo, oportunista q.b. nalguns casos, e no contexto global, um narcisismo que nalguns momentos se confunde com epifenómeno de cariz novo-rico mas com léxico, insinuação e ameaça com contornos e tiques do pior do leninismo.
Provavelmente estou a cometer erros de avaliação, uma situação do tipo “sapateiro a querer ir para além da chinela”, mas esta é a minha leitura de algum enviesamento no quotidiano esfusiante do País, onde o presente é de confiança e estabilidade, apesar de encolhos nalguns aspectos de carácter social.
Mudando de assunto. Angola tem recebido milhares de expatriados nestes últimos anos, algumas delas pessoas que deixaram Angola antes do 11 de Novembro de 1975, e que não conseguem despir ainda alguma dose de catarse em situações do quotidiano, pese embora reconheçam o esforço feito pelas autoridades do País em termos de construção de equipamentos, melhoria da qualidade de vida das populações e uma dinâmica maior da economia.
Instados a comentar as transformações entre a Angola que deixaram inopinadamente, e o que vão vendo no regresso vamos assistindo a comentários, nalguns casos risíveis sobre múltiplos aspectos até atingindo foros de alienígena em situações particulares.
Nas romagens de saudade vão tirando fotos em catadupa, e na realidade metade da viagem que vão fazendo serão de olho na lente. Uma das coisas que os deixa muito tristes, a título de exemplo, acaba por ser o estado dos cinemas onde há trinta e cinco anos, quando tinham entre 12 e 30 anos, passavam tardes de encantamento recordando espectáculos e filmes que perpetuaram no tempo, assim tipo “Musica no Coração”, “My Fair Lady” ou o “Lawrence de Arábia” entre outros que ao tempo enchiam os ecrãs, os corações e hoje tudo isso misturado em recordações.
O estado do Miramar, N´gola, os desaparecidos Kipaka e Colonial, S. João, S. Paulo, África, Tivoli, SMAE, em Luanda e outros pelo país como o Arco-íris no Lubango e o Flamingo no Lobito, a título de exemplo, são as situações que os deixam mais tristes, não conseguindo perceber que todo o conceito do cinema e do espectáculo mudaram nos últimos vinte e cinco anos com a generalização do Vídeo/ DVD/ Torrents, e a existência de salas pequenas em superfícies comerciais, para a pouca gente que vai ver cinema fora de casa, sendo a juventude a maior utilizadora desses espaços com Coca-Cola e pipoca a acompanhar.
Faço-os sentir que em todas as cidades capitais da Europa fecharam mais cinemas que em Luanda, bastando ver a título de exemplo, que em Lisboa de todos os 56 nos anos 70, só o Londres ainda está a trabalhar, para não falar do Porto, cidade onde nasceu o cinema em Portugal, onde já não há nenhum dos que havia há quarenta anos, e já agora em Coimbra resiste o remodelado Gil Vicente porque pertence à Universidade e tem uma enorme utilização dos grupos teatrais universitários.
Em Lisboa a maior parte deles ou estão em ruínas (Condes, Olímpia, Arco Íris, Nimas, Alvalade, 404,Capitólio) ou foram demolidos para outras construções ou adaptados a outro tipo de comércio (O Salão Lisboa passou a loja de tecidos, o Animatógrafo a Sex-Shop com espectáculos ao vivo, e o Cinebolso uma loja de chineses, entre várias outras experiencias).
Talvez seja legítimo sentir que eles também são de Angola, porque não há proprietários da nacionalidade dos outros, mas também é absolutamente necessário respeitar os angolanos de hoje onde se fez uma sociedade africana que trouxe a identidade que se desejava, e já agora , a título de exemplo convém referir que esses cinemas de 1000 lugares eram mesmo de outro tempo que já se finou no revoltear da história.
Nós por vezes damos tiros nos pés, mas o que acontece também é que às vezes a asneira é tão grande que damos quatro tiros e aí temos pena de ter feito figura de solípedes.
Fernando Pereira
31/1/2012

27 de janeiro de 2012

CHAMADA A PAGAR NO DESTINATÁRIO /Ágora/ Novo Jornal 210/ Luanda 27/1/2012




Há uns anos, uma ministra levou o telemóvel para uma audiência com a Rainha. Deixou-o ligado. E a certa altura, fatalmente, o telemóvel tocou. Então, a Rainha disse com brandura: «Atenda, querida. Pode ser alguém importante».
Esta história, ao que se supõe terá acontecido realmente tendo como protagonista a Rainha Isabel II, que sabe-se useira e vezeira nestas situações em que o humor britânico revela invulgar acuidade.
Porque em lugares onde a importância das pessoas é medida pela visibilidade em eventos sociais, número de viaturas disponíveis no agregado familiar, relógios e ouros q.b., fatos de fino corte etiquetados por costureiros famosos e outros sinais exteriores de riqueza, impera bastas vezes a vacuidade, o que deixa certa gente completamente fragilizada quando confrontadas com circunstâncias em que as provas têm que ser diferentes.
Dizia um angolano a um português na véspera da independência que “quando o caputo se for embora, faremos de Luanda uma Nova York em África”. O angolano da classe possidente sempre teve um fascínio por NY, apesar de nos últimos tempos estar numa fase de Dubaidada, e a realidade é que procura em certos aspectos copiar o “the americam mean of life”. Acho que para além de legítima é uma ambição sustentada e edificante, nos conceitos de liberdade, de desprendimento pela imagem num quotidiano de vida com pouca rigidez de “censura social”, de justiça e também de democracia. Haverá outros critérios que não serão tão razoáveis, mas a realidade é que os EUA vão funcionando, e nalguns aspectos fazendo girar o mundo à sua volta.
O “Central Park”, emblemático jardim de NY, planeado e construído em meados do século XIX, numa extensão de 341ha, foi motivo de grande controvérsia no sociedade novayorquina de então, pois terá havido uma enorme pressão do emergente sector imobiliário da cidade, para que esse espaço verde fosse urbanizado com os megatéreos que enchem o resto. As autoridades do Estado foram firmes no seu propósito e não se deixaram demover pelas tentativas de suborno e posteriores ameaças do poderoso lóbi da construção, enfrentando até pedidos públicos de linchamento. A população de NY agradece essa obstinação, que permitiu que a cidade possua um pulmão verde, verdadeiro ex- libris, e as autoridades de então quase lançadas ao opróbrio sejam hoje distinguidos como heróis.
Isto vem a propósito da ausência de espaços verdes em Luanda, discussão que curiosamente é recorrente desde a última fase do patobravismo da construção na última década e meia da presença colonial portuguesa em Angola.
Um dos argumentos que os “imobiliários “ iam esgrimindo assentava no facto de Luanda desprecisar espaço verde, porque era uma cidade com muitas vivendas, todas elas com quintal e ajardinadas. Essa discussão foi ampliada quando da construção da zona verde, resultado de uma adaptação do percurso do caminho-de-ferro desactivado nos anos cinquenta, e também do eixo viário, hoje local privilegiado para a construção de grandes edifícios. A verdade é que apesar dos inúmeros erros de concepção, mantiveram-se esses espaços, pequenos para a dimensão do que o plano director do início dos anos setenta projectava da cidade.
Hoje, a zona verde transformou-se numa zona castanha onde construíram uma rua de acesso a outras ruas de Alvalade, o eixo viário no conjunto de edifícios, que parecem ser o orgulho de alguns cidadãos e a carteira recheada de outros, o ex-parque Heróis de Chaves transformado num misto de parque de estacionamento e num espaço de festas decorado com o mais requintado mau gosto, e foi sobrando o pequeno jardim da cidade alta, que apesar de tudo ainda está num local privilegiado de Luanda no que à conservação diz respeito.
Hoje já nem consegue prevalecer o argumento colonial das vivendas ajardinadas, onde o cimento substituiu o jardim por falta de água por um lado, e para estacionamento de viaturas por outro, nem as árvores que ladeavam ruas, avenidas e estradas, literalmente arrancadas para no seu lugar surgirem parques de estacionamento e novas vias estruturantes.
Luanda começa a ser uma cidade irrespirável, “invívível” e por muita cosmética que se tenta colocar ao nível do equipamento urbano, é indisfarçável que a cidade irá soçobrar nos aspectos importantes para uma razoável qualidade de vida dos cidadãos.
A cidade foi construída num contexto urbano de bairros, onde se cimentavam amizades, solidariedades, militâncias, ligações de família e tudo isso está a desaparecer, tornando os seus habitantes individualistas, desumanos, interesseiros e a aumentarem perigosamente os níveis de violência. Tudo é fruto da realidade do País, mas também pela forma como se desagrega a cidade, em que as classes com maiores rendimentos se fecham em condomínios e prédios onde há tudo menos hábitos e práticas de vivencia colectiva, multiplicidades ideológicas, culturais, políticas, ideológicas e em que se preserva apenas a identidade económica.
Luanda pode querer ser uma Nova York,e era desejável que o conseguisse, mas a este ritmo e com estes conceitos o máximo que poderá ser é um Dubai doméstico, afinal uma imitação de uma Legolandia para adultos que vive apenas da especulação e dos serviços.
Era bom recuperar a cidade e a sua alma, talvez se consiga ir a tempo!


Fernando Pereira
24/1/2011

20 de janeiro de 2012

Sabes quando estás a escrever uma coisa e de repente percebes que não, não era nada por aí que querias ir? / Agora/ Novo Jornal 209/ Luanda 20-1-2012





Durante muitos anos no passeio fronteiro à Lelo juntava-se um grupo de pessoas, que tinham em comum serem amigos, companheiros de vida e terem assistido às mutações de Angola ao longo de décadas.
Era um grupo heterogéneo no contexto político e profissional, e invariavelmente todos os dias da semana ao fim da tarde reuniam-se para falarem do que calhava. O grupo era numeroso e lembro-me dos irmãos Guerra Marques, Antero de Abreu, Dionísio Rocha, António Chaves, o “mais velho “Lelo” e o Osvaldo, entre outros que o tempo diluiu na minha lembrança.
Pela mão do meu amigo Osvaldo Pinto integrei-me no grupo, era o benjamim, ia ouvindo, mais que participar nas conversas que invariavelmente eram sobre a cidade de Luanda e sobre a Angola, ao tempo a debutar como País independente. As discussões eram acaloradas e do muito que ouvi, fui aprendendo sobre a evolução da cidade e de algumas realidades de Angola que me iam escapando, também por excessos de romantismo revolucionário.
Algumas das histórias que aqui tenho colocado saiu daquela esquina, de onde há muito desapareceu aquela tertúlia porque a inexorabilidade das contingências da vida levaram muitos dos “tertulianos” , os que restaram começaram a debandar e a desertificar o espaço de gente e ideias.
Veio-me à lembrança uma recorrente conversa sobre colonos e cooperantes, no léxico actual talvez expatriados. Quando eu e outros defendíamos a cooperação com os países “socialistas” , Osvaldo Pinto, com o seu poderoso argumento de pulmão, dizia que “nenhum País se construía com cooperação”. Os argumentos assentavam na ideia que “vinham cumprir um contrato, fazer o menos possível e despacharem-se o mais rapidamente para as suas terras”. “Não se ligam a isto porque tem os pés noutro lado”. “Os países só se desenvolvem quando se tem o espírito do colono, de fixação, de adopção de culturas locais, de sentir a terra e esquecer o lugar de onde se vem”. “Só constituindo família as pessoas se ligam à terra, e nunca estão à espera de se ir embora e desenvolvem o que sentem seu, nunca se esqueçam disso”.
O tempo veio demonstrar que o Osvaldo Pinto tinha alguma razão, porque de facto a cooperação em Angola foi nalguns aspectos um fracasso, em que as pequenas excepções bem sucedidas apenas confirmaram a regra.
Vi um programa na TV dirigido pela “ moderadora” portuguesa Fátima Campos Ferreira, um “Reencontro”, que me fez lembrar programas de outros tempos, assim uma coisa que Artur Agostinho apresentava na RTP no início dos anos 70 que se chamava “25 milhões de portugueses”, patrocinado pelo sucedâneo do SNI e apoiado pela Agencia Geral do Ultramar, que me querem fazer crer que o Adriano Moreira nada teve a ver.
Confesso que despercebo a quem é que a “moderadora” e os que pensaram o programa quiseram fazer o frete, pois tudo o que vi foi uma péssima propaganda a Angola e à inteligência de muitos angolanos e portugueses que não pactuam com este folclore serôdio.
O programa que à partida já me suscitava alguma suspeição, pelo que me habituei a ver nos programas conduzidos pela FCF, acabou por se revelar um perfeito desastre, mal preparado, o debitar sistemático de lugares comuns, demagogia e panegíricos a todo o momento entre os convidados e as gentes da plateia, filmes numa Luanda domingueira, e momentos culturais pobres, o que de facto é incompreensível pela qualidade dos intervenientes. Confirmaram-se em absoluto as minhas suspeitas, e só espero que as relações entre os Países não tenham que passar por transes destes muitas vezes.
O título do programa, “Reencontro” é uma completa estultice, e revela quanto se desconhece a realidade da ligação estreita entre Angola e Portugal ao longo destes trinta e seis anos de soberanias próprias, mas de respeito entre dois povos que se identificam, partilham valores, saberes e vivem quotidianos comuns na cultura, no desporto e na economia.
A bem dizer, um a despropósito!

Fernando Pereira
17-1-2012

13 de janeiro de 2012

ABAIXO O QUINTO ANO! / ÁGORA / NOVO JORNAL nº208/ LUANDA 13-1-2011





"Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem."

Luís de Camões ( Lusíadas, canto IX)

No meu quinto ano do Liceu, feito no vetusto Liceu Salvador Correia, que não era Sá e Benevides por razões que ainda hoje despercebo, tivemos que dar os Lusíadas do “semiótico” Camões.
Um “tijolo”, onde andávamos com um lápis a colocar traços nos versos e mais outros nas estrofes e mais outras coisas que nunca consegui perceber para quê.
Teoricamente devíamos dar os Lusíadas todos ao longo do quinto ano, mas a realidade é que andávamos a engonhar no primeiro canto, éramos mais lestos até ao quinto e tal e qual o Bob Beamon no México 1968 fazíamos um salto até ao décimo!
Durante muitos anos de Luis de Camões só gostei mesmo da sua “Lírica”, pela aversão com que ficara aos “Lusíadas”. A situação alterou-se e comecei a ler os “Lusíadas” e a encontrar sonoridades e mensagens diferentes de canto a canto. E o mais interessante é que adorei o canto IX, proscrito do programa do liceu no meu tempo, por razões perceptíveis se tivermos em conta o tempo e o modo.
Por falar no quinto ano colonial não seria interessante contar o bizarro episódio que marcou o quase final dos anos setenta, quando se tentava definir o que era num contexto revolucionário o perfil da pequena burguesia? O tempo foi passando e provavelmente a história vai ficar pouco verosímil, mas talvez contando-a permita que a verdadeira versão saia a terreiro.
No fervor da “Opção Socialista de Angola”, entre “emulações socialistas”, “movimentos de rectificação” e outras movimentações tendentes à criação do “homem novo”, uma das discussões candentes tinha a ver com a separação das classes, e tentava-se num arremedo de marxismo-leninismo fazer-se primeiro a albarda e depois procurar um macho a quem servisse.
A questão da inserção da pequena burguesia foi sempre um factor permanente de discussão no contexto da revolução, pois se por um lado ela aparecia como aliada natural dos operários e camponeses, por isso vitoriosa, por outro lado era contestada porque a sua ambição era objectivamente ascender à média burguesia assumindo os seus valores, contrários aos da revolução.
Encurtando, Kota Neto, ao tempo Comissário provincial de Malange, perante uma grande plateia, definiu que “a pequena burguesia, tinha o 5º ano colonial, usava fato e gravata, queria manter os privilégios do colonialismo” e por aí fora. Rapidamente ecoou um sonoro e repetido “Abaixo o 5ºano”, que empolgou as massas presentes no evento e foi o mote central da reunião
Quinze dias depois Kundi Pahiama, vai a Malange e impecavelmente vestido de fato e gravata, aos mesmos militantes, e depois de várias considerações sobre o tema diz: “ Tenho o 5º ano colonial, uso fato e gravata, sou da pequena burguesia?” Em uníssono todos disseram “Não” e logo o speaker de serviço repetiu a palavra de ordem repetida em uníssono por toda a assistência: “ Acima o 5ºano”. Em 15 dias reabilitou-se o 5º ano colonial!
Reitero que não sei se esta história é exactamente assim, se não for só peço desculpa aos presentes e ausentes.
Para um 2012 que espero cheio de prosperidades e quiçá propriedades, uma reflexão do poeta de um tempo em que não havia lusofonia: Alexandre O’Neill. Uma coisa em forma de assim: «Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com poder, é, quase sempre, um perigo. Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.»

Fernando Pereira
1/1/2012

11 de janeiro de 2012

Alguma intemporalidade dos patifes!/ O Interior/12-1-2012




Alexandre O’Neill em “Uma coisa em forma de assim”: «Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com poder, é, quase sempre, um perigo. Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.»
Mais de metade dos destinatários da mensagem estão contextualizados no que surripiei ao O’ Neill, os restantes merecem deferência, porque é gente de carácter, culturalmente interessante e desapegados de fobias continuadas, que o poder e a sua ausência beliscam noutros “mal caractistas” ,como bem diria Odorico Paraguaçu na imorredoira novela “O Bem Amado”.
Basta escolher as citações perfeitas para colocar em prateleiras de mofo um conjunto de gente de quem se fala demais para o pouco que valem. Ganha-se espaço e evita-se a banalização o artigo!
Esta semana fiquei contente com as movimentações de solidariedade em torno do comércio tradicional, talvez fruto da saída da SGPS que controla o Pingo para a Holanda onde já estavam uma quantidade de empresas portuguesas (?), algumas delas com administradores nomeados pela tutela. Desimporto-me pouco, porque o saque já vem de longe, e não é um Pingo qualquer que altera a minha ideia formada perante tipos que se apanham com uns dinheiritos de créditos na mão e já se julgam os intocáveis e os únicos que tem a verdade absoluta, para debitarem dislates continuados quando lhe metem o micro em riste.
O comércio tradicional também teve agora momentos de grande participação quando nos confrontamos com as lojas maçónicas. Julgava que Mozart fosse um compositor, ou uma taça da Olá, multinacional holandesa de gelados, representada em Portugal pela Jerónimo que agora foi transferida para a Holanda. Afinal há uma loja com esse nome, que é secreta porque não se sabe o que lá é vendido. Quando era miúdo proibiam-me de ver essas lojas, porque andavam por lá “mulheres frívolas”, no léxico actual as mulheres do striptease.
Tentando falar a sério, quero lá saber se há loja do Sino, se há GOL alta ou baixa, se os Opus rezam ou não antes de estipularem quem colocam em determinados lugares para fazer agiotagem, que segundo me disseram é pecado para a ICAR, o que me fez rir a aventais despregados.
Os partidos, excepto o PCP, tem uma horda de gente nestas lojas, onde fazem uns jantares para debaterem várias coisas, sem que perceba porque tem que se esconder e usarem sinais convencionais para falarem de liberdade, igualdade e fraternidade, e já agora relações económicas e colocações políticas que tragam vantagens supletivas aos membros deste ramo oculto e culto do comércio.
Aceito que no combate às ditaduras tenha sido necessário algum secretismo, mas algumas figuras gradas dos regimes ditatoriais também secretavam com os da oposição nas lojas e centros de opus, restando aos trauliteiros o papel para os desfiles, as legiões e o incitamento a encómios ao chefe supremo em espaços públicos, com muita gente cinzenta no palanque.
Preocupa-me que se avente a hipótese do avental dominar em conluio com os Dei a política portuguesa, com o olhar terno e eterno da ICAR e com a bonomia dos monárquicos que ninguém lhes liga nenhuma, que se vão encontrando entre fados, touradas e aspirando títulos, nisso acompanhados de adeptos de certos clubes de outras modalidades, com maior envolvência e paixão pelo povo.
Os partidos do arco do poder limitam-se a servir de lastro às congeminações das lojas, dos aventais, dos que rezam e só sexam para procriar, os que acham que tudo é fruto da “diarreia mental do século XIX”, como dizia o santacombista à mão armada, que conluiado com essa malta toda governou em ditadura este País quase meio século.
Se me quiserem oferecer um avental, façam o favor de contactar com a redacção deste jornal, mas não me peçam ritos, espadas e lucubrações ideológicas que façam a ligação entre o quotidiano e o paranormal em troca!

Fernando Pereira
8/1/2012

29 de dezembro de 2011

THE NEXT / Novo Jornal 206/ Luanda 30/1/2011







No fim deste 2011, ano de muitas mudanças, algumas imperceptíveis no contexto geopolítico regional e mundial o que se nos oferece pensar é que anda demasiada indefinição no quadro da economia e um lodaçal autêntico no plano da ideologia.
Vinte anos depois de Gorbatchev ter feito o discurso de renúncia da presidência da URSS, o seu consequente colapso, onde simultaneamente todas as repúblicas ascenderam ou retomaram a sua independência, olhamos para o mundo de uma forma mais apreensiva, mau grado os dias de esperança que marcaram o fim da burocracia soviética, verdadeira causa do estertor final da grande revolução socialista na história mundial.
Como não sou economista e também tenho pouca queda para a tarologia admito com alguma dose de leviandade que acho ambiciosa a meta apontada para o crescimento económico de Angola no próximo ano, num cenário de aparente retracção da economia mundial e onde o nosso único produto de exportação estará exposto às contingências das alterações que se perspectivam.
Logo se vê o que acontece, porque mesmo para fracassar é preciso talento, e nisso ainda estamos longe do aceitável, mesmo no nosso modesto padrão de desenvolvimento.
Como sempre defendi que o pessimista é um optimista com experiencia, talvez eu não esteja a ver o quadro correctamente e vou-me limitar a esperar ver na imprensa notícias que há muito me desabituei e nalguns casos não me lembro de haver nada publicado.
Nunca consegui perceber como é que em Luanda se constroem novos bairros, se estruturam novas urbanizações e não se consegue ver um sistema aceitável de esgotos e estações de tratamentos de águas residuais. Acho que é quase o mesmo que mudar a fralda a um bebé sem lhe limpar o rabo.
Continuo a desperceber porque é que os colectores de águas pluviais, as suas bocas de drenagem estão sistematicamente obstruídos para além de estarem obsoletas e desadequadas do anárquico crescimento da urbe.
Recordo-me das grandes chuvadas em 1963, e lembro-me de ver o estado geral da cidade, com os alicerces do Colégio de S. José de Cluny completamente à mostra e em risco de derrocada para a rua do SANA. A cidade era um pandemónio, com a baixa inundada de lama, as ruas com crateras onde os velhos autocarros azuis estavam “afocinhados”. A Samba na altura ainda com pouca construção clandestina viu as areias dos seus morros depositarem-se na velha estrada da Corimba e a Praia do Bispo, com as casas da marginal cheias de lodo. Só víamos lodo, água e muita destruição um pouco por toda a cidade ao tempo com um perímetro urbano pequenino em relação ao de hoje.
Iniciaram-se de imediato toda uma série de trabalhos, nomeadamente muros de suporte, canais de escoamento de água (o Rio Seco) e melhoria do colector central da parte baixa da cidade para conseguir suster as chuvas que em Março caiam pouco mas bem!
O que vamos assistindo é que basta um borrifo e o caos na cidade generaliza-se, e não se consegue vislumbrar um projecto coerente que consiga acabar com uma das causas da vivibilidade de Luanda ser tão má. Era capaz de ser uma aposta interessante para uma cidade capital que quer ter sapatos de verniz mas tem que os ter a chafurdar no lodaçal!
Gostava de ver as grandes cidades de Angola criar nos seus arrabaldes uma estação de resíduos sólidos urbanos, vulgo lixo, já que amontoado e queimado de forma desordenada é dramático para a salubridade, e nem vale a pena repetirmo-nos sobre as consequências da inexistência de um sistema coerente para melhorar o quotidiano de vida dos cidadãos.
Era capaz de querer mais coisas em 2012, como por exemplo aproveitar a nova onda de envidraçar edifícios, espelhá-los, e sendo assustadores no aspecto e inadequados ao clima de Luanda, mas pudessem aproveitá-los para instalar um sistema em que esses vidros pudessem converter em energia a ser usado no prédio dispensando a electricidade dos geradores, mais uma chaga no ambiente urbano onde o luandense vive.
Sou capaz de querer ver mais coisas em 2012, mas vou ficando atento para ver se as coisas acontecem.
Um bom ano de 2012 e nunca esqueçam que Ernest Hemingway dizia: “O mundo anda três whiskies atrasado!”.
Fernando Pereira
26/12/2011

23 de dezembro de 2011

Bom dia da Família / Ágora / Novo Jornal 205 / Luanda 23/12/2011





Cem mil mortos depois as ultimas tropas americanas abandonam o Iraque.
Deixam um simulacro de País onde as instituições não funcionam, as tensões sociais, religiosas e políticas se mantém num quadro de perigosidade permanente para o quotidiano dos cidadãos iraquianos, que eram governados por um tirano acolitado por um bando de tiranetes, mas que apesar de tudo conseguia ser mais tolerante que a maioria das oligarquias dependentes das receitas do petróleo que enxameiam a região, mas “bons” já que indispensáveis para a “economia de mercado”.
As “primaveras árabes” da Tunísia, Egipto, Líbia e as que se avizinham, Síria e Irão, vão “legitimar” um novo conceito de democracia, e eis-nos perante um difuso quadro de relações internacionais em que o despudor passa a ser quotidiano.
O mundo não se consegue livrar da sórdida aliança entre os mercados e “West Point” onde se começa a perceber que cada vez se constrói relações cada vez mais obscuras e imperfeitas.
A TV mostra em directo a “inevitabilidade” das acções para que a” liberdade” prevaleça no mundo. Como dizia o insigne e mal amado poeta português Jorge de Sena (1919-1978) – “De cada vez que há um governo”: “De cada vez que um governo necessita de segredos, /por segurança do Estado, ou para melhor êxito das negociações internacionais, / é o mesmo que negar, como negaram sempre desde que o mundo é mundo, /a liberdade. /
Sempre que um povo aceita que o seu governo, /ainda que eleito com quantas tricas já se sabe, /invoque a lei e a ordem para calar alguém, /como fizeram sempre desde que o mundo é mundo, nega-se/a liberdade. /
Porque, se há algum segredo na vida pública, /que todos não podem saber, é porque alguém, /sem saber, é o preço do negócio feito./E, se há uma ordem e uma lei que não inclua/mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas /e o seu direito a ser como nasceu ou fizeram, / a liberdade.”.
Esta semana fez cinquenta anos em que o som do “Angola é Nossa”, onde cronicava de Luanda, Ferreira da Costa para a Emissora Nacional de Portugal, foi substituído pelo enfático: “os sinos da Velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses”, uma resposta retórica à invasão dos territórios incrustados na União Indiana de Goa Damão e Diu. A um exército de opereta mal equipado e sem estímulo para o que quer que fosse, Salazar, que apenas saiu de Portugal duas vezes (uma a Paris enquanto estudante, e duas a cidades fronteiriças com Espanha para falar com o ditador Franco), que nunca fez serviço militar, exigia que em nome das “pedras das fortalezas de Damão e Diu e das Igrejas de Goa” que os soldados resistissem até ao limite saindo “vitoriosos ou mortos”. Nem uma coisa nem outra porque prevaleceram o bom senso do governador da então província que num gesto de grande dignidade aceitou uma rendição honrosa, que lhe valeu o opróbrio aos olhos do regime. O que não deixa de assumir contornos de alguma bizarrice é que Luanda, tão ciosa nas suas mudanças de toponímia e alterações administrativas, ainda prevalece uma Rua da Índia, e em baixo uma referência ao Estado Português da Índia, próximo do Largo do Cruzeiro, paredes meias com o cemitério do Alto das Cruzes!
Morreu o filho do outro, que vai deixar o filho como sucessor. Isto vem a propósito da morte do Kim Jong-Il, filho e herdeiro da ideia Juche do grande líder Kim-Il-Sung. As relações visíveis com Angola estão no quotidiano urbano da cidade de Luanda onde as estátuas horríveis acabam por menorizar a imagem das figuras referentes da nossa história recente.
Há trinta anos a embaixada da RDP da Coreia resolveu promover um concurso literário alusivo ao trabalho do “Grande líder Kim-Il-Sung” na liderança do País. Em Angola ganhou o concurso o falecido Ricardo Manuel com um livro de poemas que julgo que se chamava “Coreia, meu amor”. O Ricardo ganhou o prémio e lá foi até à Coreia onde andou e recebeu todos os encómios pela obra publicada, “um enorme êxito em Angola” e outros elogios do tipo. O Ricardo Manuel era gerente da Lelo e em Luanda durante uns meses a montra central foi ornada com todo um conjunto de livros do “Grande Líder”, fotos das homenagens ao poeta e entre dois naperons de renda uma enorme fotografia do pai deste que morreu e portanto avô do que aí vem, numa perfeita estultice de um socialismo que talvez nunca o tenha sido.
Como não sou muito de Natais, e gosto mesmo é do Dia da Família, quero mesmo é que o passem bem!
Fernando Pereira
19/12/2012

15 de dezembro de 2011

AMNÉSIA REVIGORADA / Ágora / Novo Jornal nº204/ Luanda 16-12-2012





Adriano Moreira foi agraciado com o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Mindelo, em Cabo Verde.
Germano de Almeida insigne escritor cabo-verdiano é o seu padrinho, o que de facto me deixa perplexo pelo muito respeito que tenho pelo poeta e pelo nenhum que tenho pelo homenageado.
Adriano Moreira é um verdadeiro sibilino na política, onde paira há mais de cinquenta anos, mesmo que mudem regimes, primeiros-ministros, presidentes da república em Portugal e alterações sociológicas e políticas no mundo.
Recentemente a jornalista angolana, Diana Andringa fez um documentário interessantíssimo sobre a Colónia Penal de Cabo Verde, “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”, onde conseguiu reunir dois sobreviventes portugueses e umas dezenas de cabo-verdianos, guineenses, angolanos que por lá passaram, e onde morreram 32 portugueses, 2 angolanos e 2 guineenses.
“Ainda vivemos à conta de uma memória salazarenta que nos puseram na cabeça e não corresponde à verdade", disse Diana Andringa, razão por que considera sua obrigação "desmontar" o que foi a "propaganda do fascismo e mostrar o lado que não interessava mostrar" antes da revolução de 1974."É que muita juventude continua a desconhecer que tivemos 48 anos de fascismo, muita gente morta e ainda hoje temos muita gente marcada pela tortura", argumenta."E um país não cresce sem a memória do passado", sublinha a jornalista, que conhece bem a realidade do campo do Tarrafal e da prisão antes do 25 de Abril de 1974 uma vez que ela própria esteve detida em Caxias ao abrigo de um processo ligado a movimentos pró independentistas.
Recorde-se que o Campo de Concentração do Tarrafal foi criado em Abril de 1936, e inaugurado em Setembro do mesmo ano, essencialmente com presos da revolta da Marinha Grande e da revolta dos Marinheiros. Foi encerrado em 1954.
Adriano Moreira reabre-o em 1961 com o nome de “Colónia Penal de Chão Bom”, para onde enviou os condenados de “delito de opinião” das colónias, donde foram libertados em Maio de 1974. Muito indignado ficou quando alguém o confrontou com essa abertura, tendo dito que não reabriu nada, criou uma estrutura nova. Essa estrutura era a mesma que «Quem vem para o Tarrafal vem para morrer» como diziam os directores do Campo, Manuel dos Reis e João da Silva ou «Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito», dizia o médico do Campo, Esmeraldo Pais Prata.
Ministro do Ultramar que Salazar nomeia na esteira dos acontecimentos de 15 de Março de 1961 em Angola, Adriano Moreira supôs que seria o delfim do regime, e ei-lo a tentar pelos meios mais sórdidos abafar todos os seus potenciais adversários. Marcelo Caetano e Venancio Deslandes foram dos seus alvos com o beneplácito do sardónico primeiro-ministro português. Foi o homem adequado para que Salazar se visse livre de certa gente, e quando tudo serenou, o seminarista de Santa Comba despachou-o mais ou menos ao estilo que já tinha feito com outros.
Adriano Moreira era um jovem professor do ISCPU, cultor e divulgador do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre, portador da ideologia que enfatizava as qualidades do português enquanto homem de grande humanismo e enorme espírito de promoção civilizacional dos negros africanos.
Chegou a Angola cheio de reformas que no essencial era mudar tudo para que tudo ficasse na mesma. Claro que tudo ruiu como um castelo de cartas, porque a partida já tinha passado para a sua fase de confronto decisiva.
Voltando ao Honoris Causa condenado por todas as associações de ex-presos políticos da lusofonia, nomeadamente a cabo-verdiana pela voz do seu presidente Pedro Martins que considera isto um “insulto” e que a «a distinção é contra tudo o que lutámos para pôr fim ao regime colonial fascista».“Ali é só deixar de pensar. Porque se não morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos.” A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974, no documentário de Andringa.
Adriano Moreira tentou sempre ser equidistante de tudo, mas a realidade é que foi estando em tudo que ao colonialismo diz respeito (Sei que há muitos na terra que não gostam do termo, apesar de noutras alturas berrarem bem alto contra ele, e alguns arvorarem-se em combatentes de primeira água).
Como já fui vendo tanta coisa, espero que Angola não faça o que já fez com outros de igual jaez, e premiarem-no “por razões de ordem científica” como estão a fazer no Mindelo.
A memória tem que estar presente para que a dignidade de angolanos não seja violentada por uns basbaques, que ainda não conseguiram acertar a sua consciência com a história.
Já agora perto da fábrica da Cuca havia um bairro com o nome dele, e felizmente que a toponímia em certos casos foi mesmo bem mudada na nossa cidade!
DesaTARRAFALem-se deste tipo de gente!

Fernando Pereira
13/12/2011
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