13 de abril de 2012

Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram! / Ágora /Novo Jornal 221/ Luanda 13/4/2012




Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram!
Durante o recolher obrigatório mais longo do mundo, a que o luandense se foi adaptando com a subtileza com que ultrapassava os escolhos em tempos hoje recordados com alguma nostalgia. Esses momentos tiveram o privilégio de deixar a marca solidária na sociedade angolana, que atualmente desvanecida pela inversão de valores.
Nessas noites tranquilas, nesse dealbar dos anos 80 descia do Kinaxixe a pé até à Casa do Desportista, onde tive poiso bastante mais tempo que esperava, e invariavelmente apanhava o “controle” a formar-se, saudavam-me com o “boa noite camarada”, perguntavam-me a hora, invariavelmente um quarto para a meia-noite, para chegar a casa a tempo.
Um dia atrasei-me, perguntaram-me as horas ao que respondi que eram meia-noite e vinte, logo me solicitaram os documentos e recebi voz de detenção. Contudo, provoquei uma enorme discussão entre os três militares porque perguntaram-me as horas, eu não menti, afinal o meu argumento mais virtuoso desde que comecei a ver o caso mal parado. Recebi a “alforria”, mas pediram-me para evitar a patrulha móvel, e lá fui a passo de corrida até à Casa do Desportista. A partir daí as horas que dizia eram as que me agradavam.
Numa noite de Março numa altura em que ainda não nos tínhamos habituado a ter ar condicionado, estávamos um conjunto de pessoas nas traseiras da Casa do Desportista, onde hoje está um conjunto de restaurantes e armazéns de duvidosa qualidade arquitetónica, ao tempo local aprazível e onde a brisa corria e amenizava a abafação da noite. Estávamos a conversar e entretanto surgem três soldados a pedir-nos os documentos, que naturalmente não estavam connosco, imediatamente a darem-nos voz de prisão porque estávamos a descumprir o “recolher obrigatório”. Argumentámos que aquilo era um quintal de uma propriedade privada, que o acesso à rua não era público, enfim mil e um argumentos que não convenciam o único graduado presente, que nem sequer conseguia fazer perceber a alguém como iríamos todos ser levados para a prisão já que o carro dele era um jeep pequeno. Começou a perceber que apesar da autoridade do fardamento faltava-lhe quase tudo o resto e acabou a ordenar-nos para “ir para a cama”, “desta vez passava”, e um conjunto de frases que só o iam cada vez mais cobrindo de ridículo.
Não se passou comigo, mas quem a contou merece-me todo o crédito. No Largo da Maianga estava um controle para ver os documentos e o livre-trânsito do recolher obrigatório. Um FIAT 132 azul, que era o carro distribuído aos vice-ministros do governo da então RPA, em tempos mais parcimoniosos na distribuição de viaturas aos dirigentes, é instado a parar.Dentro vinha o membro do governo sozinho, sem livre-trânsito, bem argumentava que era vice e os soldados não se deixavam demover, dizendo que “não o conheciam”, “se era membro do governo devia conhecer a lei”, o quadro recorrente nestas situações. Como ao tempo não havia telemóveis, o vice-ministro já se conformara em que iria ficar ali uns tempos. A certa altura mandam parar o Carlos Lamartine, e o júbilo foi grande entre os soldados que estavam ali perante um dos seus eleitos, meu também diga-se de passagem. Ele a certa altura olha para o FIAT e vê encostado o vice, e pergunta-lhe que está ali a fazer e a resposta: “Fui kangado”! O Carlos Lamartine perguntou aos soldados se não sabiam quem era, e prontamente os esclareceu, tendo-o “libertado” de uma noite no mínimo tediosa. Vale mais um cantor conhecido que um governante quase anónimo.
Uma noite, já muito tarde e confiadamente pensando que levava o meu livre-trânsito, nem me preocupou em “driblar” o controlo que sabia estar invariavelmente no início da Alameda Manuel Van-Dunem. A verdade é que quando lá cheguei dei-me conta que não tinha o documento, já que o tinha deixado em casa, e nenhum argumento demoveu um esclarecido militar com quem fiquei uns tempos agradáveis a conversar, já que era do Songo, onde vivi e conhecíamos muita gente em comum, para além de falarmos de tanta coisa pois estive ali, cerca de três horas, com mais cerca de cinquenta nas minhas condições. No fim pediu-me boleia para a 7ª esquadra, deu-me os documentos e desejou-me uma boa noite, agradecendo-me a companhia que lhe fiz. Arribeia casa já o sol começava a raiar por traz do prédio que em tempos foram as efémeras instalações da “Rádio Clube Português” na Hoji-ya-Henda.
Histórias suaves de um tempo onde nos habituámos a conviver com o recolher obrigatório e a tirar partido da situação que tivemos de 1977 a 1991.

Fernando Pereira
8/4/2012

1 comentário:

Retornado disse...

Foi tudo um jogo, de sorte ou azar.

Tive um colega Pereira, numa repartição na Rua Serpa Pinto, perto do sinaleiro da Maianga,que foi aconselhado a não ficar em Angola, (Luanda) sua terra de nascimento e de coração, a seguir a 26 de Abril de 74, pelo menos que afastasse a família para o exterior temporariamente.

Zangado chamava cobarde e traidor a quem o aconselhava assim.

Em menos de um (1) ano, residia no Brasil, com menos uma filha, universitária.

A culpa foi de uma bala perdida no quintal (ou varanda)onde a jovem se encontrava.

Não sei qual a casa onde a filha foi atingida, pois ele tinha uma casa na Av. Brasil e outra no Bairro Alvalade e eu já estava no Brasil, não fui ao funeral.

É avida!

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