12 de junho de 2015

NO ANTIGAMENTE NA BOLA!/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda / 12 -6 - 2015













Em 2009 saiu do prelo o “História do Clube Atlético de Loanda”, numa edição do Clube Atlético de Luanda e Saudade. Tive o privilégio de ter estado na apresentação que decorreu no Espaço Verde do Chá de Caxinde.
O livro é um excelente documento sobre a evolução do desporto angolano no período de 1924-1953, com as suas conotações de natureza politica e social numa sociedade colonial fechada e profundamente retrógrada.
È um precioso auxiliar para quem quiser saber o que de importante aconteceu numa sociedade vincadamente estratificada do ponto de vista social, económico e político com as inerentes ligações ao associativismo.
Ao contrário do que é muito frequente comentar-se, o desporto tem ligações muito estreitas com o circunstancialismo politico, e é indisfarçável o alinhamento ou a rutura que determinadas associações ou clubes desportivos tem com os poderes instalados.
O Clube Atlético de Loanda foi desde a sua criação um clube de forte espírito nacionalista, a que não serão alheias as convicções emancipalistas dos seus fundadores, em contraciclo com os clubes emblemáticos do regime colonial, normalmente filiais dos clubes de Lisboa.
Numa das páginas do livro, que mereceria uma cuidada revisão, conta-se o episódio da vinda a Angola da Associação Académica de Coimbra a 2 de Agosto de 1938, acompanhando o então general Oscar Carmona na 1ª visita de um chefe de Estado Português às colónias.
Vivia-se na comunidade branca de Luanda a euforia da inauguração da Exposição-Feira, no bairro onde hoje estão instaladas a maior parte das embaixadas, e o convite à Académica partiu da direção da Exposição, entidade organizadora de um torneio onde participariam as seleções de Luanda, Benguela e Huíla.
A taça em disputa foi entregue à Académica, por iniciativa da direção da Exposição, provocando veementes protestos pela direção da Associação de Futebol de Luanda e do conjunto de selecionadores, técnicos e jogadores do selecionado local. A taça “General Carmona” foi disputada com pundonor pelas equipas entusiasmando o público que encheu os “Coqueiros”.
A versão do livro do Atlético:”… no referido jogo os luandenses marcaram a primeira bola . Coimbra empatou, e minutos depois sob perfeitíssimo centro de Julio Peyroteu , Júlio Andrade corre, esgueira-se entre os defesas, bate Tibério atirando a bola onde quer. Luanda 2 – Coimbra 1. Ardeu Tróia. Tibério apossa-se da bola e reclama off-side (pretenso). Os outros “académicos” acompanham-no. O árbitro valida o goal e manda a bola ao centro. Os “académicos” não cedem, e Tibério chefe do motim não quer entregar a bola. O árbitro insiste na sua resolução, e os académicos querem bater no árbitroque ante a impossibilidade de ser respeitado, se vê forçado em abandonar o campo, sempre sob a ameaça de pancada”. Tibério era o guarda-redes da equipa de Coimbra, e ainda entra Gentil Santos, a quem não é entregue a bola o mesmo acontecendo com o 3º árbitro, Serra Coelho. Tal o sururu que a polícia é obrigada aq intervir para acabar o jogo que já se prolongava para horas que não permitia a legislação relativa a espectáculos.
“… A direção da Exposição Feira de Angola, contra tudo, entregou a taça ao grupo académico: E essa entrega (?!) tem o seu quê de interessante. A taça foi levada para bordo do gasolina, que transportou os jogadores de Coimbra ao vapor “Colonial”, para a sua viagem à outra costa (Moçambique). Ora se a Taça foi ganha com merecimento, porque não foi entregue publicamente.”
Há contudo outra versão dos acontecimentos que vem no livro do meu saudoso colega João Mesquita “Académica / História do Futebol”.
Diz o seguinte esse livro, editado pela Almedina em 2007: “ …Corre o dia 6 de Agosto e os estudantes queixam-se de uma certa frieza na recepção” “… No segundo encontro é que o “caldo” se “ entorna”. Jogam Académica e a seleção de Luanda, com o ex-atleta da Briosa, Bernardo Pimenta, a recusar-se a alinhar por esta última. Desde o início que os estudantes se queixam de parcialidade por parte do árbitro, por sinal o treinador do selecionado luandense. Às tantas Luanda faz 2-1. Protestam veementemente os coimbrãos, alegando que o marcador se encontra fora de jogo. Em resposta o juiz abandona o campo. Os Angolanos não aceitam. Sugerem outro. É a vez da Académica recusar. Com tudo isto, a luz do dia vai desaparecendo e a polícia entra em acção para mandar os jogadores para o balneário.
Uma vez que não se esgotam os 60 minutos que o regulamento estipula para duração de cada jogo, é marcado segundo encontro. Mas Luanda não comparece. Como a Académica batera entretanto a seleção de Benguela por 3-1, a taça é atribuída aos estudantes. Estes antes de deixarem Luanda, envoltos numa acesa polémica, ainda defrontam a seleção de Angola. Com quem perdem por 4-3.”
Neste jogo que se disputou a 28 de Agosto de 1938, com a arbitragem de Armando Serra Coelho, pai do Serra Coelho que posteriormente representou a Académica no dealbar dos anos 50, a seleção de Angola orientada por João Francisco Mendonça alinhou com: Oscar de Lemos, António Arsénio e Apolinário Mendonça (todos de Luanda),Duarte Cabral (Benguela),Saldanha Palhares (Luanda), Jaime Adriano (Benguela), José Cruz “Gégé” (Benguela), Julio Andrade (Luanda), Telmo Vaz Pereira (Luanda), Nuno Vaz (Benguela) e Julio Peyroteu (Luanda).
A Associação Académica de Coimbra orientada por Puskas alinha com Tibério Antunes (depois Cipriano), João Teixeira (Alberto Cunha), José Maria Antunes, Faustino (Teixeira), Alberto Carneiro, Octaviano, Alberto Gomes, Peseta, António dos Santos, Nini e Manuel da Costa.
António Santos(2) e Nini marcaram pela Académica e Julio Andrade (3) e Telmo pelo selecionado de Angola.
António Santos não fazia parte da equipa da Académica que disputava os campeonatos nacionais. Era jogador do Futebol Clube do Porto e estudava na altura em Coimbra.
Estes jogos, aparentemente “amigáveis”, entre equipas da Metrópole e da então colónia eram sempre marcados por uma grande rivalidade, a que não eram alheios os propósitos emancipalistas de alguns elementos do selecionado local, e o nacionalismo exacerbado de alguns elementos das equipas de Portugal, que eram escolhidas naturalmente a contento do regime.
Este texto visto na perspetiva dos dois contendores, talvez consiga dar outra verosimilhança a esse episódio nesse longínquo 20 de Agosto de 1938 na cidade de Luanda.

Fernando Pereira
10/6/2015

CONTRA TEMPO - O Interior- 11/6/2015



Acho risível quando vejo um coro de protestos relativo à entrada em vigor do recente acordo ortográfico.
Num Portugal, ou mesmo numa lusofonia, que agora também já fala um espanhol enviesado, onde e iliteracia e o analfabetismo têm números que nos devem deixar preocupados, é no mínimo redutor andar com rodriguinhos por causa de um acordo, situação que tem sido recorrente desde 1931.
Nunca me preocupei com isso e curiosamente muitas vezes a única coisa que une os bons e os maus escrevinhadores é só a frase “escrito de acordo com a antiga ortografia”.
Há causas mais importantes a dar algumas das nossas forças, e essas tem a ver com a restituição do primado “de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades”, matriz ideológica fundamental para uma sociedade solidária e mais justa, bem diferente do neoliberalismo que tem sido o quotidiano político e económico de uma Europa envelhecida e deprimida.
Os “condes de Abranhos” da política local e nacional começam a aquecer as suas depauperadas máquinas partidárias, uns na tentativa de se perpetuarem no poder outros para lá retornarem, fazendo uma cosmética de políticas velhas e de soluções que não trazem nada de novo à região e ao País.
Acho que é completamente dispensável a vinda ao interior dos responsáveis nacionais e líderes partidários dos partidos do arco da governação, porque de facto não vem fazer rigorosamente nada de novo, a não ser distribuir sorrisos artificiais e gastarem o resto do tempo em repetidos lugares comuns do tipo “não virar costas ao interior”, “promover emprego e lutar contra as assimetrias da interioridade” e outras tretas habituais neste quotidiano que defrauda os valores da democracia.
Não sinto que mudar pormenores resolva os problemas do quotidiano de vida de uma região onde vivemos, onde tudo é particularmente difícil de conseguir e onde cada vez somos menos a pensar que as coisas não melhoram sem resistência. Paciência!
Adam Smith (1723-1790), por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar: “Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável.”
Para que conste Adam Smith morreu quase cinquenta anos antes de ter nascido Karl Marx.
Que tem isto a ver com o acordo ortográfico? Provavelmente muito pouco, mas reitero o que disse: Acho que é melhor desgastarmo-nos em batalhas que valham a pena!

Fernando Pereira
7/6/2015

5 de junho de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (3) / Novo Jornal / Luanda 5/5/2015






Continuo a descrever a Angola nas histórias do António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração colonial, que merecem uma leitura atenta de um tempo que foi correndo nos anos 40,50 e 60 na então “província de Angola”.
Dizia uma vez alguém sobre Angola do antanho, que bastava publicar os documentos da administração colonial, sem precisar de comentários para dar a verdadeira imagem dos tempos de um período que muitos hoje não gostam que se chame colonialismo!

“O Ambaquista era uma figura imprescindível da Angola de outras eras e que chegou aos nossos dias e nos anos 70 praticamente já quase tinha passado à história.
O Ambaquista, é definido, em primeiro lugar por ser natural de Ambaca, atual concelho de Ambaca, com sede em Camabatela, e essa figura para ser conhecida usava uma caneta pendurada ao pescoço, suspensa por um baraço, e um tinteiro de chifre preso à cintura e debaixo do braço ou presa na mão, uma pasta que continha folhas de papel, para utilizar quando necessário. Tratava-se pouco mais ou menos de um indivíduo, normalmente mal letrado e que recorrendo as aldeias de diversas áreas administrativas, junto das povoações nativas, oferecia os seus conhecimentos para passar ao papel, exposições, requerimentos, queixas diversas, reclamações, etc. Cobrava os serviços de acordo com a sua importância, e que ele próprio encaminhava para a entidade que entendia competente.
Grande parte era gente oriunda das Missões católicas ou outras e que, muitas vezes, mal falando e muito pior escrevendo português, se tornavam ininteligíveis. Primeiro porque procuravam utilizar palavras arrevesadas e difíceis, nos lugares mais impróprios.
As composições, e até, às vezes utilizando e mencionando artigos da Constituição dos Códigos Penal e Civil, como que a alardear ciência. Era um autêntico doutor de lareira, que sempre que possível usava óculos de vidro de garrafa, para lhe dar um ar de intelectual. Se terminada a exposição se lhe perguntava o que escreveu, ele não sabia explicar.
Ambaca foi uma grande região que desde o séc. XVII teve o privilégio depois da grande batalha de Ambuíla, de se tornar o centro para onde convergiam todas as iniciativas de ocupação e desenvolvimento e por isso aquela que maior influência colonial criou: primeiro as feiras, depois os conventos e as igrejas influenciando as populações de uma região que era prodigiosa na agricultura e pecuária, avultando a produção de café, a borracha e o gado bovino.
Há séculos que a escrita e a leitura eram correntes entre eles, e como já o dissemos a igreja católica sempre aliava a propagação a fé à escolarização e ao ensino das artes e ofícios. O Ambaquista distingue-se dos outros à vista desarmada. Nestas lonjuras, na época em que Ambaca ficava muito longe, pela imagem do tinteiro de chifre e da caneta pendurada no pescoço, estes rapidamente se espalharam por todo o norte de Angola.
Foram apesar dos seus defeitos, por deficiência de formação elementos muito úteis para quem dos seus serviços precisava e cujas exposições dos problemas passava do oral a escrito. Trouxe, por outro lado, alguns problemas às autoridades especialmente às administrativas de quem faziam queixas que de outro modo não chegavam ao conhecimento dos superiores, enunciando as injustiças e arbitrariedades. Os custos diversos para os Ambaquistas foram como uma mina de diamantes. Façam lá ideia do que era um Ambaquista invocar os artigos do Código Civil ou Penal perante os analfabetos e o conceito que passaram a ter entre as populações que recrutavam os seus serviços. Os Ambaquistas evoluíram até no vestuário começando a apresentarem-se bem vestidos e calçados. O tinteiro e a caneta transitaram para os bolsos e as queixas, os requerimentos, e exposições passaram a multiplicar-se tal como o milagre do pão das bodas de Canãa.
Por último gostaria de dar três exemplos do modo de escrita dos Ambaquistas para se aquilatar da sua "verborreia".
Primeira carta- dirigida a um funcionário superior de passagem pela terra

- Viva a República!... Viva. O Estado curpurativo que bom da Nassão.
Meu amigo... Meu amore? Exulentissimo Senhore
Nu servisse e traqualmente do decreto artigo 265 vem o queixose que do nomi e tradissoes Bernardo Maria Dalmeida a depor para vossinselencia li ter amão um imprejo em Luanda qe o nomi de seu pai é legitimi António Maria como precetua u mesmo artigo 265 e verso com inclinato neste concelho, poisque no gado que tinha, mais vacas suas tistimunhas deu duenssa de mosca que o dito empregu du artigo 265 me podia aliviar incargos.
Asseite meu amigui Exulentissime Senhore a bam da nassão.
Saúde e fartenidade du quem sassina Bernardo Maria Dalmeida pur sabere lere e contare
Di juelhos aos pés da crus
A. Bernardo Maria Dalmeida

Nota-se nesta carta que o ambaquista não estava seguro da sua escrita e já a segunda demonstra outros conhecimentos e saberes.

Exmo. Senhore
Em primeiro de tudo disculpa-me de tão atrevimento importuná-lo nos números a-fazeres de Vossa Exa..
Tem primeiro a presente carta com calor e escana minha situação me obriga a escrever consideravelmente a Vexa para fim de Vexa levar a minha perturbada vida um pouco mais além? Digo e juro pelos maiores doutros mundos, e até a todos os santos, que tenho uma velhinha tia que diariamente além feitos para o pão nosso de cada dia nos dá hoje.
Por mais esse pedia a Vexa venha uma mais com qualquer coisa do meu vencimento que me dê favorável.
Assisto, então espero submeter a uma interrogação a negativa para confiança positiva.
De sou beijos sei que muito negarão esta meu situação pedindo.
O Deus o guarde dois corações.
Preconceite em conceito sem mais, recordo-me em espaço com quanto há dignidade de Vexa muito obrigado.
João Augusto

Tive na minha posse diversas cartas que guardei e que hoje não sei onde param, á exceção destas duas que hoje vos dou a ler. Tinham as características e o vocabulário dos Ambaquistas de nascimento e profissão que definiam bem a sua mentalidade. Não fujo, porém, à tentação de transcrever uma requisição de medicamentos a qual tinha que levar o visto do administrador do concelho, para ser satisfeita e que foi elaborada por ajudante de agente sanitário, que rezava assim:

Requesição

0,5 litro de Mercúrio
0,5 litro de tintura de ódio
5 maços de gazia
3 garrafas de água oxisnada
3 rolos de adezível

6 de Maio de 1965
( Segue-se a assinatura)

E ainda esta...

Buraco di Fumassa, dia do Lua Nova do mês do Chuva deste ano

Meu quirido Bastião.
Sou eu qui te estar e escrever.
Eu num querer te dizer tua pai moreu, por aqui meu pessoa num querer dar desgosto, mas moreu mesmo parava de onra. No nosso tera estar passando coisa esquisito, carcura qui pessoas qui nunca ter morido estar a morer agora.
Muer do ti Paurino já pariu minino, mas ti Paurino estar sconfiado num ser dere por qui ti Paurino ter perna de pau e minino nascer com dois perna mesmo verdadeiro.
Tónico querer casar com Mariquita mas os pai num querer por qui eres afinar ser pirima e pirimo e pirimo com pirima num pode, sair firio analfabeto.
Firio de pai João ter engorido sete e quinhento, já cagou cinco escudo, fartar meio cinco.
Os branco agora estar a fazer rua nova. Ter passeio dum rado e ter passeio doutro rado e o rua passar mesmo no meio.
Branco ter esperto no cabeça.

Escurpa o caligrafia mas eu andar bem rouco e os parava não sair bem.
Escurpa num mandar vinte escudo mas a carta já fechou.
Escurpa num por ponto finar mas a tinta já acabou.

Teu pirimo
Djongo

Para terminar transcrevo o final de uma carta enviada a um amigo que termina assim:
Saudades para todos sem mais adeus manda sempre aquilo que não precisares
6 de Julho de 1952
Assinado Diamantino

È com estes pedaços ligados ao longo dos tempos que se faz a história de uma nação.”


Fernando Pereira
31/5/2015

29 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (2) / Ágora /Novo Jornal/ Luanda 29/5/2015



Nos tempos da Kaparandanda (2)

Continuo a dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração que nos deixou algumas preciosidades e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” editado pela Cá de Caxinde, fez uma reflexão do que foram os seus vinte e seis anos de Angola.
São histórias simples, numa linguagem despretensiosa e num enquadramento de um tempo em que Angola era uma colónia de Portugal num contexto muito diferente dos tempos de hoje.
“O Moutinho
Hoje há quem se prepare convenientemente e com diploma passado, para animador cultural. Naquele tempo não era assim. O maior e melhor diploma era a aparelhagem sonora e o amplificador.
Este conjunto entregue a quem tivesse alguma habilidade e espírito alegre, nada mais era necessário. Pois, no Uíge, conheci um desses indivíduos que era chamado para todos os eventos: festas de rua, homenagens a personalidades, casamentos, batizados e outros. E ele era elemento imprescindível.
Tinha uma boa aparelhagem, muitos discos, com músicas brasileiras que ainda hoje, e já lá vão tantos anos, de volta e meia ainda oiço algumas delas.

Mas vamos então fazer a apresentação da personagem: chamava-se José Moutinho, homem de mediana estatura, de boa compleição física, sardento, cabelo ondulado avermelhado, de cerca de pouco mais de 40 anos, casado com uma senhora nutrida e muito simpática que sempre o acompanhava para todos os lados.
Não tinha filhos e tinha toda a disponibilidade para ir onde fosse necessário. Com uma locução agradável e fluente, caíra no goto da gente do Uíge, mas muita gente desconhecia um acontecimento que lhe deu fama e pouco proveito.
Em tempos, tinha ele cerca de vinte e poucos anos, juntamente com mais três amigos resolveram que haviam de fazer uma viagem, de bicicleta, ligando Luanda a Lisboa. Era um feito inédito e com bicicletas pasteleiras mas que teria uma grande repercussão; trataram das pasteleiras juntaram o necessário para o caminho, uma credencial para permitir abrir fronteiras, levaram a roupa necessária e água.
Faltar-lhes-ia o essencial que era um planeamento muito cuidado do itinerário e ainda a Comunicação Social que nestes eventos é sempre necessária. Mas gente de sangue na guelra e cheios de esperança, lá arrancaram certo dia de Luanda, a caminho de Lisboa, não pensando muito naquilo que era o esforço diário e as contrariedades que poderiam acontecer. O mais entusiasta foi o José Moutinho, talvez o mais bem preparado para a grande jornada. Os primeiros dias foram passados mais ou menos, depois foram surgindo as dificuldades, falta de capacidade física, e aos poucos e à medida que os quilómetros eram percorridos e noites mal dormidas, iam fazendo mossa que já diziam mal da sua vida por se meterem em tal aventura. Quantos mais quilómetros percorriam parecia-lhes que muitos mais outros lhes faltavam para andar. Começaram a dar sinais de fraqueza e a falta de ânimo conjuntamente com as indisposições e as pequenas mazelas que os iam afetando cada vez mais.
É preciso não esquecer que estavam nos anos 30, e nesse tempo, muito havia ainda a explorar. Primeiro, e há sempre um primeiro que piora, completamente exausto obrigou os restantes a pararem para o ajudar. Mas o mal não era fácil de debelar e acusando uma forte anemia, que apesar dos esforços de todos e dos cuidados médicos e hospitalares, foi internado numa pequena Vila da República do Congo, não resistindo ao mal que o afetava, acabou por falecer.
Os outros dois elementos permaneceram ali alguns dias para cumprirem com as formalidades legais; depois continuaram a viagem, agora só dois, sendo o José Moutinho o mais resistente e o mais bem preparado, e à medida que se aproximavam do norte de África já ambos iam bem desgastados e a verdade é que o companheiro do Moutinho, quando já estava perto de Marrocos ali desistiu, continuando assim a viagem completamente só o Moutinho, que para sua grande alegria entrou em território português Vilar Formoso , de onde seu pai era natural.
Veio para Lisboa, onde o Moutinho julgava que seria recebido depois daquela viagem única sem apoios de qualquer espécie, e pensou até que exultassem o feito e o custo da viagem...
Mas 105 dias depois internaram-no na Casa Pia de Lisboa como indigente, onde lhe facultaram comida e dormida, bem como o pagamento da viagem de regresso.
Ao ter-me contado esta aventura, levou-me a concluir que tinha à minha frente um homem de coragem e de grande espírito de sacrifício.
Por estas e por outros foi sempre um amigo que eu estimei, e o seu último gesto para comigo, foi, depois de gravar a minha festa de despedida no novo Hotel do Uíge, ter-me oferecido o original da gravação com um abraço muito apertado de amizade que quando me recordo daquele tempo, sempre vem à minha mente o José Moutinho, que para mim foi um herói injustiçado.”
Não deixa de ser interessante quando se consegue reproduzir uma aventura com 75 anos de um tempo em que tudo era difícil para alguns e muitíssimo difícil para muitos!
Às histórias havemos de voltar!

Fernando Pereira
26/5/2015

25 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (1) -Ágora - Novo Jornal 22/5/2015





Vou dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” deixou testemunhos importantes sobre um território que percorreu de lés a lés.
Desse livro, editado pela “Chá da Caxinde” permito-me tirar alguns textos que ilustram bem o que era o interior de Angola, num contexto muito pessoal de um homem que se obrigou a gostar de Angola.
“A antiga província do Congo, depois Distrito de Uíge, era, por excelência, a terra do café.
Por aquela imensa área, por todo o lado se encontravam plantações de café, bem tratadas, bons acampamentos para trabalhadores, boas vivendas para os seus proprietários e bem assim para os seus colaboradores.
A sede de Província, Uíge, crescia e desenvolvia-se a olhos vistos, e não só o Uíge, mas também o Negage, Quitexe, Songo, Bembe, Nova Caipemba, Sanza Pombo, Quimbele e outras mais. O Uíge estava a tornar-se rapidamente numa cidade, e como tinha que acompanhar o progresso, e os seus principais homens de negócios, alguns seus fundadores, em muito contribuíram para isso, como já destaquei em trabalho anterior.
Agora apenas quero lembrar pequenos episódios que ao tempo em que passaram a fazer parte da vivência daquelas povoações.
O José Ferreira Cagido, um dos comerciantes e agricultores, dos mais importantes e mais bairristas daquela terra, construiu diversos prédios num gaveto de terreno entre a avenida Capitão Pereira e a Rua do Comércio, onde instalou a sede da sua empresa, construiu um prédio e numa parte do rés-do-chão resolveu montar uma barbearia moderna, onde não faltavam cadeiras com boas condições para o exercício da atividade, outras bem cómodas para os clientes, que esperassem pela sua vez, bons espelhos, e ainda um mesinha com tampo de vidro e uma cadeira, para ali se instalar uma manicure.
O Cagido mandou chamar o Freitas, que era o barbeiro da terra, que ali operava há já alguns anos, e convidou-o a tomar conta do estabelecimento, em princípio sem encargos, para começar, o que naturalmente agradou ao barbeiro. Para o Uíge, tal barbearia era sinal de progresso. O Freitas logo tomou providências necessárias, para que no dia da abertura não faltasse nada, muito menos a manicure, e por isso, se deslocou a Luanda onde podia encontrar todo o necessário incluindo a manicure, onde havia muito por onde escolher e interessadas não faltavam. Até que chegou o dia da inauguração da dita barbearia, aberta a porta, a casa encheu-se, a manicure já tinha ocupado o seu lugar e a clientela naquele dia e nos dias seguintes esgotava a lotação e os clientes não se importavam de esperar. O negócio ia prosperando e os clientes afluíam de todo o lado, de Negage, Quitexe, etc, mais por causa da manicure, a novidade da terra. A fama ultrapassou as fronteiras das vilas e chegou até aos recônditos mais afastados, não deixando de chegar aos ouvidos de um fazendeiro do Quitexe, um dos maiores produtores de café, homem já de avançada idade, mas a que não faltava saúde nem entusiasmo e que viva só, entretido como andava com as lides do café. Era homem queimado pelos sóis do Quitexe, e era conhecido pelo Bula Matari, que traduzido à letra era o mesmo que o parte pedras; e com os dedos das mãos, tal era a sua condição física que com facilidade dobrava as caricas das cervejas. Quando chegou ao seu conhecimento a novidade da manicure, não perdeu o seu tempo; montou-se no jipe e ei-lo a caminho do Uíge à procura da caça. Era um fim-de-semana; instalou-se no Hotel do Uíge, que de Hotel só tinha o nome...
O nosso homem que como já se disse era um fenómeno de força, entretinha-se também a dobrar caricas no Hotel. Na segunda-feira, pela manhã, o Bula Matari lá estava à porta da barbearia para ser dos primeiros clientes daquele dia. Entregou-se aos cuidados da manicure e logo ali iniciaram uma conversa pegada, pelos vistos com um bom entendimento, e de tal modo, que no dia seguinte à hora da abertura as barbearia, estava a manicure de viagem até ao Quitexe, onde o Bula Matari garantiu, pelo menos durante alguns meses, que lhe tratasse das unhas e ela experimentasse uma vida muito diferente daquela que tinha conhecido até ali.
O barbeiro Freitas é que não gostou da graça e não pretendia esmorecer e deixar decair o negócio e lá vai ele novamente a Luanda arranjar outra para o lugar, o que não foi difícil. Suprida a falta, ele lá ia continuar a exercer a sua actividade, enquanto que o negócio continuasse a florescer. Tudo decorria dentro da normalidade, mas, alguns dias passados, o inevitável aconteceu, agora de forma diferente, era a manicure que se despedia por ter arranjado emprego mais lucrativo e mais folgado. Tinha arranjado um fazendeiro que lhe tinha proposto uma vida que antes nunca tinha tido e experimentar: a vida da boa vida. O bom do Freitas teve de aceitar a situação, mas a verdade é que a barbearia assim ficaria incompleta. Não fez mais nenhuma diligência para substituir a manicure. Afinal ele estava a fazer uma figura triste, de arranjar mulheres para os outros e para isso ele não estava disposto. Ainda tentou e conseguiu uma meia reformada, mas não era chamariz para os clientes.
Mas mesmo assim, algum tempo depois essa manicure também não escapou e foi para governanta da casa de habitação de um comerciante solteiro ali na mesma rua do Comércio onde mudou de actividade mas não de morada.
A barbearia ficou mais vazia, o Freitas mais triste, mas não tendo cão, preferiu caçar com um gato, e no mato ele não teve outro remédio e deixou-se de modernices.”

Ao tema, havemos de voltar.


Fernando Pereira
18/5/2015

15 de maio de 2015

As árvores morrem de pé- Ágora- Novo Jornal-Luanda- 15/5/2015


Quando vi muito difundido nas redes sociais o abate de uma árvore centenária no largo fronteiro à sede e serviços administrativos da ex-Sociedade Agrícola do Cassequel veio-me à lembrança o título de uma peça de Alejandro Casona, e as recordações do meu pai que trabalhou nos serviços administrativos e sempre se lembrou delas existirem por ali desde que para lá foi nos anos quarenta.
Acho que apenas serviria de nota de rodapé numa crónica, este ato de vandalismo cometido pelas autoridades da Catumbela, mas infelizmente o que se passou nesse espaço é quotidianamente repetido pelo País fora com a complacência e cumplicidade até das autoridades da tutela.
Angola viveu durante muitos anos uma situação de desbaste continuado de árvores, fruto da falta de abastecimento de combustíveis alternativos às populações que viviam no campo ou nas próprias cidades, incluindo Luanda. Era a fase da sobrevivência a todo o custo!
Durante demasiado tempo o carvão de madeira era a única alternativa para a maioria das pessoas cozinharem ou aquecerem o que quer que fosse. Foi um negócio que permitiu a sobrevivência de muitos, mas levou a um desbaste de árvores praticamente em todo o País e a renovação não existiu. O que é lamentável é que a situação continua a não ter resposta nem de entidades públicas nem empresas privadas.
Esta é uma situação muito preocupante na generalidade dos países africanos e Angola confronta-se com essa realidade, sem que se vá dando conta de que a mancha verde que cobria uma parte do País foi sendo cada vez mais reduzida devido à falta de controlo no abate de árvores nos tempos que correm.
As cidades foram crescendo para locais onde antes existiam pequenas lavras e zonas com vegetação, mais luxuriante no norte e centro que no sul. O solo degrada-se e o manto verde, rico em húmus, ficam vulneráveis e substituídos pelas camadas de argila, calcário e areia, paupérrimas para qualquer atividade agrícola ou pecuária.
Este fenómeno é comum no campo, onde a inclemência do clima, com uma exposição solar continuada, a que acrescem as chuvadas diluvianas, aumentam os níveis de degradação dos solos que vão sendo mais estéreis e os terrenos cada vez mais pobres e, concomitantemente, pouco disponíveis para a fixação de gente, dada a cada vez menor rendabilidade na sua exploração.
Angola vive esta situação dolorosa que parece indiferente à maioria dos cidadãos, e as próprias autoridades tendem a ignorar algumas malfeitorias que os pouco escrupulosos madeireiros vão fazendo um pouco por todo o lado, abatendo espécies arbóreas que deveriam ser protegidas. A lei que existe talvez seja suficiente, mas era de todo indispensável que as sanções aos prevaricadores fossem maiores porque na realidade não estão a prejudicar as pessoas de hoje, estão a deixar um futuro degradado e sem expectativas às gerações vindouras. Salvo a ADRA e pouco mais, vejo muito poucos na sociedade civil a tentarem impor outras regras.
Conheci locais luxuriantes como a Gabela ou o Songo, isto a título de exemplo, e o que se vê hoje é quase paisagem lunar, o que me deixa muito preocupado porque nas colinas, quando chove copiosamente, a camada produtiva é empurrada para os vales, tornando-as inóspitas e de todo indisponíveis para fazer o que quer que seja para o seu aproveitamento a favor de uma agricultura sustentada e com possibilidade de fixar gente!
Talvez me repita com o que aconteceu com a Ilha de Páscoa, e talvez ajude a mostrar alguma coisa em que o caso Catumbela ou o corte das árvores na antiga estrada do Cacuaco são apenas alguns casos que se generalizaram no País, com as consequências já perceptíveis.
Recupera-se periodicamente a história da Ilha de Páscoa, território chileno com cinco mil habitantes, a maior parte deles idos do continente. A ilha de Páscoa é famosa pelas suas inúteis estátuas.
Num filme, Rapa Nui, contava-se a história dos Moai, povo que, vindo da Polinésia, se tinha instalado na ilha, onde desenvolveu uma civilização.As gigantescas estátuas de pedra, património da Humanidade, eram construídas como oferendas a divindades e, naturalmente, para serem transportadas até ao seu destino final onde estão esculpidas, houve necessidade de abater árvores para as arrastar desde a pedreira.
Esse foi o princípio do fim dos Moai, segundo o filme que afinal corrobora a opinião da maior parte dos investigadores. Em determinada altura começaram algumas tribos a digladiar-se com o objetivo de atingir a supremacia de uns sobre os outros, e cada um dos vencedores ia fazendo estátuas maiores para oferecer às divindades. A guerra acabou, provavelmente por falta de guerreiros, míngua de árvores e de Moai em número suficiente para obter os favores ou aplacar as fúrias dos sempre silenciosos deuses. As árvores eram mais necessárias que os Moai, mais férteis, e ofereciam sombra e abrigo contra os ventos oceânicos. Sem elas, depressa os solos se degradaram e a ilha ficou desértica. O ecossistema da ilha foi destruído e acabou para se revelar insuficiente para alimentar a população de dezenas de milhares de pessoas.
Quando os primeiros europeus ali aportaram, num qualquer domingo de Páscoa, encontraram pouco mais de dois mil habitantes, depauperados fisicamente, sem a grandeza dos Moai, que acabaram por legar ao futuro uma ilha deserta, inóspita e habitada por continentais que vivem do turismo, a sua única fonte de receita. As doenças que os europeus trouxeram acabaram com o que restava dos Moai, porque os habitantes não tinham defesas para elas.

Velhas Árvores

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo Bilac


Fernando Pereira
11/5/2015

Copypastadamente- O Interior- 14/5/2015



"Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". Diógenes Laércio, o cínico.
Um destes dias tive necessidade de recorrer ao livro “Desporto e Estruturas Sociais”, do professor José Esteves, para tirar uma dúvida sobre o número de praticantes desportivos numa determinada modalidade, em Portugal, na primeira metade dos anos sessenta e assim corrigir, com precisão, um amigo sobre o assunto.
Como sempre acontece quando estou com algum livro do professor José Esteves, continuo a relê-lo e gostaria de partilhar aqui algumas histórias que marcaram o quotidiano político do “Portugal uno e indivisível”.
O Diretor Geral dos Desportos era, no distante ano de 1958, o tenente-coronel Sacramento Monteiro que, cheio de boas intenções, resolve pedir uma audiência a Salazar para a discussão de um plano de construção de instalações desportivas em Portugal e colónias.
Com a frieza habitual com que recebia os subalternos, mesmo que titulares de cargos de responsabilidade governativa, recebeu o Diretor que lhe entregou um dossier. Salazar perguntou que era aquilo. “ Trata-se de um plano de construção de piscinas, para o fomento da natação entre a nossa juventude, Sr. Presidente”. O militar Sacramento Monteiro contou ainda: “o homem olhou para mim, olhou para o dossier, afastou-o logo a seguir, com um dedo só, com um ar de muito desprezo e despede-me com esta simples frase: Senhor Diretor Geral, está muito frio para tratar desse assunto. Venha lá mais para o Verão!”.
Em 1959, numa visita efetuada ao Estádio Universitário de Lisboa, ao verificar, na planta geral das instalações, que havia um espaço destinado a uma piscina, ali mesmo decidiu a eliminação pura e simples de tal hipótese. O homem abominava a natação.
Falou-se de coisas sérias, agora falemos do Almirante Tomas, ultimo presidente da Republica de Portugal do tempo colonial que teve uma tirada que ainda é hoje recordada no anedotário político português, passados quarenta anos da sua deposição: «Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados.».
Porque falei do Tomas, não queria deixar de recordar uma frase que a “censura” em Portugal fez a um discurso seu, e que a Seara Nova, revista oposicionista, deu à estampa e que dizia isto: «Pedi desculpa ao Sr .Eng.º Machado Vaz por fazer essa retificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Sr. Eng.º Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Sr. Eng.º Machado Vaz.». Não deixa de ser bizarra a “Censura” proibir a publicação de partes do discurso do “Venerando Chefe de Estado de Portugal do Minho a Timor”.

Alexandre O’Neill em “Uma coisa em forma de assim”: «Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com poder, é, quase sempre, um perigo. Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.»
Para memória presente e futura nas profundezas das Beiras ou na “vida boa de Lisboa”!

Fernando Pereira
11/5/2015

8 de maio de 2015

Morreu o “Senhor Lubito” / Ágora / Novo Jornal/ Luanda/ 8-5-2015








Morreu o “Senhor Lubito”
Preparava-me para escrever o artigo semanal quando recebo a notícia do falecimento do arquiteto Francisco Castro Rodrigues (1920-2015).
Com o seu desaparecimento, o Lubito perde a última das suas grandes referências de um tempo de luta, de esperança batalhada, de uma gente que sentia que a cidade não se resumia a uma lingueta de areia, esquecendo toda uma periferia com gente que labuta há muito na busca de um dia melhor, que vai tardando.
Ocasionalmente conversávamos ao telefone, porque já há uns tempos que as limitações físicas o impediam de se deslocar com facilidade. Ficou muito abalado quando lhe dei a notícia do desaparecimento do Engenheiro Fernando Falcão assim como a do Dr. Canhão Bernardes, o “escultor” do Lubito. Julgo que foi a última vez que conversámos, e sempre nas suas palavras o “Lubito” do seu coração.
Em homenagem a Francisco Castro Rodrigues irei, por sistema, usar Lubito, afirmando sempre que era uma forma de acabar com a estulta ideia que foi prevalecendo de que o nome Lobito apareceu por causa de Lobos que rondariam as cercanias.
Conta no seu livro “ Um cesto de cerejas” que, em determinada altura, se decidiu fazer um estandarte da cidade, tendo o desenho “um castelo, uma âncora, umas conchas de ostra- Antigamente chamava-se ao Lubito, a Catumbela das Ostras, que era a única coisa que lá existia-, e as quinas”. Estavam a trabalhar afanosamente no estandarte, que era necessário para a visita do Presidente de Portugal, Craveiro Lopes, à cidade e telefonam ao arquiteto da “Casa das Bandeiras”, já perto da meia-noite, para lhe dizerem que ” tinha havido uma alteração no desenho pois tinha lá aparecido um tipo do Ministério a propor um novo desenho, o escudo já não tinha o bico em baixo, tinha um no meio circulo. E havia um lobo em pé…E o texto da memória descritiva dizia assim: «lobo de prata passante em campo de púrpura»”. As peripécias são deliciosamente descritas por FCR para depois dizer no fim que no Ministério do Ultramar ficaram indignados quando lhes disse o óbvio: Não há lobos em Angola! A verdade é que entre o põe lobo e tira lobo, acabou por prevalecer a opinião do arquiteto que defende que “Lubito vem de uma partícula que eles (umbundos) têm, «Olu», para designar determinado substantivo”…” Lubito é «Olu pito» que na composição do étimo” Lu é água e pito, porta; ”porta da água”! Nada tem a ver com lobos!
Não sei se terá sido premonição, mas quando recentemente houve a tragédia nos morros do Lubito, pensei telefonar ao arquiteto para tentar recordar uma conversa que mantivemos há uns anos sobre a consistência dos morros que cercam a “baía” do Lubito. Na realidade acabei por não o fazer e pelos vistos o desenlace estava iminente.
FCR ia ouvindo o que lhe desagradava relativamente ao excessivo número de casas que os morros circundantes ao Lubito estavam a receber, o que contrariava em tudo o plano diretor por si gizado, onde, num contexto de reordenamento urbano, se previam os bairros da Bela Vista, da Esperança (Bairro da Rádio), do Vale do Liro, dos Morros da Catumbela e do Alto do Liro. Quando falávamos disso, dizia que uma tragédia poderia ocorrer se não se seguissem determinados preceitos que permitissem a fixação dos solos, que eram facilmente “desmoronáveis” a uma chuvinha de alguma intensidade. Ria-se muito quando falava de um bairro emblemático num monte entre Lobito e a Catumbela, construído pelo Cassequel num quadro promocional de inserção social dos negros com um conjunto de casas cor-de-rosa, todas alinhadinhas e cobertas de colmo, mas “invivíveis”, porque era impossível lá dentro aguentar a canícula e a humidade que se concentrava, obrigando os putativos habitantes a fazerem as suas próprias casas com material da região, de aspeto menos apelativo, mas com melhores condições de habitabilidade! “Eram autênticas frigideiras”, dizia Castro Rodrigues que sempre lutou contra as empresas majestáticas do Lubito, a Companhia Agrícola do Cassequel, o Caminho de Ferro de Benguela, o Porto do Lobito e fábrica de cimento.
Seu livro “Um cesto de cerejas” surge como resultado de uma conversa com a Professora Eduarda Dionísio, filha do meu professor Eduardo Dionísio, numa passagem “insucedida”, pelo Liceu Camões em Lisboa no fim da década de sessenta, um antifascista e um homem grande do neorrealismo. Uma edição pequena da Casa da Achada!
Não esconde nada, fala de quem gosta e zurze em quem não gosta, fundamentando as suas opiniões. Fá-lo de uma forma desprendida, como todos o foram conhecendo ao longo de uma vida que deu muito a uma Angola que esquece rapidamente quem ousou lutar por ela, e construída lutando num processo em que conseguia unir a sua forte convicção política de homem de esquerda, vanguardista no seu trabalho, só possível ao nível dos que sempre estiveram bem com a vida, que muitas vezes nada tem a ver com o bem na vida.
O desaparecimento de Francisco Castro Ferreira quase que marca o fim de um conjunto valoroso de arquitetos que fizeram em África o que em Portugal lhes foi negado por razões de ordem política. A realidade acabou por mostrar que este grupo onde esteve Vasco Vieira da Costa, Fernando Batalha, irmãos Castilhos, Simões de Carvalho, Francisco Castro Rodrigues e tantos outros, deram um arejamento à arquitetura bafienta e de monumentalidade bacoca do salazarismo.
Francisco Castro Rodrigues, nos seus quase quarenta anos de vida no Lubito, foi mais que um arquiteto; foi professor, numa altura de abandono generalizado depois da independência de Angola, dinamizador associativo, interventor político e divulgador cultural.
Nunca se colocou em bicos de pés em circunstância alguma, apesar da excelência da sua obra e de todo um conjunto de prémios e menções honrosas recebidas ao longo de uma vida cheia.
Já nos últimos anos, foi um dos obreiros da construção do museu do neorrealismo em Vila Franca de Xira, a quem doou uma parte do seu riquíssimo espólio.
No seu Lubito ficam as marcas da sua passagem como as Portas do Mar, o edifício Universal, a Colina da Saudade, a Casa do Sol, o Liceu Saydi Mingas, o Cine Flamingo, as atuais instalações do Instituto Lusíada no silo-auto da Casa Americana, a reconversão do Tamariz, o Mercado Municipal, a urbanização do Alto Liro, da Bela Vista, o obelisco da entrada, o edifício da aerogare e tantas obras particulares e públicas de décadas de trabalho. No Sumbe, entre vários projetos assinala-se a catedral e o edifício da Câmara Municipal, que em certa altura uns “desenhistas” resolveram desvirtuar.
Seria de toda a justiça que Francisco Castro Rodrigues figurasse na toponímia de uma cidade de que foi um dos seus mais ilustres cabouqueiros. Como normalmente todos têm sido esquecidos, talvez ainda consiga ser suficientemente ingénuo acreditar que eventualmente as autoridades do Lobito (assim mesmo) se lembrem dessa forma de homenagear “um verdadeiro homem da terra”.
Como angolano só me resta, Francisco Castro Rodrigues, agradecer-lhe!

Fernando Pereira
3/5/2015

30 de abril de 2015

Resumidamente / Ágora / Novo Jornal / Luanda 30-4-2015






"Está bem, sou velho, mas a minha imaturidade faz de mim um jovem".(Woody Allen)
Quarenta anos depois da independência do País, é tempo mais que suficiente para começarmos a desmistificar alguns acontecimentos dos tempos da “luta de libertação”, e do percurso da maioria de muitos dos protagonistas.
Não nos limitemos aos períodos conturbados dos anos sessenta e início dos anos setenta, mas também aos tempos do dealbar da independência.
Temos que acabar com o velho preceito estalinista de reescrever a história recente em função de que tipo de mensagem é adequado às circunstâncias políticas presentes. Isso é um processo sórdido e devemos exigir que não o seja feito, para que no futuro não se ande a construir uma história sem rigor científico. Despretende-se uma adaptação angolana de “O materialismo dialéctico e o materialismo histórico”, uma obra menor de qualquer marxismo de pacotilha.
Há um crescente número de factos empolados que nada tem a ver com tudo o que se passou, nem tampouco se revê nos intervenientes diretos, e o que vamos assistindo é a diabolização de uns quantos para a sacralização de outros, perfeitamente dispensável quando cada vez mais se exige lucidez e objetividade no conhecimento da história e verdade no protagonismo de certa gente.
As histórias têm que passar a fluir e não ficarem circunscritas às tertúlias, ou às almoçaradas de sábado em que por vezes chegamos à triste conclusão que “nada foi como nos contaram”.
Do maquis há milhentas histórias que só se contam em surdina, e algumas delas acabam por revelar que num passado distante houve histórias pouco dignificantes, que se repetem atualmente no quotidiano do País.
A título de exemplo, esta que me foi contada por um ex-guerrilheiro já falecido com protagonistas que naturalmente omito. Nos anos sessenta em Ponta Negra eram desembarcados fardamentos e botas para equipar os guerrilheiros do MPLA; Ficaram conhecidas pelas botas de borracha “saltitona” , já que entre o armazém de carga e o local de descarga em Dolisie muitos pares de botas desapareciam, encontrando-as à venda nos mercados da RPC e até no então Zaire. A verdade é que havia um esquema, montado com muita perícia por parte de alguns “maquisards”, muito rendoso e com cobertura superior, que aceitava justificações pueris que “as botas deviam-se ter perdido por causa dos inúmeros buracos na estrada do percurso” .
O ridículo sistema de entrega de armas e munições no leste de Angola aos guerrilheiros assume contornos de anedotário. As armas eram entregues a um grupo de combatentes, mas as munições para as armas só podiam ser levantadas noutro local, por vezes distante quase oitenta quilómetros. Obrigava o grupo, embora pequeno, a ter que se deslocar a pé, com o armamento, mal alimentado e acossado pelas tropas coloniais para irem buscar algo que era indispensável para a sua sobrevivência. Acontecia muitas vezes chegarem ao local e já não haver balas ou para cumulo as armas não estarem em condições quando tentavam testá-las. E a arma mesmo danificada tinha que ser devolvida no local onde lhe tinha sido entregue. Enfim!
Cada protagonista devia deixar as memórias, as boas e as más para que o futuro possa aquilatar com precisão, quanto foi o sacrifício de muitos a quem os angolanos agradecem e os oportunistas que devemos colocar no seu devido lugar: O “caixote do lixo” da história!
Vem a talhe de foice este artigo no dia em que sai em Lisboa mais um livro do Adolfo Maria, um octogenário que se mantém fiel aos princípios da angolanidade, empenhado como há sessenta anos, quando resolveu sem hesitações abandonar o conforto da sua situação de branco privilegiado num sistema colonial, para se embrenhar na luta com a sua companheira Helena Maria, uma portuguesa de Chaves que abraçou a opção do seu marido com grande perseverança e militância.
Adolfo Maria, no livro “ Angola Contributos À Reflexão” presta uma homenagem a muitos que com ele trilharam um percurso de luta pela independência de Angola, e que foram muitas vezes vítimas do oportunismo e cobardia soez por parte de uns quantos, que só punham os pés quando sentiam que as pedras colocadas por outros estavam em condições de ultrapassar um rio.
Este livro é mais um contributo para a história do País e Adolfo Maria não escolheu as palavras, nem adequou datas e acontecimentos ao circunstancialismo da “estória de Angola”.
Era desejável que este deixasse de ser um dos poucos exemplos de quem vai deixar memórias, e nesta fase era de todo desejável que os “mais velhos” escrevessem e que alguns arquivos reaparecessem, para acabar com “mujimbos” sobre posicionamentos políticos dúbios em determinadas circunstancias num longo processo de luta armada de libertação nacional.
Recomendo a leitura deste livro editado pela Colibri, para que se vá alicerçando a discussão no futuro sobre um passado que as gerações mais novas têm que se dar conta que existiu mesmo e não foi nada brando!

Fernando Pereira
28/4/2015

24 de abril de 2015

O 25 de Abril de 1974 também está a passar por aqui./ Ágora / Novo Jornal / Luanda 24-4-2014





José Gomes Ferreira, um dos poetas militantes que muito admiro, escrevia em Outubro de 1985: Momento sinistro de pensamento mutilado. Como é possível viver numa pátria assim! – de livros proibidos, de jornais proibidos, de peças proibidas, de homens proibidos – em que só silêncio é justo?

As revoluções não surgem por decreto. O 25 de Abril de 1974 é o corolário lógico do fim das indecisões que o fascismo de Salazar e sem Salazar tinham alimentado de forma doentia e sem qualquer tipo de solução. O 25 de Abril é o corolário lógico da fraude eleitoral de 1958, do Santa Maria, do 4 de Fevereiro de 1961, da queda de Goa, Damão e Diu, da Abrilada e do início e recrudescimento da luta armada em três palcos de guerra.
Em Portugal, a ebulição surge de forma reforçada na luta pelo horário de trabalho por parte dos trabalhadores rurais, nas greves nas fábricas e empresas por melhores direitos entre salários e proteção social, nas greves académicas de 1962 e 1969, na crescente fuga de gente para a Europa e no isolamento crescente de Portugal na cena política mundial. O 25 de Abril de 1974 é uma data que devolve aos cidadãos portugueses e aos povos sob dominação colonial uma nova identidade e uma nova dignidade.
Não foi feito por aventureiros, como se insinua recorrentemente, mas sim por aqueles que esperaram e desesperaram por uma solução tardia para os problemas que se arrastavam para um pântano de consequências perversas. Hoje, quarenta e um anos depois, podemos dizer que valeu a pena, e que podemos dar aos nossos filhos um mundo melhor, de liberdade, de participação cívica e de perspectivas de futuro assentes na melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos.
Podemos dar as voltas que quisermos, pessoalizar as razões para se afirmar o contrário, mas, de facto, foi a esses muitos homens fardados, que imediatamente tiveram uma adesão popular extraordinária, que ficámos a dever liberdades fundamentais, sem as quais não conseguiríamos respirar. Como em todas as revoluções ou processos políticos, há avanços e recuos, há situações mais ou menos obscuras, há aproveitamentos dos oportunismos que campeiam em qualquer sistema político, mas temos de ter em conta que Abril valeu a pena. Por tudo.
Para quem andava distraído, antes do 25 de Abril, lembro as "sábias palavras" do então mais alto magistrado da Nação Américo Tomás, vulgo “cabeça de Tarro”, que nessa altura era o Chefe de Estado do Minho a Timor.
"Memórias de Tomás" :"Eu por mim próprio, não me decidi a escrever as «Minhas Memórias». Decidiram-me. É que, estando quase toda a gente, ex-chefes de gabinete, ex-subsecretários de Estado, ex-secretários de Estado, ex-ministros, ex-chefes de Governo, escrevendo as suas memórias, a minha família começou a insistir comigo para que escrevesse as minhas «Memórias», na medida em que, disseram-me, mal me ficaria não escrever, também eu próprio, as minhas «Memórias». Habituado a falar e não a escrever, contando, segundo as minhas contas, nove mil trezentos e sessenta e quatro alocuções por sobre o território nacional, isto é, continente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, não minto, nove mil trezentos e sessenta e cinco alocuções por sobre o território nacional e internacional, ligadas ao meu cargo de Presidente da República, - eu nunca me afeitei a usar a caneta, coisa que disse repetidamente a minha família. Não tive sucesso, como é obvio, dado que me compraram uma caneta e ma deixaram fechada na mão. Foi então que, pegando na caneta, carreguei no botão do gravador e comecei: "Senhor bispo da diocese, senhor ministro das Obras Públicas, senhor governador civil, senhor presidente da câmara municipal, senhor presidente da junta de freguesia, minhas senhoras e meus senhores" [in, revista Opção, Ano II, nº 30]"É esta, portanto, a ultima cerimónia que se passa na cidade da Guarda e eu não quero deixar passar esta oportunidade sem agradecer ao bom povo desta terra o seu entusiasmo, o carinho com que recebeu o Chefe do Estado. A chuva não teve qualquer influência no entusiasmo das populações. Elas vivem numa terra de granito, e a chuva não as apoquenta " A Guarda é um distrito de bons portugueses, de portugueses de uma só face, portugueses, portanto, sempre prontos a defender a terra que os viu nascer. E a Guarda tem uma particularidade: é a cidade mais alta da Metrópole" [ibidem, discurso na Guarda, in Século]" É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude. Pois o que desejo, sr. Presidente, para poder pagar, de qualquer forma a dívida que contraí, é que esta gente tenha um futuro feliz, abençoado por Deus. Que assim seja, para contentamento vosso e para contentamento meu " [ibidem, em Manteigas, segundo O Século, 1/6/1964]
Por acaso sabíamos que, quando se deu o 25 de Abril de 1974, Portugal tinha 32% de analfabetos, mais 47% que apenas sabia assinar o nome? Angola tinha 82% de analfabetos ? E que Cabo Verde tinha 26% de analfabetos devido ao facto de ter sido o segundo território africano a ter ensino secundário? Sabíamos, em Angola, que em Maio de 1968 houve uma "revolução em Paris", liderada por estudantes, e que alterou a configuração das referências das mentalidades da Europa? Sabíamos que em 1968 só houve duas sessões do filme "Crime da aldeia velha" no cinema Restauração, porque o texto de Bernardo Santareno ilustrava o último auto-de-fé em Portugal numa aldeia, nos anos 60? Sabíamos que o Feyenoord se recusou a jogar no estádio da Luz, para a taça dos campeões Europeus, porque o estádio estava decorado com publicidade ao "Café de Angola", tendo a UEFA mandado tapá-lo para que o jogo se realizasse? Sabíamos a quantidade de desertores do exército? Sabiamos que o Niassa levou com bombas para não transportar tropas para combater na guerra colonial? Sabíamos porque se sentava Bob Denard em mesas ao nosso lado, no Arcádia em Luanda, com a mona entrapada? Sabíamos que Sartre se recusou a receber o prémio Nobel? Sabíamos que Chalie Haiden foi posto sob prisão e expulso em 1972 porque no Festival de Jazz de Cascais cantou um hino aos movimentos de libertação? Apercebemo-nos que o Concord em Luanda não colocou a bandeira de Portugal no avião, mas outra?

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen


Fernando Pereira
21/4/2015

17 de abril de 2015

Antropologia da pobreza / Novo Jornal / Ágora / Luanda 18-4-2014




"Estes são os meus princípios, e se vocês não gostarem deles... Bem, tenho outros.” ( Groucho Marx)
Estava preocupado com a crónica que tenho que escrever todas as semanas. Isso acontece-me amiúde, porque às vezes os temas que temos pensado para determinado momento perdem atualidade quando chega a altura de a entregar.
Enquanto andava às voltas vi um artigo sobre os conceitos de gestão social do Banco Mundial que me deixaram perplexo, num momento em que os sacrossantos ditames do mercado condicionam toda a atividade económica e social nos países e na nova ordem de desenvolvimento que se está a impor e aceite de forma passiva por cada vez maior número das pessoas, que são afinal as vítimas maiores de toda esta movimentação.
O Banco Mundial estabelece, em 1996, uma doutrina à volta do conceito de gestão social cujas linhas gerais foram plasmadas.em 2001, num documento intitulado “From Safety Net to Springboard”.Nela desenvolve-se uma extraordinária antropologia da pobreza.
Vejamos então o que diz o supra citado documento:”Como temem cair na miséria e não poder sobreviver, os pobres não querem correr riscos e tem dúvidas em lançarem-se para actividades de maior risco mas que são também mais lucrativas.Em consequência não estão sómente em situação de não aproveitar as oportunidades que lhe são oferecidas pelo processo de globalização como estão mais expostos aos riscos acrescentados que muito provavelmente derivam desta.Como não podem correr riscos e levar a cabo actividades productivas mais rentáveis, é muito provável que não possam assim como os seus filhos sair da pobreza.É por isso que a melhoria da sua capacidade de gestão do risco é um potente meio de reduzir a pobreza de forma duradoura”Mais adiante refere-se que “a experiência dos países da OCDE mostra que a protecção contra o risco por parte de um Estado do Bem estar Social reduz o espírito empreendedor” .
"Quem tem muito dinheiro, por mais inepto que seja, tem talentos e préstimo para tudo; quem o não tem, por mais talentos que tenha, não presta para nada."
Padre António Vieira
Conclusão lógica: se querem prosperar assumam riscos seus mandriões.
Jorge de Sena sobre os portugueses disse algo que se adapta na perfeição aos angolanos: ”O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito.”
Engenheiro civil e escritor de fim-de-semana, primeiro, depois no exílio voluntário, professor na área das humanidades e escritor a tempo inteiro. Como tantos outros, recusou viver numa sacristia de 92.391 Km2. Abdicou de viver numa pátria povoada de sombrios contentinhos suficientemente «reacionários» e suficientemente «dos nossos». Partiu com apoquentação de não poder pensar e dizer livremente. Lecionou, escreveu muito, imenso e fabulosamente. Viveu nos Estados Unidos até à sua morte em 1978.
Homem atento, conheceu e pensou maduramente os americanos. Aqui vai um poema lucidamente recidivo.

Ray Charles

Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural,
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de blak e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a mística do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos brancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.

Cego e negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam»
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

Jorge de Sena
1964


Fernando Pereira
13/4/2014

9 de abril de 2015

Água de pouca dura / Ágora / Novo Jornal / Luanda 10-4-2015






Um historiador inglês, Nigel Cliff, num livro recentemente traduzido para português com o título “Guerra Santa”, assenta toda a investigação na viagem de Vasco da Gama (um dos estatuados justamente forçados da fortaleza de S. Miguel) para justificar como foram financiadas, programadas e executadas todas as viagens dos navegadores portugueses pelos mares, que depois se soube já antes terem sido navegados por outros.
Este livro é polémico, e só não assumiu foros de maior discussão porque tentou limitá-la a meios muito reservados. Nigel Cliff fez uma análise do que foram as motivações guerreiras dos Europeus em determinadas fases da sua história contra os “infiéis”, e fundamentalmente o papel de determinada burguesia, com uma clara presença judaica, na busca de novos mercados e na procura de matérias-primas mais baratas num mundo dominado pelos mercadores descristianizados. O Cristianismo passou a ser o aparelho ideológico adequado à expansão de novos donos que puseram novos tronos noutros lugares.
Paulo Dias de Novais, fundador da cidade de Luanda, achou que a baía era perfeita para que os barcos se abrigassem de perigos vários. Ao tempo, tinha que se preocupar mais com a rendabilidade dos seus proventos, do que saber se o lugar insalubre onde se fortificava teria água ao longo dos séculos. Novais precisava de produtos tangíveis de algum valor que justificasse que aquele lugar fosse perfeito para trocas de/e com gente.
As cacimbas iam resolvendo mal as necessidades de quem morava e de quem transitava por Luanda até ao início do século XVII. Na ocupação holandesa, os flamengos, em 1645, projetaram uma obra de engenharia, grandiosa para o tempo, que consistia na abertura de um canal abastecedor do Kuanza à capital. Ficaram as boas intenções, embora seja meu entendimento, sem qualquer justificação de caracter técnico, que seria útil fazer do Kuanza uma alternativa ao Bengo, principalmente para abastecimento da cidade que irá crescer em torno do novo aeroporto e nas centralidades de Viana e Luanda sul.
Salvador Correia de Sá mandou construir a cacimba da Maianga, hoje desaparecida no início da subida da avenida do aeroporto, aproveitando a água da vizinha Lagoa dos elefantes, que se alargava até à rua da Samba. Em 1666 o governo central outorgou a Tristão da Cunha (tem direito a nome num largo no centro da cidade da Luanda de hoje) a tarefa de que “velasse pelo concerto da lagôa dos Elefantes”.
O problema de água em Luanda tem barbas, como sói dizer-se, e lá surgiam de vez em quando projetos para trazer águas do Zenza, um afluente da margem esquerda do Bengo, do Lucala, afluente da margem direita do Kuanza e do próprio rio Kuanza, recorrentemente lembrado para ajudar a “matar a sede à cidade”. O poço da Maianga revelava-se com cada vez mais problemas, quer pela insuficiente quantidade de água, quer pela falta de qualidade, “salitrozo e aleitado” potenciador de epidemias.
O governador D. António de Vasconcelos (acho que este não tem direito a permanecer na toponímia da cidade) resolveu fazer estudos para recuperar o plano dos holandeses, e pediu ao Rio de Janeiro um engenheiro. Mandaram-lhe um indivíduo que teria deixado os jesuítas para se dedicar de alma, coração e dinheiro ao projeto. A verdade é que o tempo passava, o dinheiro ia-se gastando e não havia nada de conclusivo. O governador não viu nada feito, e acabou por pagar parte dos trabalhos do seu próprio bolso “por não gravar a Fazenda Real”.
O governador Sousa Coutinho mandou fazer cisternas na fortaleza de S. Miguel e na do Penedo, hoje em ruínas, mas o resultado ficou longe do objetivo.
“Luanda dessas épocas era uma terra de febres malsãs, de disenterias, de surtos epidémicos, uma terra de sede e de doenças, para as quais, por certo, contribuía a minguada e lodosa água das suas fundas cacimbas…”
Em 1813, José de Oliveira Barbosa voltou a entusiasmar-se com o canal do Kuanza, e conseguiu contagiar o Senado da Câmara e o próprio Regente do Reino de Portugal D. João VI. O local era no Calumbo, o que permitiria que chegasse à Maianga por gravidade. Esse entusiasmo deu algum resultado e as obras ainda começaram, mas Luis da Mota Fêo, o substituto de JOB, mandou-as parar pois as finanças da província estavam exauridas perante tão ciclópico empreendimento.
Em 1816 decidiu a Câmara, de acordo com o governador, parar as obras do canal e a cidade continuou a “ sofrer sedes, moléstias e sofrimentos, porque faltava a água…”
Em 1845, na zona dos Coqueiros, abre-se uma nova cacimba por ordem do governador Lourenço Possolo, que é entregue à Câmara, mas nada é minorado e, para além da míngua do líquido, o lixo e os detritos vão-se amontoando. Luanda é uma nitreira a céu aberto. Decide-se adjudicar o transporte de água por barcaças do Bengo, o que se passa a fazer em 1852. Simultaneamente as cacimbas tinham que ser limpas e desentupidas porque apareciam frequentemente mortos lá dentro.
Em 2 de Março de 1889 foi inaugurada, com toda a solenidade, pelo governador-geral Guilherme Brito Capelo (estava na toponímia da cidade até à independência e foi substituído por Kwame Nkrumah) a ligação de água corrente à capital com a captação feita no rio Bengo.
“Ao cabo de 300 anos de sedes, de tormentos e privações, Luanda podia agora beber à vontade, podia banhar-se regaladamente, podia lavar-se, podia, com satisfação, pôr de lado as salitrozas e aleitadas águas dos seus poços e cacimbas”.
Pelos vistos foi “água de pouca dura”, porque o deficiente abastecimento de água à cidade voltou em força na segunda metade dos anos sessenta, no período colonial, e continua a ser um problema mais que recorrente nos dias de hoje.
Fernando Pereira
4/4/2015

1 de abril de 2015

Seripipi de Benguela / Ágora /Novo Jornal / Luanda 2/4/2015


“(…)
leva no bico uma esperança
ao ninho do teu irmão.”


Ernesto Lara Filho


O fogo consumiu totalmente na passada semana um dos emblemáticos edifícios da cidade de Benguela, o “Cabo Submarino”!
Era um edifício com características “sui generis”, pois foi construído para que, no seu interior, se trabalhasse com todo o conforto, num tempo em que o ar condicionado nem sequer era uma miragem.
Conheci bem o local que albergou durante anos a direção provincial de cultura, e sempre me fascinou o ar temperado, numa construção situada no meio de um terreno sem arborização envolvente e numa cidade onde a canícula aperta em períodos continuados do ano.
O edifício, recuperado em 2001 e 2010, manteve, no essencial, a sua estrutura de 1889, com as janelas em lamelas de madeira. Este processo justificava-se no sentido de permitir, durante o dia, o seu manuseamento, tentando amenizar o calor no interior. Esta circulação permanente de ar, era ajudada pelo facto de se tratar de uma estrutura em madeira e ferro, assente em paliçadas. Era um edifício interessantíssimo e, se na primeira metade do século XX o “gémeo” do Namibe (Moçâmedes) foi demolido, este mantinha-se indiferente à voragem avassaladora do pato-bravismo "construtivo" que tem percorrido as cidades de Angola, principalmente as de maior atividade económica.
O edifício foi montado para a West African Telegraph Company, que era uma empresa subsidiária de uma Eastern & Company Telegraph, que no fim da Conferência de Berlim tinha todo o mundo coberto por uma rede de cabo submarino. Em Angola, a ligação entre Cape Town e Moçâmedes prosseguiu para Benguela, daí para Luanda, acabando por se unir ao cabo-submarino que vinha do Brasil para a Europa via S. Vicente em Cabo Verde.
Depois do cabo submarino, no tempo colonial, funcionou lá o Colégio Alemão e hoje restam as cinzas de mais um desastre, este sem anúncio, no pobre património edificado e classificado que há no País.
Ouvi as justificações mais pueris, e uma das mais risíveis foi a de que a culpa do incêndio teria sido da intensa chuva que desabou em Benguela nessa noite. Não quero estabelecer um nexo de causalidade quanto ao que futuramente se irá por lá construir, mas espero que, pelo menos , se reabram os dossiers sobre a recuperação do edifício e se averigue se terão sido cumpridas todas as regras inerentes à preservação de um imóvel com a provecta idade de 125 anos. Era uma excelente oportunidade de casar a culpa com alguém!
Benguela é fundada em 1617 em homenagem a Filipe II de Espanha (1º de Portugal), daí o seu patrono ser S. Filipe, numa clara tentativa por parte de Cerveira Pereira de ficar nas boas graças da corte. “A Sul, o sombreiro” de Pepetela, descreve com autenticidade e minúcia essa personagem malevolamente controversa no século XVI da colónia.
As suas gentes não têm nada a ver com as patifarias do seu fundador, nem com as maledicências em torno do seu santo padroeiro, que só tem uma importância acrescida pois está ligado a um dos reis de Espanha que teve um poder quase absoluto na Europa.
Numa atitude ousada, a população de Benguela manifestou-se contra a travessia do caminho-de-ferro pela cidade, já que a dividiria ao meio, pois a estrutura central da povoação era afastada da linha de costa e do seu porto. Foi assim que nasceu o Lobito para albergar o porto de mar que apoiaria Benguela e, na realidade, esta decisão acabou por atrofiar a cidade no seu crescimento e desenvolvimento económico em detrimento do que em tempos recuados foi a “Catumbela das ostras”!
Benguela foi sempre uma cidade de gente muito ciosa na sua relação interpessoal, de partilha entre quintais e com uma interessante atividade cultural. Durante o colonialismo foi o local privilegiado de intervenção política, e onde terão germinado algumas sociedades maçónicas que acabaram por ser dissolvidas pela repressão das autoridades.
Henrique Galvão, adversário de Salazar, mas com uma verve colonialista, entre 1930-1940 faz esta descrição de Benguela: “… é uma cidade enorme, de ruas compridíssimas e asfixiantes, em que dominam o amarelo e o pardo, feia, muito feia, mas depois de Luanda a cidade mais característica de Angola (…)O mar bate-lhe nas costas, é certo, mas ela fugiu do mar para terras nuas e encardidas (…). Dentro deste quadro, de aspeto doentio e abafante, vive uma população teimosa e tão simpaticamente aferrada à cidade, que constitui o caso mais típico e ferrenho de bairrismo que se conhece em Angola. A gente de Benguela faz lembrar a gente do Porto”( Álbum Comemorativo da 1ª Exposição Colonial Portuguesa / 1934).
O arquiteto Fernando Batalha, recentemente falecido, escrevia sobre Benguela: “Tem o seu assento em uma terra plana e está traçada em quadra”. “Foi o primeiro plano urbanístico de Benguela e provavelmente também o primeiro que se traçou para qualquer povoação de Angola (…) A formação «em quadra» ou traçado ortogonal é também um dos caracteres comuns e de uso frequente nas povoações criadas depois do seculo XVI. Foi o sistema adotado na “Baixa” de Lisboa depois do terramoto e em muitas povoações do Brasil”, FB, “A urbanização de Angola”, Edição Museu de Angola, Luanda 1960.
Resta mesmo a poesia imorredoira de Aires de Almeida Santos: “Meu amor da Rua Onze/ Meu amor da Rua Onze/ Já não quero/ Mais mentir.”

Fernando Pereira
30/3/2015

27 de março de 2015

Luanda a ferro e não a fogo! / Novo Jornal / Luanda 27-3-2015





Na fachada da Igreja do Carmo, em Luanda, está inscrita numa pedra a tabela dos toques para incêndios na cidade, que foi dividida em dez zonas de combate a estes sinistros através de regulamentação concebida no fim da primeira metade do século XIX.
Luanda era, pelos anos 30 do século XIX, uma urbe com escasso casario de pedra, circunscrita ao que sempre se chamou Cidade Alta, na atual Rainha Ginga Antiga Salvador Correia, no Bungo, em volta da Igreja dos Remédios e junto às praias que iam até à Igreja da Nazareth. Na Baixa, nos Coqueiros, na Maianga, em redor da Igreja do Carmo até ao Kinaxixe, na Mutamba, nas Ingombotas e no sopé do morro da fortaleza florescia um matagal com telhados de colmo, em casas de «pau-a-pique», na zona da terra vermelha, o musseque.
Era aí que deflagravam o maior número de incêndios e naturalmente que era preocupante para a cidade tendo em consideração a proximidade do casario e a sua vulnerabilidade no caso de o incêndio se propagar.
Nesse contexto, surge um edital da Câmara Municipal de Luanda, em 1839, que obrigava a que, ao toque de fogo, os donos das lojas de comércio ficassem obrigados a mandar um escravo, ou um servo, munido de um cazengo de água para extinguir as chamas, sendo multado em mil reis cada comerciante que não cumprisse tal regulamento.
Cada igreja de Luanda tinha afixada a tabela de toques de sinos, que iam desde os cinco na zona da Igreja do Corpo Santo, aos quinze quando era para os lados da Igreja da Nazareth! Logo que ouviam os toques, os empacaceiros, subalternos negros vestidos com um saiote e com uma tira de couro de búfalo (npacaça), começavam a avisar onde era o fogo. Os soldados da Cavalaria e o serviço de sapadores e todos os disponíveis lá carregavam a água com o máximo cuidado para apagar o incêndio e evitar que tomasse proporções impossíveis de controlar.
Controlados pelas forças militares, lá se conseguia uma organização razoável que ia apagando o fogo. Três dolentes badaladas na igreja da zona eram o sinal de que o fogo estava apagado.
Importa aqui dizer que a água foi sempre um problema enorme em Luanda, desde os tempos em que se foram fixando pessoas e aumentando a atividade militar e comercial da cidade.
Os poços e as cacimbas não chegavam para as necessidades básicas e nesse tempo a água era trazida do Bengo em barcaças e vendida a 12,5 reis o barril, preço que aumentava para o dobro quando havia calema e os barcos não conseguiam passar a barra. Um eterno problema que se perpetuou com a LAL e hoje com a EDAL.
Quando se olha para a cidade, que cresce assustadoramente em altura, não é despiciendo que se pergunte se todos os megatéreos implantados na cidade têm um plano realista de evacuação em caso de incêndio ou se o equipamento de combate por parte do corpo de bombeiros tem capacidade para uma intervenção rápida nesses edifícios.
Fico com a convicção de que talvez seja útil repensarem-se os planos de contingência em caso de incidentes deste tipo para se evitarem tragédias como as que vão ocorrendo um pouco por todo o lado, fruto de uma ausência de planeamento e uma enorme falta de aconselhamento às populações sobre a natureza dos locais onde vivem, quer na chamada zona enobrecida quer nos labirínticos bairros construídos um pouco por todo o lado.
Vou continuar a escrever sobre a Luanda de outros tempos, com a ajuda da obra de José de Almeida Santos, funcionário da Camara Municipal de Luanda nos anos 70 do século passado e que tem um trabalho excelente sobre a cidade que se habituou a crescer de forma avulsa e anárquica.
Era bom que o Governo Provincial reeditasse estes livros e os disponibilizasse aos muitos que ainda acham que debater Luanda vale a pena.

Fernando Pereira
23/3/2015

20 de março de 2015

"BENVINDO" AO REGRESSO!-Ágora-Novo Jornal-Luanda 20/3/2015




BENVINDO AO REGRESSO!
"Dessei" se alguém sentiu a minha ausência nas páginas do Novo Jornal, mas admito que pelo menos eu sentia a falta de me obrigar a ter este espaço. Aceitei o convite do Carlos Ferreira e só reitero o mesmo entusiasmo, igual ao de há sete anos quando o Vitor Silva e o Gustavo Costa me incentivaram a fazer esta crónica semanal, num semanário que criou enormes expectativas no quadro geral da imprensa angolana. Ficaram as enormes, faltam cumprir as expectativas!
Não sei se irei manter o formato anterior, pois neste “ano sabático” surgiram novas ideias, projetos rejuvenescidos e nada melhor que citar o andaluz António Machado no seu “caminho faz-se caminhando”, para dizer que ainda não há nada definitivo neste retornar.
Num recente trabalho de Maria José Tiscar Santiago, editado pela Colibri, “Diplomacia Peninsular e Operações Secretas na Guerra Colonial”, é feita uma exaustiva investigação sobre as ligações que havia entre Portugal e Espanha no contexto das lutas de libertação nacional das colónias portuguesas, e todo o percurso ziguezagueante dos diplomatas dos dois países na busca de soluções que as circunstancias desfavoráveis se propiciavam no pós-Bandung.
Talvez não haja no essencial muitas surpresas, mas a pormenorização da discussão de algumas situações pouco conhecidas ou mesmo ignoradas dão um conjunto significativo de informações que explicam muito do que se foi passando nas décadas de sessenta e setenta em Angola e países limítrofes.
As condenações na ONU por parte de países africanos contra a política colonial portuguesa e o alinhamento sistemático por parte da Espanha com o regime de Salazar e Caetano são revisitados pela historiadora, mostrando à saciedade quão útil foi a muleta de Madrid a Lisboa. Foram abertos os arquivos ultramarinos em Portugal, e os diplomáticos em Espanha dos anos 50,60 e 70 e isso faz com que este trabalho traga novas pistas sobre as ligações espúrias de alguns líderes africanos com as ditaduras ibéricas, dissimuladas através de uma retórica profundamente anticolonialista e de busca de uma autenticidade africana.
As sucessivas “traições” que os movimentos independentistas das colónias portuguesas foram recebendo por parte de altos dignitários de alguns países africanos, conluiados com infiltrados da PIDE e comerciantes pouco escrupulosos, conseguiam por vezes resultados desastrosos nas débeis organizações que lutavam contra o colonialismo.
Os apoios de Youlu, Kasavubu,Tshombé, Boigny, Mobutu e uma série de títeres e subalternos foram conseguindo adiar o futuro por uns tempos. Temos que convir que depois de lermos o livro ficamos com a sensação nítida que a diplomacia portuguesa e espanhola conjugada, executaram um excelente trabalho.
Nas “memórias” de Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros português da fase final do governo de Salazar, dizia-o a determinado passo: “ Não estava preocupado com o circo que estava montado na ONU. Os que mais vociferavam contra a nossa presença no ultramar, eram os primeiros nos bastidores a baterem-nos nas costas e a incentivar-nos a continuar determinados na presença de Portugal em África”.
Este livro de Maria José Santiago contém uma vasta recolha de documentação que dá alguma razão a Franco Nogueira e às teses que defendia para a perpetuação de Portugal em Angola.
O prefácio é assinado por Adriano Moreira, um “rectificado” pela democracia portuguesa, que tenta ocultar partes de um passado que não deveria ter tido. A estafada frase de Ortega Y Gasset em que “a vida somos nós e as circunstâncias” cai que nem uma luva no homem que foi diretor do ISCPU (Instituto de Ciências Sociais e Politica Ultramarina), escola de quadros da administração colonial, subsecretário de estado do fomento ultramarino e ministro do ultramar, onde em determinada altura se alcandorou a delfim de um Salazar que era velho, mas suficientemente sagaz para não dar hipóteses nenhuma a quem lhe oferecesse dúvidas. Salazar utilizou Moreira como nós utilizamos um Kleenex e na altura em que estava resolvido um conflito com Deslandes, ao tempo governador-geral de Angola e simultaneamente comandante militar no território nesse 1961, o ano de tudo, o “manholas” demitiu os dois em grande velocidade.
Para além de ter sido um confesso defensor da política colonial portuguesa, um teorizador contrário ao avassalar das independências africanas, foi no seu consulado que reabriu o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago onde penaram prisioneiros de consciência da Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Cabo-Verde. Alguns por lá morreram e foi de certa forma aviltante quando no Cabo-Verde independente se dá a distinção de “Honoris Causa” a Adriano Moreira. Mereciam mais essa gente a quem a prisão tirou anos de vida para que as independências surgissem!
Espero não ter uma surpresa destas na minha terra! Bem bastam outras que vou tendo e que também me desagradam.


Fernando Pereira
11/3/2015









13 de março de 2015

O Fantasma da Liberdade






Todo o homem tem direito de sonhar (pelo menos) a liberdade. Tal direito ainda não se encontra consignado em nenhuma Constituição. As Constituições, transformando-se quase sempre em lubrificadoras do poder, pendem a maior parte das vezes para o sacrossanto elemento coletivo, enumerando umas quantas “essências”.
A megalomania duma quinta ibérica chamada Portugal só tem paralelo nos devaneios quixotescos. Mas o Quixote, que recuperou a razão à hora da morte, é um “ ser de papel” do século XVII, não uma instituição lusitana do século XXI. Assim, a velha quimera segundo a qual este país deu “novos mundos ao mundo” só pode servir no presente, os interesses de algumas famílias assustadas com a perspetival de liberdade. Os materialistas que não são propriamente estúpidos, esforçam-se por apurar as condições concretas das transformações sociais. É pena que não se verifiquem em Portugal, País sujeito a múltiplas podridões, nunca dispôs de vitalidade suscetível de produzir a mínima revolução. O que Portugal possui em abundância, em zonas letradas ou não, é um enorme bando de vigaristas o que aliás em termos de materialismo histórico se explica perfeitamente: pirataria, saque sem grande obra civilizacional e repressão inquisitorial.
Já que se fala de inquisidores convém que se esclareça que tais entidades são, entre nós, símbolos e pilares da ordem. Quem inventou o milagre de Fátima sabia o que fazia, ao irmanar as autoridades republicanas da época com os diabos preparados para assarem “os pastorinhos”. Atribuir às autoridades de então uma tentativa de auto-de-fé constituiu, desgraçadamente, um truque eficaz e motivado por uma ampla tradição. E um filme estado-novista, que circulou apoteoticamente por todo o País, mostrava um lume feroz para o sacrifício dos três videntes, como se o inconsciente da justiça republicana desse tempo comungasse nos métodos do Santo Ofício. Será que esses arautos do milagre, de mão dada ao salazarismo, tinham até razão?...
Não queremos responder. Mas não nos esquivaremos a lembrar que houve um grande progresso na “revolução” de 1974:Desapareceu todo o anticlecarismo da Primeira Republica. Ou porque as múmias já pensam, medrosas, no “reino dos céus”, ou porque a conivência inquisitorial é mais profunda do que julga, ou porque – o que é pior!- Portugal é assim mesmo, reina o auto-de-fé nas consciências (ou nas inconsciências). Talvez por isso se use tanto o verbo “ queimar” em matéria de discurso político-familiar. Há políticos para ”queimar”, instituições para “queimar”, e até governos para “queimar”.
De queimadela em queimadela ainda um dia se apaga o ultimo reflexo da liberdade!
(Algumas reflexões deste texto, vem de um colóquio que tive a oportunidade de assistir do professor José Martins Garcia numa homenagem a Vitorino Nemésio)
Fernando Pereira
9/3/2015

11 de janeiro de 2015

Para ti Maria



“De Bragança a Lisboa

São 9 Horas de distância

Q’ria ter um avião

P’ra lá ir mais amiúde(…)

(…)”Outra vez vim de Lisboa

Num comboio azarado”


Esta antiguinha musica dos “Xutos e Pontapés” deu-me o mote para regressar ao presente, das muitas vezes que sou obrigado a viver as peripécias de uma viagem de comboio entre Lisboa, Celorico da Beira e volta.

Aqui há uns anos a CP resolveu, e em boa hora, dotar o país de um serviço mais rápido e confortável de comboios intercidades, que se propunha ligar as cidades do interior a Lisboa e Porto.

O serviço funcionou razoavelmente bem nos primeiros anos. O material circulante era bom, os horários apelativos para que um cada vez maior número de pessoas utilizassem o intercidades, e raríssimas vezes havia atrasos. O preço era aceitável tendo em conta o esforço que a CP tinha feito para instalar esta oferta supletiva.

Com o passar dos anos começámos a assistir ao Intercidades a parar cada vez mais, em locais onde não entra nem sai ninguém, e estações que começam a estar praticamente abandonadas, a maioria das suas instalações com portas e janelas entaipadas e com um ar de desleixo e lúgubres. Da Guarda a Lisboa passou o comboio a sair cada vez mais cedo para chegar à hora inicial, quando o horário é cumprido, situação que não me lembro de ocorrer quer no sentido Lisboa-Guarda, quer Guarda-Lisboa nos últimos anos.

Hoje, o que assistimos é a degradação continuada do serviço, com carruagens cada vez mais sujas, logo no início da rota e cada vez se desespera mais pelas horas que se passam no comboio ou nas esperas em estações com cada vez menos condições de salubridade, para já não falar na pobreza dos serviços disponíveis a bordo.

A maior parte das estações intermédias só abrem as suas bilheteiras num período em que não passam comboios, o que não deixa de ser risível. No interior do comboio, no seculo XXI, não podemos comprar o bilhete por terminal de multibanco, máquinas que também não estão disponíveis na maior parte das estações do percurso. Já tive que pedir emprestado dinheiro a um conhecido para pagar o bilhete, senão arriscava-me a ser punido com coimas, no mínimo!

Já nem me atrevo a pedir wi-fi na carruagem, mas pelo menos que houvesse um local, para além da ficha da máquina de barbear das casas de banho, que permitisse carregar um “Tablet” ou um “hi-phone”, que não conseguem ter carga suficiente para suportar os atrasos “desconsideráveis” para os utentes das linhas de intercidades!

Por vezes apetece-me viajar em primeira classe e começa a ser recorrente chegar a Santa Apolónia para comprar o bilhete e dizerem-me que está esgotado. Resignado, apesar de agradecido por me obrigarem a poupar, lá vou em segunda, e na realidade no Entroncamento a carruagem de primeira classe fica praticamente vazia. Fiquei perplexo quando percebi que têm direito a bilhete a custo zero os trabalhadores da CP e da REFER, pois numa das viagens em ambiente demasiado ruidoso, que fiz no troço entre Lisboa e o Entroncamento, vi um dos bilhetes do meu companheiro do lado esquecido, que confirmou as minhas suspeitas.

Acho que os ferroviários devem ter direito a viagens gratuitas, o que devia ser prática comum nos trabalhadores de todas as empresas de transporte, mas também é meu entendimento que não deve a companhia sair prejudicada, já que o potencial cliente pagante acaba por ser preterido pelos funcionários da empresa. Voltarei a este tema muito em breve.


Por: Fernando Pereira
6-1-2015
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