27 de maio de 2012

Laranja amarga e doce! / Ágora/ Novo Jornal nº227 / Luanda 25-5-2012





A Embaixada de Portugal em Luanda vai realizar uma merecida homenagem a um dos mais talentosos cineastas portugueses, João César Monteiro (1939-2003), com a exibição de três dos seus filmes, dos quais, numa escolha particularmente difícil, “As Bodas de Deus” merece a minha preferência.
Enquanto decorria o que, durante anos, foi o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, íamo-nos cruzando, nas noites, em bares que circundavam o Casino Peninsular, com os protagonistas dos filmes a concurso, com uma parafernália de críticos, realizadores, produtores, atores e público que enchia de gente a cidade, lhe dava um colorido especial e, de certa forma, marcava o final da época balnear, na que era então a mais prestigiada praia da costa portuguesa. No distante ano de 1976 conheci João César Monteiro, que me foi apresentado pelo saudoso músico Mário Simões. Confesso que, nesse único contacto, fiquei francamente dececionado pela forma deselegante como se referia a todos que passavam no “Picadeiro”, designação comum do passeio das vaidades onde circulam as pessoas no estio figueirense.
Talvez pela deceção provocada, comecei a ver os filmes de JCM com alguma reserva, mas rapidamente me confrontei com uma obra a raiar a genialidade. Nem o “obscuro” Branca de Neve conseguiu beliscar o muito que gosto de toda a sua controversa obra. “Recordações da Casa Amarela” é provavelmente o melhor da sua filmografia.
Já que se fala do Festival é bom lembrar que o primeiro prémio internacional de cinema ganho por Angola foi precisamente na Figueira da Foz em 1981, na ocasião em que o “Prémio Glauber Rocha” foi outorgado a António Ole com “No Caminho das Estrelas”.
A recente visita da argentina Cristina Kirchner a Luanda fez-me recordar que, nos tempos das visitas de “ Amizade, Partido e Estado”, na ex-República Popular de Angola, fazia-se uma distribuição de bandeirinhas aos meninos das escolas para agitar à passagem dos ilustres visitantes. Desses tempos, entre recordações várias, lembro com saudade as tolerâncias de ponto que nos aliviavam um pouco do “espírito voluntário” dos “Sábados Vermelhos”.
Uma dessas visitas foi a de Erich Honecker (1912-1994), SG do Partido Socialista Unificado da Alemanha, Presidente da RDA, que trouxe uma grande delegação para assinar projetos de cooperação em várias áreas. Entre os ministros vinha sua esposa, Margot Honecker, que detinha a pasta da Educação. Uma delegação da SEEFD foi apresentar cumprimentos de boas vindas e, na verdade, deparámo-nos com uma alemã, para quem qualquer tamanho “S” ficaria inadequadamente grande. Eu, do alto dos meus 1,87m de talento e altura, fui obrigado a vergar-me bem mais que outros colegas que estavam mais ao nível, e a verdade é que a senhora só balbuciou:"Was so groß angolanischen" (que angolano tão grande) e lá foi sorridente a distribuir beijos a esmo, nenhum ao nível daquele que o marido deu a Brejnev e que é uma foto iconográfica do capitalismo provisoriamente triunfante no centro da Europa.
Integravam essa delegação o director da FDTJ, organização que geria o desporto na RDA, e alguns técnicos. Após um conjunto de reuniões, teve lugar um jantar no ex-Hotel Costa do Sol, localizado no morro da Corimba onde, nos anos 60, os luandenses mostravam a cidade ao longe a quem nos visitava.
Num ambiente distendido estulticiamente, resolvi contar ao dirigente e aos técnicos a célebre anedota das laranjas:“ Uma criança alemã ocidental estava no muro de Berlim a brincar com uma laranja e a fazer pirraça a uma criança alemã oriental: não tens laranjas,eh,eh! O miúdo da RDA foi para casa danado e contou ao pai, que o ensinou a responder a essa provocação com a frase: não tens socialismo. A cena repete-se no dia seguinte, tendo o miúdo da RDA argumentado como o pai lhe ensinara. A criança da RFA vai para casa, conta ao pai, que lhe promete que também há-de ter socialismo. No dia seguinte, no muro, a mesma ladainha: não tens laranjas/ não tens socialismo. Ao que o miúdo da RFA responde: hei-de ter socialismo. O miúdo da RDA então responde, perante a perplexidade do outro: quando tiveres socialismo nunca mais terás laranjas.“
Escusado será dizer que não caiu nada bem esta história. O silêncio dos alemães foi ensurdecedor e o riso amarelo, aliado à gaguez da tradutora, terá conduzido à minha saída de cena de forma o mais discreta possível.
Quando vi o“Good Bye, Lenine“(Adeus Lenine-2003) de Wolfgang Becker perguntei-me de que lado estavam os meus interlocutores daquela noite quente de há trinta e poucos anos.
Citando Millor Fernandes: "Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado." Ao tempo, nem imaginava o que era ter quarenta anos, quanto mais o que era estar calado.

Fernando Pereira
21/5/2012

18 de maio de 2012







Fernando Tavares Pimenta é doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, onde frequenta uma bolsa de pós-doutoramento financiada pela FCT. È simultaneamente colaborador do Instituto de História Contemporânea de Ferrara e da Universidade de Bolonha.
Acedeu a ser entrevistado pelo Novo Jornal, na qualidade de investigador da história de Angola no século XX.
NJ- Nascido depois do 25 de Abril de 1974 (1980), em Soure, num concelho rural do distrito de Coimbra, com nenhumas afinidades familiares a Angola, o que o levou há já uns anos a interessar-se por um tema que aparentemente tem muitas “estórias” mas pouca história?

FP – O meu interesse por Angola foi sempre de carácter historiográfico, nomeadamente pelas suas estreitas ligações a Portugal. Interessei-me pela história dos brancos angolanos, em especial pela identidades e comportamentos políticos dessa minoria, por ser um assunto que considero fulcral para um correcto entendimento da historia quer do colonialismo português, quer do nacionalismo angolano. Contudo, antes da publicação dos meus estudos, essa temática era praticamente ignorada pela historiografia. Havia uma lacuna de conhecimento, que contrastava com a relativa abundância de estudos para outros países africanos, por exemplo a África do Sul, o Quénia ou o Zimbabwe. No fundo, foi isso o que levou a interessar-me pelo tema.
NJ- Surpreende-me, e admito com satisfação, ver um tão grande número de jovens investigadores portugueses, com nenhuma ligação familiar, económica ou afectiva a Angola, desenvolver trabalhos que dão hoje contributos indispensáveis a uma História de Angola que se pretende despartidarizada e despida de preconceitos. Provavelmente admite que já começa a ser citado com alguma insistência por angolanos em trabalhos científicos, artigos de opinião ou tertúlias em Angola? Isso deixa-o confortado?
FP – Fico satisfeito pelo meu trabalho servir para uma clarificação da Historia de Angola. Mas o mais importante é ter a consciencia de ter realizado um trabalho sério e rigoroso e que contribui de algum modo para a construçao de um conhecimento mais estruturado do passado angolano.
NJ- Fernando Tavares Pimenta, Claudia Castelo, Nuno Moreira de Sá, Margarida Calafate Ribeiro e alguns outros investigadores tem acabado por trazer para a história recente de Angola contribuições que, quer se queira ou não, acabam por fazer cair alguns dogmas, que se transformaram em quase palavras de ordem para a independência e vida colectiva de Angola enquanto País independente. Naturalmente que gostava de ter a sua opinião de investigador de uma ciência com método e objectivo próprio sobre isto.
FP – A historiografia é uma ciencia social com métodos especificos e que se fundamenta na leitura de fontes documentais. Por isso, a historiografia nao pode ser conivente com a existencia de dogmas – muito menos de dogmas do foro politico. Dogmas e mitos nao podem – ou pelo menos nao devem – interferir na pesquisa historica, que deve ser efectuada com isenção e rigor científico. Isto aplica-se à história de Angola e de todos os paises. Na minha investigaçao procuro sempre manter essa isenção – é essa a minha formação, e julgo que muitos outros historiadores se pautam pelo rigor nas suas pesquisas.
NJ – Há relativamente pouco tempo, em conversa com o nosso comum amigo, Fernando Catroga, insigne catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, homem de grandes cumplicidades políticas e ideológicas com muito angolano, estudantes em Coimbra nos anos 60, e que depois abraçaram a causa independentista, dizia-me algo consternado, que não havia mais jovens historiadores angolanos a trabalhar em áreas que ainda hoje permanecem “nebulosas” na história de Angola. Tem sido procurado por colegas seus de Angola para alguma partilha de conhecimentos?
FP – Tenho poucas relaçoes com a historiografia angolana. Alias, nunca fui “procurado” – em termos cientificos – por nenhuma instituiçao angolana. Contudo, mantenho alguns contactos informais com alguns historiadores angolanos, nomeadamente com Maria da Conceiçao Neto, cujo trabalho aprecio. Certamente, seria positivo haver maiores contactos entre as historiografias portuguesa e angolana.
NJ- Citando Catroga:” Historia e memórias partilham uma mesma feição de ser: são ambas narrativas, formas de dizer o mundo, de olhar o real. São discursos, pois. Falas que discorrem, descrevem, explicam, interpretam, atribuem significados à realidade.”, e lembrando que tem morrido recentemente angolanos protagonistas de lutas de libertação e cabouqueiros de Angola enquanto País, o mais recente Paulo Jorge, não acha que se devia apelar à memória dos que ainda são vivos para legar vivencias para memória futura?
FP – Os testemunhos e os depoimentos dos agentes historicos sao sempre importantes para a conservaçao da memoria e para a investigaçao historica, na medida em que sao fontes que os historiadores nao devem ignorar no seu trabalho de pesquisa. Em termos historiograficos, cada testemunho é uma fonte, cuja valencia cientifica deve ser apurada através de uma analise criteriosa e critica. Neste sentido, seria salutar que esses agentes historicos escrevessem as suas memorias ou transmitissem doutra forma os respectivos testemunhos para que nao se perca uma parte significativa da memoria do passado.
NJ- Tem acompanhado o trabalho de alguns centros de investigação e documentação em Angola, a título de exemplo a Associação Tchiweka?
FP – Acompanho os progressos da historiografia angolana, que julgo serem significativos, bem como os esforços desenvolvidos por algumas instituiçoes e pessoas no sentido da preservaçao da memoria historica. Mas, tal como jà referi, nao tenho qualquer ligaçao a nenhuma instituiçao angolana.
NJ- O seu livro, editado pela Minerva de Coimbra “Brancos de Angola – Autonomismo e Nacionalismo”, acabou por motivá-lo para um trabalho mais detalhado na obra editada pela Afrontamento (2008), os “Brancos e a Independência”. Há na esteira destes dois trabalhos mais alguma obra em preparação sobre o tema?
FP – Continuo a trabalhar sobre a realidade colonial angolana em termos de artigos, capitulos de livros, conferencias ou mesmo aulas, mas para jà nao tenho nenhum outro livro em preparaçao sobre Angola. Neste momento estou mais interessado em Moçambique, cuja realidade colonial tenho estudado nos ultimos tempos. Embora diferente da angolana, a historia moçambicana também é muito interessante.
NJ- Sei que um académico não gosta de se ver envolvido em questões de vulgar discussão política, mas tem que admitir que a sua obra “Angola no percurso de um nacionalista. Conversas com Adolfo Maria” terá sido a sua obra mais lida, comentada e controvertida no seio da sociedade política angolana! Só procurou história nessa entusiasmante conversa?
FP – O meu interesse por Angola é puramente cientifico. Esse livro tem um intuito historiografico e de conservaçao da memoria de um agente da historia angolana, neste caso o senhor Adolfo Maria. Nao tenho interesse na discussao politica angolana. É algo que nao me diz respeito. Julgo, porém, que esse livro deu um contributo importante para uma clarificaçao da historia recente de Angola, sobretudo para o periodo da guerra de independencia.
NJ- A título de informação tenho que lhe dizer que é uma obra muito procurada, e a realidade é que a paupérrima distribuição faz com que não se encontre esse livro no circuito convencional em Portugal ou Angola. Não está a pensar reeditar o livro, com novas conversas com Adolfo Maria, que talvez por causa dessa obra começou a ser olhado duma forma mais respeitada num País que muitas vezes convive mal com a sua própria memória?
FP – Esse livro é fruto de um trabalho concluido em 2006. Nao faz parte da minha agenda efectuar “novas conversas” ou entrevistas com o senhor Adolfo Maria. Contudo, o livro acaba de ser reeditado – no formato original – pela Afrontamento. Espero que seja feita uma boa distribuiçao da obra.
NJ- No fim desta nossa pequena entrevista posso perguntar-lhe com que olhos vêem uma Angola que apenas conhece no mapa, pois não teve a dolorosa experiencia de seus pais de terem que saber que a serra maior de Angola era Tala Mungongo, que o caminho de ferro de Luanda tinha o ramal do Dondo e que o rio Cunene limitava Angola no sul, entre outras aparentes estultices. Os angolanos eram obrigados a estudar o goiveiro em ciências naturais, a linha do Douro, estações e apeadeiros, o monte Ramelau em Timor e outras bizarrices do tipo, que faziam de Portugal uma imitação serôdia da Inglaterra, num conceito de uma “Nação onde o sol nunca se punha”.
FP – Angola é um grande pais, com muito potencial humano, para além de economico. A sua historia ainda està em larga medida por investigar, mas a historiografia està a fazer passos importantes no sentido de produzir um conhecimento mais aprofundado sobre o passado angolano. O futuro depende sobretudo do trabalho dos proprios angolanos, que tem a oportunidade de construir um pais melhor para si e para os seus filhos e netos. Embora nao tenha ligaçoes pessoais a Angola, desejo paz e prosperidade a todo o Povo Angolano.
NJ- Muito obrigado por esta entrevista e a convicção que Angola vai aproveitar o seu contributo quando se fizer a “história de Angola”.

Fernando Pereira
20/11/2011

Quem muito viu! / Ágora/ Novo Jornal 226/Luanda 18-5-2012





Benguela comemorou a 17 de Maio de 2012 os seus trezentos e noventa e cinco anos de “idade”, fundada que foi pelo Cerveira Pereira, um pouco maltratado pelo Pepetela, no seu o “a Sul, o Sombreiro”, o seu mais recente romance.
A incontornável macrocefalia de Luanda acaba por não dar o devido relevo ao desenvolvimento que se vai assistindo um pouco por todo o País e ignora-se como Benguela se tem afirmado num polo de desenvolvimento económico e cultural do centro sul de Angola, conseguindo recuperar alguma da auréola que o Lobito foi usurpando na fase final da ocupação colonial, mercê da posição privilegiada do seu porto e do terminal do CFB.
As gentes de Benguela foram sempre muito ciosas na defesa da sua cidade, e veja-se a luta que travaram quando o Caminho de Ferro de Benguela, a então majestática empresa inglesa se preparava para atravessar a cidade, como fez no Lobito, Huambo e outras vilas no seu percurso até ao Luau. A população não deixou, e nem as promessas da administração do CFB, acolitados pela indiferença cumplice das autoridades, conseguiram demover a população para que a cidade fosse dividida. Este é apenas um dos múltiplos exemplos da tenacidade das gentes da cidade, a segunda fundada pelos portugueses na costa do que veio mais tarde a ser a colónia de Angola.
Outra vetusta povoação de Angola, outrora um grande porto de exportação de café tem o seu rico património a degradar-se sem que se veja uma atitude coerente e incisiva por parte das autoridades para manter de pé uma vila que durante muitos anos foi marco importante no tecido económico do território. O Ambriz, situada na foz do Loge vê os seus edifícios a degradarem-se, nomeadamente a torre sineira da Camara Municipal, que era só um dos edifícios do início do século XX, orgulho das suas gentes e de características únicas no País.
Lembro-me, ainda que vagamente, da horrível estrada que ligava Luanda ao Uige, num total de 386km, no meio de lamaçais que passava no Cacuako, Kifangondo, Libongo, Capulo, Ambriz, Toto, Bembe, Lukunga, Songo e finalmente Uíge. O stress da viagem para além da necessidade de enfrentar lodaçais onde chegavam a estar atolados centenas de viaturas dias a fio, aumentava quando havia necessidade de se chegar a tempo das jangadas que placidamente cruzavam os rios Loge e Dande (Dange, na provincia do Uíge). Se perdesse a jangada Luanda ficava para o dia seguinte e lá tinham as pessoas que se arrumar numa sórdida pensão, que era a única solução para mitigar o desespero dos viajantes.
Há ainda que em mau estado um conjunto harmonioso de vivendas e lojas que atestam a vitalidade dos tempos áureos do café principalmente nos anos 50 com o boom do preço do “ouro negro” de então. Luanda e Lisboa crescem com prédios, bairros e avenidas novas, a construção civil dispara e nessas cidades surgem novas centralidades e um novo ordenamento do perímetro urbano.
Este alerta para a recuperação da vila do Ambriz é extensível ao património arquitetónico e cultural do País alertando que na antiga fazenda Tentativa, paredes meias com o Caxito, ainda era possível juntar algum material para perpetuar o duro trabalho da cana e a sua transformação em açúcar e álcool, criando-se um núcleo de arqueologia industrial que se revelaria útil para memória futura dos cidadãos.
O Ambriz perde toda a sua importância como porto de exportação, quando Luanda passa a ser o destino final da chamada “Estrada do Café”, que sai do Caxito, Sassa, Ucua, Puri, Quibaxe, Aldeia Viçosa, Vista Alegre, Quitexe e Uige. Esta estrada esteve sempre fechada ao tráfego normal no tempo colonial, recorrendo-se às colunas militares. A insofismável verdade que mesmo com a 1ª região político-militar do MPLA debilitada por razões sobejamente conhecidas, as tropas coloniais nunca conseguiram pacificar-se em relação à realidade quotidiana da guerra colonial nesta região dos Dembos, naquela que é das estradas mais bonitas do País, com o verde extasiante da sua paisagem ao logo dos 340km que ligam Luanda à capital da província.
Já que se falou no rio Dange não gostava de deixar de referenciar uma obra de grande probidade intelectual de um antigo habitante do Quitexe já falecido, João Nogueira Garcia, que ao longo de um livro pouco mais de cem páginas conta detalhadamente, com recurso a fotos e a documentos, o que foi o 15 de Março de 1961. João Garcia viveu esses dias e faz uma análise muito cuidada dos antecedentes e revela as vicissitudes desses dias que marcaram o futuro da guerra colonial e determinaram o princípio do fim da presença portuguesa em Angola enquanto colónia.
Um livro que merece uma leitura, sendo que talvez o mais difícil será mesmo encontrar. Sugiro que procurem um blog interessante sobre o Quitexe onde o filho, Engº João Garcia tem estado a postar partes do livro e outras histórias que não foram ainda publicadas em livro.

Fernando Pereira
16/5/2012

11 de maio de 2012

“Nas Brumas da Memória” / Ágora / Novo Jornal nº 225/ Luanda 11-5-2012








Um destes dias tive necessidade de recorrer ao livro “Desporto e Estruturas Sociais”, do professor José Esteves, para tirar uma dúvida sobre o número de praticantes desportivos numa determinada modalidade, em Portugal, na primeira metade dos anos sessenta e assim corrigir, com precisão, um amigo sobre o assunto.
Como sempre acontece quando estou com algum livro do professor José Esteves, continuo a relê-lo e gostaria de partilhar aqui algumas histórias que marcaram o quotidiano político do “Portugal uno e indivisível”.
O Diretor Geral dos Desportos era, no distante ano de 1958, o tenente-coronel Sacramento Monteiro que, cheio de boas intenções, resolve pedir uma audiência a Salazar para a discussão de um plano de construção de instalações desportivas em Portugal e colónias.
Com a frieza habitual com que recebia os subalternos, mesmo que titulares de cargos de responsabilidade governativa, recebeu o Diretor que lhe entregou um dossier. Salazar perguntou que era aquilo. “ Trata-se de um plano de construção de piscinas, para o fomento da natação entre a nossa juventude, Sr. Presidente”. O militar Sacramento Monteiro contou ainda: “o homem olhou para mim, olhou para o dossier, afastou-o logo a seguir, com um dedo só, com um ar de muito desprezo e despede-me com esta simples frase: Senhor Diretor Geral, está muito frio para tratar desse assunto. Venha lá mais para o Verão!”.
Em 1959, numa visita efetuada ao Estádio Universitário de Lisboa, ao verificar, na planta geral das instalações, que havia um espaço destinado a uma piscina, ali mesmo decidiu a eliminação pura e simples de tal hipótese. O homem abominava a natação.
A verdade é que em Angola, a iniciação à natação e a sua prática competitiva era apenas dirigida a sectores bem determinados da sociedade angolana, no caso a filhos da burguesia colonial, ou a funcionários de companhias majestáticas como era o caso da “Diamang” e “CFB”.
Em Angola, a primeira piscina olímpica, ainda a única no País, está em Luanda e foi inaugurada em 1969. Tudo o resto eram tanques e piscinas de vinte e cinco e trinta e três metros, como a velhinha do Nun’Álvares, hoje Clube Náutico da Ilha.
No elitista Lobito Sports Club e no Ferroviário de Nova Lisboa, hoje Huambo, havia duas piscinas que, para além de estarem ligadas à natação enquanto modalidade competitiva, eram usadas para práticas de lazer dos funcionários e familiares do CFB. Em determinada altura a construção de piscinas passou a ser uma obra de grande visibilidade dos governadores e administradores nomeados pela administração colonial, mas quase nenhuma delas desenhadas para a prática da natação enquanto modalidade desportiva. Curiosamente nem a “Bufa”, corruptela que correntemente designava a Mocidade Portuguesa, tão ligada a desportos náuticos como a vela e o remo, manifestava algum interesse em desenvolver a natação.
No contexto continental continuamos infelizmente ao nível da maioria dos Países no quadro da iniciação e competição da natação, onde a Républica da África do Sul domina em toda a linha, com alguns medalhados olímpicos de permeio.
Como estou com o livro do José Esteves entre mãos, e porque tenho muita consideração e estima pelo Ruy Mingas, gostaria de lembrar uma entrevista sua concedida ao jornal “A Bola” de 17-6-1974. Referindo-se ao panorama sociodesportivo do seu País dizia: “os negros nunca puderam beneficiar da integração, mesmo mínima, ao nível da atividade desportiva (…). Mesmo assim, no entanto, os negros ainda conseguiram afirmar uma certa posição, ainda que muito relativa, no desporto. Sem escolas, sem empregos decentes, sem nível económico que lhes permita chegar aos divertimentos que, então ao alcance dos brancos, os negros têm como único escape para a sua vida oprimida- para não dizer, já, escravizada- o desporto e a música. E é assim que interligam e interpenetram ambas. Jogar com uma bola, correr ao lado de um camarada e dançar ao som da música feita por mãos a percutir madeira, não custa dinheiro”.
Já agora alguém me pode explicar porque é que quase toda a gente chama falta de luz à falta de eletricidade? Confesso que nunca vi ninguém chamar falta de fogão à falta de gás, ou falta de torneira à falta de água!..
«Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra?» Agostinho da Silva (1906-1996)

Fernando Pereira
8/5/2012

4 de maio de 2012

QUEM VÊ CARAS NÃO ESCUTA VOZES.../ Ágora / Novo Jornal 224 / Luanda 4-5-2012


A geofinança esmaga a geoeconomia, e a comunidade internacional chama geopolítica à antipolítica, que tanto mata repúblicas como não deixa renascer a república universal. Por outras palavras, há uma inversão de valores. É na Europa e no mundo.
Esperemos que a legitimidade regresse. A estrela do norte da política sempre foi a justiça e, sem esta medidas, não há democracia, porque não há liberdade sem igualdade e ambas, sem fraternidade. É urgente repolitizar o Estado e os Estados, em síntese, o mundo. De outra maneira, virão os despotismos. Sobretudo os privados, aqueles que já clandestinamente nos condicionam e proíbem.
Há dias, o Gustavo Costa indignou-se, e justificadamente, com a utilização abusiva de uma parte da Escola Nzinga Mbandi para casamentos, batizados e outras farras. Acho que as escolas têm que ser preservadas, e não devem recorrer a expedientes deste tipo para conseguir recursos destinados a preservar e remodelar instalações e material pedagógico. Em 1961, o espaço que foi o Liceu Guiomar de Lencastre (que não sei quem foi) e que é o Liceu Nzinga Mbandi (que sei quem foi) foi o local que alojou os primeiros militares em Abril de 1961, quando chegaram a Angola e se começou a construir o Grafanil. Na altura estavam em curso obras terminais para a instalação da escola, que só abriu como liceu feminino no ano letivo de 1962/63. Aqueles corredores, salas e ginásio continuam a acompanhar a “história”.
Recupera-se periodicamente a história da Ilha de Páscoa, território chileno com cinco mil habitantes, a maior parte deles idos do continente. A ilha de Páscoa é famosa pelas suas inúteis estátuas. Num filme, Rapa Nui, contava-se a história dos Moai, povo que, vindo da Polinésia,se tinha instalado na ilha, onde desenvolveu uma civilização. As gigantescas estátuas de pedra, património da Humanidade certificado pela UNESCO, eram construídas como oferendas a divindades e, naturalmente, para serem transportadas até ao seu destino final onde estão esculpidas, houve necessidade de abater árvores para as arrastar desde a pedreira. Esse foi o princípio do fim dos Moai, segundo o filme que afinal corrobora a opinião da maior parte dos investigadores. Em determinada altura começaram algumas tribos a digladiar-se com o objetivo de atingir a supremacia de uns sobre os outros, e cada um dos vencedores ia fazendo estátuas maiores para oferecer às divindades. A guerra acabou, provavelmente por falta de guerreiros, míngua de árvores e de Moai em número suficiente para obter os favores ou aplacar as fúrias dos sempre silenciosos deuses. As árvores eram mais necessárias que os Moai, mais férteis, e ofereciam sombra e abrigo contra os ventos oceânicos. Sem elas, depressa os solos se degradaram e a ilha ficou desértica. O ecossistema da ilha foi destruído e acabou para se revelar insuficiente para alimentar a população de dezenas de milhares de pessoas. Quando os primeiros europeus ali aportaram, num qualquer domingo de Páscoa, encontraram pouco mais de dois mil habitantes, depauperados fisicamente, sem a grandeza dos Moai, que acabaram por legar ao futuro uma ilha deserta, inóspita e habitada por continentais que vivem do turismo, a sua única fonte de receita. As doenças que os europeus trouxeram acabaram com o que restava dos Moai, porque os habitantes não tinham defesas para elas.
Esta história estava para ser contada quando se comemoraram os dez anos de paz em Angola, mas houve outras de maior atualidade, e esta só hoje aqui coloco.
Tambien, como la tierra yo pertenezco a todos.
no hay una sola gota de odio en mi pecho.
Abiertas van mis manos esparciendo las uvas en el viento
Pablo Neruda

Fernando Pereira 1/5/2012

27 de abril de 2012

Duração do aroma/ Ágora/ Novo Jornal 223/ Luanda 27/4/2012


Esta era a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen

Trinta e oito anos depois da madrugada libertadora do 25 de Abril de 1974, tento manter vivo o sonho que perpassou por todos que sentiram a vertigem da liberdade e do fim da opressão. Muitos dizem que o 25/4/1974 acabou, outros nem se lembram, para a maior parte é uma data demasiado longínqua para ser vivida com a emoção igual à de todos os que a vivemos. Felizmente que Abril não precisa de ser recordado quotidianamente porque valores aparentemente tão comezinhos como liberdade, dignidade e solidariedade estão intrinsecamente ligados às lutas quotidianas das pessoas no encontrar de melhores dias.
O 25 de Abril de 1974 continuou em 11 de Novembro de 1975, e hoje os dois países caminham juntos na resolução dos seus problemas comuns, aprofundam as suas trocas comerciais, partilham experiências culturais e fazem objetivamente tudo que foi adiado por décadas de intolerância e divisões de diversa ordem. Há muita história vivida nesses tempos de inebriante alegria coletiva, e hoje ocorre-me lembrar que, quando o dia da libertação era já um dado adquirido, a preocupação de todos foi dirigirmo-nos, em Coimbra, para as instalações da sinistra PIDE-DGS, onde os agentes e os malsins dessa polícia política estavam sitiados pela multidão vigilante, que não arredava pé.
A PIDE estava localizada na Rua Antero Quental, bem perto das repúblicas do Kimbo dos Sobas e dos Mil-y-onários, que foram durante anos visadas pelas visitas constantes de agentes, que prenderam alguns estudantes engajados nos movimentos de libertação das colónias, principalmente de Angola. Naturalmente que estava lá e sentei-me num telhado sobranceiro à vivenda sitiada com o Carrilho, estudante moçambicano que anos mais tarde foi Procurador-Geral da República em Moçambique e julgo que Ministro da Justiça. Por ali ficámos horas esquecidas, até que os militares entraram com “Chaimites” para levar os PIDEs à cadeia. Fomos desmobilizando e, em grupo , lá fomos ocupar outras instalações onde estavam sedeadas estruturas políticas ligadas ao regime deposto, como por exemplo o “Centro de Estudos Ultramarinos”, que transformámos em “Casa dos Estudantes das Colónias”, e onde tivemos atividade importante em determinada fase do processo de descolonização, principalmente na sua fase embrionária. Passados uns anos, o meu amigo José Alberto Teixeira, jurista, capitão da seleção de voleibol de Angola e administrador da Agropromotora mostrou-me em Luanda um conjunto de fotografias do nosso tempo de Coimbra. Fomos contemporâneos por lá e, surpreendentemente, num conjunto delas sobre esse assalto à PIDE, lá se vêem no telhado eu e o Carrilho a olhar distraidamente para as movimentações que levaram ao fim da hedionda polícia política de António de Oliveira Ndalatando, como alguém já disse com muita piada sobre Salazar.
De vez em quando passo os olhos pela atividade de Universidades de Angola e em algumas vejo que têm instituído o “Conselho de Sábios”, onde pontificam nalguns, amigos e ex-colegas de serviço. Isto faz-me lembrar que tive um professor de “Hermenêutica do texto filosófico”, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que na primeira aula, entre várias vulgaridades, falava de ter ido à Grécia, tendo-se sentado na pedra onde Sócrates habitualmente falava aos seus prosélitos, e tinha ido a uma reunião de eméritos professores de filosofia em Delfos onde “só sábios éramos dez”. Tive que ouvir esta conversa durante dois anos, porque o Dr. Morujão resolveu chumbar-me da primeira vez, talvez para que eu ficasse com a matéria bem solidificada.
Em jeito final, não deixaria de manifestar a minha admiração por algumas publicações que se fazem em Angola, e em que a quase totalidade dos colaboradores são angolanos. A “Austral”, revista de bordo da TAAG, é um exemplo de um belíssimo trabalho de alguns anos que se lê com enorme prazer. Excelente grafismo, artigos com um português rigoroso e temas com grande interesse histórico ou de atualidade. Na minha subjetividade, fico com a sensação de que os artigos são demasiadamente longos para uma revista de bordo. É a única "pecha" que lhe reconheço e a “Austral” dignifica, e de que maneira, a nossa companhia aérea.
Fernando Pereira
24/4/2012

20 de abril de 2012

"Viver é desenhar sem borracha" Millor Fernandes (1923-2012)/ Ágora / Novo Jornal nº 222/ LUANDA /20 de Abril de 2012


Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira, Avintes (1942-1982) faria em 9 de Abril de 2012 setenta anos.
O Adriano foi um dos mais generosos cantores de intervenção da música portuguesa, e, como foi esquecido na sua fase terminal, não teve ainda um verdadeiro agradecimento dos muitos que fizeram da sua canção “bandeiras de liberdade”. Iniciou-se no fado de Coimbra, cidade onde estudou direito, mas rapidamente deu voz e compôs canções com letras de poetas proscritos do regime caído a 25 de Abril de 1974. Com o advento da democracia, Adriano, Zeca Afonso, José Mario Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Luis Cília, Fernando Tordo, Rui Mingas e outros eram as vozes que cantaram as novas “Trovas do vento que passa”. Num processo nebuloso e com oportunismo à mistura, Adriano Correia de Oliveira é demitido da Cooperativa “Toma Lá Disco” e, simultaneamente, começam a surgir os boicotes aos cantores de esquerda, começando a degradar-se a sua saúde e concomitantemente a fragilidade da sua situação económica transforma uma pessoa alegre, num homem melancólico, que a determinada altura “terá atirado a toalha ao chão” e se deixado morrer em Avintes.
Adriano Correia de Oliveira deu vários espetáculos em Luanda em 1975, na companhia de Zeca Afonso, Fausto e Rui Mingas com o propósito de apoiar a luta do povo angolano e o MPLA. O espetáculo encheu a Cidadela e, no dia seguinte, num canto livre na cantina da Universidade, perto da Igreja da Nazaré, a FNLA sitiou todos, tendo prendido o saudoso Baião, em casa de quem estavam alguns dos cantores.
Adriano Correia de Oliveira teve o “Canto e as Armas” musicado pelo nosso “colega” do NJ Luis Filipe Colaço, autor de um dos poemas do disco. Há uma faceta desconhecida para a maior parte dos angolanos, foi o facto do Dr. Arménio Ferreira lhe ter dado oportunidade de trabalhar no Comité 4 de Fevereiro para a Europa, na Luciano Cordeiro em Lisboa, no departamento de Informação, onde tive a grata oportunidade de ter privado com ele e ter conhecido a sua extraordinária dimensão humana. Não desejaria olvidar este homem grande da canção de intervenção política da língua portuguesa.
Já que estamos a efemerizar, Ahmed Ben Bella faleceu no dia 12 de Abril, aos noventa e quatro anos, e faço-o porque praticamente não vi nenhuma referência de tomo na imprensa angolana. Apesar de morto politicamente desde que Boumedhiene o apeou do poder em 1965, Ben Bella foi o primeiro presidente eleito da Argélia e figura de tomo na luta contra o colonialismo francês. A Argélia comemora este ano cinquenta anos de independência, e penso ser da mais elementar justiça fazer esta referência pois foi este presidente que acolheu e apoiou todos os movimentos de libertação que lutavam contra o colonialismo português no âmbito da esquecida CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas). Era nos primórdios da década de sessenta o mais diabolizado dirigente africano na então Emissora Nacional.
Tenho constatado que a minha caixa de correio eletrónico é sistematicamente atulhada de “casas da filha do José Eduardo dos Santos”, “iates de Isabel dos Santos”, “Avião presidencial de José Eduardo dos Santos” ou numa derivação do José Almada Negreiros no seu “manifesto Anti-Dantas”, e “sabonetes em conta José Eduardo dos Santos, Pasta Isabel dos Santos para os dentes”…. A realidade é que, se eventualmente se dessem ao trabalho de ver a origem das fotos, iriam ter a catálogos de venda de iates, aviões e casas. Não pretendo defender quem quer que seja, porque na realidade tenho tempo que sobra para contar o pouco dinheiro que tenho, mas julgo que a sordidez de determinados atos só acaba por retirar alguma legitimidade a certas transações que podem eventualmente permitir-se a algumas dúvidas.
“Enferrujam- se os arames e os ferros, cobrem-se os panos de mofo, detrança-se o vime ressequido, obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína.” José Saramago (Memorial do Convento).

Fernando Pereira 17/4/2012

13 de abril de 2012

Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram! / Ágora /Novo Jornal 221/ Luanda 13/4/2012




Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram!
Durante o recolher obrigatório mais longo do mundo, a que o luandense se foi adaptando com a subtileza com que ultrapassava os escolhos em tempos hoje recordados com alguma nostalgia. Esses momentos tiveram o privilégio de deixar a marca solidária na sociedade angolana, que atualmente desvanecida pela inversão de valores.
Nessas noites tranquilas, nesse dealbar dos anos 80 descia do Kinaxixe a pé até à Casa do Desportista, onde tive poiso bastante mais tempo que esperava, e invariavelmente apanhava o “controle” a formar-se, saudavam-me com o “boa noite camarada”, perguntavam-me a hora, invariavelmente um quarto para a meia-noite, para chegar a casa a tempo.
Um dia atrasei-me, perguntaram-me as horas ao que respondi que eram meia-noite e vinte, logo me solicitaram os documentos e recebi voz de detenção. Contudo, provoquei uma enorme discussão entre os três militares porque perguntaram-me as horas, eu não menti, afinal o meu argumento mais virtuoso desde que comecei a ver o caso mal parado. Recebi a “alforria”, mas pediram-me para evitar a patrulha móvel, e lá fui a passo de corrida até à Casa do Desportista. A partir daí as horas que dizia eram as que me agradavam.
Numa noite de Março numa altura em que ainda não nos tínhamos habituado a ter ar condicionado, estávamos um conjunto de pessoas nas traseiras da Casa do Desportista, onde hoje está um conjunto de restaurantes e armazéns de duvidosa qualidade arquitetónica, ao tempo local aprazível e onde a brisa corria e amenizava a abafação da noite. Estávamos a conversar e entretanto surgem três soldados a pedir-nos os documentos, que naturalmente não estavam connosco, imediatamente a darem-nos voz de prisão porque estávamos a descumprir o “recolher obrigatório”. Argumentámos que aquilo era um quintal de uma propriedade privada, que o acesso à rua não era público, enfim mil e um argumentos que não convenciam o único graduado presente, que nem sequer conseguia fazer perceber a alguém como iríamos todos ser levados para a prisão já que o carro dele era um jeep pequeno. Começou a perceber que apesar da autoridade do fardamento faltava-lhe quase tudo o resto e acabou a ordenar-nos para “ir para a cama”, “desta vez passava”, e um conjunto de frases que só o iam cada vez mais cobrindo de ridículo.
Não se passou comigo, mas quem a contou merece-me todo o crédito. No Largo da Maianga estava um controle para ver os documentos e o livre-trânsito do recolher obrigatório. Um FIAT 132 azul, que era o carro distribuído aos vice-ministros do governo da então RPA, em tempos mais parcimoniosos na distribuição de viaturas aos dirigentes, é instado a parar.Dentro vinha o membro do governo sozinho, sem livre-trânsito, bem argumentava que era vice e os soldados não se deixavam demover, dizendo que “não o conheciam”, “se era membro do governo devia conhecer a lei”, o quadro recorrente nestas situações. Como ao tempo não havia telemóveis, o vice-ministro já se conformara em que iria ficar ali uns tempos. A certa altura mandam parar o Carlos Lamartine, e o júbilo foi grande entre os soldados que estavam ali perante um dos seus eleitos, meu também diga-se de passagem. Ele a certa altura olha para o FIAT e vê encostado o vice, e pergunta-lhe que está ali a fazer e a resposta: “Fui kangado”! O Carlos Lamartine perguntou aos soldados se não sabiam quem era, e prontamente os esclareceu, tendo-o “libertado” de uma noite no mínimo tediosa. Vale mais um cantor conhecido que um governante quase anónimo.
Uma noite, já muito tarde e confiadamente pensando que levava o meu livre-trânsito, nem me preocupou em “driblar” o controlo que sabia estar invariavelmente no início da Alameda Manuel Van-Dunem. A verdade é que quando lá cheguei dei-me conta que não tinha o documento, já que o tinha deixado em casa, e nenhum argumento demoveu um esclarecido militar com quem fiquei uns tempos agradáveis a conversar, já que era do Songo, onde vivi e conhecíamos muita gente em comum, para além de falarmos de tanta coisa pois estive ali, cerca de três horas, com mais cerca de cinquenta nas minhas condições. No fim pediu-me boleia para a 7ª esquadra, deu-me os documentos e desejou-me uma boa noite, agradecendo-me a companhia que lhe fiz. Arribeia casa já o sol começava a raiar por traz do prédio que em tempos foram as efémeras instalações da “Rádio Clube Português” na Hoji-ya-Henda.
Histórias suaves de um tempo onde nos habituámos a conviver com o recolher obrigatório e a tirar partido da situação que tivemos de 1977 a 1991.

Fernando Pereira
8/4/2012

12 de abril de 2012

Requiem por tudo e também por nada!




Requiem por tudo e também por nada!

Passámos do que estava para o que está. O que estará pode vir a ser aquilo que esteve. Se continuar o estar em vez do ser.

Já agora, Zweig no seu belíssimo O Mundo em que Vivi, que “é mil vezes mais fácil reconstruir os factos de uma época do que a sua atmosfera emocional”.

Vivemos simultaneamente o entediante espetáculo da politiquice serôdia e a desesperança num amanhã que a maioria acreditava ser diferentemente melhorado, nem que fosse apenas nas nossas férteis imaginações coloridas por telenovelas e anúncios que nos transportariam para quimeras de planuras sem obstáculos de tomo.

Por convicções políticas fui um dos que aderi às célebres e tão maltratadas campanhas de dinamização cultural do MFA, no distante ano de 1975. Fi-lo com a afirmação plena que o que estava a fazer era correto e mais razão me foi dada quando me embrenhei num interior de um Portugal que era tudo exatamente igual ao que no exterior era mostrado à saciedade.

Quando vi gente empenhada em aprender, pessoas que viram teatro, cinema, e outras manifestações culturais a primeira vez na vida ficávamos com a sensação que tudo viria a ser diferente. Muitos portugueses viram um médico pela primeira vez e acima de tudo sentiram que todos tentámos partilhar a ternura de um futuro que se queria definitivamente rompido com o passado.

Não o quiserem certas forças, apoiadas pela sordidez de alguns arautos de instituições milenares que se diziam donas da consciência dos cidadãos. A forma soez como foi tratada tanta gente de caracter, solidária e coerente na sua prática política sentir-se-ia hoje “desforrada”. A realidade que se vive no presente era o que nesse tempo se combatia, e as angustias de alguns são hoje partilhadas pela maioria da população.

Infelizmente, hoje estão no poder os filhos dos que armadilharam e boicotaram esses tempos de liberdade plena, onde se discutia quem devia deter as empresas produtivas, a banca, os seguros, as autoestradas, as gasolineiras, as terras e outras estruturas desmanteladas e desmazeladas pelos muitos que hoje se arrogam patrimónios da democracia. Hoje discute-se mais ou menos isso, mas com o aparelho produtivo quase aniquilado, uma agricultura que só residualmente produz para abastecer o mercado interno, umas pescas que desapareceram no País que tem a segunda maior área marítima exclusiva da Europa, em suma discute-se vamos vender uma empresa estratégica a Alemães, Franceses, Angolanos, Chineses ou aos habitantes permanentes da Disneylândia.

Sinceramente hoje já pouca coisa me indigna, porque na realidade por mais que o baralho mude de mão o jogo é o mesmo, e é-me completamente indiferente que acabem com freguesias, concelhos ou outras estruturas desconcentradas da administração central nas capitais de distrito, porque bem vistas as coisas a sociedade está moldada para que cresça o individualismo, construído meticulosamente pelos que destruíram o 25 de Abril de 1974.O poder foi legado aos seus herdeiros, que aparecem tipos “Grilo Falante” nos areópagos onde supostamente o cidadão julga que se decide tudo, e que não são mais que serventuários dos que sempre tiveram mão no pote.

Para termos ideia do que é a estratificação de uma sociedade e os seus códigos pego no exemplo do exército suíço, só o padeiro sabe que fardado, o universitário lhe é superior, à paisana é seu cliente.



“Se o homem nasceu livre, deve governar-se; se ele tem tiranos, deve destroná-los.” Voltaire



Por: Fernando Pereira

30 de março de 2012

Do Minho a Timor/ Ágora / Novo Jornal nº219/ Luanda 30/3/2012





"Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". Diógenes Laércio, o cínico.
Nestes últimos dias de Março de 2012 comemorou-se em Portugal, com alguma descrição diga-se em abono da verdade, os cinquenta anos da maior repressão policial que há memória sobre os estudantes portugueses, e que no léxico da resistência ao fascismo e colonialismo foi apodado de “Crise de 1962”.
O “acto” central foi Lisboa, embora o rastilho tivesse sido Coimbra, onde um conjunto de estudantes universitários na defesa da sua associação tinha sido preso pela PIDE. As razões de solidariedade acabaram por servir de mote à contestação ao regime e a um apelo à democratização, ao fim da guerra colonial e a implantação de um regime de liberdade.
A polícia de choque sem motivo justificado invadiu a cantina universitária, outros espaços da Universidade de Lisboa, e depois de inusitada violência prendeu um conjunto significativo de estudantes, entre os quais Jorge Sampaio, que anos mais tarde foi Presidente da Republica, entre outros que se foram notabilizando na vida política, social, cultural e cívica de Portugal.
A carga foi tão descabelada que o próprio reitor, o professor Marcelo Caetano pediu a demissão depois de exigir a saída da guarda pretoriana de Salazar, das instalações da universidade.
A participação de estudantes angolanos neste movimento foi relativamente insignificante, pois muitos já tinham optado por “dar o salto” para integrar os movimentos de libertação das então colónias, e os poucos que restavam reservavam-se pois desde o 4 de Fevereiro de 1961 eram olhados sempre com particular suspeita pelas autoridades.
Ontem como hoje, há manifestações boas ou más, consoante o ponto de vista, mas há pelo menos uma coisa que julgo que todos temos que estar de acordo e tem a ver com a condenação pela brutalidade excessiva das forças de intervenção, pois inevitavelmente só aumenta a razão dos que protestam.
Evocar os dias de Março de 1962 é também lembrar que 40% da população da então Metrópole era analfabeta, nas colónias era de 92% e o acesso à universidade só era possível aos filhos dos que dispunham de uma situação económica confortável. A realidade é que curiosamente também foram eles a cavar a sepultura de um regime que aparentemente os protegia.
Não sei o que será Timor-Leste depois da saída de Ramos Horta da presidência da Republica, mas pelo menos uma coisa talvez venha a saber: o pior que lhe podia suceder era ficar igual.
Fui durante anos um entusiasta da luta de Timor-Leste contra o regime de Suharto, mas nessa quase militância conheci uns poucos timorenses e a maioria deles muito mal formados. Em Angola tivemos alguns que não souberam aceitar a generosidade do País, que aliás era magnânimo até para alguns movimentos que pouco representavam em certos países.
Um dos exemplos flagrantes da falta de sentido patriótico dos dirigentes da resistência timorense foi uma reunião de vários dias num hotel de Peniche em 1998, já no estertor da presença indonésia no território, onde nem um documento mínimo conseguira apresentar, o que deixava transparecer dificuldades inultrapassáveis numa futura nação.
A demarcação de Ramos Horta e de Xanana Gusmão da Fretilin nunca foi muito bem explicada, e depois de manigâncias várias para a afastarem do poder, são cúmplices num dos maiores embustes da política democrática ao arredá-la da governação, quando foi o partido mais votado em eleições livres, tendo sido formado um governo de alianças espúrias entre partidos menores.
Timor-Leste começou a ser cobiçado pelas riquezas naturais na sua zona económica exclusiva, mas a realidade é que a população continua com os níveis de indigência que tem desde os tempos da presença de Portugal.
A Igreja timorense fortemente implantada nunca explicou o afastamento do Bispo D. Martinho Lopes da Costa, que morreu na miséria em Portugal, e da resignação intempestiva de Ximenes Belo. A Igreja não é uma democracia e não tem nada que explicar, mas também não tem nada que se imiscuir em assuntos de estados laicos. Um País que nasce de joelhos tem que fazer um esforço maior para se pôr de pé.
Talvez Timor-Leste acabe finalmente com trocas e baldrocas politiqueiras em que Ramos Horta e Xanana foram os rostos mais visíveis e se encare o progresso como alternativa coerente e viável ao determinante que o timorense tem que ser eternamente pobre.
Só se pede aos timorenses que não sigam o provérbio português: “Guarda o que não presta, encontrarás o que precisas”.

Fernando Pereira 26/3/2012

23 de março de 2012

Corpo de Delito ou Delitro? / Ágora / Novo Jornal nº218 / Luanda 23-3-2012





Em 1971 o mundo industrializado estava prestes a viver o primeiro choque petrolífero, provocada pela guerra do Kippur. A história nesse momento começaria a ser diferente e o político e jornalista francês Serban-Shreiber (1924-2006), fundador do L’Express em 1953, tão bem explicou no conjunto de artigos que foram coligidos em livro, “O Desafio Mundial” (D. Quixote 1982), e que ocasionalmente releio, para retemperar ideias e conceitos.
Na artificial modorra que Portugal parecia estar,  um grupo de diletantes resolveu pregar ao vetusto e prestigiado jornal “O Século” a maior partida que há memória na imprensa escrita de expressão portuguesa.
A notícia surgira, através de alguém da TAP, pelo que um membro do governo ter-se-á deslocado apressadamente de Coimbra para tentar um contacto com os visitantes, os quais talvez pudessem ser a chave para a flexibilização das condições altamente restritivas em que Portugal então vivia, no tocante a fornecimentos de petróleo. “Fonte muito bem informada” disse ao José Mensurado, recentemente falecido, que iriam estar algumas horas em Lisboa uns árabes próximos do Xeque Yamani, o senhor todo-poderoso da OPEP, para discutirem com Portugal a questão do petróleo contextualizando a então insipiente produção de Cabinda na discussão. Como a reunião era sigilosa os árabes iriam permanecer muito pouco tempo em Lisboa, chegando à Portela num voo da TAP de manhã, almoçariam no “Tavares Rico”, ao tempo o restaurante de topo em Lisboa, e regressariam a Paris no voo da tarde. O Rolls Royce de Jorge Correia de Campos , chega ao Tavares, sempre acompanhado desde o aeroporto de uma discreta segurança de duas motas, e o repórter Roby de Amorim que estava a acompanhar o “furo” pelo “Seculo” chama o José Mensurado, que aparece deixando “os árabes” aparentemente muito aborrecidos porque queriam a maior descrição possível. Os “xeiques” não falavam português e a pouca “lengalenga” era traduzida por um intérprete, que respondia às questões colocadas pelo chefe de redação José Mensurado que não escondia a indisfarçável euforia de ter nas mãos um furo deste calibre. Naquela encenação ainda cabia um “representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal” para dar maior legitimidade ao evento. Almoço aviado, umas fotos de permeio e ei-los a caminho da Portela, onde embarcaram segundo o testemunho do repórter do jornal.
No dia seguinte, a toda a largura da página em letras garrafais, o “Século” noticiava: “Árabes discutem petróleo em Lisboa”, e no subtítulo a referencia ao petróleo de Angola. Nas páginas centrais do jornal, a entrevista, as fotos e um texto encomiástico a tão ilustres personagens foram a cereja no cimo do bolo do que foi até hoje o maior “barrete” da história da imprensa escrita portuguesa.
Os “árabes” eram uns meninos de “china na bota e papá na algibeira” (Ary), que se vestiram a preceito, arranjaram um décor perfeito e conseguiram iludir toda a gente para que o jornal de maior tiragem de então propagandeasse tamanha partida. Gente com pedigree social na Lisboa de então, como o Chefe Michel da Costa, Manecas Mocelek, Jorge Correia de Campos e o nosso conhecido corredor de automóveis em Angola Nicha Cabral entre outros.
Não fora a censura e a história teria tido proporções maiores, mas a realidade é que esta história motivou a gargalhada geral no jornalismo português.
José Mensurado já tinha estado em evidência pelas piores razões, quando moderou a celebérrima mesa “arredondada” em 1965 em direto na RTP sobre a atribuição do prémio a Luuanda de Luandino Vieira pela Sociedade Portuguesa de Autores, que lhe valeu a vandalização das suas instalações seguida de ordem de encerramento. Nessa mesa, José Redinha, Amândio Cesar, Geraldo Bessa Victor e Mensurado, o mais que conseguiram foi tentar calar a voz dissonante de Mário António de Oliveira e fazerem um exercício que apenas serviu para justificar o injustificável assalto por parte de “milícias” enquadradas por legionários pedófilos a uma instituição de cultura.
Esta história sugeriu-me relembrar Brecht e a “Queima dos Livros”:
“Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira, um poeta
expulso, um dos melhores, ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! , escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não ma façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu
sempre a verdade nos meus livros? E agora
tratais-me como um mentiroso!
Ordeno-vos: Queimai-me!”

Fernando Pereira
20/3/2012

15 de março de 2012

No Antanho/Novo Jornal nº215/216/217 / Luanda / Ágora 16/9/2 de Março de 2012



NO ANTANHO!
(Iª PARTE)
Estou pouco para escrever, mais para copiar.
Esta carta de Luanda que por razões de espaço divido em três partes, é acima de tudo uma imagem bem ilustrativa de uma cidade de Luanda onde só parte da sua ambiência e as suas gentes são faladas. Era a vida!
Recordar Loanda Antiga através da pena de Henrique Paço D’Arcos faz-nos sentir como se lá tivessemos vivido nessa época hoje já longínqua em que a saudade e a esperança se misturam e desvanecem como fumo e sombras na bruma do tempo...
Pelo seu valor humano, histórico e literário, transcrevo na íntegra, e obedecendo à ortografia da época, o prefácio escrito por Henrique Paço d’Arcos dedicado ao seu amigo de juventude, colega de muitos anos no Banco de Angola, e distinto historiador luandense Manuel da Costa Lobo, na obra deste “Subsídios Para a História de Luanda” (edição do autor, Lisboa, 1967).


“Querido Manoel
Éramos naquele tempo dois rapazinhos novos que com o escasso intervalo de meses aportámos à velha cidade de São Paulo da Assumpção de Luanda.
A viagem para lá só se fazia então por mar, com escalas no Funchal e em São Tomé, e durava entre 17 e 20 dias.
No porto de Luanda os navios ficavam a uma distância enorme de terra sendo a ligação com esta feita por batelões e pelos gazolinas do Canelas e de mais dois ou três, uns melhores do que outros.
Na cidade, com a chegada do navio, era dia de São Vapor. Homens, mulheres e crianças, brancos, negros, mestiços - os homens com fato de brim e capacete colonial - íam nos gazolinas esperar os recém-vindos. O desembarque fazia-se, ao fim de uns quinze a vinte minutos de travessia, nas “Portas do Mar”.
Foi assim que um dia puzeste pé em São Paulo da Assumpção de Luanda, onde eu te havia precedido de uns meses.
Luanda era então uma pequenina cidade que do Morro da Fortaleza à Mãe Isabel, ao longo de uma praiasinha suja e semeada aqui e além de dongos, se debruçava sobre a baía. Tinha como limites a encosta vazia da Praia do Bispo, as quatro casas do Bairro do Saneamento, a Brito Godins e a Avenida do antigo Cemitério.
À Ilha, em frente, ía-se por uma velha ponte de madeira sobre pilares de cimento, que por baixo dava passagem às canoas de pescadores e aos gazolinas que demandavam em passeio turístico as praias de Belas ou as edénicas ilhas das bandas da Corimba.
As ruas não eram asfaltadas e alumiavam-se à base dos velhos «Petromax», salvo uma ou outra residência ou serviço público com gerador privativo que, como por cordelinhos, ia de extensão em extensão e aos soluços servindo a vizinhança amiga.
A àgua vinha, ainda como hoje, do famoso Bengo, mas não era tratada, sendo preciso decantá-la em pedras de Moçamedes e em filtros de velas para, fervendo-a, a tornar potável, e bem assim usar filtros de pressão nas torneiras e nos chuveiros para aligeirar no banho a sua côr de chocolate.
Em matéria de transportes públicos, havia os dois machimbombos do Crista - um deles mais parecendo feito de tábuas de caixote - com términus na Baixa, no Largo do Bíker, junto ao Clube dos Pés Frios, e, na Alta, em frente à Casa às Riscas. Havia as tipoias dos Barros e meia dúzia de automóveis de aluguer que hoje seríam objectos preciosos de museu e que faziam na praça no Largo D. Fernando. Pertenciam ao Joaquimzinho, aos Macedos, ao Carvalho, ao Sério, ao Tavares, ao Fonseca.
E houve ainda um mágico que resolveu montar um comboio bébé que pela Praia do Bispo ía até à Samba, empreza que foi um insucesso.
Pontos de reunião eram o Biker, o Gêlo, a Bijou, onde pontificava o Gonçalves, a Portugália, com o Faria à sombra da árvore secular, a Rotunda da ponte da Ilha, à tardinha, ou a «árvore» sobranceira à baía, para lá dos então terrenos da Marconi.
NO ANTANHO (IIª PARTE)
Na Ilha, com meia dúzia de casas, havia o Freitas banheiro e a Ermelinda onde se comiam mariscos.
A praia não tinha a estacaria que hoje tem e era frequentada (fracamente) durante a semana a horas mais que matutinas, antes do início das labutas diárias. Aos Domingos e feriados havia maior movimento, fazendo-se a pé a travessia da ponte.
Como outros divertimentos tinhamos o Cine-Parque - ainda não havia sequer o Nacional - onde tocava piano, nos intervalos, o maestro e escrivão Leão de Almeida; as comidas e bebidas no Canelas e na Casa Branca; as rebitas nas Ingombotas e os batuques nos Muceques; as caçadas a que quasi sempre me esquivei; as partidas de ténis nos Coqueiros; e - supra-sumo do chiquismo - os bailes no Naval. Tambem aos Domingos, uma vez por outra, os leilões do Mónis ou aqueles almoços no Cacuaco ou alhures, como incipiente e exclusiva actividade do nóvel e parodiante Club dos Rotários, cujos Estatutos, elaborados pelo Fiúza, consistia de um Artigo Único - «Chatices, não» - frase lapidante que concisamente expressava a filosofia dos rotariantes.
Éramos ao todo, então, uma vintena: os Pombais, Pais, filhas e filhos, morando naquela casa antiga que, na Cidade Alta, era ponto de reunião; o Zé Correia de Barros (o Pai dele e teu Tio era então o Director do Banco; o António Oliveira Monteiro, cheio de espírito e louco por correrias de automóveis; o Pai Ricciardi, que em breve regressaria a Lisboa, bafejado pela Sorte Grande que enlouqueceu Luanda; o Figueiredo; o Lipari (has visto a Figueiredo?); o Luis Câmara Leme; o Isidoro Martins dos Santos; o António Fiúza; os Estarrejas; os Brandões de Melo; o Gaspar Cunha Lima (este um pouco mais tarde); tu; e nós os dois P. A., Manoel e Henrique.
Raparigas, além das Pombais e da Eugénia Brandão de Melo, eram as Patos (o Calçado Espanhol, lembras-te?); as Soares de Campos (os olhos verdes da Lili); a Edith; as Leites (por afinidade); e, mais tarde, aquela que encheu de luz a tua vida, Maria Amélia, minha linda comadre.
Figuras gradas ou pelo menos características da Luanda desse tempo, eram os já falados Faria da Portugália e Gonçalves da Bijou, o Trinta e Um, mais tarde substituido na sua baiúca pelo Graça da Havaneza (depois Lusitânia); o Videira, com o seu monóculo e a sua verve; o Gil, com a Dona Chica, a cadela bull-dog para a qual guardava um prato ao almoço no Hotel Paris; o Simões Raposo, escondido com o seu valor e a sua asma; o Alberto Correia, de impecável fato branco e as longas barbas; o velho Dr. Cunha, a eminência parda, de barba em riste e sotaina; os médicos Cruz, Antunes e Ornelas e, mais tarde,o Levy e o Silveira Ramos; o nosso bom Sampaio e o seu irmão João (o frei João sem cuidados); o Avelino, o Costinha; o Chico Simões; o Assoreira; os irmãos Leite, um dos quais o Henrique, tinha com o Granaxo e o Alberto Teles a casa de modas elegantes desse tempo, que era o Matos & Teles, ali no Largo D. Fernando, ao lado do Correio; a familia Lé-lé da Farmácia; o Fernando Tavares; o Capitão Barros; a familia Brandão de Melo; o Noronha e a D. Ema, o Nolasco e a D. Fábia; o Alfaro; o Boaventura; o Azevedo da Vacuum e a sua Aninhas; o Guilherme Leitão e o primo Aníbal Gonçalves; o Berman e a Opperman, depois Mrs. Berman; o Virgilio Monteiro e a sua bengala; o Brito Pires, velhíssimo; o Major Amaro; o Amaral Fernandes e a D. Henriqueta; os Mexias; o Ricardo Pires; o casal Esquível da CAOP; o Hollis com os seus colarinhos; o velho Constantino Reis, em cuja casa alugada, tivémos a nossa primeira república; o Reis barbeiro, antecessor do Neves, em relação a nós; o Palege, enfermeiro; o Semeão Victória e a Mulher; o casal Lopes Alves, com o Nuno ainda infante; o Sousa Machado com a sua eterna luta; o velho Cochat; enfim, uma longa fileira de sombras.
NO ANTANHO (IIIª PARTE)
E entre elas, avultando, a nobre figura do meu Pai que, quando os Pais Correia de Barros saíram de Luanda, vos albergou a ti e ao Zé, na casa do Balão, onde nós vivíamos com ele, paredes meias - lembras-te? - com a simpatia do casal Pessa.
Com a vinda do meu Pai para a Europa, mudámo-nos para a tal casa do Constantino Reis - ali à Mutamba - e passámos depois para uma segunda república, no fim da então Avenida Neves Ferreira, hoje Avenida Serpa Pinto, frente à Estação da Cidade Alta (que há muito não existe). Vinhamos os dois então para o Banco por um caminho de pé posto, deserto de casas, a desembocar no fundo da Avenida do Hospital, à esquina das Obras Públicas.
A vida começava cedo. À 1 hora, acertavam-se os relógios pelo tiro da Fortaleza que dessa forma assinalava tambem a chegada do paquete da Metrópole com a mala ansiosamente esperada.
Bebia-se a rodos cerveja alemã - não havia entrado ainda em moda o Whisky ou as nossas algibeiras não davam para tanto. Os fósforos eram de graça. Tudo o mais se jogava. Jogava-se aos dados as bebidas e os almoços e quando já não havia que «endossar», jogavam-se fatos, gramofones, «raquettes» de tennis, e o Videira (ao que dizem) jogou uma vez o automóvel (não aquele com paisagens de caça pintadas no verde da carrosserie).
A imprensa era representada pela Provincia de Angola, depois passada a diário, pelo Comércio de Angola e pela folhinha de couve do Doutor Seabra (faz hoje anos que a nossa excelsa esposa...), seguidos tempos volvidos pelo Diário de Luanda e pelo Apostolado.
No jornalismo e na slides literárias surgiram os nomes do Adolfo Pina, do Albuquerque Cardozo, do Manoel de Rezende, do Júlio de Castro Lopo, do Melo (Jeremias Pacato), do Salinas de Moura, do próprio Videira, do Correia de Freitas, do Maximino Conde e, «the last but not the least», do inspirado Tomás Vieira da Cruz, passeando a sua Saudade Negra e a rompante cabeleira como uma flama de revolta contra a monotonia do oficio a que a profissão o escravizara. Nas artes davam os primeiros passos o Neves e Sousa e o Roberto Silva.
Livros - ainda não aparecêra a Lello - vendiam-se na Havaneza, na Minerva do Ramiro e no «Printemps», anexo do Matos & Teles, once creio ter feito uma das minhas primeiras aquisições em Luanda: as «Claridades Siderais» de Octávio Augusto (tu saberás completar o nome do autor). Compravam-se discos de gramofone no Centro Comercial e no Matos & Teles.
Não havia aparelhos de rádio (fomos nós dos primeiros a tê-lo, lembras-te? Uma espécie de barulhento receptor de bordo que um dos nossos companheiros manobrava, armado em Arturinho sem-filista); não havia frigoríficos; não havia ar-condicionado. Havia calor em barda e frio (!) no cacimbo.
Foi nesta paisagem tranquila que brotou para sempre a nossa amisade.
Durante anos, trabalhámos lado a lado no Banco, o já hoje velho Banco de Angola, no seu antigo edifício à Avenida Salvador Correia, que era então a Avenida dos Coqueiros (one estão eles, esses coqueiros, em fila, as altas copas ondulando?).
Ali vivemos intensamente a nossa vida de bancáriose, com elas, as altas e baixas marés da economia da Província.
Estou a ver-te mostrando-me na mão o telegrama de Lisboa, acabado de decifrar, mandando que se limitassem as transferências às coberturas à vista, prenúncio do grande calvário que foi por tanto tempo, como agora voltou a sê-lo, o problema cambial de Angola.
Os anos rolaram sobre os anos. Angola foi vencendo uma a uma as sucessivas crises, a quebra vertical das cotações, a praga dos gafanhotos, a guerra e os «navicerts», a euforia das altas cotações, como os alcatruzes, tudo isto entremeado de acidentes da política local mais ou menos graves, de que no vinte de Março chegaram a atingir foros de tragédia, e, por fim, o golpe profundissimo de 61 que nós, velhos peoneiros, ainda sentimos na alma.
Os anos rolaram sobre os anos. Luanda é hoje uma cidade maravilhosa, a querer rivalizar, da banda de cá do fosso atlântico, com a outra da canção brasileira. Angola, através das suas altas e baixas marés, é uma confirmação espantosa de vitalidade, num mundo em perdição.
Vai longa e fastidiosa esta carta. Relendo-a, acho-a sem encanto. Porque insisto pois em enviá-la?
Por que mesmo sem encanto, sem estilo, sem valor literário algum, haverá porventura nela um sabor agri-doce, que é o sal da saudade.
A culpa é tua. Amante de Angola e das suas velharias, criaste com os teus opúsculos, agora a reunir em livro, o pano de fundo onde aquelas sombras todas do nosso passado comum se veem mover contracenando com todas as outras que o teu poder de evocação foi arrancar ao limbo das velhas memórias de Angola.
Cenário de milagre este em que se dão as mãos, numa roda infindável, os grandes e os humildes, os mortos e os vivos, a saudade e a esperança.
Tu que tens filhos nascidos em Angola, eu que tenho filhos nascidos em Angola, damos a mão à esperança”.
Lisboa, Dezembro de 1966
Henrique Paço d’Arcos”

8 de março de 2012

O mando e o dogma/ O Interior /8 de Março 2012




“É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que quer e há-de ser” (Alexandre Herculano, na Carta aos Eleitores do Concelho de Sintra, de 1858).
O poder é um calvário. E é simultaneamente uma sedução. Tanto para aqueles que lhe imaginam as delícias, como para os que já lhe sofreram os espinhos.
Existe pois no bicho-homem seja o que for que o leva a pagar sem regateio o que o poder exige de quem o serve. Mesmo nos momentos em que a fé e as energias se esgotaram, mesmo quando o jugo das responsabilidades e o cárcere das aparências se tornam insuportáveis e tudo em nós grita por libertação, mesmo quando outro já espera nas antecâmaras da cobiça a oportunidade de nos render. Nem assim o homem do “poder” , que lhe bebeu a cicuta (Esta é muito óbvia)e lhe sofreu a tirania , acredita que chegou a hora do regresso a um viver normal. Ele apesar da consciência dividida , ainda está pronto a imolar-se para além dos fisiológicos limites da resistência física e moral.
Porque somos uma região de emigrantes e paradoxalmente têm IMI-grandes, vamo-nos entretendo com um onanismo de Bacalhau, vulgo salada de Bacalhau, que desde o Zambito à Maunça pouco mais há para discutir! Como estou entretido e lambuzado com bacalhau fininho, cebola, alho, colorau e azeite fico-me enchendo o texto com palavras de outros, para dizer o que se me vai ocorrendo no pensar!
“Era uma vez um surdo completamente surdo, um paralítico completamente paralítico e um calvo completamente calvo. Viviam juntos e de tanto se aborrecerem decidiram partir. A fim de alcançarem o ponto mais distante do mundo puseram-se a caminho a pé, ou seja: o paralítico ia deitado numa maca, porque era tão completamente paralítico que nem sequer se podia sentar, e o calvo e o surdo transportavam a maca. O surdo ia à frente.
A certa altura da viagem foi preciso atravessar uma floresta. Quanto mais os três homens penetravam nela mais o mato era denso e a folhagem cerrada: Por causa disso e do anoitecer, escurecia.
Iam a meio de uma clareira quando o surdo disse: «Poisa a maca.»E deixou de andar, o que obrigou o calvo a parar também. O calvo e o surdo puseram a maca no chão.
E o surdo disse assim: «Esta floresta está cheia de assassinos e malandros. Há já um bom bocado que oiço o restolhado deles.» O calvo respondeu: «Estou em crer nisso, porque sinto que os cabelos se me estão a pôr em pé.» Então o calvo e o surdo desataram a correr, seguindo o trilho que tinham aberto no mato.
O paralítico ficou sozinho na clareira. E ele pensou: «Não gosto de estar nesta floresta. Parece-me que vou mas é fugir daqui.»
“Directa” de Nuno Bragança
Fernando Pereira
6/3/2012

24 de fevereiro de 2012

SEM REMISSÃO ALGUMA/ Ágora / Novo Jornal nº214/ Luanda 24-2-2012




Acabei de ler “Loanda, Escravas, Donas e Senhoras” de Isabel Valadão, editado recentemente pela Bertrand e o que se oferece dizer é que estamos perante um livro interessante, um romance vivo e que nos transporta para um período da vida da cidade de Loanda pouco conhecido e divulgado.
Uma história em que as personagens centrais são duas senhoras, alforriadas e que marcam o seculo XVII de uma cidade masculinizada em todo a sua estrutura económica e política, onde as mulheres tinham um lugar de total subalternidade, sem qualquer visibilidade, numa sociedade onde a ordem era mantida a ferro, fogo e intriga.
A Igreja católica era o braço ideológico do fraco poder colonial, e as regras impunham-se num quotidiano de miscigenação cultural onde as religiões animistas, a feitiçaria, os ritos e mitos acabavam por desembocar num paradigma social que pontualmente prevalece hoje, passados séculos, regimes e revoluções várias.
A autora deste “Loanda” viveu em Angola um período de tempo, e agradece ao Pepetela a motivação, ainda que indireta, surgida depois da leitura da “Gloriosa Família”.
Já que se fala em mulheres com protagonismo não gostava de deixar de fazer uma referência positiva à interpretação de Meryl Streep, no papel de Margaret Thatcher no filme “ The Iron Lady”. Embora o filme seja assente na biografia da ex-primeira ministra britânica, e releva pouco a sua atividade política no contexto internacional que de braço dado a Ronald Reagan conseguiram transformar o mundo na desorganização global que hoje se vai assistindo.
Numa primeira fase Margaret Thatcher conseguiu suster a inflação na Grã-Bertanha através de políticas de desinvestimento no sector público, levando a cabo uma autêntica revolução quando privatizou a economia e cedeu uma parte do serviço nacional de saúde inglês à voracidade de grupos económicos e seguradoras privadas. Estendeu isso ao ensino e a realidade que se vive no Reino Unido hoje é bem diferente dos tempos em que a educação e o serviço nacional de saúde inglês eram referências para projetos noutros países onde se tentou levar à prática o slogan da OMS, “Saúde para todos no ano 2000”.
O Tatcherismo e o Reaganismo conseguiram, numa luta sem quartel a tudo que não tresandasse a neoliberalismo, montar uma economia mundial em que o aumento das desigualdades dispararam nos países desenvolvidos e tornaram-nas numa pandemia de proporções gigantescas em países em vias de desenvolvimento, sem que se almeje ver o futuro.
A experiencia do “laissez faire, laissez passer” é uma mezinha de parcos resultados na economia que a “dama de ferro” acolitada por Reagan impuseram durante quase uma dezena de anos, assente numa política de proteger a tirania e os vilões, entre os quais se destacou Pinochet.
Porque a omnipresença da Igreja Católica é quase recorrente em qualquer atividade política e social, não fiquei surpreendido quando a Republica de Angola, um Estado constitucionalmente assumido como laico recua, quando aventa a hipótese de regulamentar a interrupção voluntária da gravidez.
A Igreja Católica, sempre atenta às movimentações dos governos e suas oposições, mal ouviu falar que se preparava uma “lei do aborto” logo se multiplicou em declarações que de facto acabaram por se revelar decisivas para que o projeto nem passasse de uma mera declaração de intenções, o que é extraordinariamente aviltante para a sociedade e acima de tudo para a mulher angolana que é demasiado ostracizada e mal tratada no quotidiano machista do País.
Acho que a Igreja fez o que deveria ter feito, dentro da sua lógica de defesa dos seus princípios confessionais. Que as autoridades da Republica tenham recuado, sem sequer trazer para a discussão pública um tema, é determinante na sociedade angolana atual é revelador de uma insegurança e quiçá seguidismo completamente indesejável e indicia alguma fragilidade perante um quadro que devia estar balizado em termos de competências e responsabilidades.
Que o tema volte rapidamente à discussão, ou não acontecendo que se extinga o Ministério da Família e em seu lugar se crie o Ministério das Inter-Confissonalidades.
«À pessoa que descansa em si não lhe interessa o tempo; a evolução não deve levar o tempo em conta.»
Fernando Pereira
22/2/2012

16 de fevereiro de 2012

Aqueles a quem falta imaginação, não conseguem imaginar o que lhes falta!/ Ágora/ Novo Jornal nº213 / Luanda 18-2/2012




Comecei a ler Charles Dickens (1812-1870) influenciado por uma série inglesa de grande qualidade, “David Copperfield” que passou na bafienta TV em Portugal, corriao ano de 1968. O entusiasmo pela série levou-me a comprar o livro, que ainda tenho, numa pobre encadernação das edições Romano Torres. Era entediante, mas lá consegui acabá-lo, decepcionado em relação à adaptação televisiva. Estava a carpir a decepção, um professor dá-me o Oliver Twist (que depois vi em filme), e acho que foi a partir daí que terei iniciado o meu percurso de cidadão de esquerda e permanentemente inconformado.
Na comemoração dos duzentos anos do nascimento de um dos nomes maiores da escrita vitoriana, era impossível olvidar a efeméride, porque foi de certa forma Dickens que ilustrou a miséria que alavancou as posições assertivas de Marx e Engels num século XIX de enorme pujança na discussão filosófica, histórica e política.
Há cinquenta anos, Vinicius de Morais e Tom Jobim, habitués de muitos botequins no Rio de Janeiro, particularmente do “Bar Veloso”, compuseram uma das imorredoiras músicas da Bossa Nova, “ A Garota de Ipanema”. A musica de expressão portuguesa mais conhecida no mundo, tocada em todas as latitudes e gravada por centenas de intérpretes desde alguns famosos como Frank Sinatra, Armstrong a muitos que permanecerão incógnitos.
Hoje, o artigo é de efemerizações e como tal não posso esquecer que mais uma vez comemoramos o 4 de Fevereiro de 1961, e mais uma vez banaliza-se a data com comemorações demasiado repetitivas em que o acto político acaba por se transformar num ritual onde todos sabem antecipadamente o que vai ser dito e glorificado.
Quando olho para o estado de degradação do forte do Penedo, um dos locais que os homens do 4 de Fevereiro atacaram tentando libertar presos que estavam em risco de deportação, fico com a sensação de enorme impotência perante um edifício vulgar mas que merecia ser um local com alguma dignidade para evocar uma data importante no quotidiano histórico recente do País.
Olho para tanto gasto supérfluo que se vai fazendo, que acho que seria de toda a utilidade que se gastasse uma verba significativa na recuperação do forte e se instalasse no seu interior um “4 de Fevereiro de 1961” interactivo, de efeito potenciador no entusiasmo de crianças e jovens a quem a data vai dizendo cada vez menos, até cair no esquecimento.
Era muito importante fazê-lo, porque cada vez há menos gente para contar como foi o 4 de Fevereiro de 1961, e mesmo as descrições de alguns participantes tem hiatos que não permitem fazer um encadeamento consequente de tudo o que se passou nessa madrugada cada vez mais distante.
Completamente descabido continuarmos a querer uma cada vez maior envolvência das pessoas nas comemorações, daí talvez a necessidade de adaptarmos as datas a mostras com novas tecnologias, um “4 de Fevereiro de 1961 virtual”, mas que mostre a realidade do que foram esses momentos que marcaram a história recente do País.
Há exemplos desses pelo mundo todo, desde mostras muita elaborada a aplicações simples mas imaginativas e pedagogicamente com resultados de excelência. Já visitei muitas mostras desse tipo, e ainda recentemente em La Guernika, no País Basco Espanhol vi umano museu evocativo do bombardeamento alemão à localidade em 26 de Abril de 1937,assisti à réplica do que foi esse dia de horror para a pequena vila, magistralmente glorificada na tela de Picasso em exposição no Museu Reina Sofia em Madrid, visita que recomendo vivamente.
‎"A História é a puta mais deslavada e maltratada de que há memória, de quem toda a gente se serve e que ninguém respeita nem paga o devido preço pelo uso e, quantas vezes, abuso.”.
Desculpem o destempero, mas há palavras de outros que serão melhores que as nossas para expressar o que queremos.
Fernando Pereira
14/2/2012

10 de fevereiro de 2012

I CAN 2012./ Ágora / Novo Jornal 212/ Luanda 10-2-2012





Não percebo a decepção das pessoas por causa da participação da nossa selecção no CAN 2010, nem consigo admitir que toda a ira caia em cima do seleccionador.
Não sou treinador, percebo muito pouco de futebol para vir para a praça pública invectivar equipa dirigente da FAF, equipa técnica e jogadores, numa competição em que normalmente Angola tem feito pouco melhor que isto.
Como dirigente desportiva estive sempre interessado na valorização de uma cultura física e desportos ligado à formação integral do cidadão, e ao desenvolvimento e envolvimento da juventude numa educação plena num contexto de valores e referências de matriz diferente desta realidade que vamos vivendo.
Acho que o facilitismo do “mercado” acaba por mostrar a sua face negativa, quando temos que nos expor em situações que comparativamente temos que nos confrontar com outras realidades e outros modelos organizativos.
Para o melhor na maioria das vezes, e para o pior algumas delas o angolano tem um ego do tamanho do mundo. Nada a opor quando isso é importante para exprimir a vontade colectiva e a defesa dos valores e interesses do País. Quando o ego tolda o raciocínio dos que tem responsabilidade, em vez de assumirem alguma dose de culpa e fazerem exercícios de expiação assobiam para o ar, arranjando um bode expiatório para justificar erros colectivos.
Angola vai passar a ter muito revés ao nível das selecções, e o aviso começou no basquetebol masculino no último Afro-Basquete em Madagáscar, e novamente agora no CAN no Gabão e Guiné Equatorial. São sinais evidentes que há muita coisa mal no desporto no País e nem o undecacampeonato de andebol feminino nem o africano de basquetebol feminino conseguem disfarçar a falta de uma política desportiva coerente, adaptada à realidade do País num quadro de cultura e desporto acessível à juventude, nem mais nem menos que o grosso da nossa população.
Vale muito pouco andar de candeia acesa à procura de culpados, pois a responsabilidade pela degradação da situação é partilhada por muitos desde agentes desportivos, dirigentes, jornalistas, técnicos, atletas e professores.
Quando há muitos anos, nos momentos que se seguiram à independência se procurou optar por uma política coerente, adaptada à realidade angolana num quadro de organização desportiva africana, teve-se em conta que só uma grande participação de jovens, enquadradas por clubes, escolas, associações, orientadas por animadores, monitores e técnicos desportivos qualificados poderiam criar um alfobre para as modalidades de alta competição, ou de alto rendimento como hoje é corrente dizer-se.
O futebol, por razões que se prendem com o facto de haver enormes investimentos em África, por vezes para servir interesses de afirmação pessoal, política e económica de alguns baronetes exigia maior comedimento, e o seu crescimento em Angola devia criar expectativas limitadas no quadro continental.
Penso que a voracidade que acompanha o dinheiro fácil esquecemo-nos um pouco de tudo isso, e o que vamos assistindo é que se vão fazendo investimentos avultados, mas pouco consistentes na sua componente organizativa global e de resultados imediatos paupérrimos.
Enquanto os órgãos reitores do desporto angolano, não despirem a gravata, arregaçarem as mangas e voltarem a discutir, organizar e promover uma cultura física e desporto coerente tendo em atenção a disponibilidade dos angolanos para a sua prática regular, o que vamos assistindo é a um cada vez maior estado de degradação das nossas representações desportivas no exterior, e de facto acaba por ser não apenas reflexo do que não fazemos no contexto do desporto e também vai pondo a nu os nossos frágeis remendos nas políticas de juventude no nosso imberbe tecido social.
Até lá, só temos que ficar à espera que o que se passou de muito mau no CAN 2012 se repita!

Fernando Pereira
5/2/2012

9 de fevereiro de 2012

"“Memórias de Adriano” só mesmo da Marguerite Yourcenar!" / O Interior-9-2-2012




Começo a ter a convicção que devem ter virado o mundo ao contrário, ou estarei a assistir a exercícios de expiação tardios de certa gente que foi qualquer coisa de inapreciável politicamente noutras fases de longas vidas.
Esta semana ouvi o professor Adriano Moreira, numa entrevista na SIC ao António José Teixeira, e a determinada altura belisquei-me para saber se estava a ouvir e a ver a mesma pessoa que foi ministro de Salazar e que reabriu o Campo prisional do Tarrafal em 1961, depois de encerrado em 1954, por pressões internacionais e contestação interna, pelas condições degradantes que lhe trouxeram o aviltante nome de “Campo da morte lenta”.
Qualquer alienígena que tivesse aterrado neste planeta esta semana ficava completamente banzado com as críticas assertivas que o Prof. Adriano Moreira faz às medidas draconianas do governo do PSD /CDS, na esteira do que fez o governo liderado por José Sócrates.
Com noventas, putativo delfim de Salazar, ministro do Ultramar num momento particularmente sensível nas colónias, Moreira defendeu posições que basicamente a esquerda, que nunca esteve no poder, defende coerentemente há muitos anos, como questões tão comezinhas como a estabilidade no emprego, uma saúde e uma educação em que todos os cidadãos tivessem iguais direitos, num Estado Social que desse oportunidades a todos na defesa de um bem-estar, e mais alguns lugares comuns, que são do agrado dos muitos que o ouvem e admiram com alguma reverência, talvez pelo seu ar professoral e a sua provecta idade.
Ficaria estarrecido se não soubesse do seu percurso nos últimos sessenta anos, ou foram um embuste perfeito ou então está a reinar com todos que o ouvem. Desculpe professor, mas para este peditório já dei!
Também ouvi esta semana o Dr. Mário Soares a falar sobre os períodos da sua intervenção política a seguir ao 25 de Abril de 1974, e confesso que a minha indiferença é praticamente igual à que senti quando ouvi o Professor Adriano Moreira. Não quero ter nada a ver com este filme:”Aos costumes disse nada”.
Acho que estes programas deviam ir para a RTP Memória, pois tem já por lá o “reprise” Hermano Saraiva a destilar a sua verve ultra-direitista, e assim juntava-se por lá tudo que hoje se anda a recolher no baú da política.
Na Rádio Altitude, também ouvi partes do “Recordar o passado na Guarda”, mas desaguentei e mudei de registo pois sinceramente desapetece-me de todo permanecer continuadamente a ouvir alijar responsabilidades para outros, um pouco na esteira do Prof. Moreira ou do Dr. Soares, que afinal nunca tiveram a ver com nada!
Começo a perceber porque é que “O Artista” foi nomeado para dez Óscares. Estamos no tempo de mudez, e só aos gerontos lhe é dada palavra.
Aguardem pela Páscoa, quarenta dias depois de um Entrudo que já era, para que eu faça uma crónica adocicada.
Fernando Pereira
5/2/2012
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