20 de maio de 2011
O Senhor dos Aneis /Ágora/ Novo Jornal 174/ Luanda 20-5-2011
Num périplo com o professor Sousa Santos feito por um conjunto de províncias a propósito da feitura da “Carta do Desporto Angolano” e da “Lei das Associações Desportivas” no princípio dos anos oitenta, fui-me deparando com o bizarro de situações que hoje são “estórias” de um tempo que foi sendo feito a golpes de vontade.
Em Saurimo, fomos recebidos no aeroporto pelo velho Passos, ao tempo o delegado provincial dos desportos. Como ainda era cedo para o frugal almoço, habitual nesse tempo de penúria colectiva, pedimos para ir até à delegação para preparar a reunião da tarde com os clubes da província. O Passos levou-nos a sua casa, explicando-nos que as instalações da delegação se encontravam em obras já há uns tempos e por isso todo o expediente era gerido na sua casa. Quando chegámos, levou-nos a um anexo onde estava uma secretária, uma máquina de escrever, um armário metálico com as portas fechadas com um atilho e num canto entre duas cadeiras, uma cómoda de quarto de dormir. O Passos explicou que o armário de metal era o arquivo morto, e na primeira gaveta da cómoda estava a documentação da delegação provincial dos desportos, na segunda gaveta estava instalada a associação de futebol e a ultima gaveta era para as associações provinciais de desportos colectivos e desportos individuais. Era um tempo em que o desporto na Lunda-Sul estava literalmente arrumado em gavetas.
Hoje, o desporto angolano já nada tem a ver com o cabouqueiro de outros tempos, mas surpreende-me negativamente haver poucos quadros de excelência, que o País deveria ter nestes quase trinta e cinco de vida colectiva enquanto nação.
Num dos últimos fins-de-semana realizou-se em Benguela a Assembleia Geral da Federação Angolana de Basquetebol e penso que é muito importante este evento ter decorrido fora de Luanda, assumindo ainda mais importância pelo facto deste conclave ser da modalidade desportiva com maior visibilidade do País.
Há muitos anos que acompanho a FAB, e há muitos mais que vou acompanhando o percurso desportivo e a trajectória do seu presidente Gustavo da Conceição.
Tenho uma declaração prévia de interesses a fazer; Conheço o Gustavo da Conceição, mas não tenho relação próxima com ele, pelo que estou muito à vontade para escrever sem encolhos de qualquer ordem.
Acompanho o Gustavo da Conceição desde a sua fase inicial no basquetebol em 1973, o seu percurso desportivo, a sua formação académica e o seu carácter, para afirmar sem qualquer hesitação que é indiscutivelmente um dos melhores quadros desportivos angolanos no activo.
Possuidor de enorme probidade intelectual o actual presidente do Comité Olímpico de Angola e da FAB junta a sua bonomia, o que o tem guindado a lugares de tomo no dirigismo desportivo internacional e naturalmente prestigiando Angola. É a continuidade de um riquíssimo trajecto desportivo como atleta, vencedor de muitas provas internacionais em que capitaneou a selecção até 1988, quando abandonou a modalidade deixando também o 1º de Agosto, clube onde foi seis vezes campeão nacional entre outras vitórias nacionais e internacionais de clubes.
Gustavo da Conceição acompanhou todos os patamares do crescimento da modalidade no País e a sua argúcia apurada, aliada a uma licenciatura superior no domínio da sociologia e gestão desportiva, consolidada com um mestrado na área da direcção desportiva acrescentam a um curriculum valioso uma actividade de dirigente com trabalho feito.
No último congresso da FAB houve críticas à presidência do Gustavo da Conceição e algumas delas pertinentes, porque se terá negligenciado nos últimos tempos algumas áreas da formação e um abandono do basquetebol nas províncias. As associações provinciais mostraram o seu desagrado de forma franca e desinibida e a ideia que transpirou para o exterior é que vão ser implementadas as recomendações saídas do congresso de forma a manter o basquetebol angolano no topo em África.
O Gustavo da Conceição aceitou todas as críticas, algumas sugestões o que é revelador do comportamento de quem nos habituou desde os seus tempos de atleta a exemplos de enorme tenacidade, lealdade, combatividade e acima de tudo uma sobriedade de carácter tantas vezes invulgar num campeão.
O basquetebol angolano tem dado ao nosso País uma visibilidade única, melhor a única que certa imprensa quer ver, e por isso há que enfatizar quem o fez elevar. Aqui há tempos teve direito a isso aqui neste espaço Vitorino Cunha, hoje Gustavo da Conceição, porque merecemos exigir que eles mereçam o nosso reconhecimento.
Fernando Pereira
18/5/2011
16 de maio de 2011
APITA O COMBOIO! / Ágora /Novo Jornal / Luanda/ 13-5-2011
“Não existem países subdesenvolvidos, existem países subgeridos” Peter Drucker (1909- 2005)
De forma desinteressada comecei a ver um documentário num canal de satélite de temas históricos. Passados uns minutos comecei a interessar-me pois era um capítulo da série “Histórias dos Comboios” dedicado à introdução do caminho-de-ferro no continente africano.
Já tinha visto alguns capítulos desta série, que sempre se situou num bom nível, mas o que constatei do que vi é que esta era curiosa. Falando de comboios em África, a série, que é uma produção francesa da Pathé, e portanto acima de qualquer suspeita, sentiu-se obrigada a falar do colonialismo europeu. E teve a honestidade suficiente de o fazer com palavras suficientemente claras. Disse que o colonialismo explorou Àfrica de duas formas consecutivas, extorquindo-lhe matérias-primas e vendendo-lhas depois sob a forma de produtos manufacturados. Que os comboios que os europeus introduziram em África tiveram por exclusivo objectivo servir esse derrame de matérias-primas e, para mais foram construídos com material de rebotalho, de tal modo que os caminhos-de-ferro africanos têm doze medidas diferentes, o que de todo impossibilita agora a sua utilização conjunta. Lembrou que os colonizadores evitaram sempre proceder à industrialização dos territórios africanos, a fim de não suportarem a sua eventual concorrência. Por isso deixaram a África, quando foram obrigados a abandoná-la, num estado de total dependência económica.
Foi assim que “História dos Comboios” caracterizou suficientemente a “acção civilizadora” dos europeus em África.
Como esta série era do início dos anos 80, fui a um velho e esfarrapado atlas de África muito minucioso ver as linhas de caminho de ferro que existiam, e de igual forma recorri a mapas recentes para saber que troços de caminho de ferro foram melhorados, alterados, prolongados ou quiçá mesmo construídos de novo. Pouco mais que os mesmos troços, pelo menos em mapas recentes.
Os comboios em África têm traçados completamente diferentes da Europa, da América do Norte e da Ásia. Todos acabam num porto e invariavelmente percorrem no sentido perpendicular ao mar, em direcção ao interior, e quase todas acabam em zonas de produção de minério. Os traçados no resto do mundo são entre cidades para transporte de passageiros e normalmente num percurso Norte-Sul ( A título de curiosidade a India tem 55.000Km de via férrea e cerca de 1.200.000 funcionários).
O actual Caminho de Ferro de Luanda foi inaugurado em 1909 com uma extensão de 479km, e nunca deixou de ser uma linha de indecisões, acabando o seu traçado em Malange, por incapacidade de financiamento para o prolongar até ao Congo.
O primeiro troço é Luanda-Funda em 1888, quando ainda se pensava fazer um caminho-de-ferro a ligar Luanda ao Congo pelo Norte, acabando depois por inflectir para leste.
As peripécias do financiamento deste empreendimento foram motivo de demissões no governo português, falência de casas bancárias, rixas no Chiado com um denominador comum: Insuficiência de verbas para construir a linha de caminho de ferro do Ambaca, depois transformado em Caminho de Ferro de Angola, para aproveitar as iniciais provavelmente.
A construção inicia-se em 1885, tendo os trabalhos sido dirigidos por João Batista Burnay entre 1889-1902.
A esta “tremideira” financeira não é alheia a posição dos Ingleses que entretanto fazem um Ultimatum a Portugal em 1890, relativamente às terras do chamado “mapa cor-de-rosa”, que incluíam a Zambia e o Zimbabwe, ao tempo baptizadas de Rodésia do Norte e Rodésia do Sul, em homenagem ao colonialista Inglês Cecil Rhodes (1853-1902), o administrador e proprietário da magestática British South Africa Company.
Os estudos para a construção do caminho de ferro de Luanda a Ambaca são iniciados por documento régio de 18 de Outubro de 1876, em que é nomeado responsável o eng. João António Bisac das Neves Ferreira.
O engenheiro Neves Ferreira projectou e fabricou-se no local uma ponte perto do ramal do Dondo de 180m que maravilhou alguns engenheiros estrangeiros da obra, que julgavam impossível no ermo que era aquela região construir e implantar no terreno uma estrutura metálica arrojada e segura para o tráfego ferroviário.
Hoje recuperada a linha vai ser certamente um motor de desenvolvimento do interior de Angola, não sendo de negligenciar a sua utilização recorrente no percurso urbano na cidade de Luanda, como um dos transportes de eleição quer nos países desenvolvidos, quer nos países em vias de desenvolvimento, terminologia que substitui “O Terceiro Mundo”, denominação que deve a sua paternidade a Alfred Sauvy.
Fernando Pereira
7/4/2011
Pra não dizer que não falei das flores! / O Interior / 12-5-2011
Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário. / Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)
Começo esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.
Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.
Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.
Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto ‘não’/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor.
Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.
Poderia estar a escrever sobre troikas e baldroikas mas preferi esforçar-me por me esquecer dos dislates constantes que todos nós vamos quase “catando” e rindo.
Talvez vos surpreenda este texto aparentemente descontextualizado, e acima de tudo as minhas desculpas a Geraldo Vandré por lhe ter “usurpado” o título de uma canção emblemática de contestação à ditadura dos generais, iniciada por Castelo Branco em 1964 no Brasil. “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.
Fernando Pereira
6 de maio de 2011
História sem Estórias! / Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 6-4-2011
Foi recentemente apresentado em Lisboa o livro de Tiago Moreira de Sá, “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola”, editado pela D.Quixote, que irá certamente dar mais um contributo a um período da história do território que tem sido ao longo dos anos motivo de especulação e opiniões divergentes entre protagonistas, observadores e politólogos, um estatuto melhorado do comum “achólogo”.
Já neste espaço em 2009 tive ocasião de comentar algumas passagens do livro “ Carlucci vs. Kissinger” (Dom Quixote,2008) em que o autor em colaboração com Bernardino Gomes, fez uma busca aos arquivos entretanto abertos pela administração americana à correspondência, memorandos e contactos que se encontravam classificados no departamento de Estado sobre os tempos da revolução portuguesa, da descolonização e consequente independência dos Países africanos de língua oficial portuguesa.
Penso que este “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola” feita pelo doutorado em História Contemporânea, Tiago Moreira de Sá, passa por ser um complemento da outra obra, circunscrita apenas ao “dossier” Angola nos anos setenta.
Repito-me quando digo que é excelente que jovens professores universitários, jornalistas ou outros eméritos investigadores de outras áreas, longe das paixões vividas ao tempo, distanciados das questiúnculas internas de Angola, fisicamente sem nunca terem conhecido o território, consigam fazer trabalhos que são indispensáveis para conhecermos realidades que vivemos e que julgávamos ter tido enquadramentos em que as nossas antigas certezas são abaladas pela actual teimosia dos factos.
O livro que li num fôlego é um aturado trabalho de pesquisa não apenas dos documentos da correspondência epistolar, trocada entre vários intervenientes e o departamento de Estado Americano, mas também o recurso a outras obras, algumas já aqui comentadas, como a depoimentos de alguns intervenientes.
O que ressalta do muito que a obra contém é que a história oficial precisa de ser desmontada, e é de certa forma lastimável que certas personalidades envolvidas no processo de descolonização de Angola continuem a perpetuar discursos completamente distorcidos das suas próprias práticas ao tempo. Cito a título de exemplo entre outros, o caso de Almeida Santos, que na sua extensa obra “Quase Memórias” evidencia uma prática que os documentos colocados neste livro permitem ter outra leitura completamente divergente.
O livro não é laudatório para ninguém ou nenhum movimento, nem era esse o objectivo, mas pode permitir que outros factos em Angola possam ser analisados de forma diversa, como por exemplo o enquadramento e as desinteligências entre cubanos e soviéticos em alguns períodos quentes da história contemporânea de Angola.
O que Mobutu pensava de Holden, de Neto, Savimbi e Chipenda. Rosa Coutinho era o “homem dos americanos”, segundo informações do cônsul americano em Luanda. O alinhamento despudorado de Kaunda com Savimbi. A insistência de Almeida Santos em Savimbi para a presidência de Angola. A simpatia de Julius Nyerere pela UNITA e as suas tentativas para afastar Neto da presidência de Angola, tentando que Samora Machel o seguisse. A falta de interesse dos EUA em Angola. As razões pelas quais Mao não queria ligar-se a nenhum movimento que tivesse apoio sul-africano. As posições pró-Unita de Melo Antunes e a sua rápida mudança de tabuleiro. As razões da quebra de apoio à FNLA e à UNITA numa determinada fase. Tudo isto o livro aborda, ainda que ocasionalmente não de uma forma muita exaustiva, provavelmente por critérios que terão a ver com a necessidade de não transformar o livro num “tijolo” sensaborão.
Surpreende-me de certa forma a conclusão que o autor retira do conjunto de documentos, livros, depoimentos e alguma ajuda de certos intervenientes directos como Heitor Almendra, homem forte da conjuntura militar portuguesa em 74/75 em Angola, e que se tem remetido a prudente silencio. Tiago Moreira de Sá afirma categoricamente que a intervenção dos americanos numa primeira fase foi causada pela envolvência dos soviéticos e cubanos, destes pela “solidariedade internacionalista” sem terem consultado a URSS, e esta intervêm porque os chineses se posicionavam para criar tentáculos em África. Os sul-africanos e os zairenses eram trocos, em todo um esquema de intervenções pouco pensadas e afirmadas e perpetuadas no tempo por razões que nada tiveram no seu âmago.
Acho que é um livro essencial para dar novos conteúdos a outras realidades que julgávamos verosímeis, e pode ser mais um instrumento para novas discussões e outros trabalhos que valorizem o estudo da Angola contemporânea, que muito começa a dever a estes jovens investigadores.
Fernando Pereira
30/4/2011
29 de abril de 2011
Os Vampiros / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 29-4-2011
“Nunca tão poucos deveram tanto a tantos”
Palavras sábias na frontaria de uma vetusta república coimbrã, o “Palácio da Loucura”, derivação de uma frase imorredoira de Winston Churchill na sua homenagem à RAF na “batalha de Inglaterra”, determinante para a vitória dos aliados na II Grande Guerra.
Neste fim-de-semana e cumprindo a tradição o “Palácio” comemora mais um “centenário” e todos os que estiveram ligados às republicas vizinhas como o “Kimbo dos Sobas” e os “Mil-i-Onários” são convidados a participar num jantar em que se cruza muita gente, num quadro de solidariedade inter-geracional e naturalmente bebida a rodos. Uma “república” em Coimbra é uma casa de estudantes, gerida por períodos determinados de tempo por cada morador, o mor, em que todas as decisões são submetidas ao colectivo, e só daí sairá a decisão final. O “centenário” é nem mais nem menos que a data anual em que se comemora a fundação da república, e chama-se assim porque segundo reza a história, o espaço de vivencia é tão intenso que viver um ano numa república equivale a viver cem anos.
Por sinal o “centenário” da desaparecida república do “Kimbo dos Sobas” foi sempre o 4 de Fevereiro, o que deixava a vizinha PIDE sempre de incomodada e de atalaia. Aliás quero aproveitar para pedir a todos os muitos que por lá passaram, que não deixem de contribuir com histórias, depoimentos e fotos para um livro que está a ser preparado de forma a documentar uma das repúblicas marcantes na luta estudantil pela liberdade em Angola num tempo em que havia muitos estudantes angolanos em Coimbra.
A tradição das repúblicas de Coimbra era a de ter a porta aberta o ano inteiro, e quem quisesse podia entrar e servir-se. Sabendo que as dificuldades dos “republicos” eram enormes, havia alguma parcimónia dos visitantes na aceitação de convites para comer, embora para dormir não havia esse problema, já que outra das regras assentava na obrigatoriedade dos quartos estarem permanentemente disponíveis. Havia contudo os “vampiros” que se aproveitavam desta regra solidária de Coimbra e entravam nas repúblicas, esvaziavam as encolhidas e racionadas despensas deixando os “republicos” em muito maus lençóis.
Consta-se que a canção de José Afonso, também um ex-republico, “Os Vampiros” foi feita para denunciar esses autênticos pilha-galinhas, que aterrorizavam as parcas despensas dos estudantes. Passou depois a ser um hino de resistência ao fascismo e ao colonialismo, e curiosamente uma das mais emblemáticas de um dos nomes maiores da canção popular e de intervenção na língua portuguesa.
Vou reproduzir aqui uma história curiosa de um insigne angolano do Huambo que veio estudar medicina para Coimbra nos anos cinquenta. O recentemente falecido Freitas de Oliveira, que em determinada altura teve uma paixoneta por uma figueirense que tinha conhecido nas ferias de Verão. Freitas de Oliveira foi cirurgião e presidente do Mambroa durante muitos anos, militante da FNLA e posteriormente médico do Porto do Lobito nos anos 80. Queria ir à Figueira da Foz e disseram-lhe que havia um taxista pago pelo casino para levar dois jogadores de Coimbra todos os dias pelas 16h. O senhor João taxista, que tinha no seu cartão como outras profissões, afinador de pianos e agente de viagens para a Argentina, disse que só o levaria se o Roque pai e o Roque filho, a dupla de jogadores autorizassem. Aguardou e quando chegaram, com a duvida metódica dos jogadores, profundamente mesclada de superstição, começou um diálogo entre os dois em que não sabendo se quebrando esta rotina iriam ter uma noite de sorte ou azar. A determinada altura levaram o nosso F.O., num ambiente algo tenso. O F.O.ia com um distúrbio intestinal e quando chegaram aos arrozais de Montemor-o-Velho, ele disse que precisava de “evacuar”. Os “Roques” ficaram siderados, completamente desmoralizados perante as perspectivas de uma noite deplorável no jogo. A realidade é que tiveram uma noite memorável com os melhores ganhos na época do Casino. Fizeram questão de lhe pagar a ceia no cabaret “Lagosta Vermelha” e levaram-no à porta da sua”república”. No dia seguinte estava o táxi à sua porta com os Roques para o levarem de novo e ele grato pela boleia na expectativa de novo opíparo jantar. Quando chegou aos arrozais, abriram a porta e deram-lhe um rolo de papel higiénico recomendando-lhe que se esforçasse. A verdade é que a sorte não se repetiu e o F.O. nunca mais teve boleia, mas também não teve que defecar sem vontade. As teias enleadas das superstições do jogo.
Retomando José Afonso, principalmente pelo génio que era, e porque nunca olvidarei o 25 de Abril de 1974 e a sua “Grandola Vila Morena”, acho que seria interessante escrever-se sobre a conturbada digressão de José Afonso, Fausto, Adriano Correia de Oliveira a Angola em 1975 com Ruy Mingas, Liceu Vieira Dias Beto Gourgel, Filipe Zau e outros, para lembrar o que foram tempos de intolerância, perseguição e ameaça física de tempos que queremos mesmo esquecer.
Era um bom trabalho e a homenagem de muitos a quem muito deu sem nada pedir em troca: Zeca!!
Fernando Pereira
23/4/2011
22 de abril de 2011
JJ / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 22-4-2011
Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz, que lidamos mal com a história, o que faz de nós uma sociedade distraída e de curta memória.
Numa incursão pela minha desorganizada biblioteca fui encontrar um livro editado pela extinta Moraes, editora do esforçado Alçada Batista, “Angola, o longo caminho da Liberdade” saído do prelo em Novembro de 1975. O autor é Amadeu José de Freitas, ao tempo jornalista da RTP, depois de um percurso sóbrio e profissionalmente honesto no jornalismo desportivo quer como relator desportivo, quer como director do “Mundo Desportivo”, um tri semanário que saía à segunda, quarta e sexta, custava 10 tostões e rivalizava com a “Bola”, o “Record” e o “Norte Desportivo”.
Este livro de Amadeu José de Freitas é uma raridade, mas para quem precisar de conhecer bem os tempos conturbados da fase anterior à independência de Angola tem aqui um excelente trabalho jornalístico, com detalhes que cruzados com afirmações posteriores permitem alterar opiniões sobre o que aconteceu de facto num tempo em que a serenidade era um achado. Amadeu José de Freitas encontrou-a para escrever fazer este trabalho de uma forma apaixonada, coerente com o rigor que punha em tudo que fazia.
Lembro-me das tardes de domingo na Luanda colonial, num tempo em que ar condicionado era uma coisa rara que praticamente só os bancos tinham, ouvir das janelas abertas num rádio de som no máximo, as vozes de Nuno Braz, onde o Herman José foi buscar inspiração para o seu imorredoiro “José Estebes”, do Artur Agostinho, Romeu Correia, Fernando Correia e Amadeu José de Freitas. Havia ao tempo em Coimbra um relator desportivo que era um verdadeiro “doente” pela Académica, e isso custou-lhe o lugar quando num qualquer jogo berrava a plenos pulmões que tinha sido “golo da Académica” e no seguimento da jogada e com o mesmo timbre:”Porra, que não entrou”. Era o Manuel Gaspar que depois passou a “relatar” procissões com linguagem futebolística, o que acabava por ser delicioso de ouvir pelo caricato do “passam três meninos vestidos de anjo”, “ao fundo a primeira Nossa Senhora” e adiante…
Falando de futebol cumpre-nos recordar um dos maiores futebolistas angolanos de sempre: Jacinto João (1944-2004). Filho de um saudoso empregado da cervejaria Portugália em Luanda, ali pertinho da Lelo, JJ começou a jogar à bola na rua nos musseques, entre casas de adobe e telhados de zinco. Estudou no Colégio dos Missionários de Luanda, e como não conseguiu representar o Colégio no campeonato de juniores de Luanda por só ter 14 anos, fundou o seu clube, o Brazaville.
Aos 16 anos já jogava no Sport Congo e Benfica, e vem para Portugal prestar provas no Benfica, onde fica seis meses e depois de rejeitado por Bela Guttman regressa a Luanda, de onde sai para o Vitória de Setúbal depois de se ter negado vir para o FC Porto, Belenenses e Guimarães. Rapidamente se torna figura maior do Vitória de Setúbal, onde encontra os seus dois companheiros do Atlético de Luanda, os irmãos José Maria e Conceição, e entre vários treinadores o angolano Fernando Vaz e José Maia Pedroto.
O Setúbal nesses anos vulgarizava equipas grandes de Portugal e da Europa e o Vitória fez nos anos 60 e 70 as suas melhores épocas de sempre, com o JJ como figura maior da equipa. Internacional dez vezes por Portugal num tempo em que a selecção pouco jogava, JJ tem hoje perpetuado no Estádio do Bonfim uma escultura que o homenageia como o maior jogador de sempre do clube.
Eu que tive o privilégio de o ter visto jogar bastantes vezes posso dizer que a bola nos seus pés era uma delícia e não raras vezes os adversários puniam-no com faltas duras porque ficavam fartos de dançar ao som do seu toque de bola.
O racismo no futebol em Portugal, como na Europa em geral era muito marcante e mesmo entre colegas de profissão. Fernando Peyroteu, de quem um dia falaremos com mais detalhe, no seu livro de “Memórias” relata a sua chegada ao Sporting em 1937: “eh pá! Já cá tínhamos um preto, agora vem outro só um pouco mais branco” e “Qualquer dia a equipa fica tão escura que só com um lampião a encontramos”. Estas piadas eram para o branco angolano, mas dirigidas a Paciência, avançado de centro negro, que provocou a indignação de um Peyroteu que detestava dichotes racistas.
Até 1974 era comum o epíteto de “colored” quando se queria falar ou escrever de um negro no desporto ou noutra área onde sobressaísse, um pouco como hoje a expressão “de cor” muito usada em Portugal, o que prova que ainda há muitos esqueletos nos armários das mentalidades.
Fernando Pereira
17-4-2011
15 de abril de 2011
Da invasão à demolição / Ágora /Novo Jornal/ Luanda / 15-4-2011
Há cinquenta anos (16 de Abril de 1961) os EUA patrocinaram um desembarque de um corpo de anticastristas na Baia dos Porcos a sul de Cuba determinados a derrubar o regime de Fidel de Castro numa operação que se pretendia cirúrgica e secreta, acabando por descambar numa dos erros repetíveis dos americanos ao longo da sua história contemporânea.
O regime cubano estava avisado para a hipótese uma invasão deste tipo e num espaço de setenta e duas horas repeliu-a e vibrou um rude golpe em ulteriores projectos para derrubar o regime socialista cubano.
Os EUA ficaram indelevelmente ligados ao fortalecimento da revolução cubana, ao seu alinhamento com a então União Soviética, e a política titubeante de Kennedy em relação a Cuba terá precipitado o seu assassinato em Dallas em 1963, atentado atribuído à máfia cubana de Miami, facto apesar de tudo nunca cabalmente demonstrado.
Nesse ano e nesse período em que a Emissora Nacional depois do hino cantado pelo coro da FNAT da “Angola é Nossa”, da “Rádio Moscovo não fala verdade” e “De Luanda fala Ferreira da Costa” procedia-se à definitiva transferência da “Casa das Malucas” para as actuais instalações na “Revolução de Outubro”.
De facto foi em 1961, com a necessidade de se instalar o Hospital Militar para apoiar as tropas portuguesas enviadas para a colónia desocupou-se o hospital psiquiátrico de Luanda, anexo da Maternidade Mariano Machado inaugurada em 1947, e hoje o pavilhão anexo ao edifício principal da maternidade “Lucrécia Paim”. Era chamada em Luanda como a “casa dos malucos”, no antigo “Hospital da Caridade” instalada ao tempo numa zona arrabalde onde muitos dos doentes deambulavam pelas ruas, a maioria deles com diagnóstico de doença do sono.
O “Hospital da Caridade” era próximo do antigo aeródromo Emílio de Carvalho e perto da estação do comboio que cruzava a cidade duas vezes por dia em ambos os sentidos no percurso Bungo-Município-Cidade Alta- Hospital e Aeroporto. O comando central dos bombeiros de Luanda ocupa as salas de embarque do aeroporto, depois de terem sido deslocados da baixa onde o quartel foi transformado no antigo teatro Avenida no fim dos anos sessenta, hoje demolido por pressão do imobiliário reinante na nossa comunidade.
Até ao dealbar dos anos 50 era habitual o tiro de canhão ao meio dia na fortaleza, um aviso sonoro do fim do período de trabalho da manhã que apesar de deixar perplexos os recém-chegados à cidade, nunca deixou de ser um dos poucos ex-líbris de uma cidade provinciana e atarracada.
Era uma cidade em que o único cinema era o pequenino Nacional, hoje espaço Verde do Chá de Caxinde onde nas paredes exteriores, nos camarins ou nos foyers se vão vendo muitas evocações às passagens de teatro clássico e de revista “importada” de Lisboa que muitas vezes devem ter encolhido o elenco de forma a caberem no pequeno palco para representar junto da sociedade reluzente da urbe.
Como nessa altura o porto da cidade era nas “Portas do Mar”, no largo onde se encontra hoje a peanha vazia do Pedro Alexandrino da Cunha toda a cidade fervilhava em volta desse local onde estavam (e estão) os correios, a alfandega, o edifício das telecomunicações, a delegação do BNU e todas os grandes armazéns, barbearias, bares, botequins, comércio geral, farmácias e hotéis como por exemplo o demolido há décadas Hotel Colonial ao lado dos Correios, onde está hoje mais um edifício tipo palito disforme que nos exige cada vez mais resistência a tanta falta de gosto espelhado.
Vários armazéns perpetuaram-se e mantêm-se apesar de terem passado a monarquia, a 1ª república, a ditadura no período colonial e o arremedo de marxismo-leninismo, o capitalismo envergonhado e o ultra-liberalismo prevalecente dos anos em que somos Nação.
Os Armazens Caiado, Carrapa, Joaquim Valente, Catonhotonho, Travassos e Jorge, Mabílio Albuquerque, Setas, Bungo, ETA, Zuid, Diogo e Companhia entre muitos outros movimentaram a cidade num espaço junto do mercado do Caponte demolido para se construir inicialmente o “português-suave” Banco de Angola e mais tarde o BCA, actual BPC, que foi o orgulho dos luandenses durante décadas.
A actividade do porto pesqueiro, até ser mudado para o actual lugar em 1969, e todo aquele labirinto de casas que havia no que é hoje ocupado pelos prédios novos em redor do MIREX e pela praça Saidy Mingas era um lugar de grande convívio e de histórias que irei tentar contar para que não se percam, num tempo em que a cidade andava ao ritmo do comboio-bébé já pouco vivo na lembrança dos luandenses.
Obrigado pela companhia nessa cidade de mais terra encarnada que alcatrão. Às histórias dela havemos de voltar.
Fernando Pereira
11/4/2011
14 de abril de 2011
OUÇAM O QUE SE DIZ NA RUA / O INTERIOR/ 13-4-2011
Ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua hão-de vir para a rua ouvir ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua quando vierem para a rua ouvir o que se disse na rua já ninguém quer saber de vós para nada ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua a porta da rua é a serventia da casa ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua farto de ouvir falar de coisas que infestam a rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua perco a paciência com muitos que andam na rua para tentarem por na rua outros por quem não tenho paciência nenhuma de os lá ver e estou morto por vê-los na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua faço anos em Maio podem dar-me uma prenda mesmo que estejam para ir para a rua ou fiquem lá porque os não puseram na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua diz-se que o Futebol Clube do Porto é a melhor equipa do campeonato e é indiscutivelmente um campeão merecido ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que o Presidente da Republica está silencioso porque talvez nem seja má ideia para não ter na rua mais um a dizer banalidades sobre como se há-de multiplicar os lucros do sistema bancário ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua numa altura que precisamos de um novo Dino Meira porque não merecemos a Amália ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que ando esbaforido de tanto dizer mal de tanta coisa e tudo permanecendo piorando ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que não tenho nada que andar a pagar juros sobre juros de uma dívida que tem sido aumentada sem que se perceba porquê ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua deixem-me ver televisão à vontade sem ouvir os tudólogos apoliptólogos politólogos achólogos e alem de tudo isso os tipos que discursam para os que falei falarem deles ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politiqueiros são flatulência da politica ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politica nada tem a ver com politiqueiros comissários e serventuários do sistema ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua PORQUE QUALQUER DIA ESTÂO TODOS NO OLHO DA RUA A OUVIREM O QUE SE DISSE NA RUA PORQUE NÂO QUISERAM OUVIR O QUE SE DIZIA NA RUA.
Este pequeno texto é um devaneio da “Guidinha” do injustamente esquecido Luis Sttau Monteiro, que ao tempo escrevia na “Mosca” do Diário de Lisboa e posteriormente no “Jornal” .
Fernando Pereira
9-4-2011
8 de abril de 2011
Prémio ao Lubito / Ágora / Novo Jornal / Luanda 8-4-2011
Fiquei naturalmente satisfeito pela atribuição do prémio na vertente de Arquitectura, do prémio da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) ao arquitecto Francisco Castro Rodrigues.
“Quando se chega a velho é que nos dão os prémios”, respondeu de forma bem-humorada quando o parabenizei pela distinção.
O arquiteto Francisco Rodrigues é aos noventa e um anos uma pessoa loquaz, irreverente, com uma memória prodigiosa e arreigado às suas convicções de homem progressista e defensor da liberdade.
Um episódio que FCH conta da visita do presidente português Craveiro Lopes ao Lobito na sua viagem a Angola em 1954 e que é em tudo de semelhante à rábula da chegada de Mussolini a Berlim no “Grande Ditador” de Charlie Chaplin, uma das cenas maiores do cinema mundial.
Entre o Tamariz e o edifício dos Correios foi criado um espaço pomposamente chamado de “Portas do Mar”, que recebeu melhoramentos de tomo para receber Craveiro Lopes. No dia aprazado para a chegada, sob um calor intenso a fina-flor da sociedade do Lobito, um rancho folclórico do roupas minhotas composto por trabalhadores negros do Cassequel, uma banda, tudo a preceito para que a chegada antes do almoço fosse uma manifestação de grande enlevo.
As horas foram passando, a incomodidade das pessoas foi progredindo e as manchas nos sovacos aumentavam de diâmetro e quiçá mesmo a deixarem no ar um odor a que não eram alheias as pituitárias mais insensíveis.
O navio presidencial vinha de Novo Redondo (Sumbe), mas os planos foram alterados entretanto e a comitiva veio por terra; Resultou daí que a comitiva deslocou-se logo para o Terminus e admito quão hilariante foi ver a correria de gente de fato a rigor, vestidos compridos, saltos dos sapatos a partirem-se o que levou a que nessa “maratona” alguns chegassem descalços, a maioria esbaforidos e quase todos num estado de desmazelo nada condizente com a “elevação” do evento.
Este prémio é também para a cidade e tem que ser partilhado com o Engenheiro Fernando Falcão, técnico que Francisco Castro Rodrigues nunca se esquece de mencionar quando a sua obra é elogiada, dizendo apenas que era impossível construir o que quer que fosse sem a colaboração do prestigiado cidadão do Lobito.
Hoje diluído no imenso amontoado de casas no monte sobranceiro à estrada entre o Lobito e a Catumbela, existe em ruínas um conjunto de casas para trabalhadores “indígenas” da Sociedade Agrícola do Cassequel, uma verdadeira montra do esforço feito pela açucareira na “promoção social dos trabalhadores”. Não há ninguém com mais de trinta anos que por ali tenha passado que não se lembre de as ver ao longe, e encontrá-las em inúmeras fotos e postais do local. Era um conjunto de 120 casas, pintadas de cor de rosa cobertas com colmo. Era uma verdadeira obra de “portugalidade”, tão ao gosto de Gilberto Freire e dos prosélitos do luso-tropicalismo. Quando para lá foram transferidos os trabalhadores, imediatamente começaram a arranjar casa de adobe junto a esse aldeamento e deixarem as casas que tão elogiadas eram, para preferirem viver nas suas casas com paredes de barro, telhado de colmo e terra vã no interior.
Foi quase um sacrilégio quando os responsáveis da açucareira viram esta situação, o que deu azo a inúmeros dichotes racistas tipo: “os pretos não sabem viver em casas decentes”, “ali anda mão da Kuribeka” , “é para verem que cidades querem quando tivessem a independência”, e por aí fora.
A realidade é que as casas eram construídas com blocos, numa exposição solar permanente, sem ventilação, com o chão cimentado, perto de pântanos e de plantações de cana do açúcar, tornavam essas bonitas habitações em verdadeiras frigideiras onde o calor e os mosquitos tornavam a sobrevivência impossível. Julgo que já terão desaparecido, porque na realidade pouco serviram mais que para tirar fotos ao longe durante décadas, tendo em conta que foram construídas no final dos anos trinta.
Este exemplo proliferou por Angola inteira em muitos lugares de norte a sul do País, com as obrigações decorrentes do “desenvolvimento social” do fim do Império colonial na sua transição maquilhada para “províncias ultramarinas”. Na verdade era recorrente colocar divãs com esteiras em habitações de construção definitiva, casas lúgubres, sem iluminação natural e permeável a um espaço de nidificação de insectos e repteis, tal a humidade e o calor que havia no interior dessas casas para “contratados”.
O Lobito, que segundo Francisco Castro Rodrigues se chama Lubito por razões que já expliquei noutra crónica era a “Catumbela das ostras”, já que era o local privilegiado para a apanha das ostras, não só utilizadas para a alimentação, como a sua concha depois de moída foi durante anos um dos bons substitutos da cal no revestimento das casas da burguesia colonial.
Um dos mais conhecidos comerciantes de ostras foi o pai do José Aguas, campeão europeu de futebol pelo Benfica em 1960.
Já que se fala de grandes jogadores do Lobito e Catumbela não esqueçamos o sportinguista Fernando Peiroteu precocemente desaparecido, Santana, companheiro de Águas na vitória europeia de Benfica e depois ostracisado por questões políticas pelo clube, irmãos Couceiro que brilharam na Académica e Yaúca, em que a sua transferência para o Benfica foi paga pelas torres de iluminação do campo do Catumbela, que eram as do estádio do Campo Grande em Lisboa antecessor do antigo Estádio da Luz, enquanto campo de jogos do Sport Lisboa e Benfica.
A Catumbela teve o primeiro campo iluminado da província de Benguela e a segunda do território à boleia da transferência do malogrado Yaúca.
Fernando Pereira
5/3/2011
1 de abril de 2011
JARDIM COLONIAL / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 1-4-2011
No domingo passado resolvi dar uma volta em Lisboa e escolhi na zona de Belém o Jardim Botânico Tropical.
Este jardim, que está num magnífico estado de conservação, já teve ao longo dos anos vários nomes. Foi uma adaptação dos jardins dos Condes da Calheta, para que fosse um dos núcleos da Exposição do Mundo Português .
Nessa exposição começou por ser o “Jardim Colonial”, uma antevisão do que seria a zona dos “Descobrimentos” no “Potugal dos Pequenitos” em Coimbra numa obra do arquiteto Cassiano Branco. Neste espaço construíram-se pavilhões onde ao tempo se faziam exposições de artesanato, colóquios, mostras de trajes e outras iniciativas que ocuparam continuadamente o espaço entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940. A maioria encontra-se encerrada, apesar de relativamente bem cuidadas, excepção para a grande estufa central, que já terá conhecido melhoras dias, apesar de guardar espécies interessantes da flora africana.
Foi depois o Jardim do Ultramar, Tropical e finalmente Botânico Tropical, dependente do Instituto de Investigação Científica Tropical e é um espaço magnífico de Lisboa, paredes meias com o Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da Republica de Portugal.
Confesso que as razões para voltar ao “Jardim Colonial” foi o facto de no Palácio dos Condes da Calheta, hoje propriedade do IICT, estar uma exposição interessantíssima chamada “Viagens e Missões Científicas nos Trópicos”, merecedora de uma visita detalhada, pois é uma viagem ao trabalho e ao estudo minucioso do que foram as missões ou as experiencias colectivas e individuais de cientistas, biólogos, geógrafos, tipógrafos, botânicos, ornitólogos, ou até vulgares diletantes no espaço colonial português.
A exposição é riquíssima não apenas no aspecto documental, mas também uma mostra muito bem organizada da multiplicidade de materiais utilizados por todas as expedições, desde as necessárias para definir fronteiras como as que assentaram nas prioridades económicas ou puramente académicas.
O mais importante a reter desta exposição é a alteração do seu contexto “ideológico”, pois deparamo-nos com a ausência dos panegíricos ao “mundo que os portugueses descobriram”, apenas uma homenagem aos valorosos homens e instituições que apenas tinha como móbil o factor científico dos seus trabalhos em circunstâncias particularmente difíceis. É uma avaliação muito subjectiva mas penso não ser alheio o facto dos autores dos módulos desta exposição serem jovens académicos despidos de alguns escolhos da mentalidade colonialista ainda perene nalguns sectores.
Entre o espólio de alguns ilustres cientistas, muitos deles apeados da toponímia luandense sem justificação plausível, e que aqui trarei em futuros artigos, achei interessante ver uma parte do espólio de José de Macedo, autor de um livro centenário sobre a política colonial denominado “Autonomia de Angola”, felizmente reeditado pelo IICT no ano passado.
José de Macedo (1876-1948) foi um republicano, maçom, pedagogo, jornalista e defensor da liberdade dos povos das colónias, num período em que o racismo e a exploração dos povos coloniais eram matriz essencial da primeira metade do século passado.
José de Macedo, fortemente influenciado pelo positivismo de Proudhon, grande companheiro de Magalhães Lima, referência maior da maçonaria portuguesa e figura de proa do Republicanismo Português, foi preso várias vezes pela sua luta contra a Monarquia, muitas vezes através da contundência dos seus escritos na “Lucta”.
Perseguido, embarca para Angola onde para além da sua actividade profissional de professor assume a direcção do jornal “A Defeza de Angola” (1903, segundo Julio Castro Lopo), e também aí é preso por ter gritado “Viva a Republica” num jantar no Hotel Areias onde fazia uma sessão com lojistas e funcionários em Angola. Fundou em Luanda o “Colégio Progresso”, fez vários percursos pelo interior do território donde resultaram livros importantíssimos para o estudo da sociedade angolana do virar do século e de enorme importância política e de apoio à etnologia e antropologia. Lutou pelo desenvolvimento e conhecimento da sociedade angolano e participou nas lutas cívicas anti-esclavagistas e favoráveis à alteração do controlo dos contratos de serviçais, que lhe granjearam um enorme respeito mas também muitos inimigos. Foi colaborador do Jornal de Benguela entre 1912 e 1919.
Deixou um grande espólio que a família legou ao IICT, e talvez tenha chegado a hora de começarmos a conhecer em pormenor um homem que foi sendo sucessivamente esquecido na voragem das transformações políticas.
Renunciou a cargos e honrarias e o seu mote de vida pode ficar neste parágrafo retirado do seu livro “Etnografia e Economia”: “Luta um velho que quer dar exemplo aos novos, de constância no estudo e no sacrifício de seu nome humilde que vem lembrar aos jovens que nunca é tarde para exercer uma função e que até ao túmulo deve aparecer perante os outros a expor o fruto do seu trabalho e das suas vigílias”.
Fernando Pereira
30/3/2011
25 de março de 2011
Reviver o passado em Luanda/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda / 25-3-2011
“Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía...
Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica na esplanada Estrela Brilhante, com o chão cheio de tremoços e de detritos. Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmolas, outros oferecem-me cinzeiros de madeira, objectos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. Uns sujeitos sebentos, de pasta, trocam escudos por angolares, com 12% a mais. Mas é tudo caro, tórrido e feio.
...
Ontem um amigo daquele outro médico afinal conhecido, levou-nos a visitar a ilha, uma espécie de promontório com praias de um e outro lado, casas, um clube de golfe. Uma espécie de Rodésia vista por um mestre-de-obras de Tomar.
...
Luanda está longe de ser uma cidade vivível: toda ela é uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano, e os brancos daqui têm todo o mesmo indefinível aspecto dos vendedores de automóveis daí, de patilhas sem classificação social, camisas transparentes, e mulheres tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas. Os musseques são uma espécie de bairro da Boavista ampliado, em que os moradores fossem todos jogadores do Benfica. Só a terra é que é vermelha, como a areia dos estádios, e as noites cheias de murmúrios de insectos e de folhas, mergulhadas num mormanço de suor.
O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a por os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto porque, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos,porque a maneira de vestir destes tipos é absolutamente execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. Não há em Luanda absolutamente nada que preste: as poucas estátuas que tem, ultrapassam em mau gosto tudo o que se possa suportar, os edifícios são todos no género daquele em que mora o Souto, e que para mim representa o paradigma da fealdade. É uma excrecência absurda e estúpida. E estes tipos aqui acham Luanda um paraíso, uma espécie de Rodésia em melhor. Não nos agradecem o nosso sacrifício por eles, e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência desdenhosa de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver numa cidade sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
Esta Ágora foi fácil de fazer, foi só copiar excertos do livro do português António de Lobo Antunes, “D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto”e é um conjunto de aerogramas publicados pelas filhas do escritor, e que fazem parte da correspondência trocada com Maria José Lobo Antunes no dealbar da década de 70.
António Lobo Antunes foi médico militar na tropa colonial entre 1971 e 1973, e a fase inicial da sua extensa obra de romancista é um libelo extraordinário contra a política colonial portuguesa.
Em jeito de balanço final, já que comecei a ser a partir de 15 de Março de 2011 mais um de “etnia africana”(???), não posso deixar passar incólume as ofensivas palavras de Cavaco Silva no 15 de Março de 1961, revelador que não são as datas que mudam mentalidades e convenhamos exige-se mais a quem escreveu o discurso apologético da “guerra do Ultramar” que o Presidente da Republica de Portugal leu e mal.
Fernando Pereira
22-3-2011
18 de março de 2011
LEITURAS / Ágora / Novo Jornal / Luanda / 18-3-2011
Na semana passada na minha tertúlia, onde naturalmente também se faz um pouco de má-língua, tivemos uma discussão muito interessante sobre a obra literária de Henrique Galvão.
A realidade é que ao longo da discussão que revelou um ou outro conhecedor da obra completa do capitão Galvão, fiquei interessado em melhorar os meus conhecimentos de uma personagem ostracizada, mas que na realidade deixou um verdadeiro manancial de informações sobre Angola, que talvez merecesse estudos detalhados.
Henrique Galvão era um proto colonialista, acérrimo defensor do império colonial português que fez o seu debute político no Integralismo Lusitano de Rolão Preto, António Sardinha e Pequito Rebelo. Este grupo numa visão muito simplista da história política a ala mais à direita do corporativismo salazarista em que a maioria dos seus activistas foi perseguida, presa ou mandada para o degredo (Rolão Preto esteve em Angola nessa condição). A sua evolução no percurso salazarista levou-o a Comissário da Exposição Colonial no Porto em 1934, depois director da então Emissora Nacional, posteriormente governador da Huíla, incompatibilizando-se com Salazar no decurso da sua actividade parlamentar enquanto deputado por Angola em que verberou a política racial e desumana que os trabalhadores angolanos eram vítimas das autoridades administrativas e empresas na então colónia.
Na sequência de um relatório muito cáustico em relação à promiscuidade entre os poderes central e local, os angariadores ou negreiros e os comerciantes e grandes companhias coloniais foi detido, expulso do exército e preso com o argumento de conspiração. Consegue a fuga em 1959 de um sétimo andar do Hospital de Santa Maria em Lisboa, episódio rocambolesco de um homem que driblou sempre Salazar e seus sequazes.
Influenciado por África, escreveu textos brilhantes sobre a fauna, a flora e a caça em Angola, autenticas pérolas literárias e ilustradas de uma pessoa de enorme ligação a um território imensamente rico e diversificado na sua natureza ainda imaculada. É uma pena que essa obra se encontre esgotadíssima, e quando aparece algum livro num alfarrabista é a preços perfeitamente proibitivos.
A sua vasta obra literária, donde poderemos excluir os livros marcadamente políticos, encontra também peças de teatro, romances ou descrições das suas múltiplas viagens à Angola profunda e a sua grande sensibilidade para apreender a realidade de povos que a cultura citadina vai esquecendo, nalguns casos de forma aviltante. O “Kurika” tem sido frequentemente reeditado e encontra-se com facilidade, o que não acontece com o “Pele”, “Impala”, “Vagô”, “Outras Terras, Outras gentes” (Este sobre Moçambique) e outros, o que não permite ficar com a dimensão de um escritor que descreve a África com odores, matizes e sons em cada folha que vamos lendo.
A propósito de Galvão vem-me à memória o Cunha alfarrabista que tinha o seu estaminé ao lado do “Frimatic” de um tal Ferrobilha Guedes. O Cunha era uma figura estranha para nós miúdos, tinha uma loja esquisita e ele próprio não nos gramava porque passávamos uma parte do muito tempo livre que tínhamos a chatear as pessoas e ele punha-se a jeito para a nossa irreverência pueril, talvez pelo seu físico, talvez por parecer taciturno, ou por qualquer outro motivo que me deslembro.
Conheci-o mal pois as únicas vezes que entrei na sua desarrumada loja, como deve ser qualquer alfarrabista aos olhos dos visitantes, foi com um tio meu com quem ele conversava tempos que pareciam uma eternidade, já que eu estava ali apenas para ir numa missão de soberania ao Baleizão comer uma cassata.
Mais tarde senti a falta do que foi praticamente o único alfarrabista de Luanda, que terá morrido sozinho em 1967, a que a “Notícia” terá dedicado umas breves linhas. Os seus livros terão sido leiloados ou vendido ao desbarato porque o “Rei dos Frigoríficos” que tinha a oficina na antiga fábrica de sabão no sopé da fortaleza queria frigorificar a cidade e precisava do espaço do Cunha. Resta-nos homenagear o alfarrabista, o primeiro de todos a amar verdadeiramente o pó dos livros.
Como diria Nietzche: “ Não podemos regressar ao antigo, já queimámos os nossos navios; só nos resta ser valentes, aconteça o que acontecer”
Fernando Pereira
15-3-2011
12 de março de 2011
Berrida em câmara lenta! / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-3-2011
No dealbar dos anos setenta o nosso grupo do bairro da Maianga ia invariavelmente, todas as noites de sábado e tardes de domingo, assistir aos jogos nas barrocas que havia em frente ao Palácio da Cidade Alta.
Era o nosso lugar de eleição, partilhado por centenas de pessoas que só divisávamos no escuro pela beata acesa ou em sonoridades variadas quando havia golo ou falhanço. Essa clandestina bancada era para um conjunto de “capitães da areia” um verdadeiro lugar de culto para toda a sorte de patifarias com que nos divertíamos nesses tempos em que nem se pensava que poderia vir a haver televisão no País e da internet nem se falava. Queríamos lá saber do Gomes,o meu amigo Manecas , Alves, Garrido, Benje, Carmona, Justino ou outros. Objectivamente o que queríamos era ver se conseguíamos a proeza de promover um brilhante basal de pancadaria entre os assistentes. A verdade é que à custa de atirar alguns torrões de terra vermelha e umas maçãs da Índia gamadas nuns quintais que havia no caminho, conseguimos assistir a deliciosas discussões, que não raras vezes acabavam em bulha e a solicitar a presença da Polícia Militar Colonial para apaziguar os ânimos. O nosso grupo saiu sempre incólume destas rixas pois aparentávamos ser meninos educados.
Convém dizer que quando vinham clubes portugueses jogar aos Coqueiros, e os preços dos bilhetes eram proibitivos para ver jogos de sonâmbulos, já que normalmente eram no início da preparação do campeonato de Portugal, todos os clandestinos eram forçados a expedientes bem mais complicados, porque as autoridades coloniais enxameavam de polícias toda essa zona, não permitindo qualquer veleidade aos utilizadores habituais do terceiro anel dos Coqueiros, onde tinha lugar cativo.
Uma das vezes que isso aconteceu manifestamo-nos contra o aparato policial que as forças coloniais nos impuseram nas barrocas, para nos impedir de ver um jogo entre as duas equipas de proa do regime, o Sporting de Portugal e o Benfica de Lisboa, manifestação que só deu resultado para conseguirmos ver a segunda parte quando o poderoso contingente de seis polícias e dois cães algo adormecidos se retiraram, depois de ordem superior. Na altura manifestávamo-nos por motivos algo pueris, mas também mais tarde ousei manifestar-me em circunstâncias que me deram gozo por motivos mais sérios, mesmo quando levava uns pequenos “moscardos”, porque na realidade nunca fui muito ousado para me chegar muito próximo das forças de repressão e tento afastar-me o suficiente para que elas não se chegassem a mim.
Há uns tempos estava numa casa que tinha um parque de estacionamento para uma biblioteca pública que funcionava das 9 às 18h; fora desse período estacionava o carro já que não havia problema algum. Os vizinhos do prédio faziam o mesmo, e durante uns tempos não houve problema algum pois para além de sermos conscienciosos, e com medo da multa, todas as manhãs tirávamos o carro antes das nove horas.
Aquilo tinha um portão de correr que estava sempre aberto, e o guarda avisou-nos várias vezes que não toleraria durante muito mais tempo a presença dos nossos carros, sem que nos desse uma explicação no mínimo aceitável para que não os colocássemos lá. Um dia consumou a ameaça e com tiques de títere resolveu fechar o portão perante a estupefacção de todos. Durante uns tempos lá vinha o guarda fechar o portão a rir-se para os poucos que sem querer olhavam para ele, até que houve um que se lembrou de comprar uma lata de tinta dos grafitteiros e escrever no portão branco imaculado: “O guarda-nocturno é corno”!
No dia seguinte quando foi abrir o portão viu toda a gente a rir e partilhou o riso, mas quando se deparou com a realidade ficou possesso e pior ficou porque não podia fechar o portão senão apareceriam em letras garrafais a frase assassina.
Nunca mais o portão foi fechado, apesar de o terem pintado de novo!
Em jeito final recordo que no último dia do ano de 1972, na capela do Rato, em Lisboa, um grupo de católicos fez uma vigília contra a guerra colonial e a repressão que então se fez sentir sobre os clérigos presentes e os cidadãos ligados às juventudes católicas e ao GRAAL, serviu na perfeição os desígnios para aumentar a visibilidade interna e externa da falta de liberdade e da repressão em Portugal e nas colónias.
Fernando Pereira
7/03/2011
10 de março de 2011
Tu podes nunca querer saber da política, mas, lembra-te, a política quer sempre saber de ti! / O Interior / 10-3-2011
O Partido Comunista Português comemorou no passado dia seis de Março noventa anos de história, motivo de regozijo para todos os democratas e gente de esquerda, mesmo os que como eu não partilham alguma da sua prática política.
O PCP confunde-se com a luta pela liberdade, pela resistência à ditadura e pela defesa na melhoria das condições de vida do povo português e isso é inegável e é justo reconhecê-lo.
Conhecendo o percurso histórico do PCP, analisando o que foi o discurso que permitiu os arremedos de ditadura na 1ª República e simultaneamente os fundamentos em que assentou a ditadura do Estado Novo, fico naturalmente apreensivo quando se generaliza que a política é um embuste e a maioria dos políticos uns trapaceiros e gente de carácter duvidoso.
A liberdade e a democracia servem para ser melhoradas, e só é possível com diversidade na discussão política em torno de alternativas que possibilitem a optimização da realidade económica do País e naturalmente feita com as pessoas enquanto agentes políticos responsáveis. Dizer pura e simplesmente que a política é uma treta e que quem está na política é para se encher, é um absurdo que aceite na sociedade de forma generalizada vai permitir o aparecimento e a aceitação de propostas messiânicas de contornos muito difusos, assentes em pessoas que dizem que nada tem a ver com a política e estão aqui com o objectivo apenas de servir, assim ao tipo de professores que mais tempo estiveram no poder, sem lá quererem ter estado e que nunca quiseram ser políticos (vide um exemplo mais remoto, Salazar e recentemente Cavaco Silva)
Agustina Bessa Luis, a mais talentosa romancista portuguesa viva, diz que “Há nos portugueses uma sinceridade para com o imediato que desconcerta o panorama que transcende o imediato”, e de certa forma isso explica uma parte do que vamos assistindo no quotidiano social em acentuada degradação de Portugal, onde de há uns tempos a esta parte os banqueiros são as figuras de maior notoriedade na relação mediatizada com o poder, mau grado os exemplos dos casos BPP e BPN, e os outros que hão-de vir.
O problema é que neste contexto em que se vive com a palavra “mercado” em contínuo no léxico dos políticos, politólogos, achólogos, comentólogos e por aí fora vamos assistindo ao continuado degradar dos actuais políticos que dão alguma razão a Tennesse Williams, na “Ultima Primavera” que diz “O que é talento senão a habilidade para conseguir alguma coisa”, e essa coisa é a perpetuação ou alcançar o poder a todo o custo.
Posso parecer elitista, mas de facto os dirigentes do Estado degradam a sua imagem estando sempre a aparecer na comunicação social e a maioria das vezes a dizerem trivialidades ou incoerências em relação a discursos anteriores; é sempre melhor ser-se “desejado que tolerado”.
Recentemente o PM José Sócrates esteve na Guarda pela terceira vez para visitar as obras do hospital, tendo estado também pela segunda vez em meio ano em pleno túnel do Marão. Acho que o primeiro-ministro não deve andar a ver obras, isso é para os inspectores, deve resguardar-se para as inaugurar com toda a pompa e circunstância, porque este tipo de equipamentos são imprescindíveis para o bem-estar das populações e aí o PM sentirá a alegria do povo; aquele cenário de uma parede com tijolos onde José Sócrates falou aos jornalistas acabou por ser o corolário infeliz de um fim-de-semana que nada trouxe em abono de eventuais ganhos políticos do primeiro-ministro.
Nestas visitas de vez em quando os políticos teem que perguntar alguma coisa, porque faz parte do protocolo e ao cicerone que normalmente gosta de falar de tudo, mesmo que a maior parte das coisas não interessem rigorosamente a ninguém, e pouco mais conseguem senão dar uma tremenda seca a quem está ali pouco mais que para ser visto e filmado.
O eternizado putativo rei de Portugal faz uma visita a um hospital na região centro e pergunta a um médico que está de serviço no banco em pediatria: “Há aqui muito doente de baixa no seu serviço?”; pediatria S.M. é um serviço para crianças, que não teem direito a baixa! Com reis destes imaginem a qualidade do baralho!
Fernando Pereira
6-3-2011
4 de março de 2011
Salteados/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda / 4-3-2011
É quase um ritual assistir à festa de entrega dos Óscares, cerimónia já demasiado rotineira, com encenação e apresentação ao jeito do que os espectadores da TV e da imprensa exigem ter para comprar e com alguns protagonistas interessantes, vestidos a preceito como convém ao espectáculo mediático da grande indústria do cinema.
Os resultados foram os previsíveis e nem a mim me decepcionaram no quadro das minhas expectativas, já que tinha visto a maior parte dos filmes a concurso.
A única situação dissonante, pouco habitual nestes eventos acabou por ser a intervenção do laureado Charles Ferguson, que optou por começar o seu discurso dizendo: «Perdoem-me, mas eu preciso começar dizendo que, três anos após a horrível crise financeira causada por uma grande fraude, ainda nenhum executivo foi para a cadeia. E isso está errado!». O Óscar para melhor documentário foi atribuído a "Inside job", de Charles Ferguson e Audrey Marrs, um trabalho que pretende ser um retrato do lamaçal, da podridão, da pulhice e dos crimes que estão na origem da “crise financeira” que ainda atravessamos.
Pró ano em princípio há mais.
Vi neste jornal que um grupo de artistas portugueses, muito ligados à “revista” viriam provavelmente a Angola dar um espectáculo. Não questiono as potencialidades artísticas da Marina Mota, nem de outros que conheço no seu elenco. Acho-a talentosa, com muita força em palco, mas sinceramente acho que é um tipo de teatro que me cheira ao revivalismo dos tempos do colonial, dos espectáculos para os soldados, promovidos pela Supico e patrocinados pelo governo português de forma a manter viva a chama da portugalidade.
Acho que a vida cultural da nossa cidade merece bem mais que “teatro de revista”, fenómeno urbano lisboeta dos fins do século XIX, importado de França e adaptada à brejeirice algo rasteira que o português ocasionalmente escolhe para fazer humor e sátira.
Em 1971 salvo erro, vi pela última vez um espectáculo de “revista” no recentemente demolido Teatro Avenida, com uma companhia onde andava o Ribeirinho, a Mariema, o Henrique Viana, entre vários e uma talentosa actriz de teatro que se despedia do palco para ir viver com o marido em Calomboloca, a Lia Gama.
Lia cedo se cansou de mato, da guerra, já que o marido era militar, e da pasmaceira cultural da Luanda colonial, tendo ao fim de dois anos bazado para Portugal onde retomou com grande êxito o teatro, tendo sido uma das melhores intérpretes de Brecht que vi até hoje em palco. Ainda hoje é das mais conceituadas artistas portuguesas.
A primeira companhia de teatro profissional de Angola, a CTA, com dedinho do empresário Vasco Morgado, resolveu trazer Rodolfo Neves, recentemente falecido, Lily Neves, que fazia voz de falsete nos Parodiantes de Lisboa, e mais uns recrutados localmente como Maria Dinah, Carlos Quintas, Vera Mónica e outros que me deslembro resolveram montar um teatro de revista permanente, e a julgar pelos textos eternamente deprimente, mas que a sociedade colonial a quem o falecido Horácio Roque vendia cabeleiras delirava, e fazia de uma ida à revista uma actividade do tipo social de uma ida ao Lincoln Center em New York ou ao Scala de Milão.
Poupem-nos a estes dislates e apoiem o trabalho das companhias locais de teatro que existem em Angola, com gente muito séria, que há muito querem fazer com mérito o que outros tentam fazer com saloiice, no critério serôdio de tentar reavivar os valores doantigamente.
Por este andar qualquer dia temos a reabertura das casas de fado, onde sempre me impressionou ver uma cantora com um xaile preto de lã nos ombros, com as temperaturas da Luanda que tem meses de tal canícula que o cidadão só se lembra de duas estações: a das chuvas e a do Bungo!
Quando há meses o “Elinga Teatro” esteve em risco de ver o seu local de ensaios demolido, não houve apoio de nenhum destes “iluminados”. Os mesmos que querem trazer a Luanda um modelo de teatro que está decadente em Lisboa, já que a expressão revisteira é nula na maior parte de Portugal e só alguma réstia de indefectíveis nostálgicos vai mantendo uma única sala em Lisboa, a Maria Vitória, num Parque Mayer, que nos anos cinquenta era chamada a “Broadway portuguesa”, naquela megalomania pacóvia, que alguns angolanos desconseguem de se libertar.
Querem uma ideia, porque não fazem touradas, agora que são proibidas na Catalunha, e pelo caminho proibidas em Espanha. Acho que ia haver muito aficionado a caminho de Luanda, dando corpinho às declarações algo destemperadas de responsáveis governamentais na recente Bolsa de Turismo de Lisboa.
Esta fica para outro dia, e por ora só peço que se apoie o teatro angolano, e se deixem de folcolorismos pueris.
Fernando Pereira
1-3-2011
27 de fevereiro de 2011
As redes não servem só para pescar!/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda / 26-2-2011
Para quê conquistar mercados para os produtos
que os operários fabricam?
Os operários
ficariam com eles de bom grado.
(Bertold Brecht in “Cartilha de Guerra alemã”)
Bertold Brecht apesar de ser nosso contemporâneo, nunca ousaria pensar que o mundo iria mudar por causa de uma coisa que haveria de surgir pouco mais de cinquenta anos da sua morte, as “redes sociais”, senão nunca surgiria este poema.
Admito que o Facebook e o Twitter acabaram por dar alguma dose de satisfação a Lenine e a Trotsky, principalmente a este ultimo sobre alguma similitude com a “revolução permanente”.
“Ortega Y Gasset” diria provavelmente hoje nós somos nós, as circunstancias e as redes sociais ou como escreveria Agustina Bessa Luis: tudo se cria, tudo se transforma, tudo se recria, tudo se estropia, tudo está em rede!
Eu não sou um adepto confesso das redes sociais, embora participe como milhões de cidadãos, empresas, instituições, clubes, associações, etc. no quotidiano do Facebook e Twitter, onde cada vez mais vou perdendo algum tempo e ganhando alguns conhecimentos de pessoas interessantes, que eu nem sabia que existiam (elas também não sabiam que eu existia!) e temas em discussão que abriram novos mundos ao mundo no domínio do saber e das ideias.
Percebo que as redes sociais para certas pessoas funciona quase como uma catarse, pois acaba por ser o único local onde as pessoas são elogiadas, quer pelas suas frases, pela banalidade de uma citação de algum idiota, por uma música que anda não se ouvia há anos, pelas suas fotos de petiz ou pelas fotos onde a família aparece bela e radiante, como se estivessem a fazer algum reclame à Colgate ou à Kolinos.
O Facebook, que tem extraordinárias virtualidades, é hoje um complemento de muita coisa que muitos nunca ousaram fazer, e isso tem transformado paradigmas de vivencias que exigem uma atenção maior para este fenómeno que há muito ultrapassou o emergente.
As alterações sociais que se tem vindo a verificar um pouco por todo o lado, e Trotsky vai-se rindo na sua cara angulosa com os seu óculos redondinhos, mostram qual a importância da internet e acima de tudo das redes sociais na mobilização para o engajamento em causas e transportá-las para a luta por novas afirmações ideológicas.
Independentemente de milhões de pessoas terem começado a construir quintas, cafés e outros negócios sem se levantarem da cadeira, a realidade é que este fenómeno mereceria estudos detalhados, pois o acesso à internet generalizou-se e com velocidades ou tecnologia diferente e o jovem de Ouagadougu , Akra, Tripoli, Hong Kong, New Jersey, Luanda, Paris, tem acesso a toda a informação, e quando a cortam por necessidade de limitar o acesso ao saber, as pessoas reagem com indignação e agrupadas podem ser casos sérios para os poderes, como se está a provar quotidianamente nos tempos que passamos.
Não vem muito longe os tempos em que escutávamos o serviço da BBC para África, a DW, a Voz da América para sabermos coisas que TPAs, RNAs e outros órgãos de informação não davam por “avaliações meramente de opção informativa”.
O que se está a passar no mundo árabe, em que as ditaduras oligárquicas, as timocracias e as monarquias despóticas prevalecem sentadas na impunidade que a gestão do petróleo lhes permite, com a subserviência cínica dos países industrializados, é um fenómeno interessante mas de contornos ainda pouco claros, porque o entusiasmo inicial nestas revoluções leva muitas vezes ao poder novas e piores formas de governação e ideologicamente mais radicais que a situação que foi existindo. Vamos ver o que vai dar tudo isto, porque a verdade é que para pior já basta assim!
Para não dizerem que só falo de política, vou dar uma volta ao universo do Facebook, e a realidade é como diria Fernando Pessoa. “Primeiro estranha-se depois entranha-se”frase que ganhou o anuncio para a Coca-cola em Portugal, que só conseguiu entrar no hábito dos portugueses depois do 25 de Abril de 1974.
Nunca tantos cultivaram tanto através de quintas, nem milhões imaginaram que um dia iriam ser proprietários de um café ou outros jogos bizarros que só faz aumentar a proeminência ventral e a celulite nas pernas, e convenhamos pouco se aprende para o numero de horas que as pessoas passam em frente ao PC em casa ou no serviço, sendo um dos factores de absentismo já considerável em determinados países que contabilizam isso, algo que apesar de tudo ainda não acontece em Angola.
Pedem-me amizade, e aqui de facto começa a minhas justificadas reservas, porque “Amigo é coisa para se guardar, No lado esquerdo do peito”, como diz a canção de Milton Nascimento, e não para ser amigo de alguns cromos que não conheço de lado algum e que me pedem amizade. Lá vou aceitando, porque o critério na internet também não deve ser tão limitativo, mas de facto começo a sentir que apesar das múltiplas vantagens das redes sociais há demasiados absurdos, e cada vez me apetece menos partilhar alguma da minha privacidade, e também algumas ideias com gente que mostra fotos de há trinta anos, ou um quarto da cara, ou exacerba-se em tiques de narcisismo, que nalguns casos talvez sejam patológicos.
A sorte disto tudo é que a malta mais nova já utiliza isto para coisas com mais interesse, e a esperança é que neste mundo a informação vai ser a primeira grande conquista ao nível global, e a convicção que tenho é que a geração até aos trinta vai ser seguramente melhor que a nossa!
Fernando Pereira
22/2/2011
18 de fevereiro de 2011
Amiúde não é pedofilia/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 18-2-2011
Amiudadas vezes tenho muitas divergências com o Carlos Pacheco, mas acompanho com interesse a sua colaboração regular em jornais, revistas ou artigos avulsos publicados na blogosfera.
Reconheço mérito a Carlos Pacheco, e se eventualmente algum dia conseguir despir o seu anti-MPLA ao nível do obsessivo, penso que estamos perante um valoroso historiador de uma história contemporânea de Angola que precisa de muitos autores para explicar poucos actores e cenários políticos, económicos e ideológicos tão diversificados.
O seu último livro, já saído no finar de 2010, “Angola, um gigante com pés de barro”, e que só agora tive oportunidade de ler, é uma desilusão principalmente para quem lê o “Publico” diariamente como é o caso desde o número um, aguentando mesmo alguns dislates de alguma orientação jornalística em determinados momentos. O livro, editado pela Nova Vega, do Assírio Bacelar, fundador da Assírio e Alvim e proprietário da saudosa “Compendium”, a primeira editora dedicada inteiramente à educação física e desporto na segunda metade dos anos 70 em Portugal, que muito me valorizou.
Correndo o risco de me repetir tenho a convicção que o Carlos Pacheco tem uma verve criativa, sincera e a sua abordagem da realidade angolana não tem cinismo nem procura agradar a clientelas. Parece-me inseguro nalgumas convicções, mas isso não invalida que lhe demos o mérito que alguns teimam em tentar tirar-lhe. O livro também não merece os hossanas que em Luanda certos sectores lhe fazem nalguns casos à saciedade.
Talvez nem tenha nada a ver com o assunto mas como a vida por vezes é chata, vem-me à lembrança uma anedota de Woody Allen, num daqueles livros do antigamente, editados pela Bertrand, “Para acabar de vez com a cultura”. «Duas senhoras estão num restaurante, uma diz “ A comida aqui é péssima”, e vai a outra: “pois e ainda por cima as doses são pequenas”». Uma frase deliciosa da sua lavra: “Não sei se há vida depois da morte, mas sei uma coisa: Há morte depois da vida”
Esta semana comemoraram-se os cinquenta anos da Renault 4, mostrada ao mundo pela primeira vez no Salão Automóvel de Paris em 1961, muito antes de lá ter sido rodado”Trafic”, penúltimo filme de Jacques Tati (1907-1982), incontornável figura do cinema de humor francês do pós-guerra.
A R4 começou a ser montada em Angola no dealbar da década de setenta em Viana, num acordo com o representante Alfredo F. Matos, que tinha o stand e oficinas na Av. Rainha Ginga. Com a independência do País e o confisco da firma a Renault mandou alguns dos técnicos da empresa a estagiar na Guarda, Portugal. A verdade é que essa linha de montagem em Viana contribuiu com algumas das 8.135.424 que foram montadas no mundo, que são um ícone dos anos sessenta e setenta, e ainda hoje automóveis confiáveis.
Eu fui beneficiado com uma, numa daquelas distribuições habituais, que entretanto se começaram a tornar demasiado inabituais, e o que posso dizer é que nunca me deixou apeado em atalhos, veredas, lamaçais, zonas de ocupação da UNITA, poeirais, buracos urbanos ou alcatrão doce.
Na Secretaria de Estado dos Desportos houve uma distribuição de viaturas, mas como era responsável e dirigente (confesso que nunca percebi se alguém podia só ser uma coisa, porque as duas era responsabilidade a mais para certa gente!) já tinha um LADA, que volta e meia me deixava apeado apesar de não partilhar o anti-sovietismo primário de muitos camaradas meus. Tinha o LADA, que me dava estatuto e deixava-me apeado, e um colega meu neófito no organismo teve direito a uma R4 nova.
Como tinha um perfil mais adaptado a dirigente, propôs-me a troca e eu prontamente acedi sabendo antecipadamente que iria descer de estatuto, mas iria ficar muito menos vezes apeado.
Passados uns tempos numa reunião de um conselho consultivo restrito do ministério, o tema das insuficiências de transportes voltou à mesa, e o meu colega diz que” precisava de um carro porque tinha ficado com um que o camarada Fernando Pereira tinha já estragado”; Eu, sentindo-me despeitado informei que “ o camarada IK tinha querido um carro de dirigente e teve-o, nem que fosse para o empurrar!”; Burburinho na sala e o Rui Mingas teve que pacientemente pedir alguma contenção, e lá satisfizeram o dirigente pelos vistos não responsável no caso com uma R4 onde não brilhava tanto, mas sempre era mais confiável.
Uma boa companheira a Renault 4, que boas companhias transportou e muitas mais outras gostaria de ter transportado.
Como foi semana de dia de namorados, S. V. (Valentim ou Viagra) há uma frase lapidar que gostava de deixar a fechar o texto: “Deitar cedo e tarde erguer boa companhia há-de ter”!
Fernando Pereira
15/2/2011
11 de fevereiro de 2011
É um suponhamos / Ágora/ Novo Jornal / Luanda / 11-2-2011
Richard Nixon (1913-1994) é um dos presidentes que a maior parte dos cidadãos americanos se envergonham, ao ponto de nem sequer gostarem que se fale dele.
Foi o único presidente da Republica dos EUA que na sua história contemporânea teve que resignar por ter patrocinado um tremendo caso de corrupção num processo eleitoral (Watergate) e só perante as evidencias ter sido obrigado a reconhecer a sua implicação e a sua repetida mentira.
Fui recuperar o Nixon, porque realmente há situações bizarras na nossa terra e o que é quase anedótico é o facto de elas me surpreenderem em locais onde nunca pensei ser possível encontra-las. No site da JMPLA a frase para reflexão: “Um homem não está acabado quando ele é derrotado, mas quando desiste” é precisamente de Nixon, o que convenhamos devia ser evitado porque realmente foi um presidente que ostensivamente adulterou os valores fundamentais que construíram os Estados Unidos como referencia para as democracias e liberdade. As frases boas ditas por gente má valem exactamente por quem as proferiu.
Já que se falou em juventude recordo que esta semana o James Dean faria oitenta anos se fosse vivo. Foi um ícone de rebeldia e inconformismo da juventude estadunidense na década de 50. “ A Fúria de Viver”, a “Leste do Paraíso” e o “Gigante” marcam a sua fugaz passagem pelo cinema onde conquistou um lugar e um mito que tem tido um espaço de perenidade que permanece até hoje. Dean representou a América que lutava contra a hipocrisia das instituições e dos costumes, hierarquizadas em padrões em que o dinheiro era a mola real de ascensão de pessoas ao topo, e que quando por lá chegavam se revelavam no que de mais torpe era possível existir.
Ultrapassada a fase de ouro do regresso dos heróis da segunda guerra, a filmografia de Dean acaba por assumir a revolta de um jovem contra os mercados, o maccartismo emergente, a eternizada e ambígua guerra da Coreia, as primeiras manifestações pelos direitos cívicos dos negros nos estados do Sul e acima de tudo pela ruptura que a juventude ia aceitando na musica, no vestir, na sexualidade, um corte com tudo que a América conservadora não aceitava.
Se a morte de Dean em 1955 permitiu durante alguns instantes um alívio aos conservadores, logo isso foi ultrapassado quando rapidamente foi adoptado como o ídolo maior da América ainda hoje.
Há cerca de quinze dias desloquei-me a Madrid à FITUR, uma das maiores feiras de turismo do Mundo, um ritual meu há muitos anos.
Naturalmente que vi com atenção o pavilhão de Angola, promovido pelo INFOTUR e o que vou constatando é que passam os anos e a realidade mostra-nos um pavilhão pouco apelativo, com demasiada gente no interior e muito pouca coisa para oferecer, melhor para dar um motivo forte a agentes turísticos para colocarem Angola nas suas ofertas e a turistas individuais que se motivem para vir ao nosso País.
Mais que levar meia dúzia de panfletos, umas esculturas e quadros iguais ao que os malianos e senegaleses vendem em todas as praças e praias europeias a preços ridículos, uns panos feitos na Holanda, mas registados na Nigéria ou no Gabão ou ter um LED na parede com imagens a correr de construção de megatéreos em Luanda, não me parece ser a estratégia mais adequada para promover o turismo angolano, se é que há alguma ideia discutida e definida sobre isso.
Desculpem a frontalidade, mas sem retirar o mérito a alguns dos simpáticos funcionários presentes, o pavilhão do nosso País faz-me lembrar os pavilhões da feira das industrias que visitei no dealbar dos anos 60 no local onde com magnífico desenho de Simões de Carvalho se construiu o Palácio da Radiodifusão, hoje sede da RNA.
Uma feira internacional de turismo não tem as características de uma festa do L’ Humanité ou do Avante, e por isso exige-se um trabalho prévio muito aturado junto dos agentes participantes e simultaneamente material de divulgação que motive o aproximar das pessoas ao espaço na feira e proporcionarem-se bons negócios, que é para isso é que o investimento é feito.
Quero que esta minha observação que não é nova, e não deixo de o lastimar, não seja entendida como um bota-abaixismo mas acima de tudo entusiasmar os dirigentes do INFOTUR, colaboradores e agentes de turismo a promover melhor o turismo de Angola, fora de um contexto de negócios já que esse vai tendo freguesia, até ver!
Fernando Pereira
8/2/2011
10 de fevereiro de 2011
«Os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha…»/ O Interior/ 10-2-2011
A semana passada comemoraram-se cinquenta anos do princípio do fim de uma fantochada salazarenta de um eufemismo chamado “Império Colonial Português”.
A três de Fevereiro de 1961 o paquete “Santa Maria” aportou no Recife, depois de Henrique Galvão e alguns companheiros terem tomado conta do navio durante alguns dias algures no Atlântico, num propósito de denuncia ao mundo o que era o Portugal da ditadura.
No dia seguinte um grupo de revoltosos atacou as cadeias de Luanda de forma a libertar os prisioneiros julgados em tribunais plenários, na sua maioria por delito de opinião e que estavam à espera de ser embarcados para o Tarrafal, no arquipélago de Cabo Verde, o tal estabelecimento penal que segundo alguns biltres dizem que “nem era tão mau assim”
Nesse quatro de Fevereiro de 1961 iniciou-se a guerra colonial, móbil do estertor do Estado Novo, que tenta ser branqueado no quotidiano de vida dos cidadãos.
Muitos se esquecem que adultos no dealbar dos vinte anos de idade estavam com uma arma na mão a caminho de uma África que nada tinha a ver com o misto de bucolismo e colorida que a propaganda do regime tentava mostrar.
Acho que tem tudo a ver, quando um capitão de Abril, homem sério, empenhado, que arriscou toda a sua carreira para acabar com a guerra colonial e a ditadura, Vítor Alves morreu no início do ano, e tem direito a pouco mais que um breve minuto nos quase escaninhos de jornais nacionais das Tvs que disputam entre elas quem mais demora.
Ao mesmo tempo esses mesmos jornais estão meia hora a falar de um assassinato perpetrado por um jovem que usava métodos sórdidos para obter favores no mundo da moda através de um valdeiro que usava toda a jactância para se insinuar num tipo de imprensa niilista, para usar alguma comiseração no léxico.
Conheci o major Victor Alves em 10 de Junho de 1977 na Guarda, que me foi apresentado pelo Batista Bastos ao tempo a trabalhar para o “Diário Popular”, na altura comissário do “Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas”, versão melhorada do 25 de Abril do “Dia da Raça” da má memória do tempo do “manholas”. Conheci uma pessoa simples, que quase pedia desculpa a Jorge de Sena por parabeniza-lo no seu famoso discurso. Um homem culto, educado, discreto que morreu e deixa saudade. Melhor que muito troglodita que por aí anda ufano porque tem uns poderzinhos conseguidos à conta de podrezinhos de uma democracia que tarda em melhorar-se.
Em jeito de despedida peço à autarquia da Guarda que faça uma edição com todos os discursos que marcaram esse 10 de Junho de 1977. Desde que coloquem lá o do Jorge de Sena garantidamente nem me importo de ter lá os discursos dos outros que deram seca, e quem lá esteve sabe de quem falo.
Já agora, o título é uma parte desse magnífico discurso de Jorge de Sena, o único que fez em Portugal!
Fernando Pereira
3/2/2011
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