26 de setembro de 2012

Revista "O CHÁ" nº1/ Luanda / Agosto de 2012





Nota: Esta revista editada em Luanda é a primeira da editora Chá de Caxinde. O meu texto é apenas um dos muitos de uma revista cuidada em termos gráficos e de conteúdo, à venda num quiosque perto de si.


Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias nasceu a 26 de Novembro de 1948 no navio “Pátria”, entre Lisboa e o Lobito, e recém-nascido foi para Nova Lisboa onde os seus pais desenvolveram atividade profissional durante muitos anos.
Atribuindo o sentido da música a sua mãe, a sua influência de alguns ritmos africanos vem de um colega, o nº 26 do então Liceu Norton de Matos, no Huambo, e da escuta atenta do grupo Ondingo, dedicado à divulgação do folclore local e a conjuntos como o “África Ritmos” e o “Conjunto do Ferrovia”. Começou muito novo a tocar em grupos de baile na então Nova Lisboa. Num concurso disputado no Atlético em 1964, “Os Zorbas” com o Fausto e o Rufino (Mike) à viola, o Bino na bateria, o João Leitão no baixo e o Fernando Campas Nunes nas teclas arrebataram o primeiro prémio. A continuidade do Fausto, um indivíduo de muita iniciativa, foi nos “Rebeldes” um grupo já mais estruturado e de música Pop. Fausto, que ao tempo era conhecido por Carlitos, tocava nos “Rebeldes”com Vicky Paes Martins, Matos Carlos, Manuel Luis e Toni Matos. Foi o conjunto que mais furor fez ao tempo na cidade, e abandona-o no fim dos anos sessenta (1968) quando embarca para a então Metrópole para estudar no ISCPU (Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina).
Em Lisboa começa a aproximar-se de Adriano Correia de Oliveira, a quem tinha sido apresentado por Manuel Freire, José Afonso, Francisco Fanhais e José Jorge Letria, remanescente dos chamados “baladeiros” da música portuguesa saídos do anonimato pelo desempenho no “Zip-Zip”, programa que revelou o nosso Ruy Mingas.
Empenhado no movimento estudantil é eleito em 1972 presidente da direção da Associação de Estudantes do ISCPU, mas por informações da PIDE o ministério da Educação não homologa o seu nome sendo o normal vetar toda a lista. Apesar do bom aproveitamento académico, Fausto é mobilizado para o exército colonial e, não se apresentando, iniciou assim um período de clandestinidade no interior de Portugal.
Fausto, na esteira de outro homem do Huambo, Luís Cília, que esteve exilado desde 1964 em França, começou a participar ativamente em movimentos antifascistas e anticolonialistas e passou a fazer da canção um instrumento de protesto contra a guerra colonial e uma intervenção ativa pela liberdade e pela melhoria das condições de vida da população portuguesa.
Começou a musicar alguns poetas proscritos pelas autoridades como foi o caso do Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário António e Daniel Filipe entre outros. O “Namoro” do Viriato, o “Comboio Malandro” do Jacinto e “Poema da Farra” de Mário António, ainda hoje cantados por pessoas de gerações que já nem se lembram, felizmente, como eram as coisas há quase quarenta anos, em que só à surdina se podia trautear certas músicas e certos poemas.
Com o advento da democracia em Portugal, em 25 de Abril de 1974, Fausto Bordalo Dias multiplica-se em cantos livres e espetáculos a acompanhar Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Sérgio Godinho, etc. A cantiga passou a ser uma arma de intervenção na consciencialização das pessoas na construção de uma democracia sem o obstáculo da guerra colonial e da opressão ideológica e política.
Em Angola reúne-se com Ruy Mingas, Zeca e Adriano e fazem um memorável canto-livre, em Abril de 1975, numa Cidadela a rebentar pelas costuras, numa ação de apoio ao MPLA. Quando fazem uma sessão na cantina da universidade, junto à ermida da Nazaré, a FNLA, acolitada por alguns colonos enfurecidos, cercam a zona e só por sorte todos acabaram por sair ilesos, tendo sido então pedida a sua expulsão do território.
Com o correr dos anos fomo-lo vendo participar invariavelmente associado a movimentos cívicos, e a “fabricar” canções que deram uma vivacidade a momentos de grande fulgor das pessoas que empenhadamente se organizavam na defesa da democracia participada.
Foram entretanto saindo discos de “intervenção” com uma riqueza instrumental que era inabitual, pelo facto deste tipo de canção não possibilitar muita disponibilidade para um trabalho aturado, fruto do imediatismo a que estavam sujeitas as histórias que urgiam ser “cantadas”. Na sequência do “Fausto” (1970) surgem, no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, o “Pró que der e vier” (1974),trabalho quase todo feito no seus tempos de semiclandestinidade, “Bêco com saída” (1975) e “Madrugada dos Trapeiros” (1977), trabalhos miliantes.
Com a dificuldade que os cantores de intervenção vão passando junto da rádio, Fausto, que entretanto se licenciou em Ciências Sociais e Políticas, faz sair provavelmente o seu trabalho menos conhecido, mas de grande qualidade: “História de Viageiros”, um trabalho feito com base na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, que serviu de tema musical para o grupo de teatro “A Barraca”, na peça “ Fernão Mendes…”
Este trabalho acabou por ser o catalisador do “Por este rio Acima” em 1982, o álbum primeiro da trilogia sobre a diáspora portuguesa. Para muitos o melhor disco de sempre da Música Popular Portuguesa. Provavelmente um álbum digno de fim de carreira, algo que é no mínimo discutível quando se tem trinta e quatro anos como o Fausto tinha ao tempo, com tanto para dar à música que se faz em português. A música portuguesa nunca mais seria igual a partir deste disco que é a suprema obra de um privilegiado.
Por causa do “Por este rio Acima”, os álbuns seguintes foram passados para um plano secundário apesar da extraordinária qualidade. O “Despertar dos Alquimistas”(1985), “Para Além das Cordilheiras” (1987), “Crónicas da Terra Ardente” de 1997, o segundo disco da trilogia sobre a diáspora portuguesa, a “Ópera mágica do cantor maldito”(2003) e “Em busca das montanhas azuis”(2011), trinta anos depois de iniciar a trilogia da diáspora, de acordo com os prazos de 10 em 10 anos que a si próprio se impôs, foram os trabalhos em que se empenhou para além de múltiplos projetos com muitos artistas.
Importa referir que em 1989, em colaboração com o músico angolano Mário Rui Silva, que primorosamente o acompanha à viola, fazem um trabalho publicado entretanto, “A preto e branco”, com sonoridades africanas em que Fausto revisita os seus tempos dos catorze aos vinte anos, onde reaprende músicas esquecidas e recupera sonoridades já no baú das suas recordações de musicalidades perdidas num Huambo distante.
“Fausto simbolizará, como Herberto Helder ou José Régio…, a alma por onde todo o nosso mundo de sensações e sentimentos navega nas horas que a perenidade do nosso coração determina”.

Fernando Pereira
20/8/2012

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