26 de agosto de 2017

DO ANTIGAMENTE NA VIDA! /Novo Jornal/ Luanda 25-08-2017




DO ANTIGAMENTE NA VIDA!


Não consigo calar a minha perplexidade, quando sou confrontado com a alteração do nome de Namibe para Moçâmedes.
                Segundo julgo saber, foi uma decisão ponderada, depois de ouvir a população (finalmente alguém ouve a população para alguma coisa!), autoridades tradicionais e locais, empreendedores e o tecido associativo da cidade.
                Não sei o porquê, mas esta mudança fez-me lembrar o “engano ledo e cego” que foi a mudança súbita de Novo Redondo para N’Gunza, em homenagem ao soberano da região, N’ Gunza Kabolo, que ao invés de ter sido um defensor dos interesses dos seus súbditos tinha sido um “colaboracionista” com as autoridades coloniais. Para remediar a situação surgiu então Sumbe, a atual designação, que é uma corruptela do quimbundo “Kussumba”, que significa “comprar”. Era um lugar de compra e vende de produtos e assim permanece como capital da província do Kwanza-Sul, quase junto à foz do rio Ngunza.
                Moçâmedes deve o seu nome a João de Almeida Vasconcelos Soveral e Carvalho, governador de Angola (1782-1790), décimo segundo senhor de Mossamedes, de que seria 1º barão. A terra de que era donatário fica na freguesia de S. Miguel do Mato, Vouzela, Beira Alta, Portugal, e enviou uma expedição militar ao sul do território chefiada por Luis Cândido Pinheiro Furtado em 1785 para debelar algumas rebeliões dos “mocubaes”,”modumbes” e os “bacuissas”no lugar de Bissongo Bittoto, conhecido por navegadores por Angra do Negro e em cartas inglesas por Little Fish Bay. A enseada recebeu o nome da Lapa em homenagem ao Conde da Lapa, Manuel, filho do Barão, nascido em Luanda em 1784.
                Mossamedes era uma baia de corsários e local de tráfico de escravos, sendo a primeira feitoria do ano de 1840 de Guimarães Júnior e Jácome Filipe Torres, que tinha o exclusivo do comércio da cera e dos escravos.
                O grande impulso é dado por 140 colonos portugueses que desembarcaram na baia em 4 de Agosto de 1849, depois de perseguidos no Brasil. Viveram agruras imensas só minoradas pelo desembarque de novo contingente de colonos a 26 de Novembro de 1850.
                Nas margens do rio Bero, que o tenente-coronel Pinheiro Furtado chamou “rio das mortes” por terem sido chacinados pelos locais, dois oficiais da companhia para ali enviada pelo Barão de Mossamedes. Os que ali tinham a sua atividade, são substituídos pelos colonos que instalam os primeiros engenhos de açúcar no Vale dos Cavaleiros e assim Mossamedes chega a 1974 como uma das únicas cidades em África com mais brancos que negros (A outra é Sá da Bandeira, Lubango até ver)
                Mossamedes foi elevada a vila a 7 de Maio de 1855, e recebeu a categoria de cidade em 1907, quando o Príncipe Luis Filipe visitou Angola.
                Já agora despercebe-se porque é que o antigo Porto Alexandre, hoje Tombwa, não se chama “Porto de Pinda” como ainda era chamado em documentos de 1846, colonizado por pescadores de Olhão que já vinham em busca de porto seguro desde o Gabão e S. Tomé. Mais abaixo aparece a inóspita Baia dos Tigres, que nunca teve esses felinos. O nome deve-se basear no curioso espetáculo que ali oferecem as areias quando o vento as move em desenhos caprichosos, o que, com efeitos de luz e sombra, visto à distancia, dá a ideia duma colossal pele de tigre estendida ao longo da grande baía.
                Em 1929, reflexo da crise global, o sul de Angola vivia a pior das suas crises. A produção de peixe seco excedia a procura e grande parte do pescado que apodrecia nos armazéns era deitado ao mar. Toneladas de peixe, resultado do trabalho das gentes perdiam-se e a miséria grassava na cidade.
                Neste período um alemão que geria a casa Weermonn, Brock &Cª solicitou licença para exportar para Hamburgo, peixe seco sem sal e com cabeça, que se destinava a fins industriais. Não havia legislação que impedisse e foi autorizada a exportação de farinha que passou a servir de alimentação dos animais. Foi sendo sucessivamente melhorada a qualidade, e a verdade é que foi esta circunstancia que salvou economicamente a cidade e dinamizou uma industria pioneira em África, que se revelou florescente e interessante no quadro global das exportações da então colónia de Angola.
                Não sei porque se escolheu Namibe, ou melhor talvez tivesse sido uma parte da deriva de um tempo em que se decidiu mexer em tudo o que era toponímia colonial, onde se fizeram asneiras colossais, substituindo-se nomes que mereceria um maior destaque pelo que representaram no desenvolvimento do País, no domínio económico, social e cultural.
                Surpreende-me que se volte a dar o nome de Moçâmedes, que é uma homenagem a um alto dignitário da administração colonial. Talvez haja razões ponderáveis que justifiquem esta decisão, mas não as conheço.
                Só espero que seja uma infeliz exceção e que não se comece com uma deriva de “toponimiar” de novo com nomes do antanho, num momento em que há uma vontade de recuperar coisas do passado recente do território, algumas perfeitamente dispensáveis.

Fernando Pereira
22/8/2017
                 

                  

19 de maio de 2017

Preconceitos da Memória / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 19-05-2017





Preconceitos da Memória
Num recente artigo escrito nesta rubrica regular sustentei que a criação do ensino superior nas colónias não se terá cingido apenas a critérios de desenvolvimento, mas também a uma “feira de vaidades” entre figuras gradas do regime colonial!
                Quer Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, quer Venâncio Deslandes governador geral de Angola em 1961 e 1962 tentaram ser os “pais da criança”, e a verdade é que por causa destes Estudos Gerais Universitários de Angola é que ambos se queimaram politicamente, o suficiente para terem sido demitidos das suas funções pelo sibilino António Salazar, mestre em colocar uns contra outros para seu proveito.
                Havia por parte dos colonos uma antiga reivindicação da criação de uma universidade em Angola, naquele sonho de secessionismo que a minoria branca acalentava, estabelecendo como paradigma a África do Sul
                O governo concentracionário de Lisboa, aliado ao corporativismo elitista dos poderes instalados nas universidades da então “Metrópole,” não dava qualquer alternativa a uma abertura de ensino superior nas colónias.
                As razões eram evidentes, tal a sobranceria com que os habitantes das colónias eram olhados pelo poder central, mesmo os membros da pequena comunidade branca. Havia também a necessidade de se dar instrução q.b., para evitar o questionar a tacanhez que dominava o quotidiano intelectual do Portugal salazarento.
                Apesar das reticencias de Salazar, o decreto-lei nº 44530 de 21/8/1962, do Ministério do Ultramar, institui os Estudos Gerais Universitários de Angola e Moçambique que tem a sua complementaridade no decreto-lei nº 44530 de 21/8/1963 que promulga o seu regime de funcionamento
                Curiosamente a” criação dos Estudos Gerais em Angola e Moçambique, frequentados maioritariamente por brancos, não fez diminuir a saída deste território ultramarino para a “metrópole” (estudo de Ermelinda Liberato), e comprova-se que em 1960/61 havia 1867 alunos “ultramarinos”, em 1962/63, 2006,1965/1966, 2133 e 1967, 2311.
                O princípio que norteou os EGU está bem plasmado na informação confidencial do João Pereira Neto, funcionário superior do MU que acompanhou a missão de instalação dos EGUs que recomendava que os cursos a ministrar se limitassem aos dois primeiros anos, para evitar que o “convívio fraternal com os colegas da Metrópole” se perdesse, e assim se corroessem os “fundamentos e significado da Unidade Nacional”.
                Adriano Moreira, segundo Pereira Neto, teria manifestado sempre a ideia que os EGU em Angola nunca deveriam ser instalados em Luanda, já que era uma cidade como “ponto de atracão de correntes migratórias”, antro de divertimentos noturnos, “cabaré inclusive”, foco de subversão estudantil por excelência, entre outros argumentos que hoje se revelam pueris! A história poderia ter-se repetido como farsa, porque os argumentos de Adriano Moreira, foram exatamente  os mesmos que utilizou D. João III de Portugal em meados do seculo XVI, quando transferiu definitivamente a Universidade de Lisboa para Coimbra, para evitar que os estudantes se confrontassem com novas ideias trazidas por marinheiros e embarcadiços que faziam então da capital portuguesa um dos maiores portos do mundo, num tempo em que a Europa começava a sair do “período das trevas”, espaço ideológico dominado pela Igreja  Católica e a Inquisição, e em que a “Reforma” enquadrava novas ideias.
                Os cursos tinham que ser apenas técnicos, e Nova Lisboa (Huambo) e Sá da Bandeira (Lubango) eram os lugares preferidos por Adriano Moreira para a instalação dos polos universitários, argumentando razões para promover o desenvolvimento das cidades e regiões circundantes.
                Nova Lisboa representava aos olhos do poder uma alternativa ideal a Luanda porque era uma cidade “calma no que respeita(va) a diversões e paixões politicas”, e com “duas grandes massas populacionais: Uma considerável população branca por um lado, e uma maioria de rapazes de cor formados nas missões protestantes de outro”
                Ao invés Sá da Bandeira tinha tudo para as coisas correrem mal, segundo o documento confidencial do inspetor Pereira Neto, já que tinha “sido palco de explosões de violência racial e ressentimento por parte dos europeus relativamente aos africanos, constituindo deste modo um ambiente pouco propício à miscigenação”. Propunha-se apenas a criação de Ciências Pedagógicas, e nenhuma outra escola que pudesse suscitar “atitudes menos corretas da população em relação a jovens universitários negros”.
                De facto, são surpreendentes os argumentos plasmados nestes relatórios, o que de certa forma evidencia o caracter racista da cidade de Sá da Bandeira, que a par de Moçâmedes eram no dealbar dos setenta do século passado as cidades africanas com mais população branca que negra, o que não deixa de ser absurdo.
                Em Sá da Bandeira foi instalado o embrião de uma futura faculdade de letras e de ciências pedagógicas, no Huambo os cursos de veterinária, agronomia e silvicultura, e em Luanda instalaram-se as ciências, engenharias, medicina, mais tarde economia e nada mais porque a aversão de Salazar às ciências sociais estendia-se aos seus colaboradores próximos.
                Evitaram-se os estudos humanísticos com o argumento que inspiravam “especulação política”, criadora de um “proletariado intelectual”, “responsável por grande parte das revoluções modernas”. O Direito, relegado a “vicio nacional”, não poderia sequer ser fomentado.  (JPN, documento confidencial). 
                Prevaleceu a vontade do novo Ministro do Ultramar Peixoto Correia e do governador Silvério Marques em detrimento da vontade de Adriano Moreira, ficando Luanda com a parte de leão das faculdades do que passou a ser em 1968 a Universidade de Angola, hoje Agostinho Neto.
                Em 1968, um grupo de catedráticos dos EGU de Angola e Moçambique juntam-se em S. Bento, residência oficial do 1º ministro de Portugal, para saberem da boca de Salazar a resposta ao pedido dos professores para a criação das Universidades de Luanda e Lourenço Marques. Numa sala escura, num ambiente lúgubre, num frio de Inverno que todos estavam desabituados e a tiritarem de frio, Salazar resolveu oferecer umas mantas para se sentirem mais confortáveis. Dez ou doze pessoas sentadas neste ambiente a raiar o surrealista ouviam o perorar monocórdico de Salazar sobre a responsabilidade que tinham de “ensinarem os pretos a bastarem-se a si próprios, e as consequências que daí adviriam”, mas no fim lá deu o seu definitivo sim, para alegria dos presentes. Veiga Simão e Ivo Soares entusiasmados, pediram se podiam telefonar para Moçambique e Angola para dar a boa nova, ao que Salazar terá dito: “Srs. Professores, porque não mandarem antes uns telegramas, fica mais barato”.
                As malhas que o império foi tecendo! 
     
   Fernando Pereira 
  18/4/2017
               
               

                 

                

12 de maio de 2017

EVOCAÇÃO / O Interior / Guarda / 11-5-2017








EVOCAÇÃO

“A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”
Sophia de Mello Breyner Anderson

                A morte recente do Vasco Queiroz, apesar de anunciada, deixou-me num estado de quase prostração emocional e a certeza que vai ser um luto difícil de abandonar.
                Conheci o Vasco há quarenta e cinco anos, quando fomos contemporâneos no Liceu D. João III em Coimbra, no cinzentismo de uma primavera marcelista que mais não conseguia ser que um salazarismo a sorrir. 
                Com o alvor da democracia nesse 25 de Abril de 1974 embriagámo-nos com a festa da liberdade, de um tempo novo, de uma primavera que nunca esquecemos. Durante décadas comemorámos este Abril com um jantar que invariavelmente acabava numa noite longa de cantoria, recordações e copos á mistura. Fizemo-lo pela ultima vez neste 25 de Abril de 2017, com o Vasco já muito doente, mas ainda com a força bastante para à meia noite fazermos o tradicional brinde com um espumante. Sabíamos os dois que era o nosso ultimo convívio de Abril, mas era-me obrigatório cumprir este ritual junto do homem que era só o melhor de todos nós.
                Empenhamo-nos juntos em processos de luta pela edificação de uma sociedade mais justa e solidária. Divergíamos no acessório, estávamos de acordo no essencial. O combate nesses anos de esperança vivida deu-nos força, mas também sobreveio a revolta quando vimos que “houve por aí alguém que se enganou”!
                Actor do CITAC (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) nunca ao longo da vida deixou de fazer teatro, e foi um dos pioneiros da criação do “Calafrio”, estrutura cultural que tem desenvolvido algum trabalho cultural na Guarda nestes dois últimos anos da sua atividade continuada.
                Depois de alguns anos em que cada um fez o seu percurso pessoal e profissional, o acaso juntou-nos num local improvável, a Guarda.
                Aqui o Vasco revelou-se como uma das nossas referencias, mantendo a sua coerência política, uma postura cívica exemplar, um ser solidário permanente e acima de tudo uma preocupação continuada para com os outros, o que fez dele um dos mais respeitados e amados clínicos da sua geração na Guarda e cidadão impoluto e interveniente na sociedade.
                Destransigia com a venalidade, com o oportunismo e era exigente consigo própria na hora de aceitar algo que pudesse ser suscetível de manchar a sua idoneidade profissional e a sua independência enquanto cidadão. 
                O Vasco Queiroz era um indefetível benfiquista, exigente com o seu clube, mas isso não o impedia de partilhar algumas vitórias internacionais do meu Futebol Clube do Porto e festejar comigo esses eventos. Nunca aconteceu com o Benfica, mas julgo que eu era incapaz de fazer o mesmo. Nestas poucas coisas em que divergíamos ele mostrava ser diferentemente melhor que eu!
                A Guarda devia estar agradecida por ter tido este ilustre filho adotivo, porque no campo profissional, na atividade cultural e no contexto solidário foi um homem que abraçava as causas, empenhava-se com todo o seu esforço e com toda a sua enorme capacidade intelectual para que tudo tivesse um sucesso que teimava em partilhar com todos.
                Intelectualmente era um inconformado, porque queria assimilar tudo o que o pudesse enriquecer culturalmente, mesmo sobre coisas que às vezes outros julgavam pueris.
Fizemos muitas viagens de lazer juntos, e havia uma frase recorrente: “Temos que arranjar aí um programa cultural para que a viagem não seja só copos”! Lá arranjávamos um roteiro que lhe fizesse essa vontade e que nos trazia novas descobertas.
Em determinada altura chegou a ser deputado municipal na Assembleia Municipal da Guarda, mas rapidamente saiu completamente desiludido, com a maquinação dos interesses e da politiquice rasteira que vai minando os alicerces de uma democracia que sonhou diferente, naquela primavera longínqua de 25 de Abril de 1974.
Raras vezes o via exaltado, mas manifestações de racismo, xenofobia e apelo a valores do fascismo eram motivo mais que suficiente para o pôr maldisposto e fazê-lo retirar intempestivamente de qualquer lugar onde a discussão se tornasse estupidificada.
Jonh Huston na cerimónia fúnebre de Bogart “Não temos razões para ter pena dele, mas sim de nós porque o perdemos” ou como diria Mia Couto, “Não morre quem se ausenta, morre quem é esquecido”. Só o esqueceremos quando um dia formos ter com ele!
Com o seu desaparecimento físico, há temas que por força das múltiplas cumplicidades que tinha com o Vasco Queiroz irão passar a estar no “sótão” da memória, pois só com ele conseguia partilhar num tempo vivido ao longo de décadas abruptamente cortadas neste infausto seis de Maio de 2017.
Vasco Queiroz faz-nos tanta falta que acho que nem ele teria noção disso, pois foi sempre de uma humildade exasperante. A mim cabe-me agradecer tanto de bom que me deu, e tanto que me enriqueceu.
Vamos fazer algo que perpetue a sua memória junto dos cidadãos da Guarda e dos vindouros? Estou nessa e acho que somos muitos a pensar o mesmo.
Certa vez deu-me a ler este provérbio mexicano: “Habitue-se a morrer antes que a morte chegue, porque os mortos apenas podem viver e os vivos apenas podem morrer”! Hoje percebo porque o mostrou!
Vais continuar a fazer parte da minha vida pelas melhores razões.
Obrigado meu amigo!

Fernando Pereira
8/5/2017








28 de abril de 2017

A VERRUGA / Novo Jornal / Luanda /28-4-2017






A VERRUGA


Confesso que fico perplexo quando vejo que no Município do Cazenga continua a existir um bairro com o nome de Adriano Moreira, e por exemplo que o nome do insigne botânico Luis Carriço tenha sido suprimido da toponímia luandense, entre outros casos.


Este é apenas um dos exemplos da confusão instalada nas pessoas sobre o passado recente do território de Angola, e a sua transição para a independência naquele sempre lembrado 11 de Novembro de 1975.


Luis Carriço fez parte da 1ª missão botânica enviada a Angola. Era professor na faculdade de ciências da Universidade de Coimbra e diretor do Jardim Botânico da cidade. Deixou uma vasta obra no seu ramo, fruto de uma recolha feita em todo o território de Angola, abruptamente interrompida pela sua morte ocorrida em 1937 no deserto do Namibe, onde foi sepultado.


Se alguém quiser explicar quem foi Adriano Moreira a um morador do bairro teremos que dizer que foi Ministro do Ultramar de Salazar de 1961 a 1963, depois de ter sido subsecretário de estado da administração ultramarina em 1959. Neste percurso “ultramarino” de Adriano Moreira avulta ter sido o diretor do ISCPU (Instituto de Ciências Sociais e Politica Ultramarina) uma das duas escolas de formação de pessoal administrativo da administração colonial portuguesa (a outra era a escola colonial em Goa). Formava entre outros, administradores, chefes de posto, secretários, intendentes,etc.


Foi um dos responsáveis diretos pela introdução institucional, nos anos 1950 da denominada “Lusotropicalogia” conhecida depois como “luso-tropicalismo”, que teve no brasileiro Gilberto Freyre o seu patrono. A “Casa grande e senzala”, "O Mundo que o Português Criou", "O Luso e o Trópico” são as cartilhas de um defesa de Portugal como “primeira civilização moderna nos trópicos".


Toda a estrutura ideológica do jovem Adriano Moreira assentava na premissa de um Portugal portador da civilização e da ordem em todo o território, defendendo que os “indígenas” teriam que trabalhar segundo regras evolutivas de um “ato colonial” reformista. Foi este senhor que reabriu o Campo do Tarrafal em Abril de 1961, inicialmente como campo de detenção dos angolanos condenados no “processo 50” e depois alargado a nacionalista de todas as colónias, tendo fechado com a revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal. Apesar de refutar essa acusação, Adriano Moreira não se consegue livrar do labéu de ter promovido a organização da PIDE em Angola.


Reconheço ao Dr. Adriano Moreira uma grande sagacidade politica e uma rara inteligência, mas não deixa de ser intrigante o seu tortuoso trajeto politico que lhe tem permitido guindar-se a uma figura “reverente” na democracia portuguesa, depois de ter sido um dos putativos delfins do ditador Salazar.


Assume-se como o criador dos “Estudos Gerais Universitários” em Angola e Moçambique, embrião das universidades de Angola e Moçambique. Provavelmente a criação destas escolas superiores terão criado uma das situações mais rocambolescas dos anos do estertor do salazarismo em Portugal.


Por ironia do destino, Salazar ordena a Adriano Moreira, no âmbito da sua competência enquanto ministro do Ultramar, que nomeie o general Venâncio Deslandes como 117º governador-geral de Angola (Junho de 1961), cargo que ocupa em simultâneo com o de Comandante Chefe das Forças Armadas na “provincia”. As relações entre os dois nunca foram muito amistosas, já que ambos tinham uma sede de protagonismo ilimitado. Deslandes dizia que “chefiava o maior contingente militar de sempre de Portugal” e que “iria acabar a guerra em Angola em seis meses e depois disso passaria ser um caso de altercação de ordem publica e apenas responsabilidade da polícia”. Tudo isto irritava de sobremaneira Moreira que se sentia diminuído perante o seu alter-ego Salazar.


Foram muitas as situações de conflito, mas a que teve maior impacto e levou à saída intempestiva de Deslandes e posteriormente de Moreira foi a criação dos Estudos Gerais Universitários em Angola, velha reivindicação dos colonos que tinham que mandar os seus filhos estudar para a então “Metrópole”. Ressalve-se que no tempo colonial a única “estrutura universitária” que existia nas colónias era uma escola médica de Goa, que não tinha categoria de faculdade e uma escola de teologia na mesma cidade, que tinha encerrado no dealbar dos anos 50 quando a prelatura do Oriente é retirada a Goa e é entregue a Bombaim, que é o primeiro e pouco conhecido golpe contra o edifício colonial português.


Deslandes sem conhecimento de Moreira, seu superior hierárquico reúne o conselho provincial e emana uma norma a criar os “estudos gerais Universitários”, o que deixa o Ministro do Ultramar em transe. Salazar tinha sido consultado por Deslandes e terá dito: “Querem os pretos a estudar, depois não se arrependam”. Naquele quadro de intriga palaciana que Salazar adorava, manhoso e farsolas como era, colocou os dois numa disputa sem quartel quanto à legitimidade da criação dos EGUA. Adriano Moreira ou não assinava o decreto que criava por recomendação do conselho legislativo de Angola, ou o faria e dava a Deslandes a coroa de glória da criação de um embrião de uma Universidade em Angola. Isto já será especulação, mas Adriano Moreira, sagaz e sentindo que o chão lhe poderia fugir resolveu assinar o despacho trazendo à colação os Estudos Gerais Universitários de Moçambique.


Foi a gota de água e Deslandes, que tinha um programa próprio de fomento contrário ao de Moreira, é por este demitido de governador geral de Angola em Setembro de 1962, sendo substituído por Silvério Marques. Salazar observava e naquela sua gestão muito peculiar de alimentar guerrilhas para que o poder se mantivesse forte demite no ano seguinte Adriano Moreira, que volta para o seu ISCPU.


Sobre os Estudos Gerais de Angola e da criação da Universidade de Angola haverei de voltar, mas continuo de facto sem perceber o porquê de um bairro Adriano Moreira na cidade capital de Angola. Também há tanta coisa que despercebo!!!






Fernando Pereira


14/4/2017






19 de abril de 2017

Joaquim Gil - Um homem de causas!



















Texto que publiquei no livro coordenado por mim de homenagem ao Dr. Joaquim Gil.


Muitas vezes é preciso um mau motivo para fazer a coisa certa.

                Um grupo de amigos do saudoso Joaquim Gil reuniu um conjunto de textos, fotos e alguns depoimentos, e concebeu este livro  que nos ajudará a perpetuar a estirpe intelectual de um amigo que nos deixou tão de repente. Ainda hoje achamos que “tudo não passou de um sonho mau que não acabou”.
                Fiquei com a incumbência de juntar o que parecia ideal para  se conseguir fazer um trabalho que possibilitasse a todos aquilatar da excelência intelectual do Joaquim Gil e, simultaneamente,  permitisse vincar valores que sempre lhe foram caros ao longo da sua vida intensa: a liberdade, a justiça e a solidariedade.
                Conheci o Joaquim Gil nos idos setenta do século passado, num tempo de tanta esperança e certeza. Os tempos seguintes vieram demonstrar quão enganados estávamos. O Joaquim Gil, ideologicamente, assumiu a máxima de Willy Brandt : "Quem aos vinte anos não é comunista não tem coração. E quem assim permanece aos quarenta anos não tem inteligência". Nunca renegou a sua passagem pela militância comunista donde se afastou no dealbar dos anos 80 do século passado.
                Dos tempos do PREC recordo esta frase que encontrei, escrita pelo seu punho, num dos muitos papeis por onde andei a “vasculhar”:” Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exato perfume das flores”. Não sei quem é o autor, mas achei que o que vivemos era mesmo isto.
                Um profissional brilhante, respeitado pelos seus pares e por todos os agentes do universo da justiça, onde granjeou enorme prestígio, pelo brilhantismo das suas intervenções e pelo profissionalismo e empenho com que defendia as suas causas.
                A ligação de Joaquim Gil ao universo desportivo, enquanto dirigente, manteve-se ao longo de muitos anos em Coimbra e na Figueira da Foz.  Continuei a vê-lo ligado ao associativismo e com ele me habituei a partilhar das preocupações de um tempo que cada vez vem sendo menos propiciador de voluntarismos.
                Sophia de Mello Breyner Anderson sintetizou o que me “vai levando” neste tempo em que empobrecemos quando o perdemos naquela infausta noite de janeiro de 2015: “A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”.
                O Joaquim Gil era um homem de juntar pessoas de matizes políticas diferentes, de atividades profissionais diferenciadas, e tinha um prazer enorme em proporcionar uma discussão e nunca a deixar esmorecer. Conseguia, assim,  por vezes, colocar toda a sua capacidade de intervenção  e alguma sagacidade para que fossem aprofundados os temas, assumindo a dose certa de provocação.
                Aglutinava na sua mesa de café, em Coimbra e na Figueira da Foz, muita gente que sente hoje muito a sua falta, e que o acompanhava pela capacidade de sedução que imprimia às relações com as pessoas, algo que lhe reconheço desde os tempos da juventude.
                Divergimos politicamente muita vez, mas até nisso, às vezes, me desconcertava por não alinhar com estereótipos do pensamento politico recente, e isso valeu-lhe ter perdido a confiança de alguns servidores dos aparelhos partidários.
                Foi sempre cioso da sua liberdade de pensar e, como nasceu no seio de uma família   onde a educação, o respeito e a dignidade da pessoa eram valores que não poderiam ser beliscados,  estavam sempre presentes mesmo nas discussões mais pueris de um homem que sempre esteve bem com a vida.
                Indefetível portista, vivia o Futebol Clube do Porto com toda a intensidade que o clube merece e, nos momentos em que este ganhava, rejubilava e provocava os adeptos de clubes adversários, aceitando de forma contida quando estes ganhavam!
                José Gomes Ferreira, no funeral de Ferreira de Castro: “Quando um amigo morre que nos resta senão ressuscita-lo”
                Foi o que tentámos fazer aqui e acho que o conseguimos todos os dias. Para mim ainda hoje é um luto difícil de abandonar.


Fernando Pereira            
                                        

                        

24 de fevereiro de 2017

Contos velhos, rumos ainda mais velhos! / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 24-2-2017



Contos velhos, rumos ainda mais velhos!
Luanda transformou-se numa cidade sem identidade e isso é o pior que se pode legar aos vindouros.
                Todas as urbes procuram preservar o conjunto edificado que foi unindo gerações e que são a “marca de água” de uma cidade! Luanda com as suas administrações e o dinheiro facilmente conseguido fazem exatamente o contrário.
                Não é uma situação nova, aliás vem do estertor do período colonial, mas nos últimos tempos, antes da “míngua” que se adivinhava, o que aconteceu à cidade foi um verdadeiro flagelo.
                Vamos dar uma volta ao passado numa viagem por textos de quem por cá andou no antanho!
                Luanda pela pena do médico alemão George Tams, que a visitou em 1841: “ Luanda apresenta-se-nos com um aspeto maravilhoso:_ É edificada em forma de anfiteatro, erguendo-se desde a base até ao cume dos montanhosos socalcos da costa, a qual neste sítio desce até próximo à superfície do mar. A grande porção de casas edificadas ao estilo europeu, muitas das quais espaçosas, umas com telhados vermelhos, outras azuis, os muros caiados de branco ou de amarelo, as lindas torres das igrejas, o palácio do governador e o vizinho forte, excitam grandemente a surpresa do estrangeiro”
                Mas não deixava o aludido médico alemão de escrever: “O ar é tam mao e comunica aos alimentos taes qualidades mortíferas que os que comerem deles logo que ali chegarem, devem ficar certos que serão vítimas da sua imprudência, ou pelo menos que adoecerão gravemente:”
                O Dr. Tams deslumbrou-se com o lugar das Quipacas, lugar que ficava perto do lugar onde se construiu a estação de Caminho-de-ferro, e que se chamará assim já que era um lugar aprazível, onde construíram espaços de lazer gente endinheirada (Kipaka em quimbundo significa dinheiro): “ Neste sombrio retiro, os cantos de numerosas espécies de cigarras ressoavam à tarde, e os seus agudos sons tam penetrantes eram neste profundo silêncio, que se podiam ouvir claramente a mais de uma milha de distância. Aqui um italiano que havia enriquecido com o tráfico da escravatura, tinha formado, uma linda casa de campo, no meio de um intensíssimo pomar, para onde convidava diferentes habitantes de Luanda, os quais nunca deixavam de aproveitar-se daquele deleitoso passeio.” Tams referia-se a Antonio Paris, napolitano que morreu em Luanda com 86 anos em 23 de Dezembro de 1846. Veio para Angola em 1821 com mais 212 compatriotas, condenados a degredo por tribunais napolitanos e a pena era cumprida ao abrigo do acordo celebrado em 11/12/1819, entre o rei D. João VI de Portugal e o rei das Sicílias. (Este conjunto de referencias vem no livro, “Subsídios para a História de Luanda” de Manuel da Costa Lobo, Lisboa-1967). Refira-se que este Paris teria sido dono do famoso Hotel Paris, demolido para dar lugar ao Palácio da Palmeira, onde esteve a Lelo, e que hoje está sentenciada a ter em breve o mesmo destino.
                O livro de George Tams, “Visita às possessões portuguesas na Costa Ocidental de África” descrevia as refeições: “ às oito horas, todos nos reunimos ao almoço, que geralmente se compunha de mãos de vitela cozidas, vagens de pimenta fervidos em água; ou de caracóis cozidos e algumas espécies de marisco. Vinho tinto de Lisboa acompanhava a comida e no final serviam o chá.
                Ao meio dia, tomávamos outra refeição que consistia de queijo e cerveja. Às seis horas era servido um variado e suculento jantar, consistindo a sobremesa duma abundante escolha de frutos, sendo principalmente de amêndoas de caju, laranjas e goiabas.” Situamo-nos em 1854!
                Já que hoje este artigo é quase feito de citações não deixa de ser curioso que em fins do seculo XVIII, os cidadãos de Luanda eram conhecidos por “Volantes”, palavra que no entender de Teixeira de Vasconcelos sintetizava “quão diminutas eram as ligações que existiam entre eles e a terra…”! Já era assim!
                Elias Alexandre da Silva Correia, que esteve em Luanda no segundo quartel do seculo XVIII, escreveu na sua “História de Angola” algo sobre hábitos de grandeza que mais de dois séculos depois mantem-se perenes: “ O Luandense detesta os sufrágios da miséria e prepara um trem de vida, tanto mais pomposo, quanto mais iniquo. Impõe respeito no seu trato doméstico; enche a sua mesa de bocados desusados na sua criação; adopta para o vestuário o uso de custosas alfaias e ricas joias, como espadins de ouro, cravejados de pedras preciosas, fivelas de ouro e de pedras, bons relojios, abotaduras de importância, ricas sedas, etc; faz garbo do desperdício: brilha no jogo com magnanimidade e combate, vício por vício, o dos seus émulos.”
                No contexto que se vive na Luana de hoje seria de todo urgente que se fizesse uma reflexão sobre o que seria a cidade no futuro, sem a megalomania que é uma prodigalidade do angolano, nem abandonada em tempos de crise acentuada.
                Luanda merece este debate e sobretudo que se procure salvaguardar a réstia de passado e que a cidade seja recriada para que seja vivível, e deixe de ser insalubre no que se respira, no que se negoceia, no que se comenta, no que se publica e fundamentalmente no que se decide.
                Baudelaire dizia: “As cidades mudam mais depressa que o coração dos seus habitantes”!
                Nota: Este texto tem muitas transcrições do livro “Subsídios para a história de Luanda” de Manuel Costa Lobo, editado em Lisboa no ano de 1967.

Fernando Pereira

16 de dezembro de 2016

Mínimas / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 16-12-2016



Mínimas
Estamos a viver um período pós-catártico, em que cada cêntimo de subida do preço do petróleo é recebido com uma euforia inimaginável em tempos não muito recuados.
               Continuamos a assistir a um País que desde os tempos do antanho só consegue viver em dois estados: o da euforia e o da descrença. Foi assim na alta do mercado dos escravos e na sua proibição. Foi no tempo do comércio da borracha e o seu declínio por concorrência com os mercados asiáticos. Foi no tempo da cultura do sisal em alta de preços no tempo da 2ª Guerra Mundial, e passou a uma planta quase ornamental por causa do aparecimento dos sintéticos. O café, essa cultura que construiu avenidas em Lisboa e bairros em Luanda, caiu a pique no dealbar dos anos 70 do século passado quando a Organização Internacional do Café (um cartel de meia dúzia de produtores de café muito fechado) se vê confrontada com outros produtores, principalmente de países em que acabadas convulsões internas puderam colocar no mercado um produto melhor e a preços mais competitivos. A partir do fim dos anos 70 tem sido o sobe e desce do preço do crude a alimentar o quotidiano maniqueísta do angolano!
               Da esperança à desesperança vão uns dólares menos no preço do petróleo, e os que governam ufanos da sua capacidade de gestão no tempo da largueza, entram imediatamente num estado de catatonismo gericence , com os resultados a evidenciarem-se todos os dias em largos sectores da atividade social e um pouco na incipiente atividade produtiva do País.
Nestes dias assistimos ao Congresso do MPLA, que poderá ser decisivo para o futuro próximo de um País exaurido das suas riquezas, manietado por falta de recursos para o futuro e desconfiado de todos os que governam ou mandam, que nalguns casos não acumulam as mesmas competências. Claro que o quadro não será tão mau dirão alguns, é pior ainda dirão outros.
Parece-me que mais uma vez vai prevalecer o bom senso possível no partido que nos governa desde a Independência, e na minha opinião pessoal ainda bem!
 A substituição requentada de José Eduardo dos Santos pode trazer “sangue novo” ao MPLA e trazer alguma modernidade de métodos e mudança de léxico.
O significado maior das mudanças que se estão a operar, e eu corro o risco de estar a escrever isto sem ter dados concretos, assentam sobretudo num fim de ciclo. Não tanto pela saída de José Eduardo dos Santos, que merece um obrigado generalizado pela forma como dirigiu o País em situações de grande dificuldade, mas acima de tudo pelo fim do repisado “guerrilheiro”, do “maquis” e da “luta contra o colonialismo”.
Acabou isso, hoje isso é para começar a ser trabalhado pelos historiadores, antropólogos e documentalistas, e temos que utilizando uma frase de Agostinho Neto “passar a puxar as noras com as nossas próprias bestas”, fazer melhor o trabalho e arranjar cada vez menos desculpas. Não podemos continuar a culpar o colonialismo de uma parte do que não conseguimos fazer, e atirar responsabilidades para as “minas e armadilhas” que foram os últimos discursos de responsáveis máximos que tiveram um eco risível nas caixas-de-ressonância dos “yes men” do regime.
A oposição ao MPLA é frouxa porque não se consegue libertar dos escolhos de outros tempos, e está sempre com receio que os pardacentos esqueletos saiam do armário e que contaminem a sociedade angolana. São só uma franja do MPLA com outros fantasmas e uns e outros acham que o Halloween é permanente e os seus fantasminhas, justificam a inoperância e a falta de dinâmicas novas que promovam mudanças, e acima de tudo façam os angolanos mais felizes.
Angola pode ser um bom País, não é necessário pensar-se que tem que ser um grande Pais, porque também não tem condições para o ser. Ter alguns cidadãos com 10 Rolexes no braço não é sintoma de nada, melhor significa “parolice de novo-riquismo”, pois o que dignifica um País são valores sedimentados de probidade na administração pública, um povo culto, bem alimentado, com saúde, com emprego e que traga a dignidade a gente  que merece deixar de ser sofredora e pasto fácil para que ONGs duvidosas e Igrejas de dogmas misturadas com cifrões, consigam continuar a trabalhar e a minar os alicerces de uma ordem institucional que tem que ser garante da cidadania plena dos angolanos.
Muitas vezes, é preciso um mau motivo para fazer a coisa certa! A minha grande experiencia da torpeza humana ensinou-me que o dinheiro não se perde. Engana-se no bolso, é tudo! Julgo haver bolsos onde se dê uma volta porque caiu lá mal o dinheiro!
Desculpem o devaneio, mas quando se discutem o lugar das “bundas” num congresso, neste caso do partido do poder, uma bunda de luxo americana recebe uns milhares de dólares por se passear sem se submeter a sufrágio. Uma desbunda! Este é um dos exemplos que me desgosta no País!

Fernando Pereira

5/12/2016

21 de outubro de 2016

“Conde de Abranhos” nos trópicos / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 21-10-2016




“Conde de Abranhos” nos trópicos
“Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspeto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o Doutor.
Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo trabalho cerebral.
Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado como um excelente moço.”
Este é só um delicioso detalhe, da farsa o “Conde de Abranhos” ,que o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) fez sobre a sociedade do seu tempo no período conturbado da 1ª experiencia constitucional portuguesa!
O “Conde de Abranhos” era a personagem típica do carreirismo, “carneirismo” e bajulice no seu pior, e infelizmente acontecendo em várias latitudes e na vivência quotidiana de sociedades que não passam de ter este “status”.
O Conde de Abranhos estudou na Universidade de Coimbra, onde começou por denunciar um colega, o que lhe permitiu passar a usufruir favores dos seus superiores. Simultaneamente envolve-se com a “criada”, que fica grávida e imediatamente abandonada, e o rapaz recém-nascido completamente esquecido. Vai para Lisboa, trabalho no escritório do causídico Vaz Correia, que o guinda a redator chefe do Jornal “Bandeira Nacional”.
Percorrendo os corredores do poder, casa-se com a filha do Desembargador Amado, Virgínia de seu nome, o que lhe assegura de imediato 10 mil cruzados de renda, e fundamentalmente abre-lhe as portas de S. Bento (Assembleia Nacional de Portugal). É eleito deputado por Freixo de Espada à Cinta, onde faz discursos, vazios de conteúdo, sobre a reforma das instituições, a política colonial e o caminho-de-ferro do leste. Como os tempos não corriam a favor da sua linha política, não faz disso um problema, e passa-se com armas e bagagens para oposição que em troca o coloca como um “cinzento” Ministro da Marinha, lugar que ocupa como “estátua” durante dois anos sem que alguém dê por ele.
Trouxe aqui o “Conde de Abranhos” porque ilustra o quotidiano do poder, dos títulos tantas vezes conseguidas à custa de coisa pouca ou coisa nenhuma, e da influência que certas criaturas tem nos corredores do mando sem que possuam qualquer tipo de competência, legitimidade académica e comprovada experiencia na gestão de qualquer coisa pública.
Fazem-se as cadeiras em função dos rabos de quem usa argumentos para se lá sentar, nem sempre os mais ortodoxos, e frequentemente a cadeira é feita para à medida de gente que se encostou a quem tenha força suficiente para os lá colocar. Temos que recuar ao império romano, que com toda a sua corrupção e nepotismo nas hierarquias do poder havia um cuidado muito especial para se escolherem os rabos dos cavalos que equipavam as quadrigas, por forma a não destabilizarem toda a carruagem nas lutas que se iam fazendo nos jogos, nas batalhas e no transporte de pessoas de elevada importância.
Acho que um exercício saudável seria o regresso aos clássicos, e já agora porque não voltarem-se a ler alguns vultos das letras que em português escreveram, e muito bem, e pegar num Eça de Queiroz, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Ramalho Ortigão, Guimarães Rosa, Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues (Recentemente o Elinga encenou “Mulher sem pecado”), Jorge de Sena, Aquilino e tantos outros para que reaprendamos a escrever, e ver que a frase de Marx do “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte” (!852)A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.” É de uma acuidade permanente no quotidiano vivível.
O “Conde de Abranhos” é uma farsa, e é também um vivendo para onde os angolanos vão sendo involuntariamente empurrados, fruto das realidades que se vem na mudança de cadeiras do governo central, e nos governos provinciais, o que deixa no ar que há poucas soluções para os rasgos da política económica e social que caminha de crise em crise sem solução à vista.
Aguardemos melhores dias!

Fernando Pereira
26/9/2016



14 de outubro de 2016

O lugar do morto - O Interior- Guarda 13/10/2016



O lugar do morto
As forças vivas da Guarda, e algumas que se julgam vivas e estão mais que moribundas vão-se entretendo com alguns jogos florais.
               Entre o bate e o abate de árvores, de manter ou fazer desaparecer “bucho” vou olhando com interesse para o edifício de Vasco Palmeirim (Regaleira), o Hotel Turismo, obra de tomo do Estado Novo, no âmbito de um conjunto de hotéis entregues à supervisão do arquiteto Raul Lino. A verdade é que há anos que encerrou as portas, depois de um período de morbidez de vários anos e sucessivos executivos da Camara Municipal da Guarda.
               Por estar no centro da cidade, a sua degradação vai-se evidenciando e fundamentalmente acentua-se a indefinição do que será o seu futuro! Aguardemos as cenas dos próximos episódios, e que promessas novas virão abrilhantar a pré-campanha eleitoral que já se começa a viver.
               Eu não vivo na Guarda, embora tenha no meu quotidiano a maioria da atividade social na cidade.
               Ocasionalmente tenho que ir a velórios, de pessoas que me merecem consideração, seus familiares próximos ou até meus familiares e confesso que é confrangedor como a cidade trata os seus mortos.
               Sei que os autarcas não gostam de gastar dinheiro com “mortos”, ou melhor enterrar dinheiro em obras que tenham a ver com gente que tenha falecido. A síndroma “Odorico Paraguaçu” da novela brasileira “O Bem-amado” do dealbar dos anos 70 no Brasil, e que foi um êxito em meados dos anos 80 na TV portuguesa, ainda se vai mantendo no subconsciente dos autarcas, e recusam ao máximo alterar o que quer que seja que tenha a ver com mortos. Para os que não conhecem a história, ela decorre em Sucupira cidade do nordeste brasileiro onde Odorico, um perfeito venal, corrupto e demagogo decide como obra grande do seu mandato a construção de um cemitério na cidade, com o argumento que os mortos deixassem de ser sepultados numa cidade vizinha. A excelente telenovela tem o seu enfoque na ausência de mortos para o cemitério, que se terá revelado um “elefante branco”, naturalmente aproveitado pela oposição. Odorico tenta tudo mas ninguém morre, e não consegue inaugurar o cemitério, e contrata um “cangaceiro” para arranjar uma vítima. O homem, que se queria regenerar acaba por assassinar o perfeito, que vê o cemitério inaugurado pela oposição graças ao seu próprio cadáver.
               A Guarda devia ter um local com alguma dignidade para que amigos, familiares e conhecidos de alguém que morra, lhe possa fazer um velório com a dignidade que qualquer pessoa merece no momento da despedida.
               Os amortalhados vão para um anexo da Igreja da Misericórdia, onde ficam numa sala exígua, mal iluminada, fria, sem apoio de sanitários decentes num lugar com uma entrada quase clandestina, que dá para uma rua onde o vento no inverno nos “embala e abraça”!
               A Guarda merecia um local condigno, ventilado no Verão, aquecido no Inverno, com algum apoio (águas, cafés, por exemplo) e onde as pessoas pudessem confortar os familiares do defunto no féretro.
 Outro detalhe não negligenciável tem a ver com a falta de um local de recolhimento a defuntos que não professem a religião católica, e que não conseguem ver salvaguardados os seus direitos de cidadania na hora do seu passamento.
Acho que a Guarda mereceria a construção, ou mesmo adaptação de um centro funerário que dignificasse a cidade, e não o espaço onde se fazem quase todos os velórios das Ex freguesias da Sé e S. Vicente.
Acho que era um bom motivo de reflexão e debate com caracter de urgência!

Fernando Pereira

9/10/2016

8 de outubro de 2016

Cantilena do povo

Fui encontrar um dos artigos que escrevi com o pseudónimo de "Vila Cândida" no Correia da Semana nº3 de 30 de Janeiro de 1993. Já nem me lembrava dos meus tempos de "Pena de Ouro" do jornalismo angolano,eheheh!!!





Artigo no "Jornal de Angola" de 17 de Setembro de 1994

Hoje andei a arrumar umas tralhas e fui descobrir um artigo que escrevi para o "Jornal de Angola", onde colaborei uns anos. Este artigo saiu precisamente no dia 17 de Setembro de 1994.
Engraçado como as coisas naquele tempo já aconteciam!!!




7 de outubro de 2016

REQUIEM / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 7-10-2016








REQUIEM


Já começo a estar num patamar da vida em que há cada vez menos coisas que me surpreendam!
A semana passada “perplexei-me” com a leitura do livro de Rita Garcia, “Luanda como ela era 1960-1975”. Desde os tempos da Agencia Geral do Ultramar, ou da componente local CITA  (Centro de Informação e Turismo de Angola), que não conseguia ver um trabalho com tantos encómios a uma cidade pintada de branco. Foi o retorno ao “lava mais branco” onde a cidade branca era o paraíso e onde os não-brancos eram apenas criados, músicos ou meros figurantes.
               O livro em termos gráficos é interessante, as fotografias estão bem enquadradas, tudo o resto é um cantar loas a um modelo de sociedade em fim de festa, e que curiosamente poucos se davam conta disso! Se tivesse que fazer um comentário ao livro nos meus tempos do Liceu Salvador Correia, diria que era um “livro da sanguitada”. Hoje estou mais brando na verve, e não teria feito este artigo se hoje não tivesse lido uma entrevista da Rita Garcia à “Notícias Magazine” cheias de lugares comuns, como no livro, mas referindo-se aos anos da guerra, em Luanda, como "os doces anos em que o espaço não tinha fim e os dias morriam devagar num paraíso tropical". 
               A convicção com que fiquei, e note-se que li outros dois trabalhos da autora, foi que a jornalista Rita Garcia não terá feito uma avaliação cuidada quando resolveu fazer este livro, e provavelmente limitou-se a ouvir quem viveu Luanda a olhar sempre só para o mar.
               “ Luanda como ela era 1960-1975” é o livro que o saudosista puro e duro poderá oferecer aos seus filhos e netos no Natal, depois de pouco mais de quarenta anos a reduzir Luanda à cidade do asfalto, e a esquecer as prisões arbitrárias nos musseques, a segregação nos espaços públicos e o limitado acesso dos negros ao ensino, entre outras coisas que aviltavam a maioria dos naturais da Luanda pintada de cor-de-rosa esbranquiçado.
               As excelentes fotos que vão correndo ao longo do livro não deixam dúvidas sobre a Luanda até 1975: Uma cidade construída para brancos viverem, divertirem-se, trabalharem e esquecerem o dramatismo do que foram tempos coloniais, onde o estatuto do indigenato e o cartão de residência iam segurando um grupo de gente que “merecia o seu bocado de pão”, como dizia o poema do angolano Agostinho Neto.
               As comunidades brancas e negras viviam de costas voltadas. No Liceu Salvador Correia, o mais emblemático do território, a percentagem de negros e mestiços era ridícula comparada com os estudantes brancos. Posso dizer, eu que o frequentei durante cinco anos, que nunca fui a casa de nenhum colega negro, apesar de termos uma relação normalíssima nos bancos da escola. E esta era apenas um dos exemplos do distanciamento na sociedade luandense, que não se cingia ao Clube Naval, Nun’Álvares, Clube dos Caçadores, Barracuda, Mussulo, Dongo, S. Jorge, Restinga, Tamar, Contencioso e outros lugares onde nos esquecíamos de tudo o que se passava nos “bairros da terra vermelha”.
               Carlos Matos Gomes, militar reformado, autor de um conjunto de obras obrigatórias para o estudo da guerra colonial diz: “Luanda pode ter sido inesquecível para muitos e por muitos motivos, mas era caótica, ofensivamente desigual em todos os aspetos, do social à urbanização esse é um facto e a prova de que, tal como Rio de Janeiro, os seus autores tinham conseguido estragar o lhe era natural.” Infelizmente em Luanda todos os trabalhos duros e mal pagos eram para os colonizados e isso fica registado para a história e os seus combates no futuro.
               Simultaneamente ao lançamento deste livro, de que prefiro não perder muito mais tempo, estreou em Lisboa o filme “Cartas da Guerra” de Ivo Ferreira baseado nos “aerogramas” de António Lobo Antunes para a sua mulher durante os dois anos e meio em que fez a guerra colonial em Angola. Ainda não vi o filme, mas li o livro e aqui no NJ fiz ao tempo (25-3-2011) a crónica onde acompanhei as observações escritas pelo então alferes Lobo Antunes sobre a “cidade inesquecível”.
               Cá vai: “Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía...Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica na esplanada Estrela Brilhante, com o chão cheio de tremoços e de detritos. Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmolas, outros oferecem-me cinzeiros de madeira, objectos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. Uns sujeitos sebentos, de pasta, trocam escudos por angolares, com 12% a mais. Mas é tudo caro, tórrido e feio.
...Ontem um amigo daquele outro médico afinal conhecido, levou-nos a visitar a ilha, uma espécie de promontório com praias de um e outro lado, casas, um clube de golfe. Uma espécie de Rodésia vista por um mestre-de-obras de Tomar.
...Luanda está longe de ser uma cidade vivível: toda ela é uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano, e os brancos daqui têm todo o mesmo indefinível aspecto dos vendedores de automóveis daí, de patilhas sem classificação social, camisas transparentes, e mulheres tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas. Os musseques são uma espécie de bairro da Boavista ampliado, em que os moradores fossem todos jogadores do Benfica. Só a terra é que é vermelha, como a areia dos estádios, e as noites cheias de murmúrios de insectos e de folhas, mergulhadas num mormanço de suor.
O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto porque, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes tipos é absolutamente execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. Não há em Luanda absolutamente nada que preste: as poucas estátuas que tem, ultrapassam em mau gosto tudo o que se possa suportar, os edifícios são todos no género daquele em que mora o Souto, e que para mim representa o paradigma da fealdade. É uma excrecência absurda e estúpida. E estes tipos aqui acham Luanda um paraíso, uma espécie de Rodésia em melhor. Não nos agradecem o nosso sacrifício por eles, e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência desdenhosa de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver numa cidade sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
               Duas visões, e eu que nasci e cresci em Luanda não me revejo em nada com a da Rita Garcia, e pontualmente estou de acordo com a azia que impregna as cartas de Lobo Antunes.

Fernando Pereira

3/10/2016



Recebi este comentário do Leonel Cosme, e por ser extenso não o posso colocar no local dos comentários.Coloco-o aqui pela relevância que tem! Publicado no Artes e Letras!

ANGOLA nas memórias das guerras modernas
Há anos que deixei de ler livros sobre a chamada Guerra Colonial – que, conforme os tempos e as circunstâncias, também foi chamada Guerra do Ultramar e Guerra de Libertação. O último que ainda me mereceu um relance de olhos foi um trabalho da jornalista Rita Garcia, S.O.S.Angola – Os dias da ponte aérea, editado em 2011, do qual guardei uma impressão positiva, não obstante o facto de a autora, nascida em 1979 e em Lisboa, não ter feito parte directa da saga dos retornados. Baseando-se naturalmente em memórias alheias e escritos sobre aquele evento ocorrido em 1974-1975, considero que, literariamente, produziu um trabalho respeitável. Depois, escreveu mais dois livros, cuja publicação só vi noticiada, sobre “os que vieram de África” e “Luanda como ela era-1960-1975”, este sendo recentemente objecto de reparos num conceituado semanário de Luanda, Novo Jornal, em recensão de um seu reputado colunista, nascido e criado em Angola, Fernando Pereira.
Pese embora alguma reserva, logo pensei: terá a autora, desta vez, seguido a tentação do sapateiro que foi além da chinela? Se assim foi, terá navegado naquela nau aventureira do mau jornalismo que, pela irresistível tentação do sensacionalismo, não acrescenta nada de novo, repetindo o que está visto e sabido.
Concedo que é comum acreditar nas palavras e memórias de quem não temos razão para duvidar. E que se aceite como válida – como teorizou um comentador do último livro de António Lobo Antunes – (…) “a palavra que se deseja longeva, ou seja, a sobrevivência da literatura à passagem do tempo, às brancas que a memória possa ter no espetáculo da vida.” Só que, tratando-se de literatura escrita em papel (digitalizada é outra coisa, como sabemos), toda a prudência será pouca se pensarmos que com documentos, bons ou maus, se faz história. Donde, em princípio, a prudência aconselha que o testemunho de quem passou por Angola (por África, melhor dizendo), nela viveu e, pressionado pelas vicissitudes da dita Guerra Colonial, teve de fugir deixando tudo quanto exprimia o seu sentido de pátria (original ou adquirida) – ubi bene, ibi pátria diziam os latinos – seja tomado como a “sua” memória e não como a memória de “todos”.
Neste pressuposto, decidi avocar o testemunho do consagrado escritor António Lobo Antunes, transcrito naquele citado artigo de Fernando Pereira – significativamente intitulado “Requiem” – que nas Cartas da Guerra dirigidas à esposa verte a sua diatribe por Luanda (e Angola por envolvência) de oficial–médico do exército português compelido para a Guerra do Ultramar. Respigo:
“O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia, pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes tipos é execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. (…) Não nos agradecem o nosso sacrifício e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
 Em minha opinião, nada desculpa tão errónea visão da capital angolana e seus moradores obviamente brancos e da classe economicamente privilegiada, manifestada logo na maneira de vestir e na posse de automóveis americanos... Enfim, ”gente que vive sem passado, quais descendentes dos degredados”.
 Tolere-se que o militar compelido, por alegado dever patriótico, a fazer e sofrer, no mato, durante dois anos, uma guerra com que não concorda, acumule tensões psicológicas que distorcem até a visão da realidade e o sentido das coisas. Mas não menos sofrido será o colono culturalmente impreparado para compreender e aceitar os ventos de mudança que lhe arrasaram uma vida conseguida à custa de muito trabalho, renúncias, sacrifícios e, não raro, lágrimas. Para este, a Guerra é só uma, a despeito dos rótulos, quer seja o de Ultramar, Colonial ou de Libertação, conforme respeite ao regime de Portugal, ao critério da ONU e à luta dos povos colonizados.
   Pois essa vida de “portugueses-outros”, que não poderá ter começado sequer com a última geração dos “lançados” ou “degredados” em África (já o tinham sido no Brasil, igualmente ao que acontecera, ainda no século XIX, com os ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e outros, expatriados para as colónias da América, África e Oceania), não se confundem sequer com os “portugueses-novos” que  arribaram a Luanda, de fato e gravata, vindos directamente da Metrópole, ostentando  a sua classe montados em automóveis americanos… O comum dos brancos naturais ou há muito residentes era  uma vida frugal, casa alugada ou, se própria, geralmente paga em prestações através de  cooperativas de habitação ou de crédito bancário. Não conheciam a palavra aforro… Com o que lhes “sobrava” de um salário geralmente mediano podiam, quando muito, comprar um carro utilitário também a prestações.   
A meio da década de 50 começara o “boom” do café e das explorações mineiras (os diamantes, o marfim, a cera e o couro já vinham de trás) e, geridos em Lisboa, os primeiros negócios da exploração do petróleo, logo a seguir impulsionados pela “abertura” do Regime aos Planos de Fomento e à implantação da Banca privada. A última Guerra do Ultramar tinha começado em 1961 e os novos descobridores de oportunidades aproveitaram as marés para lançarem as suas naus… Então a população de Luanda explodiu em número, qualidades e defeitos, originando os ricos-novos de várias cores, fazendo jus ao provérbio quimbundo: Mu Luuanda, mu uauaba: mu izê mukûku, ubiluka ndua. (Luanda é boa: não vem cuco que não se transforme em andua).     
Vale registar, para quem não saiba ou se esqueceu, que na capital angolana – segundo o investigador Francisco Lopes Roseira -, em 1832, dos seus 5.059 habitantes  966 eram elementos das instituições religiosas, militares do Destacamento de Portugal e funcionários públicos em comissão de serviço. Os desterrados por delito comum estavam distribuídos por presídios criados em várias regiões, de Norte a Sul, devendo-se a eles, em muitos casos, as primeiras pedras do edifício colonial.
Mas não se confunda com generalizações. A colonização de Moçâmedes foi iniciada, em 1849-50, por portugueses sem mácula criminal fugidos de Pernambuco às pressões da Revolta Praieira, e a colonização da Huíla, em 1884-85, por gente simples da Madeira. A “pior canalha do Reino”, como lhe chamou o Governador Paiva Couceiro em 1910, estava fixada sobretudo nos principais centros populacionais, como Luanda e Benguela, em Depósitos Penais, criados em 1883. E não se confunda também quem foram os desterrados do Brasil, implicados na Inconfidência Mineira, em 1789, como o naturalista José Álvares Maciel, o poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto, o coronel Domingos de Abreu Vieira, o tenente-coronel Luís Vaz de Toledo e o sargento-mor Francisco António de Oliveira Lopes.
 Ainda mais inconfundível: já no começo do século XX, foram desterrados, em 1927, os dissidentes do 3 de Fevereiro no Porto e do 7 de Fevereiro  em Lisboa: Henrique Galvão, Camilo de Oliveira, Luciano Augusto Dias, Gervásio Campos de Carvalho, Agatão Lança e Manuel Marques Teixeira – alguns revertidos, mais tarde, em governadores.
Sendo também jornalista, não falo de outiva: cheguei a Angola em 1950, onde vivi até finais de Outubro de 1975, quando a invasão do Sul de Angola pelas tropas sul-africanas e o conluio com a UNITA, a FNLA e o ELP me obrigaram e à minha famíliia, in limine, a regressar a Portugal, com recurso à ponte aérea. Voltei a Angola para cumprir um contrato de trabalho entre 1982-87. Em 2005, fiz a última visita a Luanda. Foi neste período que vi as velhas casas de sobrado substituídas por inimagináveis arranha-céus; muitos moradores que tinham trocado o calção de caqui e a camisa sem mangas por fatos de casaco e gravata; outros moradores que chegavam, nos períodos de descanso, outrora a pé ou saídos do machimbombo, à livraria Lello para comprar ou conhecer as últimas novidades literárias (permitidas ou proibidas) ou ao vizinho café Biker para cavaquear (já conspirando…) em torno de um copo de cerveja, agora impedidos pelo trânsito infernal dominado por vistosos carros, importados de todo o mundo, rumo ninguém imaginava a quê. O tempora! o mores!
  Enfim, seja por resgate, catarse ou moenda que se continuam a escrever livros dizendo o mesmo (às vezes deliberadas mentiras ou falsidades) sem acrescentar nada de novo ao que se conhece, manterei o propósito de não ler mais livros com estórias de vida de regressados, civis ou militares, ao único país onde não serão estrangeiros.
                                                                                               LEONEL COSME
  P.S. Em consideração do espaço, faltou dizer que, só com a segunda chegada de Diogo Cão, em 1484, a Angola, foi estabelecido um curto período de verdadeira “colonização missionária”, usando a expressão de Adriano Moreira.


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