8 de maio de 2015
Morreu o “Senhor Lubito” / Ágora / Novo Jornal/ Luanda/ 8-5-2015
Morreu o “Senhor Lubito”
Preparava-me para escrever o artigo semanal quando recebo a notícia do falecimento do arquiteto Francisco Castro Rodrigues (1920-2015).
Com o seu desaparecimento, o Lubito perde a última das suas grandes referências de um tempo de luta, de esperança batalhada, de uma gente que sentia que a cidade não se resumia a uma lingueta de areia, esquecendo toda uma periferia com gente que labuta há muito na busca de um dia melhor, que vai tardando.
Ocasionalmente conversávamos ao telefone, porque já há uns tempos que as limitações físicas o impediam de se deslocar com facilidade. Ficou muito abalado quando lhe dei a notícia do desaparecimento do Engenheiro Fernando Falcão assim como a do Dr. Canhão Bernardes, o “escultor” do Lubito. Julgo que foi a última vez que conversámos, e sempre nas suas palavras o “Lubito” do seu coração.
Em homenagem a Francisco Castro Rodrigues irei, por sistema, usar Lubito, afirmando sempre que era uma forma de acabar com a estulta ideia que foi prevalecendo de que o nome Lobito apareceu por causa de Lobos que rondariam as cercanias.
Conta no seu livro “ Um cesto de cerejas” que, em determinada altura, se decidiu fazer um estandarte da cidade, tendo o desenho “um castelo, uma âncora, umas conchas de ostra- Antigamente chamava-se ao Lubito, a Catumbela das Ostras, que era a única coisa que lá existia-, e as quinas”. Estavam a trabalhar afanosamente no estandarte, que era necessário para a visita do Presidente de Portugal, Craveiro Lopes, à cidade e telefonam ao arquiteto da “Casa das Bandeiras”, já perto da meia-noite, para lhe dizerem que ” tinha havido uma alteração no desenho pois tinha lá aparecido um tipo do Ministério a propor um novo desenho, o escudo já não tinha o bico em baixo, tinha um no meio circulo. E havia um lobo em pé…E o texto da memória descritiva dizia assim: «lobo de prata passante em campo de púrpura»”. As peripécias são deliciosamente descritas por FCR para depois dizer no fim que no Ministério do Ultramar ficaram indignados quando lhes disse o óbvio: Não há lobos em Angola! A verdade é que entre o põe lobo e tira lobo, acabou por prevalecer a opinião do arquiteto que defende que “Lubito vem de uma partícula que eles (umbundos) têm, «Olu», para designar determinado substantivo”…” Lubito é «Olu pito» que na composição do étimo” Lu é água e pito, porta; ”porta da água”! Nada tem a ver com lobos!
Não sei se terá sido premonição, mas quando recentemente houve a tragédia nos morros do Lubito, pensei telefonar ao arquiteto para tentar recordar uma conversa que mantivemos há uns anos sobre a consistência dos morros que cercam a “baía” do Lubito. Na realidade acabei por não o fazer e pelos vistos o desenlace estava iminente.
FCR ia ouvindo o que lhe desagradava relativamente ao excessivo número de casas que os morros circundantes ao Lubito estavam a receber, o que contrariava em tudo o plano diretor por si gizado, onde, num contexto de reordenamento urbano, se previam os bairros da Bela Vista, da Esperança (Bairro da Rádio), do Vale do Liro, dos Morros da Catumbela e do Alto do Liro. Quando falávamos disso, dizia que uma tragédia poderia ocorrer se não se seguissem determinados preceitos que permitissem a fixação dos solos, que eram facilmente “desmoronáveis” a uma chuvinha de alguma intensidade. Ria-se muito quando falava de um bairro emblemático num monte entre Lobito e a Catumbela, construído pelo Cassequel num quadro promocional de inserção social dos negros com um conjunto de casas cor-de-rosa, todas alinhadinhas e cobertas de colmo, mas “invivíveis”, porque era impossível lá dentro aguentar a canícula e a humidade que se concentrava, obrigando os putativos habitantes a fazerem as suas próprias casas com material da região, de aspeto menos apelativo, mas com melhores condições de habitabilidade! “Eram autênticas frigideiras”, dizia Castro Rodrigues que sempre lutou contra as empresas majestáticas do Lubito, a Companhia Agrícola do Cassequel, o Caminho de Ferro de Benguela, o Porto do Lobito e fábrica de cimento.
Seu livro “Um cesto de cerejas” surge como resultado de uma conversa com a Professora Eduarda Dionísio, filha do meu professor Eduardo Dionísio, numa passagem “insucedida”, pelo Liceu Camões em Lisboa no fim da década de sessenta, um antifascista e um homem grande do neorrealismo. Uma edição pequena da Casa da Achada!
Não esconde nada, fala de quem gosta e zurze em quem não gosta, fundamentando as suas opiniões. Fá-lo de uma forma desprendida, como todos o foram conhecendo ao longo de uma vida que deu muito a uma Angola que esquece rapidamente quem ousou lutar por ela, e construída lutando num processo em que conseguia unir a sua forte convicção política de homem de esquerda, vanguardista no seu trabalho, só possível ao nível dos que sempre estiveram bem com a vida, que muitas vezes nada tem a ver com o bem na vida.
O desaparecimento de Francisco Castro Ferreira quase que marca o fim de um conjunto valoroso de arquitetos que fizeram em África o que em Portugal lhes foi negado por razões de ordem política. A realidade acabou por mostrar que este grupo onde esteve Vasco Vieira da Costa, Fernando Batalha, irmãos Castilhos, Simões de Carvalho, Francisco Castro Rodrigues e tantos outros, deram um arejamento à arquitetura bafienta e de monumentalidade bacoca do salazarismo.
Francisco Castro Rodrigues, nos seus quase quarenta anos de vida no Lubito, foi mais que um arquiteto; foi professor, numa altura de abandono generalizado depois da independência de Angola, dinamizador associativo, interventor político e divulgador cultural.
Nunca se colocou em bicos de pés em circunstância alguma, apesar da excelência da sua obra e de todo um conjunto de prémios e menções honrosas recebidas ao longo de uma vida cheia.
Já nos últimos anos, foi um dos obreiros da construção do museu do neorrealismo em Vila Franca de Xira, a quem doou uma parte do seu riquíssimo espólio.
No seu Lubito ficam as marcas da sua passagem como as Portas do Mar, o edifício Universal, a Colina da Saudade, a Casa do Sol, o Liceu Saydi Mingas, o Cine Flamingo, as atuais instalações do Instituto Lusíada no silo-auto da Casa Americana, a reconversão do Tamariz, o Mercado Municipal, a urbanização do Alto Liro, da Bela Vista, o obelisco da entrada, o edifício da aerogare e tantas obras particulares e públicas de décadas de trabalho. No Sumbe, entre vários projetos assinala-se a catedral e o edifício da Câmara Municipal, que em certa altura uns “desenhistas” resolveram desvirtuar.
Seria de toda a justiça que Francisco Castro Rodrigues figurasse na toponímia de uma cidade de que foi um dos seus mais ilustres cabouqueiros. Como normalmente todos têm sido esquecidos, talvez ainda consiga ser suficientemente ingénuo acreditar que eventualmente as autoridades do Lobito (assim mesmo) se lembrem dessa forma de homenagear “um verdadeiro homem da terra”.
Como angolano só me resta, Francisco Castro Rodrigues, agradecer-lhe!
Fernando Pereira
3/5/2015
30 de abril de 2015
Resumidamente / Ágora / Novo Jornal / Luanda 30-4-2015
"Está bem, sou velho, mas a minha imaturidade faz de mim um jovem".(Woody Allen)
Quarenta anos depois da independência do País, é tempo mais que suficiente para começarmos a desmistificar alguns acontecimentos dos tempos da “luta de libertação”, e do percurso da maioria de muitos dos protagonistas.
Não nos limitemos aos períodos conturbados dos anos sessenta e início dos anos setenta, mas também aos tempos do dealbar da independência.
Temos que acabar com o velho preceito estalinista de reescrever a história recente em função de que tipo de mensagem é adequado às circunstâncias políticas presentes. Isso é um processo sórdido e devemos exigir que não o seja feito, para que no futuro não se ande a construir uma história sem rigor científico. Despretende-se uma adaptação angolana de “O materialismo dialéctico e o materialismo histórico”, uma obra menor de qualquer marxismo de pacotilha.
Há um crescente número de factos empolados que nada tem a ver com tudo o que se passou, nem tampouco se revê nos intervenientes diretos, e o que vamos assistindo é a diabolização de uns quantos para a sacralização de outros, perfeitamente dispensável quando cada vez mais se exige lucidez e objetividade no conhecimento da história e verdade no protagonismo de certa gente.
As histórias têm que passar a fluir e não ficarem circunscritas às tertúlias, ou às almoçaradas de sábado em que por vezes chegamos à triste conclusão que “nada foi como nos contaram”.
Do maquis há milhentas histórias que só se contam em surdina, e algumas delas acabam por revelar que num passado distante houve histórias pouco dignificantes, que se repetem atualmente no quotidiano do País.
A título de exemplo, esta que me foi contada por um ex-guerrilheiro já falecido com protagonistas que naturalmente omito. Nos anos sessenta em Ponta Negra eram desembarcados fardamentos e botas para equipar os guerrilheiros do MPLA; Ficaram conhecidas pelas botas de borracha “saltitona” , já que entre o armazém de carga e o local de descarga em Dolisie muitos pares de botas desapareciam, encontrando-as à venda nos mercados da RPC e até no então Zaire. A verdade é que havia um esquema, montado com muita perícia por parte de alguns “maquisards”, muito rendoso e com cobertura superior, que aceitava justificações pueris que “as botas deviam-se ter perdido por causa dos inúmeros buracos na estrada do percurso” .
O ridículo sistema de entrega de armas e munições no leste de Angola aos guerrilheiros assume contornos de anedotário. As armas eram entregues a um grupo de combatentes, mas as munições para as armas só podiam ser levantadas noutro local, por vezes distante quase oitenta quilómetros. Obrigava o grupo, embora pequeno, a ter que se deslocar a pé, com o armamento, mal alimentado e acossado pelas tropas coloniais para irem buscar algo que era indispensável para a sua sobrevivência. Acontecia muitas vezes chegarem ao local e já não haver balas ou para cumulo as armas não estarem em condições quando tentavam testá-las. E a arma mesmo danificada tinha que ser devolvida no local onde lhe tinha sido entregue. Enfim!
Cada protagonista devia deixar as memórias, as boas e as más para que o futuro possa aquilatar com precisão, quanto foi o sacrifício de muitos a quem os angolanos agradecem e os oportunistas que devemos colocar no seu devido lugar: O “caixote do lixo” da história!
Vem a talhe de foice este artigo no dia em que sai em Lisboa mais um livro do Adolfo Maria, um octogenário que se mantém fiel aos princípios da angolanidade, empenhado como há sessenta anos, quando resolveu sem hesitações abandonar o conforto da sua situação de branco privilegiado num sistema colonial, para se embrenhar na luta com a sua companheira Helena Maria, uma portuguesa de Chaves que abraçou a opção do seu marido com grande perseverança e militância.
Adolfo Maria, no livro “ Angola Contributos À Reflexão” presta uma homenagem a muitos que com ele trilharam um percurso de luta pela independência de Angola, e que foram muitas vezes vítimas do oportunismo e cobardia soez por parte de uns quantos, que só punham os pés quando sentiam que as pedras colocadas por outros estavam em condições de ultrapassar um rio.
Este livro é mais um contributo para a história do País e Adolfo Maria não escolheu as palavras, nem adequou datas e acontecimentos ao circunstancialismo da “estória de Angola”.
Era desejável que este deixasse de ser um dos poucos exemplos de quem vai deixar memórias, e nesta fase era de todo desejável que os “mais velhos” escrevessem e que alguns arquivos reaparecessem, para acabar com “mujimbos” sobre posicionamentos políticos dúbios em determinadas circunstancias num longo processo de luta armada de libertação nacional.
Recomendo a leitura deste livro editado pela Colibri, para que se vá alicerçando a discussão no futuro sobre um passado que as gerações mais novas têm que se dar conta que existiu mesmo e não foi nada brando!
Fernando Pereira
28/4/2015
24 de abril de 2015
O 25 de Abril de 1974 também está a passar por aqui./ Ágora / Novo Jornal / Luanda 24-4-2014
José Gomes Ferreira, um dos poetas militantes que muito admiro, escrevia em Outubro de 1985: Momento sinistro de pensamento mutilado. Como é possível viver numa pátria assim! – de livros proibidos, de jornais proibidos, de peças proibidas, de homens proibidos – em que só silêncio é justo?
As revoluções não surgem por decreto. O 25 de Abril de 1974 é o corolário lógico do fim das indecisões que o fascismo de Salazar e sem Salazar tinham alimentado de forma doentia e sem qualquer tipo de solução. O 25 de Abril é o corolário lógico da fraude eleitoral de 1958, do Santa Maria, do 4 de Fevereiro de 1961, da queda de Goa, Damão e Diu, da Abrilada e do início e recrudescimento da luta armada em três palcos de guerra.
Em Portugal, a ebulição surge de forma reforçada na luta pelo horário de trabalho por parte dos trabalhadores rurais, nas greves nas fábricas e empresas por melhores direitos entre salários e proteção social, nas greves académicas de 1962 e 1969, na crescente fuga de gente para a Europa e no isolamento crescente de Portugal na cena política mundial. O 25 de Abril de 1974 é uma data que devolve aos cidadãos portugueses e aos povos sob dominação colonial uma nova identidade e uma nova dignidade.
Não foi feito por aventureiros, como se insinua recorrentemente, mas sim por aqueles que esperaram e desesperaram por uma solução tardia para os problemas que se arrastavam para um pântano de consequências perversas. Hoje, quarenta e um anos depois, podemos dizer que valeu a pena, e que podemos dar aos nossos filhos um mundo melhor, de liberdade, de participação cívica e de perspectivas de futuro assentes na melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos.
Podemos dar as voltas que quisermos, pessoalizar as razões para se afirmar o contrário, mas, de facto, foi a esses muitos homens fardados, que imediatamente tiveram uma adesão popular extraordinária, que ficámos a dever liberdades fundamentais, sem as quais não conseguiríamos respirar. Como em todas as revoluções ou processos políticos, há avanços e recuos, há situações mais ou menos obscuras, há aproveitamentos dos oportunismos que campeiam em qualquer sistema político, mas temos de ter em conta que Abril valeu a pena. Por tudo.
Para quem andava distraído, antes do 25 de Abril, lembro as "sábias palavras" do então mais alto magistrado da Nação Américo Tomás, vulgo “cabeça de Tarro”, que nessa altura era o Chefe de Estado do Minho a Timor.
"Memórias de Tomás" :"Eu por mim próprio, não me decidi a escrever as «Minhas Memórias». Decidiram-me. É que, estando quase toda a gente, ex-chefes de gabinete, ex-subsecretários de Estado, ex-secretários de Estado, ex-ministros, ex-chefes de Governo, escrevendo as suas memórias, a minha família começou a insistir comigo para que escrevesse as minhas «Memórias», na medida em que, disseram-me, mal me ficaria não escrever, também eu próprio, as minhas «Memórias». Habituado a falar e não a escrever, contando, segundo as minhas contas, nove mil trezentos e sessenta e quatro alocuções por sobre o território nacional, isto é, continente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, não minto, nove mil trezentos e sessenta e cinco alocuções por sobre o território nacional e internacional, ligadas ao meu cargo de Presidente da República, - eu nunca me afeitei a usar a caneta, coisa que disse repetidamente a minha família. Não tive sucesso, como é obvio, dado que me compraram uma caneta e ma deixaram fechada na mão. Foi então que, pegando na caneta, carreguei no botão do gravador e comecei: "Senhor bispo da diocese, senhor ministro das Obras Públicas, senhor governador civil, senhor presidente da câmara municipal, senhor presidente da junta de freguesia, minhas senhoras e meus senhores" [in, revista Opção, Ano II, nº 30]"É esta, portanto, a ultima cerimónia que se passa na cidade da Guarda e eu não quero deixar passar esta oportunidade sem agradecer ao bom povo desta terra o seu entusiasmo, o carinho com que recebeu o Chefe do Estado. A chuva não teve qualquer influência no entusiasmo das populações. Elas vivem numa terra de granito, e a chuva não as apoquenta " A Guarda é um distrito de bons portugueses, de portugueses de uma só face, portugueses, portanto, sempre prontos a defender a terra que os viu nascer. E a Guarda tem uma particularidade: é a cidade mais alta da Metrópole" [ibidem, discurso na Guarda, in Século]" É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude. Pois o que desejo, sr. Presidente, para poder pagar, de qualquer forma a dívida que contraí, é que esta gente tenha um futuro feliz, abençoado por Deus. Que assim seja, para contentamento vosso e para contentamento meu " [ibidem, em Manteigas, segundo O Século, 1/6/1964]
Por acaso sabíamos que, quando se deu o 25 de Abril de 1974, Portugal tinha 32% de analfabetos, mais 47% que apenas sabia assinar o nome? Angola tinha 82% de analfabetos ? E que Cabo Verde tinha 26% de analfabetos devido ao facto de ter sido o segundo território africano a ter ensino secundário? Sabíamos, em Angola, que em Maio de 1968 houve uma "revolução em Paris", liderada por estudantes, e que alterou a configuração das referências das mentalidades da Europa? Sabíamos que em 1968 só houve duas sessões do filme "Crime da aldeia velha" no cinema Restauração, porque o texto de Bernardo Santareno ilustrava o último auto-de-fé em Portugal numa aldeia, nos anos 60? Sabíamos que o Feyenoord se recusou a jogar no estádio da Luz, para a taça dos campeões Europeus, porque o estádio estava decorado com publicidade ao "Café de Angola", tendo a UEFA mandado tapá-lo para que o jogo se realizasse? Sabíamos a quantidade de desertores do exército? Sabiamos que o Niassa levou com bombas para não transportar tropas para combater na guerra colonial? Sabíamos porque se sentava Bob Denard em mesas ao nosso lado, no Arcádia em Luanda, com a mona entrapada? Sabíamos que Sartre se recusou a receber o prémio Nobel? Sabíamos que Chalie Haiden foi posto sob prisão e expulso em 1972 porque no Festival de Jazz de Cascais cantou um hino aos movimentos de libertação? Apercebemo-nos que o Concord em Luanda não colocou a bandeira de Portugal no avião, mas outra?
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Fernando Pereira
21/4/2015
17 de abril de 2015
Antropologia da pobreza / Novo Jornal / Ágora / Luanda 18-4-2014
"Estes são os meus princípios, e se vocês não gostarem deles... Bem, tenho outros.” ( Groucho Marx)
Estava preocupado com a crónica que tenho que escrever todas as semanas. Isso acontece-me amiúde, porque às vezes os temas que temos pensado para determinado momento perdem atualidade quando chega a altura de a entregar.
Enquanto andava às voltas vi um artigo sobre os conceitos de gestão social do Banco Mundial que me deixaram perplexo, num momento em que os sacrossantos ditames do mercado condicionam toda a atividade económica e social nos países e na nova ordem de desenvolvimento que se está a impor e aceite de forma passiva por cada vez maior número das pessoas, que são afinal as vítimas maiores de toda esta movimentação.
O Banco Mundial estabelece, em 1996, uma doutrina à volta do conceito de gestão social cujas linhas gerais foram plasmadas.em 2001, num documento intitulado “From Safety Net to Springboard”.Nela desenvolve-se uma extraordinária antropologia da pobreza.
Vejamos então o que diz o supra citado documento:”Como temem cair na miséria e não poder sobreviver, os pobres não querem correr riscos e tem dúvidas em lançarem-se para actividades de maior risco mas que são também mais lucrativas.Em consequência não estão sómente em situação de não aproveitar as oportunidades que lhe são oferecidas pelo processo de globalização como estão mais expostos aos riscos acrescentados que muito provavelmente derivam desta.Como não podem correr riscos e levar a cabo actividades productivas mais rentáveis, é muito provável que não possam assim como os seus filhos sair da pobreza.É por isso que a melhoria da sua capacidade de gestão do risco é um potente meio de reduzir a pobreza de forma duradoura”Mais adiante refere-se que “a experiência dos países da OCDE mostra que a protecção contra o risco por parte de um Estado do Bem estar Social reduz o espírito empreendedor” .
"Quem tem muito dinheiro, por mais inepto que seja, tem talentos e préstimo para tudo; quem o não tem, por mais talentos que tenha, não presta para nada."
Padre António Vieira
Conclusão lógica: se querem prosperar assumam riscos seus mandriões.
Jorge de Sena sobre os portugueses disse algo que se adapta na perfeição aos angolanos: ”O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito.”
Engenheiro civil e escritor de fim-de-semana, primeiro, depois no exílio voluntário, professor na área das humanidades e escritor a tempo inteiro. Como tantos outros, recusou viver numa sacristia de 92.391 Km2. Abdicou de viver numa pátria povoada de sombrios contentinhos suficientemente «reacionários» e suficientemente «dos nossos». Partiu com apoquentação de não poder pensar e dizer livremente. Lecionou, escreveu muito, imenso e fabulosamente. Viveu nos Estados Unidos até à sua morte em 1978.
Homem atento, conheceu e pensou maduramente os americanos. Aqui vai um poema lucidamente recidivo.
Ray Charles
Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural,
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.
Na voz, há sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de blak e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a mística do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos brancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?
Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.
Cego e negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam»
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?
Jorge de Sena
1964
Fernando Pereira
13/4/2014
9 de abril de 2015
Água de pouca dura / Ágora / Novo Jornal / Luanda 10-4-2015
Um historiador inglês, Nigel Cliff, num livro recentemente traduzido para português com o título “Guerra Santa”, assenta toda a investigação na viagem de Vasco da Gama (um dos estatuados justamente forçados da fortaleza de S. Miguel) para justificar como foram financiadas, programadas e executadas todas as viagens dos navegadores portugueses pelos mares, que depois se soube já antes terem sido navegados por outros.
Este livro é polémico, e só não assumiu foros de maior discussão porque tentou limitá-la a meios muito reservados. Nigel Cliff fez uma análise do que foram as motivações guerreiras dos Europeus em determinadas fases da sua história contra os “infiéis”, e fundamentalmente o papel de determinada burguesia, com uma clara presença judaica, na busca de novos mercados e na procura de matérias-primas mais baratas num mundo dominado pelos mercadores descristianizados. O Cristianismo passou a ser o aparelho ideológico adequado à expansão de novos donos que puseram novos tronos noutros lugares.
Paulo Dias de Novais, fundador da cidade de Luanda, achou que a baía era perfeita para que os barcos se abrigassem de perigos vários. Ao tempo, tinha que se preocupar mais com a rendabilidade dos seus proventos, do que saber se o lugar insalubre onde se fortificava teria água ao longo dos séculos. Novais precisava de produtos tangíveis de algum valor que justificasse que aquele lugar fosse perfeito para trocas de/e com gente.
As cacimbas iam resolvendo mal as necessidades de quem morava e de quem transitava por Luanda até ao início do século XVII. Na ocupação holandesa, os flamengos, em 1645, projetaram uma obra de engenharia, grandiosa para o tempo, que consistia na abertura de um canal abastecedor do Kuanza à capital. Ficaram as boas intenções, embora seja meu entendimento, sem qualquer justificação de caracter técnico, que seria útil fazer do Kuanza uma alternativa ao Bengo, principalmente para abastecimento da cidade que irá crescer em torno do novo aeroporto e nas centralidades de Viana e Luanda sul.
Salvador Correia de Sá mandou construir a cacimba da Maianga, hoje desaparecida no início da subida da avenida do aeroporto, aproveitando a água da vizinha Lagoa dos elefantes, que se alargava até à rua da Samba. Em 1666 o governo central outorgou a Tristão da Cunha (tem direito a nome num largo no centro da cidade da Luanda de hoje) a tarefa de que “velasse pelo concerto da lagôa dos Elefantes”.
O problema de água em Luanda tem barbas, como sói dizer-se, e lá surgiam de vez em quando projetos para trazer águas do Zenza, um afluente da margem esquerda do Bengo, do Lucala, afluente da margem direita do Kuanza e do próprio rio Kuanza, recorrentemente lembrado para ajudar a “matar a sede à cidade”. O poço da Maianga revelava-se com cada vez mais problemas, quer pela insuficiente quantidade de água, quer pela falta de qualidade, “salitrozo e aleitado” potenciador de epidemias.
O governador D. António de Vasconcelos (acho que este não tem direito a permanecer na toponímia da cidade) resolveu fazer estudos para recuperar o plano dos holandeses, e pediu ao Rio de Janeiro um engenheiro. Mandaram-lhe um indivíduo que teria deixado os jesuítas para se dedicar de alma, coração e dinheiro ao projeto. A verdade é que o tempo passava, o dinheiro ia-se gastando e não havia nada de conclusivo. O governador não viu nada feito, e acabou por pagar parte dos trabalhos do seu próprio bolso “por não gravar a Fazenda Real”.
O governador Sousa Coutinho mandou fazer cisternas na fortaleza de S. Miguel e na do Penedo, hoje em ruínas, mas o resultado ficou longe do objetivo.
“Luanda dessas épocas era uma terra de febres malsãs, de disenterias, de surtos epidémicos, uma terra de sede e de doenças, para as quais, por certo, contribuía a minguada e lodosa água das suas fundas cacimbas…”
Em 1813, José de Oliveira Barbosa voltou a entusiasmar-se com o canal do Kuanza, e conseguiu contagiar o Senado da Câmara e o próprio Regente do Reino de Portugal D. João VI. O local era no Calumbo, o que permitiria que chegasse à Maianga por gravidade. Esse entusiasmo deu algum resultado e as obras ainda começaram, mas Luis da Mota Fêo, o substituto de JOB, mandou-as parar pois as finanças da província estavam exauridas perante tão ciclópico empreendimento.
Em 1816 decidiu a Câmara, de acordo com o governador, parar as obras do canal e a cidade continuou a “ sofrer sedes, moléstias e sofrimentos, porque faltava a água…”
Em 1845, na zona dos Coqueiros, abre-se uma nova cacimba por ordem do governador Lourenço Possolo, que é entregue à Câmara, mas nada é minorado e, para além da míngua do líquido, o lixo e os detritos vão-se amontoando. Luanda é uma nitreira a céu aberto. Decide-se adjudicar o transporte de água por barcaças do Bengo, o que se passa a fazer em 1852. Simultaneamente as cacimbas tinham que ser limpas e desentupidas porque apareciam frequentemente mortos lá dentro.
Em 2 de Março de 1889 foi inaugurada, com toda a solenidade, pelo governador-geral Guilherme Brito Capelo (estava na toponímia da cidade até à independência e foi substituído por Kwame Nkrumah) a ligação de água corrente à capital com a captação feita no rio Bengo.
“Ao cabo de 300 anos de sedes, de tormentos e privações, Luanda podia agora beber à vontade, podia banhar-se regaladamente, podia lavar-se, podia, com satisfação, pôr de lado as salitrozas e aleitadas águas dos seus poços e cacimbas”.
Pelos vistos foi “água de pouca dura”, porque o deficiente abastecimento de água à cidade voltou em força na segunda metade dos anos sessenta, no período colonial, e continua a ser um problema mais que recorrente nos dias de hoje.
Fernando Pereira
4/4/2015
1 de abril de 2015
Seripipi de Benguela / Ágora /Novo Jornal / Luanda 2/4/2015
“(…)
leva no bico uma esperança
ao ninho do teu irmão.”
Ernesto Lara Filho
O fogo consumiu totalmente na passada semana um dos emblemáticos edifícios da cidade de Benguela, o “Cabo Submarino”!
Era um edifício com características “sui generis”, pois foi construído para que, no seu interior, se trabalhasse com todo o conforto, num tempo em que o ar condicionado nem sequer era uma miragem.
Conheci bem o local que albergou durante anos a direção provincial de cultura, e sempre me fascinou o ar temperado, numa construção situada no meio de um terreno sem arborização envolvente e numa cidade onde a canícula aperta em períodos continuados do ano.
O edifício, recuperado em 2001 e 2010, manteve, no essencial, a sua estrutura de 1889, com as janelas em lamelas de madeira. Este processo justificava-se no sentido de permitir, durante o dia, o seu manuseamento, tentando amenizar o calor no interior. Esta circulação permanente de ar, era ajudada pelo facto de se tratar de uma estrutura em madeira e ferro, assente em paliçadas. Era um edifício interessantíssimo e, se na primeira metade do século XX o “gémeo” do Namibe (Moçâmedes) foi demolido, este mantinha-se indiferente à voragem avassaladora do pato-bravismo "construtivo" que tem percorrido as cidades de Angola, principalmente as de maior atividade económica.
O edifício foi montado para a West African Telegraph Company, que era uma empresa subsidiária de uma Eastern & Company Telegraph, que no fim da Conferência de Berlim tinha todo o mundo coberto por uma rede de cabo submarino. Em Angola, a ligação entre Cape Town e Moçâmedes prosseguiu para Benguela, daí para Luanda, acabando por se unir ao cabo-submarino que vinha do Brasil para a Europa via S. Vicente em Cabo Verde.
Depois do cabo submarino, no tempo colonial, funcionou lá o Colégio Alemão e hoje restam as cinzas de mais um desastre, este sem anúncio, no pobre património edificado e classificado que há no País.
Ouvi as justificações mais pueris, e uma das mais risíveis foi a de que a culpa do incêndio teria sido da intensa chuva que desabou em Benguela nessa noite. Não quero estabelecer um nexo de causalidade quanto ao que futuramente se irá por lá construir, mas espero que, pelo menos , se reabram os dossiers sobre a recuperação do edifício e se averigue se terão sido cumpridas todas as regras inerentes à preservação de um imóvel com a provecta idade de 125 anos. Era uma excelente oportunidade de casar a culpa com alguém!
Benguela é fundada em 1617 em homenagem a Filipe II de Espanha (1º de Portugal), daí o seu patrono ser S. Filipe, numa clara tentativa por parte de Cerveira Pereira de ficar nas boas graças da corte. “A Sul, o sombreiro” de Pepetela, descreve com autenticidade e minúcia essa personagem malevolamente controversa no século XVI da colónia.
As suas gentes não têm nada a ver com as patifarias do seu fundador, nem com as maledicências em torno do seu santo padroeiro, que só tem uma importância acrescida pois está ligado a um dos reis de Espanha que teve um poder quase absoluto na Europa.
Numa atitude ousada, a população de Benguela manifestou-se contra a travessia do caminho-de-ferro pela cidade, já que a dividiria ao meio, pois a estrutura central da povoação era afastada da linha de costa e do seu porto. Foi assim que nasceu o Lobito para albergar o porto de mar que apoiaria Benguela e, na realidade, esta decisão acabou por atrofiar a cidade no seu crescimento e desenvolvimento económico em detrimento do que em tempos recuados foi a “Catumbela das ostras”!
Benguela foi sempre uma cidade de gente muito ciosa na sua relação interpessoal, de partilha entre quintais e com uma interessante atividade cultural. Durante o colonialismo foi o local privilegiado de intervenção política, e onde terão germinado algumas sociedades maçónicas que acabaram por ser dissolvidas pela repressão das autoridades.
Henrique Galvão, adversário de Salazar, mas com uma verve colonialista, entre 1930-1940 faz esta descrição de Benguela: “… é uma cidade enorme, de ruas compridíssimas e asfixiantes, em que dominam o amarelo e o pardo, feia, muito feia, mas depois de Luanda a cidade mais característica de Angola (…)O mar bate-lhe nas costas, é certo, mas ela fugiu do mar para terras nuas e encardidas (…). Dentro deste quadro, de aspeto doentio e abafante, vive uma população teimosa e tão simpaticamente aferrada à cidade, que constitui o caso mais típico e ferrenho de bairrismo que se conhece em Angola. A gente de Benguela faz lembrar a gente do Porto”( Álbum Comemorativo da 1ª Exposição Colonial Portuguesa / 1934).
O arquiteto Fernando Batalha, recentemente falecido, escrevia sobre Benguela: “Tem o seu assento em uma terra plana e está traçada em quadra”. “Foi o primeiro plano urbanístico de Benguela e provavelmente também o primeiro que se traçou para qualquer povoação de Angola (…) A formação «em quadra» ou traçado ortogonal é também um dos caracteres comuns e de uso frequente nas povoações criadas depois do seculo XVI. Foi o sistema adotado na “Baixa” de Lisboa depois do terramoto e em muitas povoações do Brasil”, FB, “A urbanização de Angola”, Edição Museu de Angola, Luanda 1960.
Resta mesmo a poesia imorredoira de Aires de Almeida Santos: “Meu amor da Rua Onze/ Meu amor da Rua Onze/ Já não quero/ Mais mentir.”
Fernando Pereira
30/3/2015
27 de março de 2015
Luanda a ferro e não a fogo! / Novo Jornal / Luanda 27-3-2015
Na fachada da Igreja do Carmo, em Luanda, está inscrita numa pedra a tabela dos toques para incêndios na cidade, que foi dividida em dez zonas de combate a estes sinistros através de regulamentação concebida no fim da primeira metade do século XIX.
Luanda era, pelos anos 30 do século XIX, uma urbe com escasso casario de pedra, circunscrita ao que sempre se chamou Cidade Alta, na atual Rainha Ginga Antiga Salvador Correia, no Bungo, em volta da Igreja dos Remédios e junto às praias que iam até à Igreja da Nazareth. Na Baixa, nos Coqueiros, na Maianga, em redor da Igreja do Carmo até ao Kinaxixe, na Mutamba, nas Ingombotas e no sopé do morro da fortaleza florescia um matagal com telhados de colmo, em casas de «pau-a-pique», na zona da terra vermelha, o musseque.
Era aí que deflagravam o maior número de incêndios e naturalmente que era preocupante para a cidade tendo em consideração a proximidade do casario e a sua vulnerabilidade no caso de o incêndio se propagar.
Nesse contexto, surge um edital da Câmara Municipal de Luanda, em 1839, que obrigava a que, ao toque de fogo, os donos das lojas de comércio ficassem obrigados a mandar um escravo, ou um servo, munido de um cazengo de água para extinguir as chamas, sendo multado em mil reis cada comerciante que não cumprisse tal regulamento.
Cada igreja de Luanda tinha afixada a tabela de toques de sinos, que iam desde os cinco na zona da Igreja do Corpo Santo, aos quinze quando era para os lados da Igreja da Nazareth! Logo que ouviam os toques, os empacaceiros, subalternos negros vestidos com um saiote e com uma tira de couro de búfalo (npacaça), começavam a avisar onde era o fogo. Os soldados da Cavalaria e o serviço de sapadores e todos os disponíveis lá carregavam a água com o máximo cuidado para apagar o incêndio e evitar que tomasse proporções impossíveis de controlar.
Controlados pelas forças militares, lá se conseguia uma organização razoável que ia apagando o fogo. Três dolentes badaladas na igreja da zona eram o sinal de que o fogo estava apagado.
Importa aqui dizer que a água foi sempre um problema enorme em Luanda, desde os tempos em que se foram fixando pessoas e aumentando a atividade militar e comercial da cidade.
Os poços e as cacimbas não chegavam para as necessidades básicas e nesse tempo a água era trazida do Bengo em barcaças e vendida a 12,5 reis o barril, preço que aumentava para o dobro quando havia calema e os barcos não conseguiam passar a barra. Um eterno problema que se perpetuou com a LAL e hoje com a EDAL.
Quando se olha para a cidade, que cresce assustadoramente em altura, não é despiciendo que se pergunte se todos os megatéreos implantados na cidade têm um plano realista de evacuação em caso de incêndio ou se o equipamento de combate por parte do corpo de bombeiros tem capacidade para uma intervenção rápida nesses edifícios.
Fico com a convicção de que talvez seja útil repensarem-se os planos de contingência em caso de incidentes deste tipo para se evitarem tragédias como as que vão ocorrendo um pouco por todo o lado, fruto de uma ausência de planeamento e uma enorme falta de aconselhamento às populações sobre a natureza dos locais onde vivem, quer na chamada zona enobrecida quer nos labirínticos bairros construídos um pouco por todo o lado.
Vou continuar a escrever sobre a Luanda de outros tempos, com a ajuda da obra de José de Almeida Santos, funcionário da Camara Municipal de Luanda nos anos 70 do século passado e que tem um trabalho excelente sobre a cidade que se habituou a crescer de forma avulsa e anárquica.
Era bom que o Governo Provincial reeditasse estes livros e os disponibilizasse aos muitos que ainda acham que debater Luanda vale a pena.
Fernando Pereira
23/3/2015
20 de março de 2015
"BENVINDO" AO REGRESSO!-Ágora-Novo Jornal-Luanda 20/3/2015
BENVINDO AO REGRESSO!
"Dessei" se alguém sentiu a minha ausência nas páginas do Novo Jornal, mas admito que pelo menos eu sentia a falta de me obrigar a ter este espaço. Aceitei o convite do Carlos Ferreira e só reitero o mesmo entusiasmo, igual ao de há sete anos quando o Vitor Silva e o Gustavo Costa me incentivaram a fazer esta crónica semanal, num semanário que criou enormes expectativas no quadro geral da imprensa angolana. Ficaram as enormes, faltam cumprir as expectativas!
Não sei se irei manter o formato anterior, pois neste “ano sabático” surgiram novas ideias, projetos rejuvenescidos e nada melhor que citar o andaluz António Machado no seu “caminho faz-se caminhando”, para dizer que ainda não há nada definitivo neste retornar.
Num recente trabalho de Maria José Tiscar Santiago, editado pela Colibri, “Diplomacia Peninsular e Operações Secretas na Guerra Colonial”, é feita uma exaustiva investigação sobre as ligações que havia entre Portugal e Espanha no contexto das lutas de libertação nacional das colónias portuguesas, e todo o percurso ziguezagueante dos diplomatas dos dois países na busca de soluções que as circunstancias desfavoráveis se propiciavam no pós-Bandung.
Talvez não haja no essencial muitas surpresas, mas a pormenorização da discussão de algumas situações pouco conhecidas ou mesmo ignoradas dão um conjunto significativo de informações que explicam muito do que se foi passando nas décadas de sessenta e setenta em Angola e países limítrofes.
As condenações na ONU por parte de países africanos contra a política colonial portuguesa e o alinhamento sistemático por parte da Espanha com o regime de Salazar e Caetano são revisitados pela historiadora, mostrando à saciedade quão útil foi a muleta de Madrid a Lisboa. Foram abertos os arquivos ultramarinos em Portugal, e os diplomáticos em Espanha dos anos 50,60 e 70 e isso faz com que este trabalho traga novas pistas sobre as ligações espúrias de alguns líderes africanos com as ditaduras ibéricas, dissimuladas através de uma retórica profundamente anticolonialista e de busca de uma autenticidade africana.
As sucessivas “traições” que os movimentos independentistas das colónias portuguesas foram recebendo por parte de altos dignitários de alguns países africanos, conluiados com infiltrados da PIDE e comerciantes pouco escrupulosos, conseguiam por vezes resultados desastrosos nas débeis organizações que lutavam contra o colonialismo.
Os apoios de Youlu, Kasavubu,Tshombé, Boigny, Mobutu e uma série de títeres e subalternos foram conseguindo adiar o futuro por uns tempos. Temos que convir que depois de lermos o livro ficamos com a sensação nítida que a diplomacia portuguesa e espanhola conjugada, executaram um excelente trabalho.
Nas “memórias” de Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros português da fase final do governo de Salazar, dizia-o a determinado passo: “ Não estava preocupado com o circo que estava montado na ONU. Os que mais vociferavam contra a nossa presença no ultramar, eram os primeiros nos bastidores a baterem-nos nas costas e a incentivar-nos a continuar determinados na presença de Portugal em África”.
Este livro de Maria José Santiago contém uma vasta recolha de documentação que dá alguma razão a Franco Nogueira e às teses que defendia para a perpetuação de Portugal em Angola.
O prefácio é assinado por Adriano Moreira, um “rectificado” pela democracia portuguesa, que tenta ocultar partes de um passado que não deveria ter tido. A estafada frase de Ortega Y Gasset em que “a vida somos nós e as circunstâncias” cai que nem uma luva no homem que foi diretor do ISCPU (Instituto de Ciências Sociais e Politica Ultramarina), escola de quadros da administração colonial, subsecretário de estado do fomento ultramarino e ministro do ultramar, onde em determinada altura se alcandorou a delfim de um Salazar que era velho, mas suficientemente sagaz para não dar hipóteses nenhuma a quem lhe oferecesse dúvidas. Salazar utilizou Moreira como nós utilizamos um Kleenex e na altura em que estava resolvido um conflito com Deslandes, ao tempo governador-geral de Angola e simultaneamente comandante militar no território nesse 1961, o ano de tudo, o “manholas” demitiu os dois em grande velocidade.
Para além de ter sido um confesso defensor da política colonial portuguesa, um teorizador contrário ao avassalar das independências africanas, foi no seu consulado que reabriu o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago onde penaram prisioneiros de consciência da Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Cabo-Verde. Alguns por lá morreram e foi de certa forma aviltante quando no Cabo-Verde independente se dá a distinção de “Honoris Causa” a Adriano Moreira. Mereciam mais essa gente a quem a prisão tirou anos de vida para que as independências surgissem!
Espero não ter uma surpresa destas na minha terra! Bem bastam outras que vou tendo e que também me desagradam.
Fernando Pereira
11/3/2015
13 de março de 2015
O Fantasma da Liberdade
Todo o homem tem direito de sonhar (pelo menos) a liberdade. Tal direito ainda não se encontra consignado em nenhuma Constituição. As Constituições, transformando-se quase sempre em lubrificadoras do poder, pendem a maior parte das vezes para o sacrossanto elemento coletivo, enumerando umas quantas “essências”.
A megalomania duma quinta ibérica chamada Portugal só tem paralelo nos devaneios quixotescos. Mas o Quixote, que recuperou a razão à hora da morte, é um “ ser de papel” do século XVII, não uma instituição lusitana do século XXI. Assim, a velha quimera segundo a qual este país deu “novos mundos ao mundo” só pode servir no presente, os interesses de algumas famílias assustadas com a perspetival de liberdade. Os materialistas que não são propriamente estúpidos, esforçam-se por apurar as condições concretas das transformações sociais. É pena que não se verifiquem em Portugal, País sujeito a múltiplas podridões, nunca dispôs de vitalidade suscetível de produzir a mínima revolução. O que Portugal possui em abundância, em zonas letradas ou não, é um enorme bando de vigaristas o que aliás em termos de materialismo histórico se explica perfeitamente: pirataria, saque sem grande obra civilizacional e repressão inquisitorial.
Já que se fala de inquisidores convém que se esclareça que tais entidades são, entre nós, símbolos e pilares da ordem. Quem inventou o milagre de Fátima sabia o que fazia, ao irmanar as autoridades republicanas da época com os diabos preparados para assarem “os pastorinhos”. Atribuir às autoridades de então uma tentativa de auto-de-fé constituiu, desgraçadamente, um truque eficaz e motivado por uma ampla tradição. E um filme estado-novista, que circulou apoteoticamente por todo o País, mostrava um lume feroz para o sacrifício dos três videntes, como se o inconsciente da justiça republicana desse tempo comungasse nos métodos do Santo Ofício. Será que esses arautos do milagre, de mão dada ao salazarismo, tinham até razão?...
Não queremos responder. Mas não nos esquivaremos a lembrar que houve um grande progresso na “revolução” de 1974:Desapareceu todo o anticlecarismo da Primeira Republica. Ou porque as múmias já pensam, medrosas, no “reino dos céus”, ou porque a conivência inquisitorial é mais profunda do que julga, ou porque – o que é pior!- Portugal é assim mesmo, reina o auto-de-fé nas consciências (ou nas inconsciências). Talvez por isso se use tanto o verbo “ queimar” em matéria de discurso político-familiar. Há políticos para ”queimar”, instituições para “queimar”, e até governos para “queimar”.
De queimadela em queimadela ainda um dia se apaga o ultimo reflexo da liberdade!
(Algumas reflexões deste texto, vem de um colóquio que tive a oportunidade de assistir do professor José Martins Garcia numa homenagem a Vitorino Nemésio)
Fernando Pereira
9/3/2015
11 de janeiro de 2015
Para ti Maria
“De Bragança a Lisboa
São 9 Horas de distância
Q’ria ter um avião
P’ra lá ir mais amiúde(…)
(…)”Outra vez vim de Lisboa
Num comboio azarado”
Esta antiguinha musica dos “Xutos e Pontapés” deu-me o mote para regressar ao presente, das muitas vezes que sou obrigado a viver as peripécias de uma viagem de comboio entre Lisboa, Celorico da Beira e volta.
Aqui há uns anos a CP resolveu, e em boa hora, dotar o país de um serviço mais rápido e confortável de comboios intercidades, que se propunha ligar as cidades do interior a Lisboa e Porto.
O serviço funcionou razoavelmente bem nos primeiros anos. O material circulante era bom, os horários apelativos para que um cada vez maior número de pessoas utilizassem o intercidades, e raríssimas vezes havia atrasos. O preço era aceitável tendo em conta o esforço que a CP tinha feito para instalar esta oferta supletiva.
Com o passar dos anos começámos a assistir ao Intercidades a parar cada vez mais, em locais onde não entra nem sai ninguém, e estações que começam a estar praticamente abandonadas, a maioria das suas instalações com portas e janelas entaipadas e com um ar de desleixo e lúgubres. Da Guarda a Lisboa passou o comboio a sair cada vez mais cedo para chegar à hora inicial, quando o horário é cumprido, situação que não me lembro de ocorrer quer no sentido Lisboa-Guarda, quer Guarda-Lisboa nos últimos anos.
Hoje, o que assistimos é a degradação continuada do serviço, com carruagens cada vez mais sujas, logo no início da rota e cada vez se desespera mais pelas horas que se passam no comboio ou nas esperas em estações com cada vez menos condições de salubridade, para já não falar na pobreza dos serviços disponíveis a bordo.
A maior parte das estações intermédias só abrem as suas bilheteiras num período em que não passam comboios, o que não deixa de ser risível. No interior do comboio, no seculo XXI, não podemos comprar o bilhete por terminal de multibanco, máquinas que também não estão disponíveis na maior parte das estações do percurso. Já tive que pedir emprestado dinheiro a um conhecido para pagar o bilhete, senão arriscava-me a ser punido com coimas, no mínimo!
Já nem me atrevo a pedir wi-fi na carruagem, mas pelo menos que houvesse um local, para além da ficha da máquina de barbear das casas de banho, que permitisse carregar um “Tablet” ou um “hi-phone”, que não conseguem ter carga suficiente para suportar os atrasos “desconsideráveis” para os utentes das linhas de intercidades!
Por vezes apetece-me viajar em primeira classe e começa a ser recorrente chegar a Santa Apolónia para comprar o bilhete e dizerem-me que está esgotado. Resignado, apesar de agradecido por me obrigarem a poupar, lá vou em segunda, e na realidade no Entroncamento a carruagem de primeira classe fica praticamente vazia. Fiquei perplexo quando percebi que têm direito a bilhete a custo zero os trabalhadores da CP e da REFER, pois numa das viagens em ambiente demasiado ruidoso, que fiz no troço entre Lisboa e o Entroncamento, vi um dos bilhetes do meu companheiro do lado esquecido, que confirmou as minhas suspeitas.
Acho que os ferroviários devem ter direito a viagens gratuitas, o que devia ser prática comum nos trabalhadores de todas as empresas de transporte, mas também é meu entendimento que não deve a companhia sair prejudicada, já que o potencial cliente pagante acaba por ser preterido pelos funcionários da empresa. Voltarei a este tema muito em breve.
Por: Fernando Pereira
6-1-2015
13 de dezembro de 2014
Adeus, até ao meu regresso!
Há pouco mais de quarenta anos, num acinzentado Portugal de gentes desesperançadas e hordas de jovens a caminho de uma guerra filtrada numa TV a preto e branco travestida, assistíamos, por esta altura do ano, a um dos mais sórdidos espetáculos que o regime colonial-fascista dava às famílias portuguesas: as mensagens de Boas Festas dos militares.
As mensagens de Natal dos soldados que tentavam sobreviver nos três teatros de guerra, deixavam transparecer, nos olhares de toda uma geração de gente jovem, uma sensação de vazio extremo, que nem as suas poucas palavras conseguiam dissimular, a tristeza e o desencanto de se verem abandonados na defesa de um nada, ou melhor, uma réstia de nada.
“Adeus até ao meu regresso” ou um “Natal cheio de propriedades”, eram algumas das muitas frases que os soldados dirigiam aos seus familiares, em gravações feitas em outubro, o que levava a situações caricatas de chegarem a dezembro mensagens de soldados que nessa altura já «vinham numa caixa de pinho/do outro lado do mar», como bem dizia Reinaldo Ferreira, outro defenestrado de uma pátria que sempre teimou em fazer isso a quem ousava pensar diferente.
Quando a data libertadora do 25 de Abril de 1974 chegou havia na Guiné, Angola e Moçambique setenta e oito mil militares que lutavam já para sobreviver, pois há muito que havia a certeza de que a guerra estava militar e politicamente perdida. «A guerra é a continuação da política por outros meios», como dizia o prussiano von Clausewitz (1780-1831), é a prova clara de que África, para uma geração sacrificada de portugueses, foi um atoleiro donde se regressou sem glória.
Ainda hoje há uma certa reserva em falar da guerra colonial, como ainda são inconclusivas muitas das sequelas inerentes a um período difícil da história recente de Portugal. Mas tenho a convicção de que começa a ser tempo de se tirarem os “esqueletos dos armários”, para que os vivos que viveram esses anos de podridão se possam sentir de alguma forma, ainda que pequena, recompensados desse esforço inglório que fizeram na defesa do que foi um verdadeiro embuste para perpetuar um regime que só se aguentava com o sangue de gente inocente.
Não há aldeia nenhuma, no mais recôndito lugar de Portugal, onde não haja uma vítima da guerra colonial e há concelhos que perderam muitos dos seus filhos nesses anos de chumbo. É urgente fazer-se uma homenagem pública a essas pessoas que deram a vida a lutar pela Pátria, pois é uma forma de os lembrar e simultaneamente deixar bem vincada a repulsa de todos por um regime caduco, liderado por um velho rato de sacristia, para quem a sua perpetuação no poder dependia de vítimas que pudesse transformar em heróis para fazer aquele espetáculo sórdido do 10 de Junho no Terreiro do Paço. É a homenagem que falta fazer aos homens que tornaram possível o 25 de Abril de 1974.
Tenho a ideia de que não se deve andar a fazer festas à farinheira, ao míscaro, à amendoeira, ou a outra coisa qualquer quando ainda não se fez uma homenagem a quem mais a mereceu nas suas terras: os militares portugueses tombados na injusta guerra colonial. Um “aerograma” enviado com destinatário certo: autoridades civis e militares de todo País. “Que ninguém seja deixado para trás”, como é vulgar utilizar-se no léxico castrense, ou melhor, que nenhum militar seja esquecido!
Este texto poderá dar a ideia que é escrito por alguém que ainda tem contas a ajustar com o passado, mas na realidade assumo que não há aqui qualquer tipo de exercício expiatório. Enquanto o mundo desenvolvido, na década de 60 e parte da de 70, era um pleno de efervescência cultural, de debate, de apogeu económico, de ruturas nas mentalidades, Portugal era governado por um velho, cercado de homens pulverizados mentalmente com água benta que mandavam o seu maior tesouro para terras que mais tarde que cedo iriam ser independentes, já que esse era o desígnio da história. O embaixador americano Elbrick, ao sair, em 1961, de uma conversa com Salazar, sobre a intransigência do ditador em resolver a questão colonial logo no seu início, deixou escapar o seguinte comentário: «Estive duas horas à conversa com Vasco da Gama e Luis de Camões»!
Morria-se pelo passado e não pelo futuro e isso fazia toda a diferença. O “Adeus até ao meu regresso” era a imagem do medo, da angústia, dos olhos vítreos fixados numa câmara onde se desespera de se ser, num Portugal perdido numa África onde gente nova, combativa e determinada semeava militarmente, afinal, a utopia de pátrias novas que também Abril ajudou a dar ao mundo.
A homenagem a esta gente deveria ter sido ontem, mas, como não o pôde ser, que seja num amanhã próximo de hoje! Bom “dia da família” e um bom Ano Novo para quase todos que me leem!
Por: Fernando Pereira
14 de novembro de 2014
Cut, copy and paste
As pessoas não vendem a terra onde vivem» - frase Sioux
Conta uma velha anedota que o reitor de uma universidade americana, de visita a Inglaterra, via com sorriso superior e condescendente as instalações de uma famosa universidade britânica: na América tudo era maior, tudo era melhor, o equipamento superior; só uma coisa invejava, e essa coisa era a maravilhosa e impecável frescura dos relvados que se estendiam entre os edifícios vetustos da universidade. Como obtinham os ingleses relva tão magnífica? Nos Estados Unidos não se conseguia coisa que se comparasse. Qual era o segredo?
O reitor britânico que acompanhava na sua visita o ilustre colega yankee, até aí visivelmente agastado, não pôde esconder um sorriso de malícia e esclareceu com falsa candura: «O segredo? Muito simples. Basta regar e cortar a relva, voltar a regar e a cortar periodicamente; ao fim de trezentos anos fica assim…»
Gosto desta anedota: não é aquilo a que costuma chamar-se cultura qualquer coisa como o relvado britânico? Apenas a persistência do esforço, a rega e a poda regulares, a continuidade do empreendimento, a paciência e a perseverança do exercício, alcançam, no âmbito do saber e da criação, produzir esses frutos de polpa rica, densa, nutritiva, saborosa que são o tesouro das nações. E não basta que uns quantos se apliquem à tarefa por desfastio; é preciso que as gerações se sucedam, acumulando a experiência, suscitando a tradição do trabalho bem feito, renovando o viço.
«O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portuguesa, só vos falta as qualidades». Esta frase de Almada Negreiros, um poeta português do grupo Orpheu, cúmplice e contemporâneo de Pessoa, nascido em S. Tomé e Príncipe no fim do século XIX, adequasse-nos na perfeição, que nunca temos tempo para nada, fazemos tudo a correr, e enleamo-nos em projetos múltiplos para no fim nos habituarmos a atamancar qualquer coisa, preocupando-nos mais com os “exteriores” do que propriamente com a solidez e eficácia dos “interiores”.
Como não sei se volto a escrever antes do Natal, aqui vai a minha oferta em forma de verso deste homem maior da literatura portuguesa: Jorge de Sena.
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
Como é uma crónica entediante, porque não Saramaguear: «O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas». (José Saramago em “A Viagem do Elefante”).
Fernando Pereira
12/11/2014
18 de junho de 2014
Pontuem o texto! / O Interior /12-6-2014

Semana cheiinha foi mesmo boa aqui na malta pouco habituada a estas coisas de muita gente engomada e engravatadamente falando alto e bom som no meio de aviões e tanques com muitas balas que presumo serem a fingir para comemorarem o aniversário do nascimento do olho nu que até devia ser um tipo cheio de sainete pois andava sempre a acoitar-se nos leitos das casadas e veio do oriente com um escravo para lhe pedir esmola nas ruas de Lisboa ao mesmo tempo que jazia nalguma enxerga já que ainda eram distantes os tempos dos colchões de esmolas que hoje vamos tendo para nos decubitar ventral ou dorsalmente na busca de um conforto que cada vez menos vamos encontrando no nosso quotidiano de dificuldades que cada dia são acrescidas e mais crescidas o que não deixa de ser uma valente estopada só mesmo comparável à postura das pessoas que cada vez mais confundem com impostura de estado e acham que o país avança a bom ritmo porque há novos sabores nos anúncios dos gelados e porque se consome muito mais cerveja nos festivais de verão que pululam um pouco por todo o lado com o beneplácito de tudo o que é autarca que já não se contenta com o conjunto da terra e por este andar qualquer dia temos mesmo que arranjar pastel para pagar um daqueles tipos que emergem no meio da fumaça com um camião grande cheio de material e umas poucas aves canoras algo despidas de preconceitos nomeadamente no que ao cantar diz respeito pois quanto ao resto estamos versados e conversados também abusados pelas circunstancias em que temos na fatura da luz a taxa do audiovisual e a alegria de saber que uma parte do nosso IMI é para cantorias acompanhadas de fontes iluminadas e luminosas com um funil virado ao contrário num local onde havia uma taberna que colocava o funil como devia ser ou melhor para o que servia de facto que era para encher garrafas e garrafões que iam ver-se esvaziados em copos que goelas esfalfadas permitiam doutas opiniões e em casos extremos poucos termos no comportamento habitual de cidadãos de um tempo em que a violência doméstica ultrapassava as portas e janelas de várias casas com o guarda noturno a assobiar para o ar e a farfalhar o bigodame que lhe dava um ar de grande autoridade e alguma pouco bem cheirosa importância talvez porque a farda fosse poucas vezes levada ao sabão ou aos glutões do Presto coisa que muita gente devia dizer de si que não mas limitam-se a comentar o que os outros fazem e a gesticular porque os outros são todos uns aldrúbias e uns ladrões que até querem que o pobre do tasqueiro pague impostos e que se fez mais movimento com o dez de Junho não tem nada que dar mais a esta quantidade de malandros que anda aí a gastá-lo à tripa-forra sem respeito pelos cidadãos que têm direito a dez TACs por ano e recusam-se a aceitar a energia nuclear como alternativa por causa das radiações e outras tretas que a malta vai falando um pouco por aí assim sem pontuação para se entender ainda menos e tornar o artigo mais difícil de ler e assim ter direito a ser comparado a Saramago já que muitos dizem que não gostam dele porque não pontua os escritos e as edições que faz e que li devem ser contrafeitas pois trazem pontuação mas como quem o critica muito mesmo nem a lombada se atreveu a ler quanto mais a badana não ousando sequer lembrarmo-nos que havia um livro escrito pelo que só me apetece acabar lembrando-me que não foi boa ideia o Camões trazer o escravo Jau que come e bebe todos os dias quando podia ter trazido do oriente uma arca de cânfora que talvez lhe valesse um visto gold pela contribuição que deu à semiótica no sentido real da palavra e não noutras aleivosias de intelectualidade.
Fernando Pereira-7/06/2014
16 de março de 2014
Empreendedorismo à la minute.-O Interior- !3/03/2014

Em tempos não demasiadamente idos incumbiram-me de marcar um lanche num restaurante da região.
O restaurante não servia nada de especial e a qualidade e o preço eram mais ou menos iguais a dezenas de estabelecimentos do tipo nas redondezas. Justifiquei a escolha aos meus companheiros de refeição por saber que o “tasco” tinha uma maravilhosa mousse caseira que levava ali muita gente a comer a iguaria.
Quando acabámos o repasto pedimos a célebre mousse, ex-libris da casa. Nas primeiras colheradas notei que nada tinha a ver com a que estava habituado a comer. Todos os meus parceiros começaram numa gozação enorme, já que estavam perante uma vulgaríssima mousse instantânea de sabor demasiado aguado. Chamei o proprietário e perguntei-lhe pela caseira e responde-me da forma mais cândida do mundo: “Dava muito trabalho e acabava muito rapidamente. Todos os dias a minha mulher tinha que a fazer duas e três vezes e mesmo assim esgotava. Esta dá até para dois ou três dias!”.
Perante este argumento não houve palavras, nem tampouco novas idas a esse restaurante. Sei que já fechou há uns tempos e os donos terão emigrado.
Com alguma regularidade costumava ir a um barzinho esconso beber umas cervejas com uns amigos onde entre outras trivialidades se falavam mal de outros e bem de alguns. Nada de extraordinário, se o proprietário e único empregado do bar sistematicamente não trouxesse amendoins descascados e dois pratos. Um era com amendoins e outro nunca percebemos para que servia. Uma vez alguém lhe perguntou para que era o segundo prato e pela reação ficámos com a convicção que a questão era de resposta muito difícil. Pensou e saiu-se com esta: “Isto é para as cascas dos amendoins”! “Mas os amendoins vêm descascados” replicámos quase em uníssono perante a nossa incredulidade. “Mas também servem para o milho das pipocas” , e de facto calou-nos imediatamente pois nunca houvéramos visto tal sucedâneo do milho naquele lugar. A tirada final foi deliciosa quando ele diz: “É o que aprendemos nas escolas de hotelaria”! Por razões de desavenças familiares fechou, segundo me disse o referido “bacharel” em hotelaria uns tempos mais tarde.
Na estrada, aqui nas cercanias da cidade parei num café que não tinha rigorosamente ninguém. Bati palmas, quase que gritei e perante muita insistência veio uma senhora algo despenteada com as mãos cheias de sangue e penas. Pedi um café e surpresa das surpresas vi a mulher ir à máquina, colocar a chávena e tirar o café. Bem, a asa da chávena vinha com sangue, o pires com uma pena ensanguentada e talvez o pacote de açúcar tivesse qualquer coisa. Educadamente disse que não bebia aquilo, nem pagava e logo a megera resolveu insultar-me porque a fui incomodar no meio de um abate de um galináceo e não tomei o que me deu. Voltei as costas e fiquei incomodado porque talvez tenha errado em ter pedido um café num estabelecimento aberto para o efeito. Não faço ideia se ainda está aberto porque não passo por ali há muito tempo.
Para os lados da raia entrei num misto de minimercado, bar e taberna. Estava um tipo deliciado a ver uma tourada na TVE e retorquiu à saudação com um boa-tarde murmurável sem olhar para mim. Lá continuou entretido e eu pedi-lhe uma água, e ele: “Um momento”; dois minutos depois nova insistência e lá veio o tipo a resmungar alguma coisa imperceptível mas que teria talvez a ver com o facto de lhe ter estragado a tarde. Deu-me a garrafa, sem me perguntar se queria copo e paguei. Voltou para a sua cadeira e continuou a delirar com a selvajaria. Pedi outra água e aí acho que só não me bateu porque a desproporção era enorme. Depois de me servir com toda a antipatia possível pareceu-me ouvir quando ia a sair: “ Olha o azar, com tantos cafés por aí tinha logo que vir ao meu”!
A culpa disto estar assim foi minha porque estes casos passaram-se comigo. Assumo a minha mea-culpa!
Fernando Pereira 11/3/2014
14 de fevereiro de 2014
Nada é irrepetível! / O Interior/ 13-2-2014
Ainda não consegui perceber porque é que cada vez que vejo certa gente no ecrã a cores da televisão, me vem à memória o Américo Tomás a preto e branco.
Para quem andava distraído, antes do 25 de Abril, lembro as "sábias palavras" do então mais alto magistrado da Nação, Américo Tomás vulgo cabeça de Tarro. Era só para lembrar que nessa altura ele era o Chefe de Estado do Minho a Timor!
"Memórias de Tomás" (I)"Eu por mim próprio, não me decidi a escrever as «Minhas Memórias». Decidiram-me. É que, estando quase toda a gente, ex-chefes de gabinete, ex-subsecretários de Estado, ex-secretários de Estado, ex-ministros, ex-chefes de Governo, escrevendo as suas memórias, a minha família começou a insistir comigo para que escrevesse as minhas «Memórias», na medida em que, disseram-me, mal me ficaria não escrever, também eu próprio, as minhas «Memórias».
Habituado a falar e não a escrever, contando, segundo as minhas contas, nove mil trezentos e sessenta e quatro alocuções por sobre o território nacional, isto é, continente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, não minto!, nove mil trezentos e sessenta e cinco alocuções por sobre o território nacional e internacional, ligadas ao meu cargo de Presidente da República, - eu nunca me afoitei a usar a caneta, coisa que disse repetidamente a minha família.
Não tive sucesso, como é obvio, dado que me compraram uma caneta e ma deixaram fechada na mão.Foi então que, pegando na caneta, carreguei no botão do gravador e comecei: "Senhor bispo da diocese, senhor ministro das Obras Públicas, senhor governador civil, senhor presidente da câmara municipal, senhor presidente da junta de freguesia, minhas senhoras e meus senhores" [in, revista Opção, Ano II, nº 30]"É esta, portanto, a ultima cerimónia que se passa na cidade da Guarda e eu não quero deixar passar esta oportunidade sem agradecer ao bom povo desta terra o seu entusiasmo, o carinho com que recebeu o Chefe do Estado. A chuva não teve qualquer influência no entusiasmo das populações. Elas vivem numa terra de granito, e a chuva não as apoquenta (...) A Guarda é um distrito de bons portugueses, de portugueses de uma só face, portugueses, portanto, sempre prontos a defender a terra que os viu nascer. E a Guarda tem uma particularidade: é a cidade mais alta da Metrópole" [ididem, discurso na Guarda, in Século]"... É uma terra [Gouveia] bem interessante, porque estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude. Pois o que desejo, sr. Presidente, para poder pagar, de qualquer forma a dívida que contraí, é que esta gente tenha um futuro feliz, abençoado por Deus. Que assim seja, para contentamento vosso e para contentamento meu! " [ibidem, em Gouveia, segundo O Século, 1/6/1964]
E dizia o Américo Tomás ao inaugurar a fábrica Riopele, que tinha como inovação, um refeitório para os trabalhadores: “Só tenho um adjetivo para qualificar aquilo que vi: Gostei!”
Bem vos dizia que ao lerem isto se lembram de alguns atuais!
Fernando Pereira
10/2/2014
27 de janeiro de 2014
Antropologia da pobreza / O Interior / 16-01-2014
«Estes são os meus princípios, e se vocês não gostarem deles... Bem, tenho outros» (Groucho Marx)
Estava preocupado com a crónica que tenho que escrever todos os meses. Isso acontece-me amiúde, porque às vezes os temas que temos pensado para determinado momento perdem atualidade quando é o nosso momento de entregar a crónica.
Enquanto andava às voltas vi um artigo sobre os conceitos de gestão social do Banco Mundial que me deixaram perplexo, num momento em que os sacrossantos ditames do mercado condicionam toda a atividade económica e social nos países e na nova ordem de desenvolvimento que se está a impor e aceite de forma passiva por cada vez maior número das pessoas, que são afinal as vítimas maiores de toda esta movimentação.
O Banco Mundial estabelece, em 1996, uma doutrina à volta do conceito de gestão social cujas linhas gerais foram plasmadas, em 2001, num documento intitulado “From Safety Net to Springboard”. Nela desenvolve-se uma extraordinária antropologia da pobreza. Vejamos então o que diz o supra citado documento: «Como temem cair na miséria e não poder sobreviver, os pobres não querem correr riscos e têm dúvidas em lançarem-se para atividades de maior risco mas que são também mais lucrativas. Em consequência não estão somente em situação de não aproveitar as oportunidades que lhe são oferecidas pelo processo de globalização como estão mais expostos aos riscos acrescentados que muito provavelmente derivam desta. Como não podem correr riscos e levar a cabo atividades produtivas mais rentáveis, é muito provável que não possam, assim como os seus filhos, sair da pobreza. É por isso que a melhoria da sua capacidade de gestão do risco é um potente meio de reduzir a pobreza de forma duradoura». Mais adiante refere-se que «a experiência dos países da OCDE mostra que a proteção contra o risco por parte de um Estado do Bem-estar Social reduz o espírito empreendedor».
«Quem tem muito dinheiro, por mais inepto que seja, tem talentos e préstimo para tudo; quem o não tem, por mais talentos que tenha, não presta para nada». (Padre António Vieira)
Conclusão lógica: se querem prosperar assumam riscos seus mandriões.
10 de janeiro de 2014
A Devida Comédia / O Interior/ Guarda /12-12-2013
As aparências enganam, mas enfim, aparecem, o que já é alguma coisa, comparado com outras que, vamos e venhamos, talvez, nem tanto.” (Catatau. P. 113)
Podia aproveitar esta última crónica de 2013 para vir balancear um ano que não deixa saudades a quase ninguém. O quadro que se vai vivendo não augura nada de bom para os próximos anos e convenhamos que com certos protagonistas o melhor mesmo é fazer cair as expectativas para níveis ridiculamente baixos.
Como no próximo ano haverá eleições para um parlamento europeu apartheidizado, só me resta esperar que não apareçam de novo por aí os putativos candidatos dos partidos tradicionais ou os emergentes a prometerem transformar o interior na terra “onde corre o azeite e o mel”, a exigirem, nem sei muito bem a quem, que o interior tenha direito a descriminação positiva nalgumas medidas e outras minudências habituais.
Fiquem por Lisboa a comer febras, coiratos, entremeada com minis e vinho amartelado por entre gente que talvez tenha paciência para lhes aturar a verborreia adaptada às circunstâncias, no meio de sorrisos forçados e cumprimentos de indisfarçável cinismo. Quantas vezes se viram, pelo tal Interior, um deputado europeu e alguns nacionais a procurarem inteirar-se do que por aqui se passa? Talvez tenham razão, aqui passa-se cada vez menos e a minha opinião de há mais de vinte e cinco anos mantém-se: o Interior está acabado e, na geração mais próxima, não há volta a dar-lhe.
Descontinuemos este exercício catártico, quase permanente de esconderijar a incapacidade deste interior se regenerar ou de vir alguém de fora mudar o que quer que seja. Quando vem alguém com essas características, normalmente só acrescenta pior ao mau que já por cá se tem.
Anda tudo preocupado com a licenciatura do Relvas, de novo. Acho mesmo que o tal Relvas até podia ter um doutoramento que pouca gente acreditaria que conseguisse fazer alguma das opções do quinto ano do tempo anterior à reforma do Veiga Simão. Já vi tanto licenciado dessa forma ou aparentado que só me aborrece mesmo é que se perca tanto tempo a dar visibilidade a certos casos para não se falar do essencial. Já vivi o suficiente para saber onde se compram cursos, o preço e outras coisas do tipo, como ter assistido a uma oral de direito penal num aeroporto e outra de uma cadeira de história na mesa de um café. Não assisti a mais porque às vezes as comemorações prolongavam-se para além do que seria normal.
Por falar nisto, e porque também soube que houve muitos “trabalhos de grupo” de licenciados que foram feitos por assessores contratados para apoiar certos políticos ascendidos ou em ascensão, e ei-los a arranjarem uma universidade de vão de escada por aqui ou na “estranja” para aumentarem mestrados aos currículos. Também é recorrente certos políticos no ativo contratarem conselheiros para “escreverem” livros sobre temas que nem uma reles cultura de lombada lhes permitiria ter e ei-los a fazerem apresentações com alguns intelectuais de “Caras” ou “Lux” disponíveis para avalizar tão surpreendente revelação.
Como o Natal está à porta talvez possam comprar alguns livros desses. Ou, quem acha que não gosta de políticos, que compre um de um daqueles jornalistas que escreve a metro, trabalha noutras coisas e investiga para escrever!
Boas Festas já que festas boas só para os santos populares.
Por: Fernando Pereira
16 de novembro de 2013
Até hoje foi sempre futuro / O INTERIOR / 14-11/2013 /

Longe vai o ano de 1845, em que o jovem Karl Marx, escrevia as 11 teses de Feuerbach, e que a décima primeira dizia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Foi o preambulo teórico de todo um processo de lutas, e mudanças sociais, económicas e políticas, ao longo de todo século XX.
Estes primeiros treze anos foram a acrimónia dos últimos anos do século transacto. Tem sido feito, com algum sucesso aliás, um esforço continuado em obliterar ideologias que prevaleceram dominantes no mundo no século passado, e que por razões ainda não suficientemente estudadas cientificamente, tem sido guilhotinas, para se saber as devidas causas. O seu lugar foi ocupado pelo liberalismo que se esperava, pois a realidade é que este primeiro tempo de um milénio que se augurava promissor transformou-se num mundo onde a globalização (antes chamada de imperialismo), a selvajaria de novos métodos de velhos sistemas económicas, levaram à descrença a maior parte da população mundial, que entusiasmadamente aplaudiu a mudança.
No campo da tecnologia, houve avanços significativos e as pessoas passaram a estar mais próximas para saberem mais dos outros, com cada uma cada vez maior desigualdade na distribuição da riqueza. Este século, e esta crescente sociedade da informação, dá a possibilidade das pessoas saberem que trabalham arduamente, mas o seu magro salário, ou a dignidade da sua vida é concebida pelos ditames de uns números que giram a grande velocidade numa Wall Street (uma rua em Nova York do tamanho da R. dos Mercadores), de um Nikei em Tókio ou um Dax em Frankfurt, onde muitos milhares de pessoas, enxameiam espaços a vender e a comprar papéis de coisas, que outros realmente produzem em circunstâncias social e materialmente degradantes.
Numa década em que os conflitos étnicos, tribais, fronteiriços e religiosos se multiplicaram e desenvolveram com uma violência inimaginável há uns anos, o que assistimos é a derrota dos que apregoavam, que os países do leste europeu eram a cabeça da hidra do “Eixo do Mal”. A realidade é que a desagregação da ex-URSS mostrou as fragilidades da sua economia, e a sua inépcia em preservar o ambiente, mas também mostrou um sistema que deu quadros mais capacitados e desenvoltos, mesmo para competirem nos mercados tecnologicamente exigentes do centro da Europa, para dar um pequeno exemplo.
A Liberdade é um valor sagrado em qualquer modelo de sociedade, mas a realidade é que com a falta de discussão ideológica, em torno da posse dos meios de produção, do lucro e do seu uso, e dos direitos dos cidadãos, permite que as religiões monoteístas, e as poderosas instituições que as regulam hierárquica e economicamente, tentem ocupar esse lugar, não olhando a meios, e nalguns casos usando torpes razões para fazer valer a sua implantação no terreno.
Iniciámos o milénio com o aparecimento de potências emergentes, mas simultaneamente, os dados dos organismos das Nações Unidas dão 900.000.000 de pessoas a sobreviverem na indigência e na pobreza extrema.
Conceitos de solidariedade, de desenvolvimento sustentado, de remuneração justa, de trabalho digno, de combate continuado à doença e um acesso à educação, são “retóricas”, que já nem no domínio do léxico político se consegue vislumbrar.
Tudo hoje é mais rápido, porque há redes sociais, computadores, meios de transporte mais velozes e cómodos, antenas parabólicas, radares, telemóveis, uma miríade de coisas que apareceram neste milénio, e que vão transformando quem ainda “valoriza outras coisas” em verdadeiros “botas-de-elástico”.
Esta deve ser a minha crónica de despedida do ano de 2013, e infelizmente acho que se mudar alguma coisa vai ser para ficar tudo na mesma. Para muitos só desejo que o ano que aí vem seja melhor que o que está prestes a findar. Para poucos que seja muito pior o que só poderá ser um bom sinal. Sou um pessimista, mas salvaguardo que um pessimista é um optimista com experiencia!
Fernando Pereira
11/11/13
9 de agosto de 2013
«É mais difícil ser livre do que puxar uma carroça.» Vergílio Ferreira / O Interior/ Guarda 8/08/2013
Na lassidão de um Verão eleiçoeiro vamos assistindo ao prometimento adequado às circunstâncias.
O léxico promesseiro pouco varia de outras campanhas recentes, o que indicia que o cumprimento das promessas anteriores ficou-se pelas más intenções de quem as terá feito e descumpriu-as.
Em todas as cidades da região, outrora importantes limitam-se hoje a dar uma imagem serôdia de estatuto passadista, com as propostas mais bizarras por parte de candidatos, esquecendo ou fingindo deslembrar que a fuga de gente se deve à falta de expectativas, fruto do malbaratar dos anos todos da gestão da causa pública. As vilas lá fazem o seu caminho no sentido de serem desclassificadas, e tornarem-se aldeias grandes no seu percurso irreversível na degradação do seu património e para desesperança dos seus habitantes. As aldeias imergem num lodaçal de ideias ao ponto da promessa que maior acolhimento produz reduz-se à reabilitação ou redimensionamento do lar ou a construção de uma sala funerária com alguma dignidade. Demasiado cruel para ser verdade, mas é esta a realidade pungente que assistimos no quotidiano.
Este interior está hoje condenado porque não há emprego. Podem vir as estultices do tipo património da humanidade, teatro nacional ou algo do género que no grande problema ninguém ousa tocar: Não se inova nas propostas para o desenvolvimento económico para que os recursos se potenciem, sejam geradores de receitas e concomitantemente que se criem expectativas de empregos dignos e mobilizadores de novas dinâmicas e expectativas.
Não quero sonhar acordado por isso vou-me entretendo com as frases descabeladas de uma megera da família Espírito Santo, do BES, que já nem se coíbe de dizer em público o que deve ser motivo de chalaça e gáudio nas reuniões familiares deste tipo de gente: “Aqui brincamos aos pobrezinhos”. Esclareça-se que o bisavô desta fulana chamou-se Espírito Santo, porque foi deixado embrulhado num xaile numa roda de um convento, pois a mãe provavelmente nem pobrezinha conseguia ser. Como diria Jorge de Sena: "Eu sou a favor da prostituição. Há pessoas, aliás, que não têm vocação para outra coisa."
Estou numa encruzilhada complicada. Não sei se me tornei mais exigente comigo, se estou menos tolerante perante a estultícia, ou se baixou claramente o nível da discussão e do comentário no conjunto dos fazedores de opinião deste País! Banalizou-se tudo de uma forma tão rápida, que ideologicamente se esbateram as diferenças e cada vez mais é tudo igual com palavras diferentes. Às exceções não lhe é dada importância nem tampouco tempo de publicação.
Hoje é tudo demasiado igual e ideologicamente passámos a constatar que as diferenças estão entre as convicções Zara, Pull & Bear, Primark ou na contrafação da Lacoste ou Thimberland entre outras. Qual Marx, qual Max Weber, qual Lenine, qual Trotsky, ou até mesmo o Maurras de má memória. Isso “faz parte da diarreia mental do seculo XIX” como diria o “Manholas” do Salazar, tão idolatrado por gente que se esqueceu rapidamente desses tempos, ou nunca os viveu, felizmente!
Numa entrevista de 1977, a Manuel Poppe, Sena cita Unamuno numa frase nunca impressa por cá - Portugal, numa das suas múltiplas visitas, deu-lhe a impressão de" um país de anões todos na ponta dos pés para parecerem muito altos"
Fico-me, e já agora aproveitem o Sol!
Fernando Pereira
3/07/2013
19 de junho de 2013
Até Já / O Interior / 13-6-2013
«As pessoas não vendem a terra onde vivem» - frase Sioux
Conta uma velha anedota que o reitor de uma universidade americana, de visita a Inglaterra, via com sorriso superior e condescendente as instalações de uma famosa universidade britânica: na América tudo era maior, tudo era melhor, o equipamento superior; só uma coisa invejava, e essa coisa era a maravilhosa e impecável frescura dos relvados que se estendiam entre os edifícios vetustos da universidade. Como obtinham os ingleses relva tão magnífica? Nos Estados Unidos não se conseguia coisa que se comparasse. Qual era o segredo?
O reitor britânico que acompanhava na sua visita o ilustre colega yankee, até aí visivelmente agastado, não pôde esconder um sorriso de malícia e esclareceu com falsa candura: “O segredo? Muito simples. Basta regar e cortar a relva, voltar a regar e a cortar periodicamente; ao fim de trezentos anos fica assim…”
Gosto desta anedota: não é aquilo a que costuma chamar-se cultura qualquer coisa como o relvado britânico? Apenas a persistência do esforço, a rega e a poda regulares, a continuidade do empreendimento, a paciência e a perseverança do exercício, alcançam, no âmbito do saber e da criação, produzir esses frutos de polpa rica, densa, nutritiva, saborosa que são o tesouro das nações. E não basta que uns quantos se apliquem à tarefa por desfastio; é preciso que as gerações se sucedam, acumulando a experiência, suscitando a tradição do trabalho bem feito, renovando o viço.
"O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos falta as qualidades.". Esta frase de Almada Negreiros, poeta português do grupo Orpheu, cúmplice e contemporâneo de Pessoa, nascido em S. Tomé e Príncipe no fim do século XIX, continua adequado já que nunca temos tempo para nada, fazemos tudo a correr, e enleamo-nos em projetos múltiplos para no fim nos habituarmos a atamancar qualquer coisa, preocupando-nos mais com os “exteriores” do que propriamente com a solidez e eficácia dos “interiores”.
Como estamos em tempo de pré-campanha eleitoral nada melhor que recordar Antero Quental (1842-1891), que escreveu: "A república é, no Estado, liberdade; nas consciências, moralidade; no trabalho, segurança; na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade; para todos, luz”. Pois era esta a Republica sonhada, mas nunca passou de desejada por culpa de todos nós.
Às autárquicas vou voltar quando conseguir compreender um conjunto de coisas que me escapam, mas gostava muito que Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e o seu “Contrato Social “ estivessem presentes: ”Uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”.
Fernando Pereira
10/6/2013
11 de maio de 2013
BULLSHIT- O Interior 9 de Maio de 2013

Talvez por isso seja oportuno recordar as palavras de Ramalho Ortigão em 1873, nas “Farpas”.
«A Imprensa de Lisboa não tem opinião. Aqueles que dos seus membros que por exceção pressentem as ideias próprias, vivas, originais zumbindo-lhes importunamente no cérebro, enxotam-nas como vespas venenosas. É que a missão do jornalismo português não é ter ideias suas, é transmitir a ideia dos outros. Por tal razão em Lisboa o homem que pensa não é o homem que escreve. O jornalista nunca se concentra, nunca se recolhe com o seu problema para o meditar, para o estudar, para o resolver. Nunca procura a verdade. Procura apenas a solução achada pelo público dele, pelo seu partido político, pelos consócios do seu clube, pelos seus amigos, pelos seus protetores (...). O jornal não é uma fonte de crítica, de análise, de investigação (...) O jornalista é o aguadeiro submisso e fiel da opinião. Não dirige, não a corrige, não a modifica, não a têmpera (...). A Imprensa periódica é simplesmente o cano.»
Tenho mesmo que agradecer ao Ramalho Ortigão estas palavras, porque conseguem descrever de uma forma minuciosa e assertiva tudo o que pretendia dizer, e certamente embrulhar-me-ia em tretas (Bullshit) que acabavam por deixar os leitores perplexos, baralhados e a reafirmar que o jornal perde tempo a dar-me uns caracteres.
Porque hoje estou claramente em contramão, e porque faz sessenta anos que Vergílio Ferreira escreveu a “Manhã Submersa”, uma obra imorredoira do romance contemporâneo português, lembrei-me dele enquanto meu professor no Liceu Camões, em Lisboa, no distante 1968.
Como é habitual nestas circunstâncias, podia vir para aqui tecer loas ao homem de Melo, mas, na realidade, fiquei com uma péssima impressão do professor Virgílio enquanto meu professor de português, que tinha uma má relação com muitos colegas, um dos quais o neorrealista Mário Dionísio. Ao tempo um imberbe e um aluno sofrível, dessabia que aquele tipo seco, que eu não entendia, era um razoável brilhante escritor, de que só acabei por dar conta anos mais tarde. Recordo certa vez, na Guarda, termos conversado longamente, quando da sua presença no primeiro dez de Junho de 1977 em que foi instituído o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades”, onde a sua intervenção foi ofuscada por um arrebatador “Jorge de Sena”.
A realidade é que, quando se reformou do ensino, deu uma entrevista em que afirmou que nunca gostou de lecionar, fazia-o para sobreviver, e “sentiu sempre que nunca foi um bom professor”. Senti-me ressarcido das péssimas notas que me deu e só o desculpei porque me ajudou a ver com outros olhos algumas situações que tão bem descreveu.
Para que conste, falei do Vergílio Ferreira e não de qualquer outro Vergílio, nem tampouco o das “Éclogas” ou “Bucólicas”, que era de Roma e nada tinha a ver com Gouveia.
Fernando Pereira
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