10 de abril de 2025

A Pílula do dia seguinte / o Interior / 9/4/2025

 

                                                    


A Pílula do dia seguinte

“A mentira constante não serve apenas para enganar—seu verdadeiro propósito é destruir a própria noção de verdade. Quando um povo já não consegue distinguir entre o real e o falso, também perde a capacidade de discernir entre o bem e o mal. E um povo assim, desarmado do pensamento crítico, torna-se presa fácil para qualquer poder que deseje controlá-lo.” (...)Hannah Arendt, in "A mentira como ferramenta de poder"

Há umas décadas, no dealbar da independência de Angola, por razões de serviço tive que fazer uma viagem de serviço a uma povoação no centro-sul do País, que uns anos antes era um florescente entreposto de cereais do Caminho de Ferro de Benguela. Ao tempo essa vila, Longonjo, estava num perfeito estado de abandono, e o último comboio já tinha ali passado há 3 anos (Uma linha da Beira Alta antecipada), e não tornaria a passar nos 25 anos seguintes. Os trabalhadores do CFB sentavam-se a cumprir o horário “inventando coisas novas”, frase roubada ao meu amigo, o escritor Manuel Rui Monteiro dos “Meninos do Huambo”.

                Estive lá três vagarosos dias, num ermo e alojado numa pensão restaurante, de muito má qualidade e ainda por cima sujeita a faltas de produtos de manutenção ou até de apoio a mínimos para a despensa e concomitantemente para a mesa do hóspede único, que era eu. O dono era um português idoso de uma terra entre Moncorvo e Freixo Espada à Cinta, com a sua mulher que também era desses sítios. Ao som do pálido petromax, digo-o porque a luz transformava as nossas caras em bonecos de cera e o som era um silvar constante. Como havia pouco que partilhar, quer comida quer bebida íamos falando de tanto que aconteceu, acontecia e aconteceria. A única coisa certa foi mesmo o que aconteceu. A determinada altura, quando lhe perguntei porque ficou em Angola, naquele ermo, só com a mulher, longe dos filhos, amigos e outros entes queridos ele respondeu-me: “Sabe camarada Fernando, era assim ao tempo o tratamento quotidiano a na então República Popular de Angola, eu tenho um lápis e uma orelha. Pegou no lápis e pendurou-a na orelha, e disse a cobra não tem orelha, portanto não tem onde guardar o lápis. Pedi-lhe que me explicasse, e ele disse que tinha nascido com orelha para pôr lápis e as cobras eram os outros que comiam tudo, e quando não tivessem que comer começavam a comer a própria cauda até acabarem por morrer. O do lápis na orelha ia-os vendo morrer e comerem-se! No fim ele diz: Esta terra sem os dos lápis nas orelhas é um ofidiário tormentoso!

                Toda esta história que tenho contado repetidas vezes talvez tenha a ver sobretudo sobre tanta coisa que aceleradamente estamos a assistir em Portugal e no Mundo. Já tenho idade para ter visto muita coisa e o seu contrário, mas sinceramente nunca me lembro de ver as estrelas tão alinhadas para que tanta coisa má aconteça, e o dramático é que são os sem orelhas que nos tentam dar a receita de como vai ser o nosso futuro.  Os do lápis na orelha são marginalizados e calados.

                Vamos muito em breve para a primeira de três eleições no período de um ano. E volta a estafada teoria da necessidade de se votar útil para derrotar uma qualquer inutilidade política. Eu sempre votei útil, de acordo com a minha consciência, e sem andar a ver se uns são melhores, assim-assim, piores, mas melhores que outros que são muito maus e por aí forma. Se o meu voto, que não tem muita companhia não conta para colocar deputados nacionais, deputados municipais, vereadores a culpa não é minha, é sobretudo de um sistema que se está borrifando para as minorias. Continuam a legitimar e a promover alguns, que deveriam estar a fazer voluntariado em alguns museus, porque muito do acervo é do seu tempo. Mas não é assim, ei-los com aquele ar circunspecto a dizerem banalidades, com a autoridade que o País, a Europa e o mundo estejam à espera de saber se a posição política deles é em decúbito ventral ou dorsal. Mais uma vez vou votar útil, mesmo que isso não me traga representação nenhum (Olhem que nos Açores e na Alemanha todos os votos contam)

                Para acabar que já vai longo recomendo que façam como eu e peguem no livro “Sim Senhor Primeiro Ministro” de Jonhathan Lynn e Antony Jay. Eu estou a relê-lo mais uma vez!

                Quem estiver empenhado na campanha, aproveite e leia os livros das intervenções parlamentares dos deputados eleitos pelo distrito da Guarda, no ultimo ano e porque não pegar nos livros dos deputados eleitos há mais de 30 anos. Era um excelente exercício.

                E em Maio saberemos quem toma a pilula do dia seguinte!

                Já agora, comemorem como puderem o 25 de Abril de 1974. Essa data sim, merece respeito!

 

Fernando Pereira

7/4/2025

               

13 de março de 2025

Vamos revisitar o futuro? / O Interior / 11-3-2025

         




Vamos revisitar o futuro?

 

Com tudo que se tem passado, só se me oferece fazer uma adaptação do que dizia Almada Negreiros sobre Portugal, diria “Isto não é o Mundo. É um sítio. E ainda por cima, mal frequentado!"

            Estas semanas que foram particularmente pródigas em notícias,  não auguram nada de bom nas relações internacionais, e a degradação que se vinha acentuando nos últimos anos no contexto das relações económicas, nas alianças militares e nos alinhamentos políticos deixam no horizonte tempos de grande indefinição. A ausência de uma liderança na Europa, a inversão de valores na nova administração nos EUA, a firme autocracia russa e o olhar matreiro dos governantes chineses conseguem fazer um cadinho de soluções que podem vir a ser irreversivelmente explosivas.

            Não sei se terá sido por acaso, revi o filme de John Ford, “A grande Esperança”, título em português do “Young Mr. Lincoln”, uma das minhas películas de eleição. Um filme de 1939, com um pujante Henri Fonda, que dá corpo à personagem de um dos mais extraordinários presidentes dos EUA Abraham Lincoln. O enredo não é sobre a vida de Lincoln enquanto presidente, mas é sobre o seu tempo enquanto um jovem advogado confrontado na defesa de dois irmãos de um caso de homicídio evidente.

            O filme é dos mais admiráveis da filmografia mundial, mas o que é importante reter quando estamos a vê-lo é a estrutura moral e ética de um cidadão impoluto que foi dos mais marcantes presidentes dos EUA, o republicano Lincoln, assassinado há mais de 150 anos.

            É confrangedor assistirmos nos EUA o que tem sido a magistratura dos últimos presidentes do País, com evidentes reflexos na instabilidade passada e  presente em diversos locais do mundo.

O edifício democrático em que assentam os EUA, afinal um continente com uma diversidade cultural, com assimetrias económicas, com falta de uma unidade religiosa, com um mosaico de raças tem conseguido sobreviver uma nação unida a um enorme desgaste que alguma gestão algo cataventista que tem imperado na Casa Branca e no Capitólio.  Os lóbis, as alianças espúrias por regimes de discutível espírito democrático, a falta provável de um antagonista forte em termos militares, a ultrapassagem demasiado rápida da sua estrutura económica tem levado os EUA a esta situação, e ainda por cima acresce que já há décadas que é um País pouco confiável na perenidade das suas relações externas. Como bem dizia o cínico Henri Kissinger: Ser inimigo dos EUA pode ser perigoso, mas ser amigo é fatal.”, ou ainda,A América não tem amigos permanentes ou inimigos, apenas interesses”.

            Num tempo em que se assiste a um espetáculo permanente, e nalguns episódios até confrangedores, no quotidiano das relações internacionais vemos com preocupação um futuro que julgámos sempre ser impossível de acontecer.

            Voltando a Lincoln, um homem que obstinado venceu uma guerra civil por uma causa, a abolição da escravatura, afinal ironia do destino a bandeira dos republicanos e a oposição forte dos democratas, deixou um legado no seu discurso no filme de John Ford: “O poder começa quando cada um sentir como sua a lei de todos”.

               

                Quando me desapetece falar de questões internas há sempre o recurso às externas.

 

 

Fernando Pereira

10/03/2021

               

18 de janeiro de 2025

NADA NOS SALVA DESTA PORRA TRISTE/ O Interior / 15-01-2025

 




NADA NOS SALVA DESTA PORRA TRISTE

 

Fui buscar este título longo a um desalentado Jorge de Sena, quando falava do País, no seu exílio californiano. Acho que infelizmente temos que começar a fazer coro com ele porque o futuro não é fiável.

Existem pessoas que sabem tudo. Infelizmente é tudo que sabem. São os especialistas. Sabem quase tudo de praticamente nada.

Esta introdução tem a ver com o muito que o mundo está a ter ao nível  da “tudologia” comunicacional no quotidiano da cada vez mais depauperada comunicação social, entregue ao patobravismo arrivista dos grupos económicos, e ao crescente domínio das redes sociais, tuteladas por pessoas sem escrúpulos e que se julgam capazes de implantar projectos políticos e modelos económicos que nada tem de inovadores, porque redundam sempre na existência da segregação social e económica entre cidadãos.

Sente-se que o ar começa a ser irrespirável,e eis-nos indiferentes quando assistimos à banalização do horror nas imagens que vemos entre umas garfadas, dois copos e umas gargalhadas, achando que tudo aquilo é coisa que só acontece aos outros.

Conseguimos ser tu cá tu lá com o Putin, Trump, Musk, Maduro, Netanyahu e outros, da mesma forma que dizemos no café, ou no emprego que a vizinha do andar de cima comprou uns sapatos novos porque os saltos que se ouvem são diferentes.

“Nada é mais desastroso do que iniciar-se uma experiência social com gente imprópria”, diz uma personagem do “Também o cisne morre” de Aldous Huxley.

Hoje estamos perante esse contexto, e quando nos encontramos para conversar com os nossos pares e ímpares o que de facto conseguimos é trazer para o diálogo pouco mais que os monólogos que nos oferecem a “rádio, tvdisco e a cassete pirata”, desculpem as redes sociais! Estamos literalmente prisioneiros da falta de graça que a maior parte das coisas tem e as desgraças que se vão avolumando à nossa volta sem que consigamos dar conta quão enleados estamos.

Nelson Rodrigues (1912-1980), um excecional jornalista, escritor, dramaturgo, politicamente alinhado com a direita, sem apoiar a ditadura brasileira, disse que “O ser humano é cego aos próprios defeitos. Jamais um vilão se proclama vilão. Nem o idiota se diz idiota”.

Hoje era para escrever outra coisa, mas como os tempos são penumbrosos resolvi partilhar este magnífico texto do historiador e economista italiano Carlo Cipolla, que condensa em cinco leis a sua teoria da estupidez:

“1. Sempre se subestima o número de estúpidos em circulação.

2. A probabilidade de que uma pessoa seja estúpida é independente de sua educação, riqueza, inteligência, etc.; ou seja, a estupidez se distribui igualmente em todos os segmentos da população.

3. O estúpido causa dano a outras pessoas e a si mesmo, sem obter nenhum benefício.

4. Eles são imprevisíveis. As pessoas NÃO estúpidas sempre subestimam o poder danoso dos estúpidos.

5. Os estúpidos são mais perigosos que os bandidos e os malvados. Não há nada mais perigoso que um estúpido com poder.”

Quando o governo ou o regime social que produz a estupidez coletiva entra em colapso ou em crise, as pessoas podem se libertar dela e da dor que começa a surgir pela contradição entre seus pensamentos e seus atos (Bonhoeffer)

Sigo Mark Twain numa velha máxima “Sempre que você se encontrar do lado da maioria é hora de parar e refletir”, e tenho-o feito no meu quotidiano na politica, no desporto, na vivencia cultural e até social.

Tempos maus, muito maus! Pelo menos desejo a quem me lê um bom ano 2025!

 

Fernando Pereira

13/01/2025

 

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