8 de abril de 2007

Homenagem a Nuno Bragança 1929/1985





NUBO BRAGANÇA
A NOITE E O RISO

Os Vimioso e a Banda de Bucelas
Quando nas suas iras, o Rudolfo gostava imenso de bater. Arrumar um adversário despachável à primeira, nem pensar. Organizava as lutas de molde a chegar à última trancada nuns vagares, gourmet de sexo a retardar o orgasmo. Escolhia as vítimas a dedo, sem as estudar antes de lhes saltar em cima. Tinha a pontaria de quem se movimenta em função do puro instinto.
O homem de Bucelas mostrava-se uma presa ideal. Porque tinha agilidade e força, e era corajoso.
[...] Durante um naco de tempo, o Rudolfo foi demolindo o outro, camponesa de bons dentes absorvendo um cacho de Ferral
Os bucelenses extra-banda, estarrecidos, não tinham receita apropriada. De cada lado dos contendores(1) , uma fila de tocadores de Banda desfilava, narizes no papel pautado.
Foi um saxofonista quem virou a página. Ao ver o sucedente, passou o instrumento ao companheiro de trás. Atravessando tudo e todos numa implacabilidade de furão em rasto certo, chegou-se ao Zé-Rudolfo e deu-lhe uma na nuca com o talhe da mão.
O Rudolfo fez plaff no asfalto, como um sapo despejado do sétimo andar. «Este é músico», disse o Simão, olhando o saxofonista atenciosamente, nuns carinhos. Após o que, chegou-se a ele e foi-lhe às ventas, com o sorriso duma Madre Superiora afagando noviça que promete.
A intervenção do [Simão] C. C.: copo de gasolina entornado em chama de caruma. Num já-está, a selecção de Bucelas e o meu grupo defrontaram-se num vale-tudo incluindo instrumentos musicais servindo de matracas. Para os polícias, que andavam pela orla dos passeios de cacetete em erecção constante, esta oportunidade de molhar a sopa em nova frente foi éclair de chocolate à mão de uma madame.


Nuno Bragança, A noite e o riso

7 de abril de 2007

Cooperação

2ºS Jogos da África Central





Comissão Organizadora dos 2ºs Jogos da àfrica Central,em scanner do documento oficial dos jogos.
Participaram os seguintes países, distribuídos por 8 modalidades colectivas e 7 individuais: Angola,S.Tomé e Princípe, Gabão, Zaire, Congo, Gabão, Burundi, Rwanda,Camarões, Tchade,Guiné Equatorial e Republica Centro Africana.
Para que conste fui com muita honra adjunto de um ilustre homem do desporto angolano, probo, bom amigo e afinal que é um dos muitos que merece uma Angola melhoradamente diferente...José Rocha Sardinha de Castro.

Fernando Pereira

4 de abril de 2007

FMI /José Mário Branco



Ouça o FMI - clique aqui

Por favor desperca este trabalho do José Mário Branco com 30 anos!

Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos...
É o internacionalismo monetário!





FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o mortimor do meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attachi-case' sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico 'hara-quiri'
FMI Panegírico, pro-lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si e palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Num encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretém-te filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt'e-quer, messe gigantesca, vem-te vindo, vi-me na cozinha, vi-me na casa-de-banho, vi-me no Politeama, vi-me no Águia D'ouro, vi-me em toda a parte, vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos que te orgulham por esses cartazes fora, olha a Música no Coração da Indira Gandi, olha o Muchê Dyane que te traz debaixo d'olho, o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo, saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde. Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta destabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro! Estás aí a olhar para mim, estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus botões: Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é? Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde de nascente? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote! Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho? Onde está o teu Extremo Oriente, filho? Ah-ni-qui-bé-bé, ah-ni-qui-bó-bó, tu és 'Sepuldra' tu és Adamastor, pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te filho, entretém-te! Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva, e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala e ritmo de pop-xula, não é filho?
A one, a two, a one two three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Come on you son of a bitch! Come on baby a ver se me comes! Come on Luís Vaz, 'amanda'-lhe com os decassílabos que os senhores já vão ver o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás, enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares, zás, enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal, zás, enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros, zás, enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro, zás, enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu, um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho? Pois, o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra, deixa lá correr uma fila ao menos, malta pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas pá? A culpa é dos partidos pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta pá, pois pá, é só paleio pá, o pessoal na quer é trabalhar pá! Razão tem o Jaime Neves pá! (Olha deixaste cair as chaves do carro!) Pois pá! (Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?) É pá, deixa-te disso, não destabilizes pá! Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata. Uma porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril, esta confusão pá, a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo, mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah? Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah? Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá, isto é tudo a mesma carneirada! Oh sr. guarda venha cá, á, venha ver o que isto é, é, o barulho que vai aqui, i, o neto a bater na avó, ó, deu-lhe um pontapé no cu, né filho? Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar, ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, não é nada comigo, não é nada comigo, né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada, precisas de paz de consciência, não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, ah?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande, tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade? Quer isto dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-faxistas, estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas azeite mexilhão, eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto, viva o Porto, viva o Benfica, Lourosa, Lourosa, Marraças, Marraças, fora o arbitro, gatuno, bora tudo p'ro caralho, razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores, entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais, entretém-te filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho, entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar, entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes, entretém-te filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada, milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter, o Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II, tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias, ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou! Hão te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer, votas à esquerda moderada nas sindicais, votas no centro moderado nas deputais, e votas na direita moderada nas presidenciais! Que mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma, para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né? Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega. Entretém-te meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti, se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo! Descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acho normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar! Descontrai baby, come on descontrai, arrefinfa-lhe o Bruce Lee, arrefinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o euroscópio, dois ou três ofeneologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas! Piramiza filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá! Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-xula, pop-xula pop-xula, iehh iehh, J. Pimenta forever! Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti, não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia; não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal; não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte; não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir, cabrões de vindouros, ah? Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu ah? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá, e eu? José Mário Branco, 37 anos, isto é que é uma porra, anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo, e depois? É só porrada e mal viver é? O menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês', o menino pertence a uma classe sem futuro histórico... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra, quero ser feliz agora, que se foda o futuro, que se foda o progresso, mais vale só do que mal acompanhado, vá mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto, vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho, filhos da puta, deixem só um bocadinho, deixem-me só para sempre, tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega, sossego porra, silêncio porra, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só, deixem-me morrer descansado. Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado, eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto, eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa, deixem-me só porra, rua, larguem-me, zórpila o fígado, arreda, 'terneio' Satanás, filhos da puta. Eu quero morrer sozinho ouviram? Eu quero morrer, eu quero que se foda o FMI, eu quero lá saber do FMI, eu quero que o FMI se foda, eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões, o FMI não existe, o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma, o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio, rua, desandem daqui para fora, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...

Mãe, eu quero ficar sozinho... Mãe, não quero pensar mais... Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter que me ir embora. Mãe, por favor, tudo menos a casa em vez de mim, outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e de me encontrar fugindo, de quê mãe? Diz, são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento. E se inventássemos o mar de volta, e se inventássemos partir, para regressar. Partir e aí nessa viajem ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar, abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar, terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto, lembrar nota a nota o canto das sereias, lembrar o depois do adeus, e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal, lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição, partir aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar...

Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes, assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: Olá camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer, aqui está a minha arma para vos servir. Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de lava-colhos, assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores. De quem é o carvalhal? É nosso! Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso. Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena. Diz lá, valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe, no fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco. Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra, o meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.

José Mário Branco - FMI

Nota: FMI foi editado originalmente em 1982 no maxi Som 5051106, e reeditado em 1996 em 'Ser Solidário' ( EMI-Valentim de Carvalho). Aconselha-se vivamente a sua audição.

Webmaster: franciscojmleitao@hotmail.com (08/2002)

Colonialisticamente africando e rindo!



Portugal em África




Em "O Esplendor de Portugal", Lobo Antunes define o labirinto crítico da situação política e econômica da colonização portuguesa em África, através da voz de uma das personagens evocadas pela filha:

O meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em África não era dinheiro nem poder mas pretos sem dinheiro e sem poder algum que nos dessem a ilusão do dinheiro e do poder que de facto ainda que otivéssemos não tínhamos por não sermos mais que tolerados, aceites com desprezo em Portugal, olhados como olhávamos os bailundos que trabalhavam para nós e portanto de certo modo éramos os pretos dos outros da mesma forma que os pretos possuíam os seus pretos ainda em degraus sucessivos descendo ao fundo da miséria, aleijados, leprosos, escravos de escravos, cães, o meu pai costumava explicar que aquilo que tínhamos vindo procurar em África era transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar, morando em casas que macaqueavam casas européias e qualquer europeu desprezaria considerando-as como considerávamos as cubatas em torno, numa idêntica repulsa e idêntico desdém... (OEP, 255)

15 de março de 2007

Farto de Salazar





Este texto é do meu amigo António Ferreira, ilustre advogado da Guarda, campeão de xadrez, brilhante cozinheiro, bom companheiro, e que me autorizou a publicá-lo, depois de o ter publicado no Jornal "O Interior".


As caricaturas são do João Abel Manta


Karipande



Farto do Salazar
Continuo a ler, por aqui (por exemplo Alves Ambrósio) e por aí, textos sobre Salazar. Ouço notícias sobre um museu em Santa Comba Dão, descubro sites na Internet sobre o personagem (por exemplo em http://www.oliveirasalazar.org/), falam-me de truques utilizados pelos seus admiradores para levar incautos a votar nele na eleição do “maior português de sempre”. Do lado dos detractores vejo manifestações em Santa Comba Dão, ouço denunciar o branqueamento da figura do ditador.
É verdade que, para todos os efeitos, Salazar esteve no poder durante muito tempo, uma vergonha de tempo. Habituados hoje a ouvir falar de alternância no poder, fomos obrigados, como nação, a contentar-nos com o mesmo chefe de governo durante trinta e seis anos – e não contabilizo o tempo em que ele pensava que ainda era primeiro-ministro (entre 1968 e a data da sua morte, em 1970) ou ministro das Finanças (entre 1928 e 1932). Se o fizesse, teria de dizer que esse homem nos governou durante mais de quarenta anos. Acham isso normal? Eu não e interpreto o silêncio sobre ele das últimas décadas, especialmente a partir dos anos 80, como um recalcamento colectivo, uma generalizada manifestação de vergonha pela nossa tão longa passividade.
Irrita-me sobretudo é que se louve a figura porque no seu tempo havia “respeitinho”, coisa que não haverá agora. E irrita-me essa ignóbil palavrinha porque não passa de uma máscara para outra, ainda pior: subserviência. Dizem também, o que é ainda mais irritante, que dantes não havia a corrupção, a dissolução de costumes, a criminalidade que há hoje. Pelo menos, e aí dou-lhes razão, não apareciam nos jornais. É que, como dizia o próprio António de Oliveira Salazar, na inauguração do Secretariado Nacional da Informação: "Politicamente, só existe aquilo que o público sabe que existe." Por isso havia, caso não se recordem, censura prévia a tudo o que era publicado. Podia haver gigantescos apitos dourados, suculentos escândalos sexuais, milhares de funcionários corruptos, que o público não sabia nem tinha meios de saber. É por isso especialmente grotesco o argumento de que esses tempos tinham um qualquer tipo de predomínio moral sobre os nossos. É um duplo branqueamento: o da censura e o da baixeza ética própria de um regime ditatorial.
De resto, há é que recordar números e factos e comparar o pais de hoje com o do antigamente. Sugiro, por exemplo, os dados sobre mortalidade infantil, pobreza, esperança de vida, nível de protecção da segurança social, percentagem de casas com electricidade, água canalizada, saneamento básico, telefone, televisão, frigorífico. Verifiquem ainda as percentagens de analfabetismo (e dou de barato que quem acabava a quarta classe de antigamente sabia de cor todos os rios, montanhas e estações de caminho de ferro do Minho a Timor), de abandono escolar, a distância a que estavam então de um serviço de urgência os que agora protestam contra o seu encerramento. E sugiro outra coisa: tentem recordar a última vez que viram na rua alguém descalço (e essas hippies malucas não contam).
Posto isto, acho muito bem o museu do Salazar. Sugiro é que coloquem lá, em lugar de honra e devidamente envernizada, a cadeira de que ele caiu em 1968. Essa é, muito provavelmente, a peça de mobiliário a que os portugueses mais devem nos oito séculos de história da nação.

Sugestões:
Uma viagem: à Coreia do Norte, que é o pais mais parecido com o Portugal do Salazar.
Um livro: A Independência de Portugal (Rafael Valladares, a esfera dos livros, 2006). Sobre a guerra que se seguia a 1640 e como Filipe IV descobriu à sua custa, e do seu reino, o significado de um antigo provérbio polaco: “o pai bateu ao filho não por ter perdido ao jogo, mas por ter tentado recuperar”.

Zé Povinho em capa de "Os Ridículos"/1974


João Abel Manta

colono
Missionário
Império e dignificação das populações locais

Guerra (quase) colonial

João Abel Manta

João Abel Manta
Nasceu em 1928.Filho dos pintores Clementina Carneiro de Moura e Abel Manta, diplomou-se em Arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1951. Tem desenvolvido intensa actividade não só como arquitecto, mas também como pintor, cenografista e artista gráfico (cartaz, filatelia, ilustração e "design" de livros, jornais e revistas).É considerado o melhor cartoonista português deste século, na senda de Rafael Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais e Leal da Câmara, tendo publicado três livros em Portugal e um na Alemanha.Obteve vários prémios nacionais e estrangeiros: 1961, Prémio de Desenho na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian; 1965, Medalha de Prata na Exposição de Artes Gráficas de Leipzig; e 1975, Prémio de Ilustração na Exposição de Artes Gráficas de Leipzig.


Este conjunto de caricaturas, pertencem a uma obra mais vasta de João Abel Manta, "Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar", editado pelo "Jornal" em Dezembro de 1977, tendo sido reeditado recentemente pelo "Campo das Letras, Editores".


10 de Junho
Avião
Caçadores

Colonialismo e guerra colonial

Ah Diogo! Ah Cão! Em que deZaire pretendes colocar o teu padrão? El-rei morreu. As naus de clarear são agora de um povo nosso irmão.
Dispensámos as balas e os escravos e mais para diante navegámos. Negreiros não. Dissemos sim aos cravos. O mar não dói. E a terra não tem amos.
Ah Diogo! Ah Cão! Que resultadoesperavas deste povo a ver morrero seu corpo na farda de soldado?
Esta Nau do futuro há-de vencer! Mas há cães que só ladram o passado porque o presente é duro de roer!
Joaquim Pessoa

Américo Tomaz

E dizia o Américo Tomás ao inaugurar a fábrica Riopele, que tinha como inovação, um refeitório para os trabalhadores:
-So tenho um adjectivo para qualificar aquilo que vi: Gostei!!!


Um anuncio de graça

Poema Temperamental
Ó caralho! Ó caralho!Quem abateu estas aves?Quem é que sabe? quem éque inventou a pasmaceira?Que puta de bebedeiraé esta que em nós se vemjá desde o ventre da mãee que tem a nossa idade?Ó caralho! Ó caralho!Isto de a gente sorrircom os dentes cariadosesta coisa de gritarsem ter nada na goelafaz-nos abrir a janela.Faz doer a solidão.Faz das tripas coração.Ó caralho! Ó caralho!Porque não vem o diabodizer que somos um povode heróicos analfabetos?Na cama fazemos netosporque os filhos não são nossossão produtos do acasodesde o sangue até aos ossos.Ó caralho! Ó caralho!Um homem mede-se aos palmosse não há outra medidae põe-se o dedo na feridase o dedo lá for preciso.Não temos que ter juízoo que é urgente é ser loucoquer se seja muito ou pouco.Ó caralho! Ó caralho!Porque é que os poemas dizemo que os poetas não querem?Porque é que as palavras feremcomo facas aguçadascravadas por toda a parte?Porque é que se diz que a arteé para certas camadas?Ó caralho! Ó caralho!Estes fatos por medidaque vestimos ao domingotiram-nos dias de vidafazem guardar-nos segredose tornam-nos tão cruéisque para comprar anéisvendemos os próprios dedos.Ó caralho! Ó caralho!Falta mudar tanta coisa.Falta mudar isto tudo!Ser-se cego surdo e mudoentre gente sem cabeçanão é desgraça completa.É como ser-se poetasem que a poesia aconteça.Ó caralho! Ó caralho!Nunca ninguém diz o nomedo silêncio que nos matae andamos mortos de fome(mesmo os que trazem gravata)com um nó junto à garganta.O mal é que a gente cantaquando nos põem a pata.Ó caralho! Ó caralho!O melhor era fingirque não é nada connosco.O melhor era dizerque nunca mais há remédiopara a sífilis. Para o tédio.Para o ócio e a pobreza.Era melhor. Com certeza.Ó caralho! Ó caralho!Tudo são contas antigas.Tudo são palavras velhas.Faz-se um telhado sem telhaspara que chova lá dentroe afogam-se os moribundosdentro do guarda-vestidosentre vaias e gemidos.Ó caralho! Ó caralho!Há gente que não faz nadanem sequer coçar as pernas.Há gente que não se importade viver feita aos bocadoscom uma alma tão mortaque os mortos berram à portados vivos que estão calados.Ó caralho! Ó caralho!Já é tempo de aprenderquanto custa a vida inteiraa comer e a bebere a viver dessa maneira.Já é tempo de dizerque a fome tem outro nome.Que viver já é ter fome.Ó caralho! Ó caralho!Ó caralho!
Joaquim Pessoa

Artur Agostinho com roupagem nova (1974)


Alcacer talvez sequer





"Foi então que topámos com um grande aparato militar de castelhanos protegendo uma tenda alumiada de barraca de feira, centenas de estandartes, bandeiras e cozinhas de campanha, cirurgiões que amolavam bisturis e ilusionistas que divertiam a tropa, e uma sentinela que nos informou que o rei Filipe se reunia com os seus marechais na rulote do Estado-Maior a combinar a invasão de Portugal, porque D. Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lamber uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos por roubar a um maricas inglês, chamado Oscar Wilde, um saquinho de Liamba."


"Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas, que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta impossível que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível."

Um retornado. Muitos retornados. Um país. Uma recusa. Mútua. Uma História.

AS NAUS de António Lobo Antunes

Semanário " Os Ridículos" 8/8/74




"AS Naus" de António Lobo Antunes
"Nunca encalhei, no entanto, em homens tão amargos como nessa época de dor em que os paquetes volviam ao reyno repletos de gente desiludida e raivosa, com a bagagem de um pacotinho na mão e uma acidez sem cura no peito, humilhados pelos antigos escravos e pela prepotência emplumada dos antropófagos."

"a minha família de queixo amarrado em moedas de prata nas órbitas a fitar-me com reprovação, Este é o que foi para Luanda morar no meio dos pretos em lugar de explorar uma tabacaria na Venezuela ou um escritório de transportes na Alemanha, este é o que montou um comércio de talhante nos museus que, vendia costelas aos cafres, fez um filho a uma mulata, habitava um prefabricado da Cuca, nem um coche, nem um batel possuía, aos domingos espojava-se na sala de calções, a ouvir relatos de futebol e a comer merda da sanzala (...)";

"(...) o governo desocupou o hospital de tuberculosos que passaram a tossir nos jardins públicos hemoptises cansadas, e vazou nas enfermarias de muros de cenas de guerra e de actos piedosos, impregnados pelo torpor da morte dos desinfectantes, dos colonos que vagavam à deriva, de trouxa sob o braço, nas imediações dos asilos, na mira de restos de sopa do jantar.";

"Os pretos tomaram conta disto tudo, instalaram ninhos de metralhadoras jugoslavas nas arcadas, assassinaram-se uns aos outros a tiros de canhão, iam e vinham da mata açudados por vinganças sangrentas. O porto encheu-se de canoas e galés, destinadas a carregarem de volta o azedume dos colonos, as cabanas da ilha esvaziaram-se (...)".

Super Manos

Não acredito, que este anuncio de 1974/75 estivessem os manos Portas...Penso que quem tem a ver com electrodomésticos é o pouco doméstico, aliás nada doméstico presidente da Camara Municipal de Gondomar...Garantiram-me que eram mesmo os manos Portas, pelo que desconfiadamente assim reproduzo.

14 de outubro de 2006

25 de Abril em Luanda em 1979


A Associação 25 de Abril encarregava-se de todos os anos comemorar a data em Luanda.Fica aqui o cataz das comemorações em 1979.
Para os muitos que fizeram erguer esse espaço de liberdade ali nas traseirinhas da livraria Lello, num prédio de traça colonial antiga, a gratidão de quem por lá viveu momentos de solidariedade e de vida democrática.
Fernando Pereira
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