100 ANOS ESCRITOS A
OURO!
A 22 de Fevereiro de 1919 era
exarada a Portaria nº51, assinada pelo então Governador Geral Filomeno da
Camara Mello Cabral que cria o “Liceu Central na cidade de Luanda”.
Materializava-se
uma recorrente reivindicação dos colonos que exerciam atividade económica na
cidade e do conjunto de famílias africanas, ao tempo ainda não espoliadas do enorme
prestígio e património assinalável. Todos queriam que os seus filhos fizessem o
seu percurso secundário em Angola, pois era quase impossível enviá-los para a
então metrópole. As escolas que existiam eram particulares e de duvidosa
qualidade.
Terá
havido ao tempo uma grande unidade em torno da constituição do Liceu de Luanda,
que pelo artigo 2º, da portaria 51, conseguindo vingar que “O Liceu Central de
Luanda terá uma organização semelhante à dos liceus da metrópole”.
A
portaria determinava que o Liceu iniciaria a sua atividade regular a 15 de
Março de 1919, o que sucedeu, sendo Álvaro Galiano o seu aluno nº1.
As
descrições da época sobre esta “histórica decisão” foram de grande entusiasmo,
numa cidade que tinha tudo de muito pouco bom para ser um espaço urbano
vivível. A iluminação pública dependia dos particulares que quisessem as
cercanias das suas casas iluminadas. As ruas áridas e com a areia vermelha eram
lugares de pouca higiene e a água que vinha do Bengo era escassa e tinha que
ser filtrada de forma a evitarem-se as doenças que faziam de Luanda um lugar
conhecido pela insalubridade.
O
grande impulsionador do movimento em torno do Liceu, que passou a Liceu Central
de Salvador Correia a 30 de Janeiro de 1924, quando este “estabelecimento de
ensino passa a equiparar-se para todos os efeitos a todos os liceus da
metrópole”, foi Monsenhor Alves da Cunha, provavelmente a figura maior do
seculo XX do território. Foi a pessoa que mais unanimidade concitou entre todos
os cidadãos da cidade de Luanda, que viam os governadores enviados pela
potencia colonial com passagens meteóricas, procurando que se alterasse o
mínimo para não haver desequilíbrios. Alves da Cunha, em vários domínios, desde
o ensino, à solidariedade, ao urbanismo, à florestação da cidade e ao
desenvolvimento de pequenas unidades industriais foi um incansável batalhador,
sem ter tirado qualquer provendo para si. Morreu pobre, mas reconhecido por
toda a população da cidade, independentemente do seu status económico ou
social!
É
interessante que na sanha “desapeadora” das estátuas que se assistiu no
pós-independência, a sua foi a única que não foi beliscada e lá continua a
pairar sobre a sua cidade. Conseguiu unir grupos desavindos de interesses em
objetivos comuns e de facto fez por acontecer tanta coisa, em que o Liceu será
a sua obra mais relevante, já que foi seu reitor até 1929, e membro do seu
corpo docente inicial desde a instalação, na exígua casa da sede da Companhia
do Ambaca, ali para os lados da Misericórdia.
Em
Outubro de 1919 as instalações passaram para a Avenida do Hospital, num
edifício demolido há 46 anos para se construir o atual Palácio da Justiça.
Como as
condições não eram as melhores, dada a afluência de alunos, foi decidido em 30
de Junho de 1933 cabimentar verbas para a construção do edifício onde funcionou
o Liceu Salvador Correia de 1942 a 1975, e a partir de então a Escola
Mutu-Ya-Kewela, de há um ano a esta parte uma escola do magistério primário,
depois de vultuosos e excelentes trabalhos de recuperação. Uma sábia decisão da
tutela para preservar para a Educação um espaço físico e de memória de eleição.
O
Liceu, num projeto do Arquiteto José da Costa e Silva, edificado nuo alto da
cidade, em estilo denominado de “Português Suave” torna-se a partir do dealbar
dos anos 40 na edificação mais proeminente na cidade. À sua volta a cidade
começa a crescer, e o liceu é a marca indelével de um novo tipo de sociedade
que se impõe em Angola.
Muitas
gerações de pessoas transpuseram as portas daquele Liceu, desde alunos,
professores e funcionários, e em todos ficou sempre alguma coisa que terá
marcado para a vida, mesmo que tenha sido de raspão a sua passagem.
Para
além da excelência do seu corpo docente, das suas instalações, o Liceu foi um
espaço onde se cruzaram gentes com propósitos bem definidos na luta pela
Independência do País, e o contrário também!
O Liceu
que comemora cem anos neste 22 de Fevereiro, teve entre os seus alunos os dois
primeiros Presidentes da República do País (Agostinho Neto e José Eduardo dos
Santos) e um conjunto interminável de gente que lutou empenhadamente por uma
Angola independente e diferente da que vamos vivendo por ora.
Para
além da participação política, o Liceu foi o local onde se deram os primeiros
passos para brilhantes cientistas, médicos, professores universitários,
empresários de sucesso, economistas, jornalistas, em suma um conjunto
significativo de gente que cobre de glória as paredes do vetusto edifício que
continua a olhar a cidade que em determinada altura cresceu mal a seus pés.
Fui
aluno de 1966 a 1972 e apesar de ter frequentado episodicamente outros
estabelecimentos de ensino (em Coimbra) o Salvador Correia entranhou-se, e
ainda hoje muitos dos meus companheiros de “viagem”, os que sobram, são
exatamente os mesmos que estavam comigo naquele espaço que nunca nos deixa
indiferente quando por lá passamos ao pé.
Na Casa
Amarela fizemos tanto de bom, que ao longo dos anos nos reencontramos uma vez
por ano, a contar e a recontar coisas do antanho, a comermos e a bebermos o
possível para nos lembrarmos que fazemos parte dos cem anos daquela casa. Vamos
vendo morrer alguns, mas é a lei da vida
e uma parte do futuro que hoje somos foi o passado que o Salvador Correia nos
deu.
No
caminho pelo Salvador Correia, dos que estão e dos que foram vem a frase batida
de Mia Couto: “Não morre quem se ausenta, morre quem é esquecido”!
Engraçado,
que para além dos meus amigos, companheiros de Liceu, funcionários, professores
lembro-me que foi aí que me apresentaram Hegel, Marx, Nkrumah, Sartre, Camus, e
tanta outra malta que me tem dado um prazer enorme ler e ter ao longo da vida!
Nesta
hora dos cem anos do Liceu de Luanda, Viva a Malta do Liceu!!!
Fernando Pereira
19/02/2019.
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