AS MALHAS QUE A
REVOLUÇÃO TECEU!
Acabei
de ler “São Paulo, Prisão de Luanda” escrito por Carlos Taveira (Piri) um dos
poucos da OCA (Organização Comunista de Angola) que eram de fora de Luanda,
preso no Lobito pela DISA, quando se preparava para entrar num apartamento para
uma reunião “conspirativa”
O
livro, editado pela “Guerra e Paz”, é uma descrição interessante dos seus
tempos de “estadia” numa prisão herdada da PIDE, e que é hoje prisão hospital e
frequentada por gente que foi capa da “Caras” em algumas circunstancias. Um relato despretensioso, sem amargura, aqui
ou ali polvilhado de histórias engraçadas, sobre situações que ao tempo eram
mais de desgraça do que de graça. Um livro para ler, por todos, para se ter
consciência que não foi só a guerra que prejudicou o País.
As
sucessivas prisões e assassinatos de gente da OCA, Comités Henda, Comités
Amílcar Cabral,”fraccionistas” , e outros, o que terão conseguido foi destruir
uma parte significativa do melhor capital de entusiasmo e diferenciação
intelectual e técnica que sobrou com a saída dos colonos portugueses. Era gente
culturalmente bem formada, todos com vontade de construir, trabalhar e também
determinados a mudar o estado das coisas, com a irreverencia da juventude.
Muitos dos que saíram são hoje quadros de enorme valia espalhados pelo mundo, e
Angola exangue teve que recorrer a muito pior, pagando mais e os resultados aí
estão à vista de todos.
Estou à
vontade para escrever porque nunca aderi a esses movimentos, que alguns deles
pouco mais representavam uma mesa do Vilela transportada para a sociedade
angolana. Algumas destas organizações se quisessem fazer um comício, com
mobilização o máximo que conseguiriam seria encher um balneário da Cidadela.
O poder
teve medo, ou melhor alguns pícaros tiveram receio de se verem confrontados com
gente bem preparada para desenvolver um País, e quando começou essa debandada e
a morte abandonada, o País entrou numa espiral de asneiras suportadas por
palavras de ordem e a eterna busca de procurar inimigos exteriores para
justificar a nossa impreparação e a falta de coragem para fazer parar os
excessos.
A
história vai fazer-se um dia, e talvez os herdeiros dos filhos dos da minha
geração quando analisarem o que aconteceu concordem com o que disse Chico
Buarque: “A memória é uma vasta ferida”. Convém também lembrar antecipadamente
que, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, como disse o
brasileiro Nelson Rodrigues.
Das
histórias bizarras desse tempo, e que são verdade porque quase todos as fomos
vivendo num quotidiano da Luanda de uns tempos em que se respirava um ar
angustiado, mas ao mesmo tempo ternurento e solidário quando se olhava para o
quotidiano de mingua de que se vivia no dia a dia.
Piri
conta que teve que ir ao dentista, e é transportado numa viatura até ao
Hospital Militar. A consulta atrasa-se e a viatura tem outro serviço, ou outra
função e desaparece. Acabada a consulta, perante o desaparecimento do veículo, o
guarda que o acompanhava, obviou logo a situação e mandou parar um carro
qualquer e “requisitou” logo ali o carro e o motorista para “levar o preso a
São Paulo”. E lá foram perante o olhar desconfiado do condutor!
Veio-me
à memória a única vez que fui cangado num recolher obrigatório. Tinha um livre
de transito renovável e apesar de saber que o controlo era feito na esquina da
Avenida Hoji-Ya-.Henda resolvi nem procurar alternativas, tão certo estava de
ter o documento comigo. Mandaram-me parar e pediram os documentos
delicadamente, e mostrei o livre transito. Foi junto ao farol confirmar se
estava tudo em ordem e veio de lá dizendo que o livre transito tinha acabado às
12h do dia anterior. Lá tentei explicar ao militar que me tinha esquecido de o
ir buscar ao gabinete, tinha tido uma reunião e mais uns argumentos algo pueris
que não convenciam ninguém. O FAPLA ouviu o arrazoado de justificações e no fim
diz-me com grande serenidade: “O camarada é dirigente, tem que dar o exemplo, e
não devia ter esquecido o seu livre-trânsito, portanto vai ficar aqui como os
outros”! Nada feito, eram duas da manhã e ali fiquei a assistir à atividade.
Fiquei na conversa com ele, a fumar Hermínios, que recusou porque não tinham
filtro. Às quatro disse-me que tinha de ir com ele levar uns cangados à 7ª
esquadra móvel, ao tempo na Estrada de Catete. Lá nos apertámos na Renault4 e
fiz esta viagem duas vezes porque o carro que supostamente nos levaria não
apareceu. A única compensação que tive dessa noite desdormida foi ele ter-me
mandado embora quando despejei a segunda carrada à porta do posto.
Já que
se está a falar de recolher obrigatório, reproduzo-a fielmente como me
contaram. No largo da Maianga um FIAT 132 azul é mandado parar (Importa dizer
que ao tempo era o carro de ministro ou vice-ministro que não pertencesse ao
Comité Central do MPLA, já que o destes era um FIAT 132 branco). O condutor era
um vice-ministro de que já não me lembro o nome. Pediram os documentos e o
livre transito, e o homem não o tinha consigo. Disseram que o camarada teria
que ficar por ali, pois eles não o conheciam. Parou entretanto, o Elias Dia
Kimuezo e entre os “zeladores da noite” cresce um grande entusiasmo por estarem
perante um ídolo. Ele olha e vê acabrunhado o ministro que conhece bem, e
pergunta que está ali a fazer, e o governante diz que está detido por falta de
documentos. O cantor vira-se para o chefe e diz: “Este camarada é o
vice-ministro fulano de tal, e não devia ser detido!”; prontamente o camarada
responsável pelo controlo deu “ordem de soltura” ao ministro e balbuciou algo
do tipo: “Ele disse-nos, mas anda por aí tanto bandido, que não acreditámos”!
Houve
um tempo que eu não tinha carro e morava na Casa do Desportista, não
privatizada, (uma desgraça nunca vem só) e como gostava de andar a pé saía do
Kinaxixe de casa de uns amigos e aí ia eu até à ilha, tentando sempre passar
pelo controlo na entrada da ponte, antes da meia noite. Normalmente eles eram
deixados ali por volta das 11h30m e invariavelmente perguntavam-me as horas, e
eu lá lhes dizia. Um dia vinha atrasado e perguntaram-me as horas e eu disse
que eram meia noite e vinte e logo um deles disse que eu estava detido. Eu
argumentei que me tinha atrasado, que estava perto de casa e que não havia
necessidade nenhuma de me deter. O único argumento que acabou por prevalecer
foi o ter dito que fui eu que lhe disse as horas e podia ter-lhe dito outra. Aí
os dois guardas conferenciaram e lá me deixaram ir com a preocupação que não
fosse pela estrada porque podia ser interpelado pelo jeep patrulha, e os
problemas sobravam para eles.
Há muitas
histórias deste tipo numa Angola dos anos 80 que deixou algumas saudades, e que
se detesta por outras.
Fernando Pereira
10/02/2019
Sem comentários:
Enviar um comentário