Preconceitos da
Memória
Num recente artigo escrito nesta
rubrica regular sustentei que a criação do ensino superior nas colónias não se
terá cingido apenas a critérios de desenvolvimento, mas também a uma “feira de
vaidades” entre figuras gradas do regime colonial!
Quer
Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, quer Venâncio
Deslandes governador geral de Angola em 1961 e 1962 tentaram ser os “pais da
criança”, e a verdade é que por causa destes Estudos Gerais Universitários de Angola
é que ambos se queimaram politicamente, o suficiente para terem sido demitidos
das suas funções pelo sibilino António Salazar, mestre em colocar uns contra
outros para seu proveito.
Havia
por parte dos colonos uma antiga reivindicação da criação de uma universidade
em Angola, naquele sonho de secessionismo que a minoria branca acalentava,
estabelecendo como paradigma a África do Sul
O
governo concentracionário de Lisboa, aliado ao corporativismo elitista dos
poderes instalados nas universidades da então “Metrópole,” não dava qualquer
alternativa a uma abertura de ensino superior nas colónias.
As
razões eram evidentes, tal a sobranceria com que os habitantes das colónias
eram olhados pelo poder central, mesmo os membros da pequena comunidade branca.
Havia também a necessidade de se dar instrução q.b., para evitar o questionar a
tacanhez que dominava o quotidiano intelectual do Portugal salazarento.
Apesar
das reticencias de Salazar, o decreto-lei nº 44530 de 21/8/1962, do Ministério
do Ultramar, institui os Estudos Gerais Universitários de Angola e Moçambique
que tem a sua complementaridade no decreto-lei nº 44530 de 21/8/1963 que
promulga o seu regime de funcionamento
Curiosamente
a” criação dos Estudos Gerais em Angola e Moçambique, frequentados maioritariamente
por brancos, não fez diminuir a saída deste território ultramarino para a
“metrópole” (estudo de Ermelinda Liberato), e comprova-se que em 1960/61 havia
1867 alunos “ultramarinos”, em 1962/63, 2006,1965/1966, 2133 e 1967, 2311.
O
princípio que norteou os EGU está bem plasmado na informação confidencial do
João Pereira Neto, funcionário superior do MU que acompanhou a missão de
instalação dos EGUs que recomendava que os cursos a ministrar se limitassem aos
dois primeiros anos, para evitar que o “convívio fraternal com os colegas da
Metrópole” se perdesse, e assim se corroessem os “fundamentos e significado da
Unidade Nacional”.
Adriano
Moreira, segundo Pereira Neto, teria manifestado sempre a ideia que os EGU em
Angola nunca deveriam ser instalados em Luanda, já que era uma cidade como “ponto
de atracão de correntes migratórias”, antro de divertimentos noturnos, “cabaré
inclusive”, foco de subversão estudantil por excelência, entre outros argumentos
que hoje se revelam pueris! A história poderia ter-se repetido como farsa,
porque os argumentos de Adriano Moreira, foram exatamente os mesmos que utilizou D. João III de Portugal
em meados do seculo XVI, quando transferiu definitivamente a Universidade de
Lisboa para Coimbra, para evitar que os estudantes se confrontassem com novas
ideias trazidas por marinheiros e embarcadiços que faziam então da capital
portuguesa um dos maiores portos do mundo, num tempo em que a Europa começava a
sair do “período das trevas”, espaço ideológico dominado pela Igreja Católica e a Inquisição, e em que a “Reforma”
enquadrava novas ideias.
Os
cursos tinham que ser apenas técnicos, e Nova Lisboa (Huambo) e Sá da Bandeira
(Lubango) eram os lugares preferidos por Adriano Moreira para a instalação dos
polos universitários, argumentando razões para promover o desenvolvimento das
cidades e regiões circundantes.
Nova
Lisboa representava aos olhos do poder uma alternativa ideal a Luanda porque
era uma cidade “calma no que respeita(va) a diversões e paixões politicas”, e
com “duas grandes massas populacionais: Uma considerável população branca por
um lado, e uma maioria de rapazes de cor formados nas missões protestantes de
outro”
Ao
invés Sá da Bandeira tinha tudo para as coisas correrem mal, segundo o
documento confidencial do inspetor Pereira Neto, já que tinha “sido palco de
explosões de violência racial e ressentimento por parte dos europeus
relativamente aos africanos, constituindo deste modo um ambiente pouco propício
à miscigenação”. Propunha-se apenas a criação de Ciências Pedagógicas, e
nenhuma outra escola que pudesse suscitar “atitudes menos corretas da população
em relação a jovens universitários negros”.
De
facto, são surpreendentes os argumentos plasmados nestes relatórios, o que de
certa forma evidencia o caracter racista da cidade de Sá da Bandeira, que a par
de Moçâmedes eram no dealbar dos setenta do século passado as cidades africanas
com mais população branca que negra, o que não deixa de ser absurdo.
Em Sá
da Bandeira foi instalado o embrião de uma futura faculdade de letras e de
ciências pedagógicas, no Huambo os cursos de veterinária, agronomia e
silvicultura, e em Luanda instalaram-se as ciências, engenharias, medicina,
mais tarde economia e nada mais porque a aversão de Salazar às ciências sociais
estendia-se aos seus colaboradores próximos.
Evitaram-se
os estudos humanísticos com o argumento que inspiravam “especulação política”,
criadora de um “proletariado intelectual”, “responsável por grande parte das
revoluções modernas”. O Direito, relegado a “vicio nacional”, não poderia
sequer ser fomentado. (JPN, documento
confidencial).
Prevaleceu
a vontade do novo Ministro do Ultramar Peixoto Correia e do governador Silvério
Marques em detrimento da vontade de Adriano Moreira, ficando Luanda com a parte
de leão das faculdades do que passou a ser em 1968 a Universidade de Angola,
hoje Agostinho Neto.
Em
1968, um grupo de catedráticos dos EGU de Angola e Moçambique juntam-se em S.
Bento, residência oficial do 1º ministro de Portugal, para saberem da boca de
Salazar a resposta ao pedido dos professores para a criação das Universidades
de Luanda e Lourenço Marques. Numa sala escura, num ambiente lúgubre, num frio
de Inverno que todos estavam desabituados e a tiritarem de frio, Salazar
resolveu oferecer umas mantas para se sentirem mais confortáveis. Dez ou doze
pessoas sentadas neste ambiente a raiar o surrealista ouviam o perorar
monocórdico de Salazar sobre a responsabilidade que tinham de “ensinarem os
pretos a bastarem-se a si próprios, e as consequências que daí adviriam”, mas
no fim lá deu o seu definitivo sim, para alegria dos presentes. Veiga Simão e
Ivo Soares entusiasmados, pediram se podiam telefonar para Moçambique e Angola
para dar a boa nova, ao que Salazar terá dito: “Srs. Professores, porque não
mandarem antes uns telegramas, fica mais barato”.
As
malhas que o império foi tecendo!
Fernando
Pereira
18/4/2017