27 de abril de 2012

Duração do aroma/ Ágora/ Novo Jornal 223/ Luanda 27/4/2012


Esta era a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen

Trinta e oito anos depois da madrugada libertadora do 25 de Abril de 1974, tento manter vivo o sonho que perpassou por todos que sentiram a vertigem da liberdade e do fim da opressão. Muitos dizem que o 25/4/1974 acabou, outros nem se lembram, para a maior parte é uma data demasiado longínqua para ser vivida com a emoção igual à de todos os que a vivemos. Felizmente que Abril não precisa de ser recordado quotidianamente porque valores aparentemente tão comezinhos como liberdade, dignidade e solidariedade estão intrinsecamente ligados às lutas quotidianas das pessoas no encontrar de melhores dias.
O 25 de Abril de 1974 continuou em 11 de Novembro de 1975, e hoje os dois países caminham juntos na resolução dos seus problemas comuns, aprofundam as suas trocas comerciais, partilham experiências culturais e fazem objetivamente tudo que foi adiado por décadas de intolerância e divisões de diversa ordem. Há muita história vivida nesses tempos de inebriante alegria coletiva, e hoje ocorre-me lembrar que, quando o dia da libertação era já um dado adquirido, a preocupação de todos foi dirigirmo-nos, em Coimbra, para as instalações da sinistra PIDE-DGS, onde os agentes e os malsins dessa polícia política estavam sitiados pela multidão vigilante, que não arredava pé.
A PIDE estava localizada na Rua Antero Quental, bem perto das repúblicas do Kimbo dos Sobas e dos Mil-y-onários, que foram durante anos visadas pelas visitas constantes de agentes, que prenderam alguns estudantes engajados nos movimentos de libertação das colónias, principalmente de Angola. Naturalmente que estava lá e sentei-me num telhado sobranceiro à vivenda sitiada com o Carrilho, estudante moçambicano que anos mais tarde foi Procurador-Geral da República em Moçambique e julgo que Ministro da Justiça. Por ali ficámos horas esquecidas, até que os militares entraram com “Chaimites” para levar os PIDEs à cadeia. Fomos desmobilizando e, em grupo , lá fomos ocupar outras instalações onde estavam sedeadas estruturas políticas ligadas ao regime deposto, como por exemplo o “Centro de Estudos Ultramarinos”, que transformámos em “Casa dos Estudantes das Colónias”, e onde tivemos atividade importante em determinada fase do processo de descolonização, principalmente na sua fase embrionária. Passados uns anos, o meu amigo José Alberto Teixeira, jurista, capitão da seleção de voleibol de Angola e administrador da Agropromotora mostrou-me em Luanda um conjunto de fotografias do nosso tempo de Coimbra. Fomos contemporâneos por lá e, surpreendentemente, num conjunto delas sobre esse assalto à PIDE, lá se vêem no telhado eu e o Carrilho a olhar distraidamente para as movimentações que levaram ao fim da hedionda polícia política de António de Oliveira Ndalatando, como alguém já disse com muita piada sobre Salazar.
De vez em quando passo os olhos pela atividade de Universidades de Angola e em algumas vejo que têm instituído o “Conselho de Sábios”, onde pontificam nalguns, amigos e ex-colegas de serviço. Isto faz-me lembrar que tive um professor de “Hermenêutica do texto filosófico”, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que na primeira aula, entre várias vulgaridades, falava de ter ido à Grécia, tendo-se sentado na pedra onde Sócrates habitualmente falava aos seus prosélitos, e tinha ido a uma reunião de eméritos professores de filosofia em Delfos onde “só sábios éramos dez”. Tive que ouvir esta conversa durante dois anos, porque o Dr. Morujão resolveu chumbar-me da primeira vez, talvez para que eu ficasse com a matéria bem solidificada.
Em jeito final, não deixaria de manifestar a minha admiração por algumas publicações que se fazem em Angola, e em que a quase totalidade dos colaboradores são angolanos. A “Austral”, revista de bordo da TAAG, é um exemplo de um belíssimo trabalho de alguns anos que se lê com enorme prazer. Excelente grafismo, artigos com um português rigoroso e temas com grande interesse histórico ou de atualidade. Na minha subjetividade, fico com a sensação de que os artigos são demasiadamente longos para uma revista de bordo. É a única "pecha" que lhe reconheço e a “Austral” dignifica, e de que maneira, a nossa companhia aérea.
Fernando Pereira
24/4/2012

20 de abril de 2012

"Viver é desenhar sem borracha" Millor Fernandes (1923-2012)/ Ágora / Novo Jornal nº 222/ LUANDA /20 de Abril de 2012


Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira, Avintes (1942-1982) faria em 9 de Abril de 2012 setenta anos.
O Adriano foi um dos mais generosos cantores de intervenção da música portuguesa, e, como foi esquecido na sua fase terminal, não teve ainda um verdadeiro agradecimento dos muitos que fizeram da sua canção “bandeiras de liberdade”. Iniciou-se no fado de Coimbra, cidade onde estudou direito, mas rapidamente deu voz e compôs canções com letras de poetas proscritos do regime caído a 25 de Abril de 1974. Com o advento da democracia, Adriano, Zeca Afonso, José Mario Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Luis Cília, Fernando Tordo, Rui Mingas e outros eram as vozes que cantaram as novas “Trovas do vento que passa”. Num processo nebuloso e com oportunismo à mistura, Adriano Correia de Oliveira é demitido da Cooperativa “Toma Lá Disco” e, simultaneamente, começam a surgir os boicotes aos cantores de esquerda, começando a degradar-se a sua saúde e concomitantemente a fragilidade da sua situação económica transforma uma pessoa alegre, num homem melancólico, que a determinada altura “terá atirado a toalha ao chão” e se deixado morrer em Avintes.
Adriano Correia de Oliveira deu vários espetáculos em Luanda em 1975, na companhia de Zeca Afonso, Fausto e Rui Mingas com o propósito de apoiar a luta do povo angolano e o MPLA. O espetáculo encheu a Cidadela e, no dia seguinte, num canto livre na cantina da Universidade, perto da Igreja da Nazaré, a FNLA sitiou todos, tendo prendido o saudoso Baião, em casa de quem estavam alguns dos cantores.
Adriano Correia de Oliveira teve o “Canto e as Armas” musicado pelo nosso “colega” do NJ Luis Filipe Colaço, autor de um dos poemas do disco. Há uma faceta desconhecida para a maior parte dos angolanos, foi o facto do Dr. Arménio Ferreira lhe ter dado oportunidade de trabalhar no Comité 4 de Fevereiro para a Europa, na Luciano Cordeiro em Lisboa, no departamento de Informação, onde tive a grata oportunidade de ter privado com ele e ter conhecido a sua extraordinária dimensão humana. Não desejaria olvidar este homem grande da canção de intervenção política da língua portuguesa.
Já que estamos a efemerizar, Ahmed Ben Bella faleceu no dia 12 de Abril, aos noventa e quatro anos, e faço-o porque praticamente não vi nenhuma referência de tomo na imprensa angolana. Apesar de morto politicamente desde que Boumedhiene o apeou do poder em 1965, Ben Bella foi o primeiro presidente eleito da Argélia e figura de tomo na luta contra o colonialismo francês. A Argélia comemora este ano cinquenta anos de independência, e penso ser da mais elementar justiça fazer esta referência pois foi este presidente que acolheu e apoiou todos os movimentos de libertação que lutavam contra o colonialismo português no âmbito da esquecida CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas). Era nos primórdios da década de sessenta o mais diabolizado dirigente africano na então Emissora Nacional.
Tenho constatado que a minha caixa de correio eletrónico é sistematicamente atulhada de “casas da filha do José Eduardo dos Santos”, “iates de Isabel dos Santos”, “Avião presidencial de José Eduardo dos Santos” ou numa derivação do José Almada Negreiros no seu “manifesto Anti-Dantas”, e “sabonetes em conta José Eduardo dos Santos, Pasta Isabel dos Santos para os dentes”…. A realidade é que, se eventualmente se dessem ao trabalho de ver a origem das fotos, iriam ter a catálogos de venda de iates, aviões e casas. Não pretendo defender quem quer que seja, porque na realidade tenho tempo que sobra para contar o pouco dinheiro que tenho, mas julgo que a sordidez de determinados atos só acaba por retirar alguma legitimidade a certas transações que podem eventualmente permitir-se a algumas dúvidas.
“Enferrujam- se os arames e os ferros, cobrem-se os panos de mofo, detrança-se o vime ressequido, obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína.” José Saramago (Memorial do Convento).

Fernando Pereira 17/4/2012

13 de abril de 2012

Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram! / Ágora /Novo Jornal 221/ Luanda 13/4/2012




Algumas malhas que o recolher obrigatório teceram!
Durante o recolher obrigatório mais longo do mundo, a que o luandense se foi adaptando com a subtileza com que ultrapassava os escolhos em tempos hoje recordados com alguma nostalgia. Esses momentos tiveram o privilégio de deixar a marca solidária na sociedade angolana, que atualmente desvanecida pela inversão de valores.
Nessas noites tranquilas, nesse dealbar dos anos 80 descia do Kinaxixe a pé até à Casa do Desportista, onde tive poiso bastante mais tempo que esperava, e invariavelmente apanhava o “controle” a formar-se, saudavam-me com o “boa noite camarada”, perguntavam-me a hora, invariavelmente um quarto para a meia-noite, para chegar a casa a tempo.
Um dia atrasei-me, perguntaram-me as horas ao que respondi que eram meia-noite e vinte, logo me solicitaram os documentos e recebi voz de detenção. Contudo, provoquei uma enorme discussão entre os três militares porque perguntaram-me as horas, eu não menti, afinal o meu argumento mais virtuoso desde que comecei a ver o caso mal parado. Recebi a “alforria”, mas pediram-me para evitar a patrulha móvel, e lá fui a passo de corrida até à Casa do Desportista. A partir daí as horas que dizia eram as que me agradavam.
Numa noite de Março numa altura em que ainda não nos tínhamos habituado a ter ar condicionado, estávamos um conjunto de pessoas nas traseiras da Casa do Desportista, onde hoje está um conjunto de restaurantes e armazéns de duvidosa qualidade arquitetónica, ao tempo local aprazível e onde a brisa corria e amenizava a abafação da noite. Estávamos a conversar e entretanto surgem três soldados a pedir-nos os documentos, que naturalmente não estavam connosco, imediatamente a darem-nos voz de prisão porque estávamos a descumprir o “recolher obrigatório”. Argumentámos que aquilo era um quintal de uma propriedade privada, que o acesso à rua não era público, enfim mil e um argumentos que não convenciam o único graduado presente, que nem sequer conseguia fazer perceber a alguém como iríamos todos ser levados para a prisão já que o carro dele era um jeep pequeno. Começou a perceber que apesar da autoridade do fardamento faltava-lhe quase tudo o resto e acabou a ordenar-nos para “ir para a cama”, “desta vez passava”, e um conjunto de frases que só o iam cada vez mais cobrindo de ridículo.
Não se passou comigo, mas quem a contou merece-me todo o crédito. No Largo da Maianga estava um controle para ver os documentos e o livre-trânsito do recolher obrigatório. Um FIAT 132 azul, que era o carro distribuído aos vice-ministros do governo da então RPA, em tempos mais parcimoniosos na distribuição de viaturas aos dirigentes, é instado a parar.Dentro vinha o membro do governo sozinho, sem livre-trânsito, bem argumentava que era vice e os soldados não se deixavam demover, dizendo que “não o conheciam”, “se era membro do governo devia conhecer a lei”, o quadro recorrente nestas situações. Como ao tempo não havia telemóveis, o vice-ministro já se conformara em que iria ficar ali uns tempos. A certa altura mandam parar o Carlos Lamartine, e o júbilo foi grande entre os soldados que estavam ali perante um dos seus eleitos, meu também diga-se de passagem. Ele a certa altura olha para o FIAT e vê encostado o vice, e pergunta-lhe que está ali a fazer e a resposta: “Fui kangado”! O Carlos Lamartine perguntou aos soldados se não sabiam quem era, e prontamente os esclareceu, tendo-o “libertado” de uma noite no mínimo tediosa. Vale mais um cantor conhecido que um governante quase anónimo.
Uma noite, já muito tarde e confiadamente pensando que levava o meu livre-trânsito, nem me preocupou em “driblar” o controlo que sabia estar invariavelmente no início da Alameda Manuel Van-Dunem. A verdade é que quando lá cheguei dei-me conta que não tinha o documento, já que o tinha deixado em casa, e nenhum argumento demoveu um esclarecido militar com quem fiquei uns tempos agradáveis a conversar, já que era do Songo, onde vivi e conhecíamos muita gente em comum, para além de falarmos de tanta coisa pois estive ali, cerca de três horas, com mais cerca de cinquenta nas minhas condições. No fim pediu-me boleia para a 7ª esquadra, deu-me os documentos e desejou-me uma boa noite, agradecendo-me a companhia que lhe fiz. Arribeia casa já o sol começava a raiar por traz do prédio que em tempos foram as efémeras instalações da “Rádio Clube Português” na Hoji-ya-Henda.
Histórias suaves de um tempo onde nos habituámos a conviver com o recolher obrigatório e a tirar partido da situação que tivemos de 1977 a 1991.

Fernando Pereira
8/4/2012

12 de abril de 2012

Requiem por tudo e também por nada!




Requiem por tudo e também por nada!

Passámos do que estava para o que está. O que estará pode vir a ser aquilo que esteve. Se continuar o estar em vez do ser.

Já agora, Zweig no seu belíssimo O Mundo em que Vivi, que “é mil vezes mais fácil reconstruir os factos de uma época do que a sua atmosfera emocional”.

Vivemos simultaneamente o entediante espetáculo da politiquice serôdia e a desesperança num amanhã que a maioria acreditava ser diferentemente melhorado, nem que fosse apenas nas nossas férteis imaginações coloridas por telenovelas e anúncios que nos transportariam para quimeras de planuras sem obstáculos de tomo.

Por convicções políticas fui um dos que aderi às célebres e tão maltratadas campanhas de dinamização cultural do MFA, no distante ano de 1975. Fi-lo com a afirmação plena que o que estava a fazer era correto e mais razão me foi dada quando me embrenhei num interior de um Portugal que era tudo exatamente igual ao que no exterior era mostrado à saciedade.

Quando vi gente empenhada em aprender, pessoas que viram teatro, cinema, e outras manifestações culturais a primeira vez na vida ficávamos com a sensação que tudo viria a ser diferente. Muitos portugueses viram um médico pela primeira vez e acima de tudo sentiram que todos tentámos partilhar a ternura de um futuro que se queria definitivamente rompido com o passado.

Não o quiserem certas forças, apoiadas pela sordidez de alguns arautos de instituições milenares que se diziam donas da consciência dos cidadãos. A forma soez como foi tratada tanta gente de caracter, solidária e coerente na sua prática política sentir-se-ia hoje “desforrada”. A realidade que se vive no presente era o que nesse tempo se combatia, e as angustias de alguns são hoje partilhadas pela maioria da população.

Infelizmente, hoje estão no poder os filhos dos que armadilharam e boicotaram esses tempos de liberdade plena, onde se discutia quem devia deter as empresas produtivas, a banca, os seguros, as autoestradas, as gasolineiras, as terras e outras estruturas desmanteladas e desmazeladas pelos muitos que hoje se arrogam patrimónios da democracia. Hoje discute-se mais ou menos isso, mas com o aparelho produtivo quase aniquilado, uma agricultura que só residualmente produz para abastecer o mercado interno, umas pescas que desapareceram no País que tem a segunda maior área marítima exclusiva da Europa, em suma discute-se vamos vender uma empresa estratégica a Alemães, Franceses, Angolanos, Chineses ou aos habitantes permanentes da Disneylândia.

Sinceramente hoje já pouca coisa me indigna, porque na realidade por mais que o baralho mude de mão o jogo é o mesmo, e é-me completamente indiferente que acabem com freguesias, concelhos ou outras estruturas desconcentradas da administração central nas capitais de distrito, porque bem vistas as coisas a sociedade está moldada para que cresça o individualismo, construído meticulosamente pelos que destruíram o 25 de Abril de 1974.O poder foi legado aos seus herdeiros, que aparecem tipos “Grilo Falante” nos areópagos onde supostamente o cidadão julga que se decide tudo, e que não são mais que serventuários dos que sempre tiveram mão no pote.

Para termos ideia do que é a estratificação de uma sociedade e os seus códigos pego no exemplo do exército suíço, só o padeiro sabe que fardado, o universitário lhe é superior, à paisana é seu cliente.



“Se o homem nasceu livre, deve governar-se; se ele tem tiranos, deve destroná-los.” Voltaire



Por: Fernando Pereira
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