25 de maio de 2018

Rosa de Porcelana / Novo Jornal/ Luanda 25-5-2018













Rosa de Porcelana

“Por enquanto não passa de uma noção, mas penso que posso obter o dinheiro suficiente para fazer dela um conceito e, mais tarde, transformá-la numa ideia.”
Woody Allen em Annie Hall

A caminho dos 443 anos de vida, Luanda, curiosamente fundada durante o reinado que os portugueses consideram ser um dos piores reis da sua história, D. Sebastião, morto numa expedição africana e que levou à perda da independência de Portugal.
            Tinha tudo para não ser um lugar vivível, e paradoxalmente hoje é uma urbe com quase 7.000.000 de habitantes. Carente de água, sem vegetação, com um calor e uma humidade permanente e sem árvores foi durante séculos um lugar muito pouco atrativo para todos.
            Gosto de Luanda e invariavelmente traz-me sempre à memória a frase de Marguerite Yourcenar: Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobrevive na memória.”.
            Nasci na pachorrenta Luanda de meados dos anos 50, numa clinica de um bairro que o meu pai chamava o “Bairro da Exposição Feira”, e que nós passámos a conhecer como o “Bairro do Miramar”, perto do cemitério dos Ingleses, que depois passou a ser conhecido pelo “Alto das Cruzes”, vulgo “cemitério velho”, hoje lugar de eleição para “repouso etéreo” das proeminentes figuras do dominante politico e económico destes novos tempos de Angola. A avenida ia com asfalto até ao limite do Bairro do Miramar começando a partir daí o “fecha a janela”, quando nos cruzávamos com outro carro, tanta era a poeirada, que se fazia soltar da maioria das ruas dos subúrbios da nossa “cidade capital”.
            Quando fui viver para o Braga, já se chamava “Bairro do Café”, nascido e desenvolvido pelo dinheiro de um tempo de grande subida do preço do café no mercado internacional do pós-guerra! Fez uma parte de Luanda e os prédios das avenidas novas na então cidade capital do “Império”, Lisboa.
            O asfalto ia tomando conta do areal, mas ainda me chega a lembrança, por exemplo, da “António Barroso” (Marian Ngouabi) ter uma picada desde o início da subida até aos depósitos da água contíguos a um bairro clandestino, onde se construía em todo o canto e que curiosamente se chamava Bairro Salazar. Não deixa de ser algo bizarro que os bairros clandestinos no tempo colonial eram todos de dignitários do regime colonial, veja-se o Bairro Salazar, Américo Tomaz, Adriano Moreira e Silva Tavares, entre outros!
            Com o 4 de Fevereiro de 1961 Luanda mudou, e começámos a ver as ruas com gente diferente, muitos militares, e os musseques a terem que se afastar cada vez mais do centro. A estratificação social existente passou a ser mais evidenciada, e a convivência quotidiana entre brancos e negros é cada vez mais dificultada por razões de toda a ordem.      
Luanda nasceu feia, e só a baia lhe dava alguma graça, e foi crescendo sem qualquer nexo. O avulsíssimo e o pato-bravismo transformaram uma cidade, que tinha crescido paulatinamente com um modelo de “português-suave” adaptado aos trópicos, que até era inovadora num determinado contexto de arquitetura, num espaço anárquico com construções em altura em que as identidades se foram perdendo.
            Luanda teve sempre uma identidade muito própria, até mesmo solidária nalguns aspetos, apesar do sistema colonial marcar bem as fronteiras entre as raças numa hierarquização perfeitamente soez da sociedade. Os quintais, os bares, as cantinas, as lojas, os largos, os terrenos libertos eram sítios de encontro, de cumplicidades, de brincadeiras e tudo isso se foi perdendo nos tempos finais do sistema colonial. A Luanda colonial asfixia-se nas suas contradições e quando chega a hora da decisão, os colonos que assistiram acomodados a um espaço posto e imposto sentem que essa terra não era sua, e encaixotaram o que puderam e embarcaram o rancor para com os que provavelmente foram os menos culpados da situação, os militares portugueses e as novas autoridades angolanas.
            Com o advento da independência os Luandenses voltaram a dispor da sua cidade, onde cresceu uma vontade algo pueril de fazer tudo diferente e bom, mas que efetivamente redundou num período de grandes dificuldades com carências e com a degradação do parque habitacional e as infraestruturas a colapsarem por falta de manutenção.
            Luanda voltou ao acumular do lixo, aos esgotos a escorrerem pelos prédios e ruas, em síntese o início de um tempo que se tem prolongado e que nenhuma operação de cosmética tem conseguido inverter, mormente a partir do momento em que a esfarrapada desculpa da guerra deixou de ter significado.
            Luanda hoje cheira à parte de traz de um circo, o que não é grande referencia para as pituitárias. Quando Luanda vai a caminho de Catete, de Porto-Quipiri ou das Palmeirinhas, o que temos não é uma cidade, é um território pouco harmonioso, sem identidade, impessoal e sem futuro.
            Nesta Luanda não há passado, há passados e a memória é plural.
            Como já sou novo há muitos anos posso dizer com certo orgulho, que nasci nas Ingombotas, porque Luanda como era raros a reconhecem, e cada vez menos as pessoas se revem na de hoje!
            “Só podemos esquecer o tempo servindo-nos dele” Luandino Vieira (Papeis da Prisão)
            


Fernando Pereira
            20/5/2018
              

18 de maio de 2018

Todo o poder abusa, o poder absoluto abusa absolutamente! / Jornal de Angola -17/05/2018




Todo o poder abusa, o poder absoluto abusa absolutamente!

Provavelmente o Maio de 1968 em França terá sido o ultimo movimento utópico mobilizador de gente na história contemporânea da Europa.
                Há obviamente muita subjetividade nesta afirmação, mas quando se faz uma retrospetiva do que foram esses dias fervilhantes, onde havia uma avidez por fazer tudo que acontecia de diferente do que tinha sido até então.
                A Europa vivia um período de relativa acalmia social e política, e a economia tinha adquirido uma estabilidade que ainda não se tinha observado no pós-guerra. Isso não conseguia esconder as contradições inerentes ao modelo capitalista prevalecente, nem à ideologia agregada ao convencionalismo burguês, assente em valores suportados por um ensino ainda fortemente matizado pela herança cristã.
                A União Soviética que tinha sido uma esperança para muito cidadão da Europa, e para um conjunto de intelectuais, enleou-se pela “burocracia da ideologia” e deixou de ser apelativa substituindo-se o “realismo soviético” por Trotsky, Mao Tsé-Tung, Fidel de Castro, Che Guevara e outros contemporâneos da luta pela libertação.
                O Maio de 1968 é o corolário de um tempo de contestação contra a guerra do Vietname, que tinha cada vez mais adesões a nível mundial particularmente nos EUA, e contra as ditaduras na América Latina e em Portugal e Espanha. Apoiava-se abertamente Cuba, a luta armada na América Latina e em África, a luta dos negros americanos pelos direitos cívicos e a Revolução Cultural na China (1966-1969).
                Em simultâneo agudizavam-se as lutas estudantis na Alemanha (organizada em Berlim pela SDS- Sozialisticher Deutscher Studentbund, tendo o seu líder Rudi Dutschke sofrido um atentado em 11 de Abril de 1968). Em Berkeley nos EUA iniciou-se um rastilho de contestação por parte dos estudantes, que rapidamente alastrou um pouco por universidades em todos os Estados dos EUA. No Brasil a repressão contra os estudantes foi violenta, mas não atingiu as proporções de Tlatelolco no México, onde o exército é mobilizado para calar a contestação estudantil saldando-se o balanço final em mais de 200 mortos, 500 feridos e 2000 pessoas presas.
                Um pouco por todo o mundo germinava a contestação estudantil, e os estudantes assumiam então que era altura de apoiar as lutas dos trabalhadores, e apoiar as conceções políticas inovadoras que emergiam em vários locais, nomeadamente na China, onde só muito mais tarde chegaram as terríveis descrições de uma então idolatrada Revolução Cultural.
                No Senegal afrontando a subserviência francesa de Senghor, e na procura de um ensino mais adequado à realidade africana, procuraram imitar os estudantes franceses, e através da UDES (União de Estudantes Senegaleses) que reagrupava os estudantes locais e a UED (união de Estudantes de Dakar, que aglomerava os estudantes de diferentes países africanos, fizeram um conjunto de manifestações fortemente reprimidas com muitas prisões de premeio e expulsão de centenas de estudantes do País.
                Voltando a França, e ao já distante 1968 importa referir que tudo começou no dealbar de Maio na Universidade de Nanterre, uma escola de subúrbios onde a origem social dos estudantes era claramente diferente das universidades do centro de Paris, frequentadas pelos filhos da burguesia, ao tempo os únicos que tinham acesso ao ensino superior.
                As reivindicações dos estudantes inicialmente eram de natureza corporativa, em que se pedia entre várias reformas o fim de que “as grandes disciplinas (ciências, direito, medicina, letras, sociologia, etc.) eram ensinadas em faculdades separadas”; pediam-se universidades pluridisciplinares para favorecer as evoluções científicas que acontecem nas fronteiras das disciplinas”.
                A realidade é que a repressão sobre os estudantes de Nanterre a 3 de Maio de 1968, acabou por despoletar uma irrupção social que chegou a colocar 10.000.000 de trabalhadores em França, incendiou a Bolsa de Paris, ocuparam-se escolas, universidades, teatros, fábricas, em suma tudo foi diferente naquela primavera de 1968.
                O ensino foi contestado no seu todo e pretendeu-se questionar a utilidade social de um conhecimento abstrato, separado da prática.
                O marxismo estava arredado do ensino superior nas ciências sociais e na economia, e exigiu-se que passasse a ter uma prevalência maior em todo o ensino, de forma a tornar-se mais identificada com a luta dos trabalhadores, inicialmente desconfiados dos estudantes pela sua origem de classe, mas depois aliados nos propósitos de alterar a sociedade.
                Os intelectuais participaram no movimento de Maio de 1968, principalmente nas conferencias que se realizavam um pouco por todo o lado, aproveitando-se os lugares mais incríveis como velhos armazéns ao longo do sena, ou os anfiteatros austeros de uma Sorbonne ocupada pelos estudantes. Charles Bettelheim, Lucian Goldmann, Louis Altusser, Henri Lefebvre, Henri Dennis, Jean Paul Sartre, Roger Garaudy, Simon de Beauvoir, e naturalmente Marcuse e Guy Debord, o anarquista que criou o “situacionismo”. Não esqueçamos Alain Krivine o trotskysta fundador da UEC, entre tantos outros.
                Para além de Marx, recuperou-se Gramsci, o “livro Vermelho de Mao”, Nicos Poulantzas, Giap, Freud e emerge William Reich, trazendo a sexualidade e o prazer para o centro do debate político, tema tabu até então.
                A comunicação social detida pelo Estado, ou pelos grandes grupos económicos tentaram através de manipulação de fotos e filmes inverter a situação para repor a ordem “velha” que o presidente de Gaulle exigia para recuperar a França que tinha idealizado. A verdade é que influenciados pela China, os jornais de parede tiveram uma influencia decisiva na mobilização, e na permanente informação aos cidadãos empenhados em fazer valer as suas convicções. Os jornalistas da rádio oficial, a ORTF, assumiram a sua postura de informar sem pressões, o que lhes valeu serem despedidos quando o poder recuperou as rédeas da situação. A própria ORTF fez uma greve solidária com a luta dos estudantes e trabalhadores. Os panfletos, as serigrafias e os cartazes encheram as ruas. Milhões de panfletos, 500.000 cartazes com cerca de 400 motivos diferentes executados por artistas, operários, estudantes, tipógrafos, etc. mostra bem o grau de engajamento das pessoas no Maio de 1968. Apareceu a figura do jornalista militante, que acaba por dar origem ao quotidiano “Libération”, onde colaborou Sartre entre outros e que ainda hoje existe com todo o seu prestígio acumulado desde então.
                Um dos pormenores pouco difundido no Maio de 1968 tem a ver com a instalação das Universidades Populares, locais de discussão permanente e partilha de conhecimentos que transformaram radicalmente a mentalidade dos que viveram o Maio de 1968. Outro aspeto pouco divulgado tem a ver com a atenção que os intervenientes deram aos problemas do terceiro mundo, e não devemos olvidar que havia colónias francesas que tinham ascendido à independência meia dúzia de anos antes. Outra ação de grande importância foi o trabalho de alfabetização feito pelos estudantes aos emigrantes africanos que enxamearam Paris para trabalharem duramente na recuperação da França no pós-guerra.
                Claro que houve detratores do Maio de 1968, nomeadamente Raymond Aron, que escrevo um libelo acusatório veemente “La revolution impossible”, mas “ninguém conseguiu impedir que as flores de Maio desabrochassem”!
                O Maio de 1968 foi claramente uma luta contra a ordem capitalista prevalecente. Não conseguiu vencê-la, mas ter-se-ão conseguido conquistas importantes em áreas que marcaram os anos seguintes, ou mesmo as décadas, até à inflexão que se vai assistindo na implantação de um liberalismo desregulado que se tem imposto na Europa e no mundo.
                Seria difícil de imaginar a Jacques Sauvageot, Alain Geismar e Daniel Cohn- Bendit e a outros, que a sua tenacidade em Nanterre iria provocar este abanão com consequências, a primeira das quais a demissão do General de Gaulle de Presidente da Republica francesa, para além de outras de maior significado no quotidiano das pessoas.
                Controversa sobre o significado dos acontecimentos de 1968, não se pode negar a sua importância na história da ultima metade do seculo XX.
                Uma geração de estudantes e jovens trabalhadores ficou marcada por esses acontecimentos. Uma grande parte dessa gente participou nos debates universitários e manifestações de rua. Algo mudou no quotidiano de vida de muita gente, no relacionamento interpessoal, na visão do mundo e na afirmação clara entre o que se gosta e o que se detesta.
                Sonhou-se um poder numa premissa de igualdade, e de distribuição equitativa de riqueza. Pura estultícia, pois mesmo nas fases mais duras o capitalismo regenera-se e aparece travestido de novas roupagens. Ficam as lembranças vivas do que se tentou!
                Ficaram palavras que sintetizam muito do que foram aqueles dias e noites em que alguma Europa sonhou que tudo ia ser diferente, e outros tinham pesadelos porque podia ser o fim de um tempo que se perpetuava devagarzinho, como convinha ao poder instalado.
                Ainda hoje ecoam as palavras, os grafitis e de vez em quando aí voltam a ser palavras de ordem num tempo que episodicamente é de esperança: "Abaixo a sociedade de consumo.”, “Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo." ,"A ação não deve ser uma reação, mas uma criação.”, "O agressor não é aquele que se revolta, mas aquele que reprime." , "Amem-se uns aos outros." ,"O álcool mata. Tomem LSD." ,"A anarquia sou eu.”, “as armas da crítica passam pela crítica das armas." ,"Parem o mundo, eu quero descer." ,"A arte está morta. Nem Godard poderá impedir." ,"A arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana." "Antes de escrever, aprenda a pensar.”, "A barricada fecha a rua, mas abre a via." ,"Ceder um pouco é capitular muito.”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês.”, “A cultura é a inversão da vida." ,"10 horas de prazer já." ,"Proibido não colar cartazes." ,"Abaixo da calçada, está a praia.", "A economia está ferida, pois que morra!" ,"A emancipação do homem será total ou não será.”, "O estado é cada um de nós.”, “A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último padre.”, “A imaginação toma o poder." ,"A insolência é a nova arma revolucionária.", "É proibido proibir." ,"Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê." ,"Eu gozo.”, “Eu participo. Tu participas. Ele participa. Nós participamos. Vós participais. Eles lucram.”, “os jovens fazem amor, os velhos fazem gestos obscenos." ,"A liberdade do outro estende a minha ao infinito.", "A mercadoria é o ópio do povo.", “As paredes têm ouvidos. Seus ouvidos têm paredes." ,"Não mudem de empregadores, mudem o emprego da vida." ,"Nós somos todos judeus alemães." ,"A novidade é revolucionária, a verdade, também." ,"Fim da liberdade aos inimigos da liberdade." ,"O patrão precisa de ti, tu não precisas do patrão.", "Professores, vocês nos fazem envelhecer." ,"Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor.”, “A poesia está na rua." ,"A política se dá na rua." ,"Os sindicatos são uns bordéis." ,"O sonho é realidade." ,“Só a verdade é revolucionária.”, “Sejam realistas, exijam o impossível.",
"Trabalhador: você tem 25 anos, mas seu sindicato é de outro século." "Abolição da sociedade de classes." ,"Abram as janelas do seu coração.”, “A arte está morta, não consumamos o seu cadáver. “,"Não nos prendamos ao espetáculo da contestação, mas passemos à contestação do espetáculo. “,"Autogestão da vida quotidiana", "A felicidade é uma ideia nova." ,"Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu." ,"Camaradas, o amor também se faz na Faculdade de Ciências." ,"Consuma mais, viva menos." ,"Escrevam por toda a parte!" ,"Abraça o teu amor sem largar a tua arma.”, "Enraiveçam-se!", "Ser rico é se contentar com a pobreza?", "Um homem não é estupido ou inteligente: ele é livre ou não é.", "Adoro escrever nas paredes." ,"Decretado o estado de felicidade permanente." ,"Milionários de todos os países, unam-se, o vento está a mudar.”, “Não tomem o elevador, tomem o poder."
            Uma coisa é certa, o debate nunca está encerrado!

Fernando Pereira
12/5/2018
               

4 de maio de 2018

“Proibido Proibir”/ Ágora/ Novo Jornal - Luanda 4-05-2018


                “Proibido Proibir”


            Comemora-se o cinquentenário da aventura de uma geração, em que nada a partir de então ficou como tinha sido até àquele momento!
            O Maio de 1968 surge numa Europa, que curiosamente vivia um dos melhores períodos de euforia económica do pós 2ªguerra mundial aliada a uma paz social como ainda não se tinha visto no século XX, e o seu epicentro é numa das cidades do mundo que foi sempre um local de culto pela defesa da liberdade, Paris.
            O dia 3 de Maio de 1968 é a data marcante da grande revolta estudantil, quando em resposta à concentração contra o encerramento da Sorbonne se inicia um período de grande explosão social, sem paralelo na europa contemporânea de então.
Os estudantes barricam-se no Quartier Latin e rapidamente as manifestações e confrontos generalizam-se por toda a cidade e um pouco por todo o País. As adesões à luta dos estudantes por novos valores e outras opções de participação popular multiplicaram-se, e de um momento para o outro 10 milhões de trabalhadores dos mais variados sectores de atividade estavam em greve paralisando toda a atividade económica de França.
Os estudantes e os movimentos cívicos contestavam a “velha ordem” instalada nos estabelecimentos de ensino superior, e reclamam um ensino conservador equidistante da realidade quotidiana dos cidadãos.
De Gaulle, ao tempo presidente francês, herói da resistência ao nazismo perde por completo o controle da situação, entrando em clara rotura com a rua que diariamente se agiganta em adesões e também em choque com o seu primeiro ministro Pompidou que tenta arranjar uma solução de compromisso que permita à França sair de uma situação de caos quase generalizado.
O movimento do Maio de 1968 furou o convencionalismo dos partidos tradicionais, e foi olhado com alguma reserva inicial pelo movimento sindical francês, muito cético “porque os estudantes eram os filhos da burguesia”, mas a verdade é que em determinada fase a própria CGT, a maior confederação sindical francesa aderiu a uma contestação que não tinha liderança e que queria discutir tudo.  Para se ter a dimensão da mobilização, a título de exemplo, foram editados em serigrafia, litografia ou gravura mais de 500.000 cartazes com cerca de 400 motivos diferentes, feitos por estudantes, professores, artistas e grupos de bairro.
A Bolsa de Paris ardeu, algumas igrejas foram locais de reunião, as salas de aula foram utilizadas para se discutir a ordem, a desordem e a pós-desordem.
 Tudo era posto em causa e palavras como: “O sonho é realidade”, “Todo o poder abusa. O poder absoluto abusa absolutamente”, “Não me libertem, eu encarrego-me disso”, “A poesia está na rua”,” A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, “A Revolução tem de deixar de ser para existir”,” Abram o vosso cérebro tantas vezes como a braguilha”,” É proibido proibir”, “Tomem os vossos desejos pela realidade”, “Não reivindicaremos nada. Não pediremos nada. Conquistaremos. Ocuparemos,” Um homem não é estúpido ou inteligente: ele é livre ou não é” e muitas outras que passaram a entrar no quotidiano das revoluções que se foram operando um pouco por todo o mundo.
Numa reportagem um jornalista ouvia um conjunto de intervenções e quando se dizia “Contestai, é preciso contestar tudo”, perguntou: “Mas não há nada que vocês não contestem?”” Há” respondeu alguém: “O direito que todo o homem tem a viver dignamente”.
No Odeon, um dos lugares míticos de debate contínuo nesses dias de permanente agitação há este diálogo captado por um jornalista: Uma mulher magra, de meia idade, algo irritada com frases do tipo “enforcar o ultimo padre nos intestinos do ultimo capitalista” grita do alto do balcão: “Atenção, Irmãos, Deus está vivo, está lá fora à porta”. Logo, alguém lhe respondera: “Então que entre depressa, já vem atrasado”.
O Maio de 1968 marca uma viragem em novas conceções políticas, abertas a novas doutrinas e mobilizadoras para vivencias diferentes do contexto centrado nalgum dogmatismo organizativo do seculo XIX e no princípio do seculo XX. Foi um tempo em que Marcuse, Sartre, Dérrida, e outros aparecem a ocupar os lugares que Marx, Engels, Lenine, Trotsky,Staline, Mao e outros disputam. Volta-se a Saint Simon, Fourier, Owen, Hegel e Goethe para perceber Dabord, Aragon, Althusser, Aron, Garaudy, Beauvoir, etc. Reinventa-se a história sem que o dogmatismo da luta de classes permaneça, e procura-se algo de hedonismo social, mas de contornos muito difusos, e nalguns casos pouco coerentes.
Nos EUA a contestação à guerra do Vietnam torna-se o motivo central da contestação estudantil, e o início das conversações de paz entre os EUA e o Vietname começam em Paris em Maio de 1968, o epicentro das múltiplas revoltas que se espalham um pouco por todo o mundo e que nalguns casos se revelam dramáticas para os manifestantes, por exemplo no México onde morrem algumas centenas pelo uso desproporcionado da policia e exército no que foi o triste massacre de Tlatelolco.
Cinquenta anos depois no mundo parece que quase não houve nenhum Maio de 1968, pois os o voluntarismo, o apelo de libertação, o espírito solidário,e outros valores desvaneceram-se, e a geração desse tempo engravatou-se e esgaravata-se em fazer prevalecer a ordem económica assente numa economia de mercado, de desmesurada ferocidade para com os trabalhadores, imigrantes e povos de países em vias de desenvolvimento.
Passou-se à concorrência feroz, à disputa de mercados e um apelo ao consumismo desregrado que empobrece povos, enriquece alguns e multiplica a fome e a indigência por milhões que não tem direito a rigorosamente nada. As mais valias que eram extorquidas aos trabalhadores no processo produtivo, gerando emprego, foram substituídas na forma de ações, títulos, participações e outras formas subtis de transferência de capital ao nível global.
O ano de 1968 foi o ano de todas as contestações desde as sucessivas manifestações contra a guerra do Vietname um pouco por todo o lado, o início da Primavera de Praga e o seu esmagamento por tropas soviéticas, revoltas estudantis em Espanha, Alemanha, Bélgica e Itália, para além do assassinato de Marthin Luther King em Menphis quando se preparava o maior movimento grevista nos EUA.
Na musica, nas artes-plásticas, no vestuário e noutras áreas da cultura houve uma mudança com o aparecimento de novas tendências e o ousar passou a ser o banal, acabando com o convencionalismo que então era quotidiano nas sociedades tecnologicamente e economicamente mais desenvolvidas.
Se ao tempo nada ficou como antes, passados os 50 em que Geismer, Sauvageot e Cohn-Bendit deram a cara por um Maio que fez abanar os fundamentos do “estado burguês”, temos hoje um mundo mais desigual, ideologicamente monocromático e que a democracia passou apenas a ser instrumentalizada para domínio do económico em detrimento de um social cada vez mais apagado.
“Sejamos realistas, exijamos o impossível”

Fernando Pereira
29/5/2018






Related Posts with Thumbnails