22 de outubro de 2018

VENEZUELA, OS PASSOS PERDIDOS / África 21/ Luanda/ Outubro 2018




VENEZUELA, OS PASSOS PERDIDOS

                Aproveitei para título deste artigo um dos mais belos, e simultaneamente menos conhecidos romances da literatura sul americana, escrito em 1953 pelo cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que viveu na Venezuela entre 1945 e 1959.
                Este romance é a imagem de um mundo que começa no grande rio Orenoco, o maior da Venezuela e um dos maiores da América do Sul. É a subida desde a foz até à sua nascente para encontrar a “raiz da vida”, e onde cada personagem define o que é o poder, e as suas lógicas, a atmosfera selvagem e abrupta, o que ele chamou do “real maravilhoso americano”.
                A Venezuela é a pátria do libertador Simão Bolivar, o mais conhecido combatente pela independência das colónias espanholas na América do Sul e o seu verdadeiro unificador. A Republica Bolivariana da Venezuela teve a sua autonomia aquando da sua separação da Grã-Colômbia, território partilhado com a Nova GranadaEquador e Panamá, surgida por altura do falecimento de Bolivar.
                Sempre marcada por alternância entre democracias e ditaduras, a Venezuela consegue ser das poucas republicas americanas a manter ininterruptamente uma democracia desde 1958, apesar de pontualmente irem aparecendo focos de guerrilha e nalguns casos algum projeto tipo “Coronel Tapioca”, icónica personagem dos livros de Tintim, do belga Hergé, que corporizava as revoluções em vários países na América Latina.
                A Venezuela era antes da exploração petrolífera nos anos 20 do século passado, um dos países com razoável aproveitamento dos recursos agrícolas, nomeadamente o café e o cacau, para além de uma agricultura de subsistência que ia permitindo uma dieta alimentar razoável à população. O peixe de uma zona costeira riquíssima era um complemento para a alimentação dos cidadãos e produto não negligenciável no quadro das exportações.
                A exploração do petróleo levou a que a agricultura fosse perdendo cada vez maior importância, e num curto espaço de tempo a Venezuela passa a ter 80% da sua população, hoje de 32.000.000 de habitantes, que vive em cidades, com todas as inerentes consequências.
                A Venezuela é hoje o 3º maior produtor de petróleo, e o 2º exportador mundial. Tem as maiores reservas mundiais de gaz e é um dos países com maiores reservas hídricas do planeta. Acresce a tudo isto a rica fauna da sua zona exclusiva marítima!
                Neste quadro a Venezuela, com a Standard Oil americana como parceira, começa a desenvolver uma industria de siderurgia, de cimentos, metalomecânica, refinação e outras o que leva a uma crescente urbanização da sua população tornando as urbes em megacidades, que transformaram o País como um dos de maior violência urbana em todo o mundo.
                Em 1976, três anos depois da crise petrolífera de 1973, e com a eleição do social democrata Carlos Andrés Peres, a Venezuela nacionaliza o petróleo e procura desenvolver rapidamente o País com a construção de novas e melhoradas infraestruturas, bairros sociais que permitissem alojar deslocados do campo para as cidades, hospitais, em suma um projeto desenvolvimentista que criou uma dívida externa quase incomensurável, fruto das quebras petrolíferas nomeadamente a de 1980. A classe média venezuelana cresceu percentualmente de forma mais rápida que em toda a América Latina, e começaram a agudizar-se os conflitos aliados a uma corrupção endémica que tinha como figura de tomo o Presidente da República.
                Neste quadro cada vez mais as forças armadas ganham alguma influencia, e começa a emergir a figura de Hugo Chavez, um misto de caudilho e esperança para uma população que vive cada vez pior, e assiste impotente ao desbaratar dos recursos por uma elite que se apossou do aparelho do estado e das empresas publicas.
                Naturalmente que Chavez é olhado com desconfiança pelos EUA, sempre ligados ideologicamente às teses do “Big Stick” do presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) e economicamente aos interesses das grandes companhias americanas.
                Hugo Chavez apesar de acossado pela elite venezuelana, acolitada pela administração americana, inicia com as receitas do petróleo em alta, um conjunto de reformas que procuram dar resposta ás ansiedades da população mais desfavorecida da Venezuela. Com alguns laivos de demagogia, Chavez começa a criar escolas, hospitais, promulga legislação que proteja os mais pobres, criando a cesta básica. Promove projetos para a edificação de casas para alojar os que moram em favelas e assume-se como um verdadeiro leader dos povos que se tentam emancipar na América latina.
                Escusado será dizer que os EUA e seus aliados regionais e locais tudo tentaram para o destruir, através de greves, fuga de capitais, boicotes, mas eleitoralmente ele reforçava o seu poder em cada votação. A sua doença foi a única coisa que não conseguiu vencer, e morre em 2013 sendo substituído pelo seu vice-presidente Nicolas Maduro.
                Com a queda abrupta do peso do petróleo, com a falta de financiamento internacional, com os juros da dívida a estrangularem a economia os inimigos do “Chavismo” tem tentado tudo para acabar com o legítimo governo da Venezuela sufragado nas urnas.
                Tem sido lançada uma campanha para denegrir o regime Venezuelano, com sanções de toda a espécie, e com a criação de um ambiente de “crise humanitária global” que leve à intervenção militar, para justificar isso sim uma guerra de contornos sórdidos para uma intervenção económica na Venezuela, a favor dos que intervém há muitos anos na América latina, feudo privilegiado das companhias americanas e dos seus interesses instalados na Casa Branca.
                A insuspeita ONU num recente relatório fez saber que as sanções impostas desde 2015 pelos EUA e União Europeia contra a Venezuela “agravaram muito a escassez de alimentos e medicamentos, causaram sérios atrasos na distribuição e desencadearam o fenómeno da emigração maciça para os países vizinhos”! O Enviado da ONU à Venezuela foi categórico ao afirmar que o que acontece na Venezuela é “uma crise económica que não pode ser comparada às crises humanitárias em Gaza, Iémen, Líbia, Síria, Iraque, Haiti, Mali, RCA, Sudão do Sul, Somália, Myanmar, entre outros”. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação divulgou recentemente 2 relatórios (dezembro 2017 e março de 2018 referindo que a Venezuela não está entre os 37 países do mundo que passam crises alimentares.
                Convém esclarecer que não gosto particularmente do estilo e discurso de Nicolas Maduro, a quem não reconheço a estrutura intelectual e o carisma de Hugo Chavez, mas acho que a Venezuela só passa por tudo isto que está a passar pela cobiça de agentes económicos pelas riquezas de um dos territórios mais ricos do mundo e que vai lutando pela sua soberania e defesa dos seus interesses!
Fernando Pereira    3/10/2018

4 de outubro de 2018

Um Adeus Africano / África 21/ Luanda Setembro 2018




Um Adeus Africano              
           
Recentemente deixou-nos Kofi A. Annan, o africano que mais tempo esteve como Secretário Geral da ONU, e o segundo a ocupar esse lugar.
            No esquema de rotatividade que estava consensualizado até ser quebrado com a eleição de António Guterres para o atual mandato, África substituiu a América Latina em 1992 e fez eleger o egípcio Boutros-Ghali como secretário-geral.
              O egípcio Boutros Boutros-Ghali (1922-2016), substituído por Kofi Annan, só conseguiu fazer um mandato enquanto SG da ONU, já que as suas divergências com a política externa dos EUA impediram que a sua candidatura a segundo mandato tivesse êxito.
            Boutros-Ghali fez frente à influencia dos EUA na ONU e teve um mandato difícil, em que os Americanos apostavam no desmembramento de Angola e da então república federativa da Jugoslávia entre outras intervenções. Os EUA não terão conseguido impor a sua vontade na solução da crise do Ruanda, que se traduziu num dos maiores massacres que se viveram na África contemporânea. O SG foi acusado de ter ignorado avisos sobre a deterioração da situação no Ruanda e não se livrou de críticas de muitos que o acusaram de alguma sobranceria.
            Foi responsabilizado por fracassos inerentes aos muitos conflitos que assolaram o mundo de um tempo pós-guerra-fria, e os atritos com a administração Clinton foram continuados, tendo-lhe sido criado um ambiente insustentável na cena internacional e também no interior da própria organização. Tudo foi anotado no seu livro de memórias Unvanquished: A U.S.-U.N. Saga (1999), e algumas situações conseguem ser bizarras no quotidiano de seriedade das relações internacionais.
            Entre vários incidentes contou que a meio do seu mandato recebeu um embaixador Americano que lhe transmitiu que o presidente Clinton queria que ele se demitisse e fazia uma festa de homenagem para ele não sair "pela porta traseira"! Recusou e nem com o forte apoio da França, claramente a sua maior aliada, conseguiu apoios para uma segunda magistratura.
            A solução de compromisso para que África mantivesse um elemento do seu espaço, para o segundo mandato exigiu soluções de compromisso, entre os vários membros do Conselho de Segurança e como resultado de tudo a solução surgiu dentro da própria instituição, com a subida a secretário-geral do então adjunto Kofi Annan, que vai exercer o lugar entre 1997 e 2017.
            Foi o primeiro cidadão negro à frente da ONU, e também até hoje o único da África subsariana.
            Kofi-Annan herda uma ONU envolvida numa série de problemas, estruturalmente desorganizada, e sem capacidade económica para dar resposta às múltiplas intervenções que se exigiam às Nações Unidas, que dispunha ao tempo de um efetivo de 70.000 soldados e uma pesada máquina burocrática que era muito exigente do ponto de vista financeiro e algo ineficaz nas respostas que a organização tinha celeridade em dar.
            Este Ganês que fez toda a sua carreira em organizações internacionais até entrar definitivamente em 1980 na ONU como secretário-geral adjunto em três situações consecutivas: Gestão dos Recursos Humanos e Coordenador para as Medidas de Segurança do Sistema das Nações Unidas (1987–1990); Subsecretário-Geral para Planeamento de Programas, Orçamento e Finanças e de Controlador (1990–1992); e Operações de Manutenção da Paz (março de 1993 – dezembro de 1996).
            Muito mais conciliador que o secretário-geral anterior, passou a ser olhado com simpatia pelos americanos que viram o ataque ao Kosovo e o bombardeamento à Sérvia serem apoiados pelo novel Secretário-Geral da ONU.
             Do mandato anterior “herdou” a má imagem que a Organização deixou na intervenção americana na Somália, a desorganização das forças de intervenção nos diferentes teatros de guerra, que eram caras e de eficiência discutível no terreno.
            Kofi Annan fez um toque a reunir e iniciou um processo de reorganização administrativa e uma aposta clara no reequilíbrio financeiro das Nações unidas obrigando de forma draconiano ao pagamento das prestações em falta por parte de um conjunto significativo de países membros.
            O mundo começava a sarar das feridas herdadas da guerra fria, e Kofi Annan tentou que a ONU fosse o fórum ideal para o estudo de uma enorme vontade de alterar o modelo económico e social prevalecente no mundo.
            Tarefa ciclópica e de certa forma algo utópica, mas Kofi Annan com a paciência do cidadão africano foi afirmando na ONU valores de liberdade, equidade, solidariedade, tolerância, não violência, respeito pela natureza e responsabilidade partilhada.
            Kofi Annan dizia na Conferencia do Milénio em 2000 no contexto do texto “Nós os Povos, o papel das Nações Unidas no século XXI”: “Se a globalização oferece grandes oportunidades, nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. O que é certo é que, até hoje, os seus benefícios foram distribuídos de uma forma muito irregular, enquanto o seu custo é suportado por todos. Assim, o grande desafio que enfrentamos hoje é certificarmo-nos de que, em vez de deixar para trás milhares de milhões de pessoas que vivem na miséria, a globalização se torne uma força positiva para todos os povos do mundo. Uma globalização que favoreça a inclusão deve assentar na dinâmica do mercado, mas esta, só por si, não é suficiente. É preciso irmos mais longe e construirmos juntos um futuro melhor para a humanidade inteira, em toda a sua diversidade”.
            Annan apesar de ser acusado de pró-americanismo nunca cedeu aos EUA no ataque ao Iraque, e apenas tentou ganhar tempo para que os inspetores enviados no âmbito da ONU para a verificação de armas de destruição em massa estivessem em segurança, depois de em inúmeros relatórios terem concluído que não existiam essas armas em território iraquiano. À revelia da ONU, já que a França não alinhava com os EUA no ataque ao Iraque, os EUA e a Grã-Bretanha unilateralmente atacaram o Iraque.
            O SG da ONU deixa uma mensagem no seu discurso nessa conferencia: “Nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. Não há aspiração mais nobre, nem responsabilidade mais imperiosa do que ajudar os homens, as mulheres e as crianças do mundo inteiro a viverem melhor. Só quando isso começar a acontecer é que saberemos que a globalização está de facto a favorecer a inclusão, permitindo que todos partilhem as oportunidades que oferece.”
            Kofi Annan deixou-nos recentemente, mas os seus valores, assumidos sempre com a eterna referencia à sua “alma mater” Kwame Nkrumah, tem que valer num mundo que se perpetua eternamente desigual de mais.
            Com a sua morte o mundo perde um cidadão proeminente, África perde um dos seus filhos valorosos!

Fernando Pereira 3/9/2018

Related Posts with Thumbnails