24 de julho de 2015

Ouçam o que se diz na rua / Ágora / Novo Jornal / Luanda 23-7-2015



Ouçam o que se diz na rua
ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e deixem-me continuar a sonhar que o MPLA ainda tem os seus princípios e pode ver restituída aos angolanos alguma da sua dignidade perdida ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e façam investimentos no sector produtivo em vez de esbanjarem fortunas em bens de luxo ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua hão-de vir para a rua ouvir ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua quando vierem para a rua ouvir o que se disse na rua já ninguém quer saber de vós para nada ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua a porta da rua é a serventia da casa ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua farto de ouvir falar de coisas que infestam a rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua perco a paciência com muitos que andam na rua para tentarem por na rua outros por quem não tenho paciência nenhuma de os lá ver e estou morto por vê-los na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua faço anos em Maio podem dar-me uma prenda mesmo que estejam para ir para a rua ou fiquem lá porque os não puseram na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não coloquem na prisão meia dúzia de miúdos a quem acabam por conseguir ter maior publicidade que alguma vez suporiam ter ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a recolher o lixo em Luanda ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e resolvam definitivamente o problema da luz e do transito na cidade capital ouçam o que se diz na rua diz-se que um País com tanto dinheiro devia ter um dos melhores sistemas de saúde de África e uma vacinação alargada a toda a população infantil ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e comecem a premiar o mérito das pessoas ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que há falta de liberdade de expressão e uma justiça lenta e parcial ouçam o que se diz na rua e não tentem esconder as dificuldades como tem feito na Sonangol ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua numa altura que precisamos de uma política que privilegie o cidadão nacional numa mobilização de recursos para a construção de uma sempre adiada sociedade nova ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e não façam uma lei laboral que quase recua aos tempos do Código de Trabalho Indígena ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que ando esbaforido de tanto dizer mal de tanta coisa e tudo permanecendo piorando ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua e vão pensando que a eternização no poder não é bom conselheiro em lado nenhum ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua que não temos nada que andar a pedinchar o que quer que seja que está à partida consignado na legislação ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua deixem-me ver televisão à vontade sem ouvir os tudólogos apoliptólogos politólogos achólogos e alem de tudo isso os tipos que discursam para os que falei falarem deles ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politiqueiros são flatulência da politica ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua politica nada tem a ver com politiqueiros comissários e serventuários do sistema ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua ouçam o que se diz na rua PORQUE QUALQUER DIA ESTÂO TODOS NO OLHO DA RUA A OUVIREM O QUE SE DISSE NA RUA PORQUE NÂO QUISERAM OUVIR O QUE SE DIZIA NA RUA.
Este pequeno texto é um devaneio da “Guidinha” do injustamente esquecido Luis Sttau Monteiro, que ao tempo escrevia na “Mosca” do Diário de Lisboa e posteriormente no “Jornal” .
Fernando Pereira
21-07-2015

18 de julho de 2015

A verdade é a única realidade / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 17-7-2015









Saiu recentemente o livro “Guerra e Paz, Portugal/Angola (1961-1974)" escrito pelo vice-cônsul da África do Sul em Luanda, de 1970 a 1973, W. S. van der Waals, editado pela “Casa das Letras”.
Tive alguma curiosidade em lê-lo, por razões evidentes. O autor foi protagonista num período de relações próximas entre o aparelho militar do “apartheid” e as autoridades militares coloniais em Angola. Era um militar colocado num lugar normalmente ocupado por um civil, e com ligações aos serviços de informação militar da África do Sul, o que não deixa de ser uma exceção, mesmo em contextos pouco vulgares. Como recentemente se abriram os arquivos da SADF (Forças Armadas Sul Africanas), havia naturais expectativas de que este trabalho pudesse trazer mais alguns contributos para um conhecimento maior do estertor do período colonial.
O livro revelou-se uma verdadeira deceção, não apenas pelas vulgaridades que enchem perto de quinhentas páginas, mas acima de tudo pela falta de precisão histórica e factual, num trabalho que pretendia ser rigoroso, pois foi a base da dissertação de doutoramento do autor na Universidade de Orange Free State em Bloemfontain, na República da África do Sul.
O suporte do livro, nomeadamente no recurso a vários documentos, revela que o Brigadeiro General W. S. van der Waals se apoia em autores de textos que, de certa forma, enfatizam o papel do exército colonial, omitindo situações em que prevaleceu alguma combatividade por parte dos movimentos de libertação. A própria organização clandestina do MPLA é secundarizada, apesar de, pontualmente, haver menção ao trabalho da PIDE o que, convenhamos, revela alguma incongruência, pois havendo trabalhos redobrados seria sempre um evidente sinal de que haveria, simultâneamente, atividade por parte das células urbanas clandestinas.
Os próprios documentos “classificados” do SADF revelam-se de importância residual, e em nada acrescentam ao muito que se vai sabendo sobre esses tempos que muita gente ”estoria”, mas com um contributo pouco decisivo para a história.
Talvez valha a pena lembrar Edgar Morin: "Pensar autonomamente significa reflectir na sua crença e na sua descrença, na sua confiança e na sua desconfiança. A cultura, que deveria permitir-nos pensar por nós mesmos, leva-nos demasiadas vezes a pensar 'culturalmente', de forma convencional e estereotipada, e assim, sem sabermos, somos submetidos às crenças e descrenças estabelecidas, às confianças e desconfianças que são de regra. Devemos portanto desconfiar das nossas confianças, sem por isso nos entregarmos às nossas desconfianças."
Estes trabalhos sobre o período colonial, publicados por um conjunto de protagonistas, historiadores, jornalistas, investigadores, deparam-se com barreiras que urgiria ultrapassar rapidamente, e o que sobressai é a ausência de oportunidade de recorrer aos documentos militares do tempo colonial em vários países, a começar naturalmente por Portugal, e com acesso facilitado aos arquivos da PIDE/ DGS em Angola. Seria excelente poder consultar o maior número de documentos para confrontar as muitas pessoas ainda vivas, e com memória, sobre situações que ocorreram num determinado contexto, onde foram protagonistas ou observadores.
Esse “documentar a memória” era um contributo decisivo para se fazer a história de períodos onde há silêncios, ocultações deliberadas e muitas suspeições, que conviria que não se perpetuassem no tempo, para que a especulação não ocupasse o lugar do rigor.
Há pouco tempo ouvi acidentalmente um indivíduo explicar, em detalhe, como ocorreu a morte do comandante Kwenha, já que ele fazia parte do grupo que o abateu. Fiquei com natural interesse em saber se estava disposto a dar-me um depoimento para este jornal. Não me manifestou qualquer reserva e combinámos que, oportunamente, lhe faria um conjunto de perguntas sobre o assunto. Vim fazer o meu trabalho de casa e, surpresa das surpresas, quando faço uma pesquisa sobre o Comandante Kwenha, herói do MPLA no combate contra os portugueses, não encontro rigorosamente nada a não ser a menção à sua presença na toponímia de várias cidades e do recentemente inaugurado aeroporto de Menongue, a quem muito justamente foi dado o seu nome.
Da sua vida, da data da sua morte, da sua participação na guerrilha, rigorosamente nada, o que não deixa de ser bizarro!
Qualquer boa ideia para recuperar a memória coletiva recente é bem-vinda. Não há sociedade sem cultura nem cultura sem instrumentação de juízos prévios.
Ou será, como diz Isaac de Ninive, “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”?




Fernando Pereira
13/7/2015

10 de julho de 2015

“De todos se faz um País” / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-7-2015





“De todos se faz um País”

“Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.”

“Memória de outro rio”, Eugénio de Andrade.


“De todos se faz um País” de Óscar Monteiro é um livro que suscita uma multiplicidade de sentimentos aos que deram corpo à “Geração da Utopia”, e simultaneamente algum desconforto à geração seguinte, onde me incluo, e onde estão muitos dos que mandam, alguns dos que desmandam, nas emergentes sociedades onde nos inserimos.
Este livro, com prefácio de Artur Santos Silva, e um posfácio excelente de Manuel Rui Monteiro, é uma “quase” autobiografia de um homem que sempre esteve do lado certo da luta, na defesa de valores de independência, liberdade e respeito pelo cidadão enquanto motor do desenvolvimento, e seu único beneficiário num quadro de uma sociedade de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades.
Óscar Monteiro faz ao longo do livro um trajeto, desde os seus tempos de meninice e juventude no Moçambique colonial, a sua ida para Portugal estudar em 1958, o seu engajamento nas lutas estudantis, na atividade associativa, na “Casa dos Estudantes do Império”, concluindo direito com vinte anos na Universidade de Coimbra. No desfiar de recordações, e de muitas solidariedades e amizades que se perpetuam nos dias de hoje Oscar Monteiro descreve o seu “salto” para o combate contra o colonialismo português, o dealbar de um tempo em que a sua vida se confunde com a luta da FRELIMO, o 25 de Abril de 1974 em Portugal, os acordos de Lusaka, a independência de Moçambique e o apoio à luta do povo angolano e do MPLA na afirmação de um esforço coletivo comum, no âmbito da ex-CONCP (Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) para que a Republica Popular de Angola emergisse como País no contexto das nações a 11 de Novembro de 1975.
A grande dimensão humana do moçambicano, revela-se na forma reconhecida para com todos os que o ajudaram a trilhar as fases de um percurso em que foi protagonista ativo, de um período relevante de lutas contra a potência colonial e concomitantemente pela erradicação do domínio do apartheid na África Austral.
Óscar Monteiro, como outros moçambicanos já o fizeram, deixa o seu testemunho de um tempo de luta por causas nobres, que ajudaram a dignificar os momentos históricos da edificação das novas nações. Era muito bom que todos os protagonistas fizessem o mesmo, para que no futuro não se procure reescrever a história ao belo prazer das circunstâncias.
"Estamos a dar-nos conta de como nos afastámos dos nossos objetivos", declarou em recente entrevista à Lusa. "Cada vez mais estamos a sentir que há alguma coisa que não funcionou", avalia Óscar Monteiro, referindo que "há um fator de humanização do capitalismo que desapareceu e que levou à contração da riqueza". Este não é um problema só de Moçambique, "é de todo o mundo", enfatizou o jurista, abordando a forma como Moçambique evoluiu de um "socialismo na sua forma mais pura" para o capitalismo, "com menos entusiasmo, muita pressa e sem se pensar em todas as consequências".
"O desenvolvimento tem de ser visto a partir do que as pessoas desejam", defendeu, assumindo que este "é um problema não resolvido" e que a Frelimo está consciente de que "as distâncias aumentaram muito mais do que se pensava". Além de "uma diferença grande e crescente entre os que têm e não têm", existe sobretudo "o facto de que os que não têm não terem o suficiente", nem um mecanismo compensatório, como um rendimento mínimo garantido para "comprar a paz social".
Em Moçambique também há apoios aos mais pobres e aos idosos, "mas em certos momentos uma conjugação de fatores leva à perceção de que só alguns é que têm e em alguns casos é fundamentada", referiu, acreditando que "ainda é possível" produzir um sistema "mais regulado e humanizado".
Esta longa entrevista tem destinatários certos, e não só em Moçambique, mas também em Países como Angola, que de certa forma viveu uma luta comum, processos políticos e organizativos semelhantes, e que vive hoje uma fase de capitalismo selvagem mesclado com um ou outro laivo avulso de socialismo.
Óscar Monteiro merece o seu “bocado de pão”, e apesar de ter sido ministro da Presidência, Informação, Administração Estatal, Interior e governador provincial não deixa de alijar as suas responsabilidades, mas alerta que o percurso está enviesado, e urge voltar-se ao primado do homem ser o centro do debate e usufrutuário de toda a riqueza, produzida numa sociedade onde o coletivo se assume como fator decisivo.
O desenvolvimento de África continua a ser um sonho não realizado de muitos, mas seria pelo menos muito bom que não se matasse o sonho das gentes, de um continente que coloca 36% das matérias-primas na economia mundial e que tem apenas um PIB de 3%, segundo dados de credibilidade insuspeita.
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) dizia: “ Não importa quantas vezes se cai. O importante é levantarmo-nos e tentar mudar as coisas”. Quando os intelectuais discutiam a globalização, o que se podia fazer para melhorar as condições de vida das pessoas do Terceiro Mundo ele dizia: “ Olhem o que mudou a vida de muitas pessoas em África foi o bidão de plástico, que permitiu que as crianças carregassem água sem a desperdiçar pelo caminho”.

Fernando Pereira
4/7/2015



3 de julho de 2015

NA LINHA DOS CONFINS (FINAL) / Novo Jornal / Ágora / Luanda 3-7-2015


Ocupemo-nos agora do réu Grilo:
Além do crime de fogo posto por que foi condenado, foi visto a empunhar uma pistola Beretta 22 longo; foi visto aos tiros com a mesma arma; provou-se ser ele o condutor do táxi AAP-04-32; provou-se que Bernardo Gouveia foi morto por uma bala disparada por uma pistola Beretta 22 longo; provou-se com 50%-70% de probabilidades ter sido aquela pistola Beretta 2.R.LR. que disparou o tiro assassino (e note-se que na identificação de impressões digitais a polícia científica se considera satisfeita quando alcança uma percentagem de 40%, na identificação de pessoas) e nem mesmo assim se dá o réu Grilo como autor do crime de homicídio voluntário na pessoa do assassinado do Bernardo Gouveia!!! «Branco é, galinha o põe». Será o ovo?! A douta sentença recorrida põe em dúvida; logo, absolve-se o réu. «In dubio pro reo», pois claro! Galinhas há muitas e nem todas põem ovos...

Cumpre-me agora aduzir umas tantas considerações acerca dos n. III e IV da douta sentença:

- Espantamo-nos perante as conclusões que aí se extraiem dos factos carreados para o processo, porquanto é evidente que a absolvição dos réus Domingos Oliveira e João Barbosa, reconhecidos, aliás, até pelas próprias alcunhas e por vários circunstantes e vítimas da sua actuação, resultou pura e simplesmente porque ficou demonstrado que, à hora em que se lhes imputava a prática dos actos criminosos pelos quais foram acusados. estavam eles a trabalhar em outro local... Salvo o devido respeito, achamos espantosas estas conclusões! Não se nega, evidentemente, que eles tivessem estado a trabalhar onde as 10 testemunhas o afirmaram, nem às horas que vieram a ser referidas. Mas tudo isso só permite concluir que houve erro relativamente às horas mas não relativamente às pessoas.

Como é que se pode exigir que gente apavorada, escondida na sua cubata quando os tumultos já se haviam desencadeado, sai¬bam que horas são, quando lhes derrubaram a casa, os agrediram, os maltrataram nas suas pessoas e haveres? Esse «pormenor» da hora é assim tão decisivo?! Estavam certos os relógios? (Se os tinham...) Repare-se que até se referem erradamente quanto à hora, a factos irrecusavelmente verdadeiros (por exemplo, os tiros dados pelo réu Telmo). Repare-se que os agressores apareceram munidos de paus e enxadas e que tais factos se iniciaram, segundo a própria P.S.P., cerca das 19 para as 20 horas. Estar a trabalhar na substituição de manilhas na rua de Goa (fls. 400 e segs.) até cerca das 19 horas não é incompatível com o facto de se aparecer munido da própria ferramenta (v. g. enxadas) no Cazenga entre as 19 e as 20 horas, para agredir pessoas e destruir móveis e casas. O único erro que se demonstra é o de que esses factos se terão passado a horas diferentes.

Finalmente, a douta sentença recorrida deu como provado que o réu João Cruz, associando-se activamente aos motins do Cazenga «tirou de um táxi uma faca de mato, com dezanove centímetros de lâmina e que passou a empunhar» (cfr. fls. 435 v), provando-se também que, ao empunhar tal arma, o mesmo réu, opondo-se às directrizes que os agentes da P.S.P. se esforçavam por impor sobre os demais rebeldes, proferia frases de incitamento à rebelião e à «vingança», tais como «ninguém sai daqui». Pois mesmo assim foi o réu absolvido!!! Humildemente pergunto: - não será o simples facto de empunhar uma tal arma, em tais circunstâncias passível do pena? Não lhe será aplicável, nem ao menos, o disposto no art. 253, parag. 1, do Código Penal? Não diz o art. 447 do Código de Processo Penal que «o tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela porque o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente»?

E, sintetizando, por assim dizer, a angústia de todas as interrogações de quem sente os subjectivismos da sentença recorrida como traduzindo uma NÃO JUSTIÇA, pergunto ainda:
- Até onde é que os fins das penas ficaram salvaguardadas?
- Até onde é que o Código Penal pode ser manipulado partidariamente, por sobre realidades concretas e comprovadas?

VENERANDOS DESEMBARGADORES:

Quando se não faz justiça, encorajam-se as pessoas e as comunidades a fazê-la por suas próprias mãos.

No tribunal que julgou os réus
1. Telmo Pires,
2. Manuel António Grilo,
3. Domingos Lopes de Oliveira,
4. João Hermínio Barbosa, e
5. João Augusto da Cruz.

não se viu, no dia do julgamento, nem uma pessoa de cor, não obstante a cor dos mortos, dos feridos, dos humilhados nos tumultos, dos que viram as casas queimadas, destroçadas e destruídas, não obstante a cor de familiares, amigos ou conhecidos dessas vítimas todas.

Poderá considerar-se facciosismo ver nisto um tremendo sintoma de descrença na Justiça que iria ser feita? Justiça de brancos. Brancos o Juiz, o Ministério Público, os advogados, os réus, a assistência inteira!!! Só as vítimas o não eram! Todas as vítimas! Nenhuma delas presente, nem por procuração?! Admirem-se, pois, que, quando, numa qualquer «Avenida de Lisboa» ( [2]) um branco motorista de táxi atropele uma criança preta, surjam dos bairros miseráveis da periferia uma multidão de pretos solidários a tentar vingar a criancinha morta pela máquina dos brancos! Admirem-se, pois, quando no Cazenga, porque um assassino banal desencadeia grande «bernarda» brancos-pretos, só morrem pretos, só ficam feridos pretos, só se destroem as casas de pretos... e os assassinos saem em liberdade, ou absolvidos, ou com «penugens» que são caricatura do Código Penal!!!

Pois muito bem! Não há lugar a apreciações emocionais nem dos próprios acontecimentos, por essência emocionais!

MAS, sendo assim, então APLIQUE-SE O CÓDIGO PENAL com isenção, sem emotividade, COM JUSTIÇA.

É SÓ O QUE SE PEDE JUSTIÇA!
JUSTIÇA em nome dos cinco assassinados no Cazenga em 16 de Setembro do ano passado!

JUSTIÇA em nome dos feridos e maltratados do mesmo bairro!

JUSTIÇA em nome dos milhares de apavorados dessa mesma noite do MEDO!

JUSTICA contra o ÓDIO!
JUSTIÇA contra VIOLÊNCIA!

Aqui poderiam terminar as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal.

Os Venerandos Desembargadores não precisam que se lhes peça

JUSTIÇA.

Hão-de fazê-la como manda a LEI.
Somente se acrescenta o seguinte reparo:

- Imagine-se que, no dia 16 de Setembro de 1972, um qualquer preto do Musseque Cazenga, por volta das 16 horas, descia à cidade dos brancos e, junto da cervejaria Baleizão, ou debaixo da mulemba da Esplanada Portugália, após um conflito que nem foi entendido pelos circunstantes, sacava da sua pistola e matava um dos presentes; imagine-se ainda - seguindo um paralelismo fáctico - que do mesmo musseque Cazenga, logo a seguir, em consequência de falsos boatos, descia à baixa da cidade branca de Luanda um grupo de vingadores que espancavam até à morte quatro outros brancos, incendiavam a livraria Lello, estilhaçavam os vidros da sofisticada «Versailles», destruíam os «Supermercados de Angola» e enviavam aos hospitais mais de uma dúzia de outros brancos,

Bom! No mínimo, a estas horas, haveria volumoso processo político no Tribunal Militar local;
no mínimo, haveria dezenas ou centenas de habitantes dos musseques remetidos, com um simples despacho administrativo, à situação de residência fixa em um dos vários locais destinados a cumprir «medidas administrativas de segurança» de entre os vários que existem desde Cabo Verde até à Foz do Cunene... pelo menos.

Com esta hipótese pretende-se significar o seguinte:

- O que se passou no bairro Cazenga no dia 16 de Setembro do ano passado, excluindo o crime perpretado pelo réu Telmo Pires, não é da competência dos Tribunais Comuns, mas, por se tratar de verdadeiros atentados à ordem interna, segurança e prestígio do Estado, recai sob a competência do Tribunal Militar, aí devendo ter lugar o respectivo julgamento.
De uma maneira ou de outra, a nós basta-nos que os digníssimos e Venerandos Juízes do Tribunal da Relação se debrucem sobre tão denso como complexo processo para nos ficar a certeza de que, anulando-se ou corrigindo-se a douta sentença recorrida, HÁ-DE fazer-se
JUSTIÇA
- É o que se pede:
JUSTIÇA
«LES CHOSES ET LES ACTIONS SONT CE QU'ELLES SONT ET LEURS CONSÉQUENCES SERONT CE QU'ELLES SERONT: POURQUOI DONC CHERCHERIONS NOUS À ÊTRE LEURRÉS?»

Évêque Butler
O Magistrado do Ministério Público

(a) Albertino dos Santos Fonseca Almeida

Fernando Pereira
20/06/15

NA LINHA DOS CONFINS (I parte)- Novo Jornal / Ágora / Luanda 26-6-2015


Hoje limito-me a lembrar esta pérola, feita pelo Dr. Albertino de Almeida, homem de grande probidade intelectual e pessoa de enorme dimensão humana que merecia outro tratamento pelo muito que fez por uma Angola a quem nunca pediu nada em troca, mas que ainda conseguiu receber a ignomínia de muitos que a troco da sua segurança e conforto lhes proporcionou a liberdade.
O título deste artigo é precisamente do livro de Albertino Almeida, há muito esgotado!
Numa das próximas edições do Novo Jornal, vou fazer uma crónica sobre este valoroso e intrépido combatente da liberdade. Fica a promessa e esta peça de grande qualidade!
Um muito obrigado Albertino Almeida!


EXCELENTÍSSIMOS SENHORES
JUIZES DESEMBARGADORES
DO VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LUANDA (*)
Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença que consta dos autos a fls. 429 e seguintes, porquanto salvo o devido respeito por mais esclarecido entendimento, a decisão recorrida, eivada de subjectivismo, não ponderou criticamente os factos descritos e de mais elementos de prova carreados para o processo, não subsumiu correctamente nos comandos penais aplicáveis a situação criminal, em causa, em suma, não fez JUSTIÇA
«THINGS AND ACTIONS ARE WHAT THEY ARE, AND THEIR CONSEQUENCES WILL BE WHAT THEY WILL BE: WHY THEN SHOULD WE SEEK TO BE DECEIVED?» ( [1])

Bishop Butler


VENERANDOS DESEMBARGADORES:

Serão curtas e simples as alegações do Ministério Público junto deste Tribunal, pois os factos narrados nos autos são suficiente¬mente claros e significativos para que neles nos detenhamos em análises supérfluas ou redundantes.

No dia 16 de Setembro de 1972, por volta das 16 horas, o réu Telmo Pires dirigia-se na sua carrinha de vendedor de miudezas para determinado largo do bairro da Cazenga, onde então se realizava um mercado.

Àquela hora havia aí várias centenas de pessoas.

Quando a carrinha ia entrar no referido largo, Fernando Veríssimo da Costa, que por ali também transitava numa «moto», deteve-se para dar passagem à viatura do réu Telmo.

A carrinha, entretanto, ultrapassada a «moto», parou subitamente, ao mesmo tempo que o seu condutor, deitando a cabeça de fora, respondia a qualquer frase, observação ou insulto que um dos circunstantes proferira.

Após um curto diálogo, cujo teor jamais chegou a ser determinado, o condutor, da carrinha - o réu Termo Pires - abriu rapidamente a porta da viatura e, saindo desta, dirigiu-se, com ares agressivos, ao interlocutor de ocasião.

Este, «já com aspecto de quem está com medo», disse ainda qualquer outra frase à qual o réu. reagiu sacando de uma pistola e abatendo a tiro o seu contraditor: - chamava-se ele Elias Mateus Pedro, tinha 25 anos. e idade, era marceneiro de profissão e residia naquele mesmo bairro Cazenga, na casa 47-C2-112-C.

Acto contínuo, o réu meteu-se de novo na carrinha, abandonou rapidamente o local e dirigiu-se para sua casa (no bairro São Pedro, à Cuca, na rua Charula de Azevedo, nº 37), onde entrou.

A testemunha Veríssimo da Costa que tudo presenciara e fora no encalço da carrinha até à porta da casa do réu; dirigiu-se então à 10º Esquadra da P.S.P., a fim de participar o crime e indicar a matrícula da carrinha do réu, que entretanto anotara.

Ao alcançar a esquadra já aí encontrou o réu, agora acompanhado de sua mulher (a esposa) apresentando o bolso da camisa descosido e rasgado...

Pouco depois, começou a circular pela cidade o boato de que «os pretos haviam-se revoltado, levando isto para; o campo, do terrorismo e que os mesmos tinham morto um motorista de táxi» (sic).

Na sequência da efervescência assim criada, «cerca das 19 horas para as 20 horas começaram a chegar ao Bairro Cazenga» dezenas de viaturas entregando-se os seus ocupantes à prática de indiscriminadas e brutais agressões sobre pessoas e haveres dos cidadãos de cor que fossem apanhados nas imediações do mercado do Cazenga até à Curbol.

Algumas casas foram incendiadas, outras totalmente destruídas.
Inexplicavelmente, a P.S.P., presente em força considerável, armada, equipada e reforçada por cães-polícia, só alta madrugada do dia seguinte conseguiu serenar o tumulto e quase parece que se limitou a dar cobertura à ferocidade das várias dezenas de «pretensos vingadores» duma vítima-boato. Efectivamente, não obstante a presença das forças policiais, mais quatro pessoas foram assassinadas (Bernardo Gouveia, morto a tiro pelo réu António Grilo; Faria Fusga Neto, espancado brutalmente; Paulo Antunes. também espancado até à morte, e Francisco Capundanga, igualmente morto por espancamento).

Os cinco réus trazidos a julgamento traduzem apenas uma modesta «amostragem» da ferocidade e número de populares que nessa sombria noite de 16 de Setembro do ano passado deram largas a um ódio primário e selvagem, em repetição de cenas igualmente sinistras a que Luanda já antes assistira, desejando-se todavia que jamais voltem a verificar-se (no que aliás dificilmente se acredita, pois quem semeia tempestades não deve surpreender-se se vier a colher apocalipses...) .

VENERANDOS DESEMBARGADORES
Não nos iludamos!
O que se passou naquela noite de sábado revela bem o grau de tensão que existe entre duas comunidades desavindas, ao nível da base. Não nos competem aqui diagnósticos e prognósticos. Mas já nos compete o sagrado e inalienável dever de fazer Justiça.

Os factos criminosos imputados aos réus nos autos estão todos claramente comprovados. As hesitações e subjectivismos da douta sentença recorrida não têm assento nos elementos de prova, carreados durante a instrução.

Deu-se, por exemplo, acolhimento à versão do réu Telmo e à sua infantil história de que precisou de se defender a tiro de quatro mal¬feitores que, em pleno dia, 16 horas, e no meio de centenas de pessoas (mercado do Cazenga) lhe queriam roubar quatro ou cinco contos de um bolso e que nem hesitaram nos seus intentos quando ele deu dois tiros para o ar (não obstante três dos malfeitores o terem manietado pelas costas!!!)

Não foi nenhum vadio que o réu assassinou, mas um honrado marceneiro residente no mesmo bairro em que o mataram!

Deu-se aceitação à tese do réu de que fora agredido, etc., etc., quando a testemunha Veríssimo, que tudo presenciou, nega peremptoriamente tal versão.

O que é que o réu foi fazer a casa antes de seguir para a 10ª Esquadra? Não terá por ventura ido encenar os rasgões e as unhadas juntamente com a mulher?!

De qualquer modo onde é que é possível fundamentar a «provocação relevante» de que se fala na douta sentença? (fls. 432v). A convicção do julgador, apenas?!! (fls. 432). Se o tal diálogo que a testemunha Veríssimo presenciou à distância pudesse vir a ser considerado tão grave como o Meritíssimo Juiz «a quo» o imaginou, porque razão é que o réu Telmo nunca o invocou? Aliás o réu nem sequer se refere a tal diálogo que não «cabe» na sua versão dos factos. Por este andar, também podemos imaginar que a provocação foi iniciada pelo próprio réu. Repare-se que este era um profissional da pistola. Repare-se que o réu, durante anos, fez profissão de mantenedor da ordem contra subvertores. Se ficou ou não traumatizado contra todos ou a maior parte dos indivíduos da mesma cor daqueles que o feriram, um dia, na Organização a que pertencia, é assunto que bem poderia merecer alguma atenção... o que não aconteceu.

Em contrapartida, a fls. 436 da douta sentença, referem-se expressamente a favor do réu Telmo «os serviços relevantes prestados à Pátria» (!!!). Quer-se maior demonstração de subjectivismo?! Que relevantes serviços terá ele prestado à Pátria que nem sequer mereceram um simples louvor (cfr. fls. 392 v)?!

E o bom comportamento anterior?!

O bom comportamento anterior que se lhe «contabiliza» onde é que se vai documentar? É só ao certificado de registo criminal de fls. 332 onde se apôs o habitual carimbo do NADA CONSTA?! Bom comportamento anterior não é só o NADA CONSTA de tais certificados e abstemo-nos de aqui desenvolver este tema, pois seria ingénuo desafio à inteligência dos Venerandos Desembargadores. Permito-me somente este comentário: - Já vai sendo tempo de se superar, a qualquer nível de julgamento, a estreitíssima visão de que «bom comportamento» significa somente o desconhecimento oficial de quaisquer patifarias do «bem comportado»...

Pelo que respeita ao réu Telmo, o verdadeiro interruptor que desencadeou o drama daquela noite de Setembro em que foram assassinados 5 (cinco) homens, incendiadas e destruídas 6 (seis) casas, feridas numerosas pessoas e em que a cidade inteira participou, pelo menos emocionalmente, só quero acrescentar o seguinte:

- Cometeu o réu Telmo, sem dúvida e sem atenuantes, um crime crapuloso de homicídio voluntário, abatendo a tiro, sem contemplações, raivosamente, um homem desarmado (o próprio réu o reconheceu), que, quando muito, o «terá irritado» com quaisquer observações, comentários ou até insultos à qualidade de senhor branco todo poderoso, portador de uma pistola, no desgraçado bairro Cazenga, para lá do asfalto. onde os «pretos», aos olhos dos Telmos deste mundo, são, por definição, patifes, salteadores, desprezíveis...

É sempre o ódio o sentimento gerador dos homicídios. A genealogia do ódio é que poderá ser mais ou menos complexa, conforme os casos. No exemplo concreto do réu Telmo não será difícil ir decantar esta genealogia do ódio ao «espírito heróico de pequeno branco», à discutível escola das organizações para-militares que proliferam, infelizmente. nesta perturbadíssima terra. CONTINUA
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