VENEZUELA, OS PASSOS PERDIDOS
Aproveitei
para título deste artigo um dos mais belos, e simultaneamente menos conhecidos
romances da literatura sul americana, escrito em 1953 pelo cubano Alejo
Carpentier (1904-1980), que viveu na Venezuela entre 1945 e 1959.
Este
romance é a imagem de um mundo que começa no grande rio Orenoco, o maior da
Venezuela e um dos maiores da América do Sul. É a subida desde a foz até à sua
nascente para encontrar a “raiz da vida”, e onde cada personagem define o que é
o poder, e as suas lógicas, a atmosfera selvagem e abrupta, o que ele chamou do
“real maravilhoso americano”.
A
Venezuela é a pátria do libertador Simão Bolivar, o mais conhecido combatente
pela independência das colónias espanholas na América do Sul e o seu verdadeiro
unificador. A Republica Bolivariana da Venezuela teve a sua autonomia aquando
da sua separação da Grã-Colômbia, território partilhado com a Nova Granada, Equador e Panamá,
surgida por altura do falecimento de Bolivar.
Sempre
marcada por alternância entre democracias e ditaduras, a Venezuela consegue ser
das poucas republicas americanas a manter ininterruptamente uma democracia
desde 1958, apesar de pontualmente irem aparecendo focos de guerrilha e nalguns
casos algum projeto tipo “Coronel Tapioca”, icónica personagem dos livros de
Tintim, do belga Hergé, que corporizava as revoluções em vários países na
América Latina.
A Venezuela
era antes da exploração petrolífera nos anos 20 do século passado, um dos
países com razoável aproveitamento dos recursos agrícolas, nomeadamente o café
e o cacau, para além de uma agricultura de subsistência que ia permitindo uma
dieta alimentar razoável à população. O peixe de uma zona costeira riquíssima
era um complemento para a alimentação dos cidadãos e produto não negligenciável
no quadro das exportações.
A exploração
do petróleo levou a que a agricultura fosse perdendo cada vez maior importância,
e num curto espaço de tempo a Venezuela passa a ter 80% da sua população, hoje
de 32.000.000 de habitantes, que vive em cidades, com todas as inerentes
consequências.
A Venezuela é
hoje o 3º maior produtor de petróleo, e o 2º exportador mundial. Tem as maiores
reservas mundiais de gaz e é um dos países com maiores reservas hídricas do
planeta. Acresce a tudo isto a rica fauna da sua zona exclusiva marítima!
Neste quadro
a Venezuela, com a Standard Oil americana como parceira, começa a desenvolver
uma industria de siderurgia, de cimentos, metalomecânica, refinação e outras o
que leva a uma crescente urbanização da sua população tornando as urbes em
megacidades, que transformaram o País como um dos de maior violência urbana em
todo o mundo.
Em 1976, três
anos depois da crise petrolífera de 1973, e com a eleição do social democrata
Carlos Andrés Peres, a Venezuela nacionaliza o petróleo e procura desenvolver rapidamente
o País com a construção de novas e melhoradas infraestruturas, bairros sociais
que permitissem alojar deslocados do campo para as cidades, hospitais, em suma
um projeto desenvolvimentista que criou uma dívida externa quase
incomensurável, fruto das quebras petrolíferas nomeadamente a de 1980. A classe
média venezuelana cresceu percentualmente de forma mais rápida que em toda a América
Latina, e começaram a agudizar-se os conflitos aliados a uma corrupção endémica
que tinha como figura de tomo o Presidente da República.
Neste quadro
cada vez mais as forças armadas ganham alguma influencia, e começa a emergir a
figura de Hugo Chavez, um misto de caudilho e esperança para uma população que
vive cada vez pior, e assiste impotente ao desbaratar dos recursos por uma
elite que se apossou do aparelho do estado e das empresas publicas.
Naturalmente
que Chavez é olhado com desconfiança pelos EUA, sempre ligados ideologicamente
às teses do “Big Stick” do presidente Theodore
Roosevelt (1858-1919) e economicamente aos interesses das grandes companhias
americanas.
Hugo Chavez
apesar de acossado pela elite venezuelana, acolitada pela administração
americana, inicia com as receitas do petróleo em alta, um conjunto de reformas
que procuram dar resposta ás ansiedades da população mais desfavorecida da
Venezuela. Com alguns laivos de demagogia, Chavez começa a criar escolas,
hospitais, promulga legislação que proteja os mais pobres, criando a cesta
básica. Promove projetos para a edificação de casas para alojar os que moram em
favelas e assume-se como um verdadeiro leader dos povos que se tentam emancipar
na América latina.
Escusado será
dizer que os EUA e seus aliados regionais e locais tudo tentaram para o
destruir, através de greves, fuga de capitais, boicotes, mas eleitoralmente ele
reforçava o seu poder em cada votação. A sua doença foi a única coisa que não
conseguiu vencer, e morre em 2013 sendo substituído pelo seu vice-presidente
Nicolas Maduro.
Com a queda
abrupta do peso do petróleo, com a falta de financiamento internacional, com os
juros da dívida a estrangularem a economia os inimigos do “Chavismo” tem
tentado tudo para acabar com o legítimo governo da Venezuela sufragado nas
urnas.
Tem sido
lançada uma campanha para denegrir o regime Venezuelano, com sanções de toda a
espécie, e com a criação de um ambiente de “crise humanitária global” que leve
à intervenção militar, para justificar isso sim uma guerra de contornos
sórdidos para uma intervenção económica na Venezuela, a favor dos que intervém
há muitos anos na América latina, feudo privilegiado das companhias americanas
e dos seus interesses instalados na Casa Branca.
A insuspeita
ONU num recente relatório fez saber que as sanções impostas desde 2015 pelos
EUA e União Europeia contra a Venezuela “agravaram muito a escassez de
alimentos e medicamentos, causaram sérios atrasos na distribuição e
desencadearam o fenómeno da emigração maciça para os países vizinhos”! O
Enviado da ONU à Venezuela foi categórico ao afirmar que o que acontece na
Venezuela é “uma crise económica que não pode ser comparada às crises humanitárias
em Gaza, Iémen, Líbia, Síria, Iraque, Haiti, Mali, RCA, Sudão do Sul, Somália,
Myanmar, entre outros”. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura
e Alimentação divulgou recentemente 2 relatórios (dezembro 2017 e março de 2018
referindo que a Venezuela não está entre os 37 países do mundo que passam
crises alimentares.
Convém
esclarecer que não gosto particularmente do estilo e discurso de Nicolas
Maduro, a quem não reconheço a estrutura intelectual e o carisma de Hugo
Chavez, mas acho que a Venezuela só passa por tudo isto que está a passar pela
cobiça de agentes económicos pelas riquezas de um dos territórios mais ricos do
mundo e que vai lutando pela sua soberania e defesa dos seus interesses!
Fernando Pereira 3/10/2018
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