Um Adeus
Africano
Recentemente deixou-nos Kofi A. Annan, o
africano que mais tempo esteve como Secretário Geral da ONU, e o segundo a
ocupar esse lugar.
No
esquema de rotatividade que estava consensualizado até ser quebrado com a
eleição de António Guterres para o atual mandato, África substituiu a América
Latina em 1992 e fez eleger o egípcio Boutros-Ghali como secretário-geral.
O egípcio Boutros Boutros-Ghali (1922-2016), substituído por Kofi
Annan, só conseguiu fazer um mandato enquanto SG da ONU, já que as suas
divergências com a política externa dos EUA impediram que a sua candidatura a
segundo mandato tivesse êxito.
Boutros-Ghali
fez frente à influencia dos EUA na ONU e teve um mandato difícil, em que os
Americanos apostavam no desmembramento de Angola e da então república
federativa da Jugoslávia entre outras intervenções. Os EUA não terão conseguido
impor a sua vontade na solução da crise do Ruanda, que se traduziu num dos
maiores massacres que se viveram na África contemporânea. O SG foi acusado de
ter ignorado avisos sobre a deterioração da situação no Ruanda e não se livrou
de críticas de muitos que o acusaram de alguma sobranceria.
Foi
responsabilizado por fracassos inerentes aos muitos conflitos que assolaram o
mundo de um tempo pós-guerra-fria, e os atritos com a administração Clinton
foram continuados, tendo-lhe sido criado um ambiente insustentável na cena
internacional e também no interior da própria organização. Tudo foi anotado no
seu livro de memórias Unvanquished: A U.S.-U.N. Saga (1999), e algumas
situações conseguem ser bizarras no quotidiano de seriedade das relações
internacionais.
Entre vários incidentes contou que a
meio do seu mandato recebeu um embaixador Americano que lhe transmitiu que o
presidente Clinton queria que ele se demitisse e fazia uma festa de homenagem
para ele não sair "pela porta traseira"! Recusou e nem com o forte
apoio da França, claramente a sua maior aliada, conseguiu apoios para uma
segunda magistratura.
A solução de compromisso para que
África mantivesse um elemento do seu espaço, para o segundo mandato exigiu
soluções de compromisso, entre os vários membros do Conselho de Segurança e como
resultado de tudo a solução surgiu dentro da própria instituição, com a subida
a secretário-geral do então adjunto Kofi Annan, que vai exercer o lugar entre
1997 e 2017.
Foi o primeiro cidadão negro à
frente da ONU, e também até hoje o único da África subsariana.
Kofi-Annan herda uma ONU envolvida
numa série de problemas, estruturalmente desorganizada, e sem capacidade
económica para dar resposta às múltiplas intervenções que se exigiam às Nações
Unidas, que dispunha ao tempo de um efetivo de 70.000 soldados e uma pesada
máquina burocrática que era muito exigente do ponto de vista financeiro e algo
ineficaz nas respostas que a organização tinha celeridade em dar.
Este Ganês que fez toda a sua
carreira em organizações internacionais até entrar definitivamente em 1980 na
ONU como secretário-geral
adjunto em três situações consecutivas: Gestão dos Recursos Humanos e
Coordenador para as Medidas de Segurança do Sistema das Nações Unidas
(1987–1990); Subsecretário-Geral para Planeamento de Programas, Orçamento e
Finanças e de Controlador (1990–1992); e Operações de Manutenção da Paz (março
de 1993 – dezembro de 1996).
Muito mais conciliador que o
secretário-geral anterior, passou a ser olhado com simpatia pelos americanos
que viram o ataque ao Kosovo e o bombardeamento à Sérvia serem apoiados pelo
novel Secretário-Geral da ONU.
Do mandato anterior “herdou” a má imagem que a
Organização deixou na intervenção americana na Somália, a desorganização das
forças de intervenção nos diferentes teatros de guerra, que eram caras e de
eficiência discutível no terreno.
Kofi Annan fez um toque a reunir e
iniciou um processo de reorganização administrativa e uma aposta clara no
reequilíbrio financeiro das Nações unidas obrigando de forma draconiano ao
pagamento das prestações em falta por parte de um conjunto significativo de
países membros.
O mundo começava a sarar das feridas
herdadas da guerra fria, e Kofi Annan tentou que a ONU fosse o fórum ideal para
o estudo de uma enorme vontade de alterar o modelo económico e social
prevalecente no mundo.
Tarefa ciclópica e de certa forma
algo utópica, mas Kofi Annan com a paciência do cidadão africano foi afirmando
na ONU valores de liberdade, equidade, solidariedade, tolerância, não
violência, respeito pela natureza e responsabilidade partilhada.
Kofi Annan dizia na Conferencia do
Milénio em 2000 no contexto do texto “Nós os Povos, o papel das Nações Unidas
no século XXI”: “Se a globalização oferece grandes oportunidades,
nenhuma alteração da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do
que colocar o ser humano no centro de tudo o que fazemos. O que é certo é que,
até hoje, os seus benefícios foram distribuídos de uma forma muito irregular,
enquanto o seu custo é suportado por todos. Assim, o grande desafio que
enfrentamos hoje é certificarmo-nos de que, em vez de deixar para trás milhares
de milhões de pessoas que vivem na miséria, a globalização se torne uma força
positiva para todos os povos do mundo. Uma globalização que favoreça a inclusão
deve assentar na dinâmica do mercado, mas esta, só por si, não é suficiente. É
preciso irmos mais longe e construirmos juntos um futuro melhor para a
humanidade inteira, em toda a sua diversidade”.
Annan apesar de ser acusado de
pró-americanismo nunca cedeu aos EUA no ataque ao Iraque, e apenas tentou
ganhar tempo para que os inspetores enviados no âmbito da ONU para a
verificação de armas de destruição em massa estivessem em segurança, depois de
em inúmeros relatórios terem concluído que não existiam essas armas em
território iraquiano. À revelia da ONU, já que a França não alinhava com os EUA
no ataque ao Iraque, os EUA e a Grã-Bretanha unilateralmente atacaram o Iraque.
O SG da ONU deixa uma mensagem no
seu discurso nessa conferencia: “Nenhuma alteração
da nossa maneira de pensar ou agir pode ser mais decisiva do que colocar o ser
humano no centro de tudo o que fazemos. Não há aspiração mais nobre, nem
responsabilidade mais imperiosa do que ajudar os homens, as mulheres e as
crianças do mundo inteiro a viverem melhor. Só quando isso começar a acontecer
é que saberemos que a globalização está de facto a favorecer a inclusão,
permitindo que todos partilhem as oportunidades que oferece.”
Kofi Annan deixou-nos
recentemente, mas os seus valores, assumidos sempre com a eterna referencia à sua
“alma mater” Kwame Nkrumah, tem que valer num mundo que se
perpetua eternamente desigual de mais.
Com a sua morte o mundo perde um
cidadão proeminente, África perde um dos seus filhos valorosos!
Fernando
Pereira 3/9/2018
Sem comentários:
Enviar um comentário