Kimbo dos Sobas, pois, a Angola
Utópica!
“… a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no
deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem
onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia?
Existem,
no entanto, e eu sou um deles. Sem Medo também o sabia. Mas insistia que era um
caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando,
nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do
verde.”
In Mayombe- Pepetela
Em
Coimbra havia uma “Republica “que comemorava o seu “centenário” a cada 4 de
Fevereiro. O Kimbo dos Sobas.
Vamos
começar por explicar o que era uma República no contexto da sociedade
estudantil de Coimbra ao longo do tempo. Era uma casa organizada por um
conjunto de estudantes, que tinha por missão fazer a sua gestão doméstica.
Estas casas tinham códigos de conduta bem definidos e tinha que haver uma
parcimoniosa gestão dos dinheiros para que se conseguisse pagar a renda, o
ordenado da empregada que ia às compras, fazia a comida, limpava os quartos e
tratava da roupa entre outras atribuições menores. Entre os “Repúblicos” havia mensalmente um
“mor”, que era a pessoa votada que em determinado mês tinha que fazer a
ginástica suficiente para que se conseguisse fazer face às despesas
quotidianas. Claro que havia um sobressalto constante e havia uma República que
até tinha uma alteração de uma célebre frase de Churchil: “Nunca tão poucos
deveram tanto a tantos”.
Já
houve oportunidade de justificar o nome centenário, exagero deliberado, e
também indiciador da importância atribuída pelos repúblicos às suas vivências
nestas comunidades.
Todas
as “Repúblicas” utilizam esta designação para referir o aniversário da fundação
da casa. Reivindica-se, com esta dilatação hiperbólica do tempo, a
indiscutibilidade das aprendizagens que nestas “escolas da vida” tinham lugar:
Um ano “dentro” de uma República valeria cem anos “fora” dela.
O
“Kimbo dos Sobas” foi a primeira casa só de estudantes angolanos criada em
Coimbra no fim dos anos 50. Havia uma outra, os “Milionários”, fundada por
Norberto Canha, hoje um ortopedista nonagenário natural do Huambo, o Orlando
Ferreira Rodrigues, do Chinguar, 1º director da TPA, juiz do TPR e professor
jubilado da Faculdade de Direito da UAN, o Mbeto Traça, o António José Miranda,
ambos generais reformados, o Manecas Balonas, médico recentemente falecido,
Oscar Monteiro, primeiro ministro da justiça de Moçambique, Fausto Martins da
Costa, psiquiatra já falecido, o Cardoso, um urologista de Moçambique, o Jonhy,
jurista de Cabo Verde, o Celestino Costa, ex-primeiro ministro de S. Tomé e
Príncipe, já falecido, entre outros de várias proveniências.
O
“Kimbo dos Sobas” é fundado numa casa alugada por um grupo de angolanos. Os seus
fundadores são o escritor e homem do Huambo Manuel Rui Monteiro, o cirurgião
nascido no Lepi Fenando Martinho, o jurista nascido no Lobito Aníbal Espírito
Santo, o engenheiro do Luau, Segadães Tavares, o Zé Cardoso, conhecido pelo
Zequinha da Gráfica, o cineasta António Faria e o Cacondense Machado Lopes.
Um dado
relevante tem a ver com o facto do “Kimbo dos Sobas”, ao tempo não formalmente
uma República, ser constituída basicamente por cidadãos do sul do território de
Angola, a que não era alheio o facto de só haver um liceu em Sá da Bandeira,
hoje Lubango, o Diogo Cão, que absorvia toda a gente filha de colono de terras
a sul do Quanza. È preciso realçar que nos dois liceus de Angola, os negros
contavam-se pelos dedos, pois eram inacessíveis por razões económicas a sua
frequência. Muitos eram filhos de
funcionários do caminho de ferro de Benguela a quem atribuíam bolsas, já que os
magros vencimentos, mesmo dos funcionários brancos, não permitiam enviar filhos
estudar para o sul. Havia também uma grande ligação entre Sá da Bandeira e
Coimbra, e a verdade é que para muitos era a Coimbra de Angola, com praxes e
capas, o que não acontecia no outro liceu, o Salvador Correia de Luanda que
absorvia as gentes a norte do Quanza.
Muitos
angolanos do sul e do norte acabaram por se conhecer e trilhar um caminho comum
em Coimbra e Lisboa quando vieram estudar, pois nem se conheciam, nem tampouco
conheciam as terras uns dos outros.
Antes
de voltar ao Kimbo dos Sobas, lembremos que Agostinho Neto, Lúcio Lara, João
Vieira Lopes, Manuel Videira, MacMahon Vitória Pereira, irmãos Couceiro,
Fernando Oliveira, Emílio Quental, Orlando Albuquerque, Alda Lara, Diógenes
Boavida, Mário Torres, Eduardo dos Santos e outros viveram na primeira metade
dos anos 50 em Coimbra, e a maior parte dele só acidentalmente se cruzou com os
angolanos que estiveram nos “Milionários” e no “Kimbo dos Sobas”.
O
“Kimbo dos Sobas”, e repetindo, começou por ser uma casa organizada de
estudantes angolanos acabou por ser, a par dos “Milionários” um espaço de
“fermentação” do espírito independentista, que ia proliferando no fim dos anos
50 e no dealbar dos anos 60. O espaço solidário em que se transformaram serviu
para apoiar em termos logísticos as fugas dos 150 em 1961 e uma outra que se
gorou em 1963. Nesta a PIDE foi ao “Kimbo dos Sobas” e prendeu Fernando
Martinho, Manuel Rui Monteiro e José Cardoso, que estiveram uns meses presos e
sujeitos a interrogatórios no Aljube, em Lisboa.
A
primeira fuga, que teve grande sucesso, foi toda acompanhada por dois
reverendos americanos em colaboração com organizações francesas de refugiados,
havendo razoável apoio económico, o que talvez evidencie que a CIA terá
patrocinado essa aventura coroada de êxito, que foi um verdadeiro golpe contra
a propaganda colonialista do Portugal de Salazar.
Por
tudo o muito que se viveu, antes da mudança de casa para a Rua Antero Quental
em Coimbra, paredes meias com os “Milionários”, já numa fase moribunda, e com a
delegação da PIDE , o “Kimbo dos Sobas” passou a ser uma porta aberta para
todos os angolanos que vinham a Coimbra.
Convém
esclarecer que era tradição as “Republicas” em Coimbra manterem a porta aberta,
num sinal de hospitalidade para com quem passava, e também pouco ou nada havia
para tirar já que a generalidade dos repúblicos era gente de poucas posses!
Na
altura da passagem do “Kimbo dos Sobas” para mais perto do centro nevrálgico da
Academia de Coimbra, ainda se discutia sem grande entusiasmo a passagem do
estatuto de residência a solar, etapa indispensável para passar a Republica, no
quadro do regulamento em vigor nas estruturas universitárias de estudantes da
Associação Académica de Coimbra.
Isso já
só aconteceu em meados da década de sessenta, e na crise estudantil de 1969, o
representante do Kimbo dos Sobas Roberto Leal Monteiro (o actual general
Ngongo) foi o escolhido para o Conselho de Republicas, órgão que iria escolher
os órgãos sociais da Associação Académica de Coimbra, que entretanto não foi
aceite pelo regime, o que era de todo evidente!
A fraca
ou quase nula participação de angolanos nas lutas académicas de 1962 e 1969
teve a ver com o sentir independentista que germinava, em que os angolanos em
Coimbra se sentiam desenquadrados da luta dos portugueses, e assumiam sem
reservas que a luta era outra, pela libertação de Angola e um apoio declarado
desde sempre ao MPLA. Era normal que isso acontecesse porque as pessoas
discutiam o que tinham vivenciado em Angola em termos de segregação social e
rácica, e perante uma partilha maior de novos enquadramentos ideológicos
conseguiam aumentar o seu lado certo de estarem nas coisas, e o inimigo a
abater era claramente o colonialismo português.
Da fuga
dos 150 elementos em 1961, de Coimbra foi muito badalada o “salto” de de França
(Ndalu), Chipenda, Araújo (Ben Barek), Fernando Avidago e José Julio (Foi
Director Geral dos Desportos em Moçambique) porque de um momento para o outro
desfalcaram a equipa da Académica de Coimbra onde todos eram jogadores de
eleição!
Ao
“Kimbo dos Sobas”, já nas novas instalações chegaram novos Repúblicos, e alguns
já de Luanda e de outras regiões do País. De certa forma a República começou a
ter uma unidade na angolanidade, e eram frequentes as visitas dos PIDEs a uma
casa que era olhada com cada vez maior desconfiança por parte das autoridades.
Porque
alguns dos iniciais saíram, outros que os substituíram deram o salto ou criaram
família, entraram na casa novos habitantes que reforçavam as convicções
independentistas que já eram chancela da casa. Entrou Nene Pizarro, Roberto
Leal Monteiro (Ngongo), João Saraiva de Carvalho (Tetembwa), Eurico Gonçalves
(morto em 27 de Maio de 1977), António Trabulo, Fonseca Santos, Garcia Neto
(também vitima do 27 de Maio de 1977), o médico falecido Fernando Sabrosa e
tantos que por lá passaram e outros em fugazes visitas de cortesia política
como foi o caso de Gilberto Teixeira da Silva (o comandante Gika) e o Quincas
Fonseca Santos cobardemente assassinado no Longonjo em 1979.
Com a
fuga de alguns elementos do Kimbo dos Sobas, não apenas pela ameaça de prisão,
mas para se envolverem na luta armada, a Republica teve que aceitar
portugueses, numa discussão que terá sido pouco pacífica, mas que permitiu que
gente solidária apoiasse a luta que se
ia fazendo por uma Angola que talvez um dia seja aquilo que muitos sonhavam,
nas longas noites de uma Coimbra que não era só fados, baladas, serenatas,
capas e tricanas, como muitos gostavam e gostam de a pintar.
Na
prisão de Garcia Neto e Fernando Sabrosa pela PIDE por exemplo foi determinante
a solidariedade dos Repúblicos e suas famílias de forma tentarem minorar o seu
sofrimento em Caxias, não lhe permitindo visitas, com o argumento soez de que
não eram familiares. Venceram-se algumas resistências!
Ao
fazer o “centenário” no 4 de Fevereiro, os repúblicos do “Kimbo dos Sobas”
assumiram qual era o seu posicionamento e sobretudo a forma corajosa de
encararem a sua opção, num tempo de violência muito dura sobre ideias que não
perpetuassem o fervor no Império
português, em que o seu grande ideólogo era Adriano Moreira, o homem que
reabriu o Tarrafal em 1961.
A
Angola utópica passou por muito lugar, e como se vê Coimbra também colocou o
“seu tijolo nos alicerces do mundo”, mas os muitos que viveram esses tempos,
apenas queriam que todos “tivessem o seu bocado de pão”
Fernando Pereira
28/01/2023
2 comentários:
Nunca mais esqueceremos, os heróis de 4 de Fevereiro.
Obrigada cark Fernando
Pequenas correcções que não alteram o essencial.
O Gika (Teixeira da Silva) não foi membro do Kimbo, mas sim dos Mil-y-onários. Visita assídua do Kimbo, aí esteve em confraternização na noite que antecedeu a sua "fuga" para França em Outubro de 1962, juntamente com o Jorge Alves Pires (o General Pirica, já falecido e de notável integridade, retratado pelo Pepetela no romance baseado em factos verídicos "A Estepe e o Planalto").
O Gen. M´Beto Traça era também visita assídua do Kimbo.
O Quicas Fonseca Santos, assassinado por alturas do Natal de 1978 entra para o Kimbo em Janeiro de 1963, ele e mais 4 angolanos, um deles seu irmão, o médico urologista Mário Fonseca Santos.
No planalto já não existia só o Liceu Diogo Cão; eu próprio fui aluno do Liceu do Huambo, juntamente com o Manuel Rui. Em Julho de 1961 terminámos no Huambo o Liceu, sendo a seguir obrigados a exilar-nos em Portugal para poder prosseguir os estudos na universidade.
O Kimbo é fundado em 1962, sendo exigível ser angolano. Houve uma única excepção na altura, em 1963 entra o Celestino Gomes, são-tomense de origem e futuro primeiro-ministro de São Tomé, já falecido. Era um pouco reccorrente dizer que ele não era bem estrangeiro; era cidadão da "décima-nona província de Angola...
Peço desculpa pela intromissão,
António Segadães Tavares
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