Pela boca morre o
peixe!
No nosso quotidiano é frequente
confrontarmo-nos com o apelo à genuinidade das coisas angolanas, em discussões
muitas vezes a raiar o racismo primário e invariavelmente a roçar a falta de
educação.
Sempre partilhei que o orgulho na
angolanidade deve ser preservado, quiçá motivado, e as suas manifestações tem
que ser uma afirmação plena de ser e estar na África, que partilhamos numa
economia global onde estamos inseridos.
A Angola independente tem
bastantes motivos para se orgulhar, e para que conste eu faço parte dos 18% da
população que já era adulta quando do advento da independência, por isso sei
bem do que falo. Contudo é necessário por vezes não nos excedermos na soberba,
sob pena do nosso comportamento na defesa de determinados pontos de vista se
confundir com o inconsequente e banalizado estatuto do malformado e do
mal-educado.
Num mundo de globalização (Álvaro
Cunhal, dirigente histórico do PCP, dizia que sempre conheceu isso pelo nome de
imperialismo) que se tem perpetuado desde tempos imorredoiros, fomos assistindo
a uma diluição de hábitos, modos de estar, conhecimentos e práticas que são
absorvidas, às vezes com doses cavalares de xenofilia, e em tantas
circunstancias involuntariamente, ou talvez não, embrulhadas numa retórica
xenófoba e de ideias enclausuradas.
Vamos, mas é à comida antes que
arrefeça. Durante muitos anos foi-se cimentando a ideia que a muamba era um
prato tipicamente africano. Uma inverdade. O milho e a mandioca foram trazidos
para África pelos portugueses, que os espanhóis levaram para a Europa trazida da
América do Sul. Não havia tradição em África do guisado, e o português colocado
nos trópicos por vários motivos, sentiu necessidade de substituir o azeite doce
e começou a tentar fazer com o óleo de dendém as iguarias que fazia na sua
terra, daí ter surgido um prato que honra a cozinha angolana. O Muzungué e
todos os pratos que levem óleo de palma tem uma componente de comida europeia e
sul-americana.
O feijão e os tomates foram do
México para a Europa, assim como o coqueiro, o mamoeiro, a mangueira e o
cajueiro vieram da India, isto a título de exemplo. O arroz veio do
extremo-oriente, e a batata foi introduzida pelos espanhóis na Europa
proveniente da América do Sul, tendo sido o alimento mais importante colocado
na cadeia alimentar pois evitou as cíclicas e pouco espaçadas crises de fome na
Europa. O milho trazido da América foi também decisivo para que a fome na
Europa fosse minorada!
A bananeira foi trazida pelos
portugueses do oriente e disseminada por toda a costa, assim como a cana
sacarina. O alho, a cebola fazia parte do bornal do português em todo o lado,
que se iniciando a sua plantação nas hortas que iam fazendo um pouco por toda
Angola.
Isto pode parecer um pouco paradoxal,
mas de facto angolano mesmo era o café, o safú, a fruta-pão, a cola, o quiabo,
o tamarindo, a pitanga, o maracujá gigante e a malagueta. O abacaxi, a anona, a
jinguba, a jaca e o pimento foram introduzidos pelos portugueses, uns vindo do
oriente, outros da América do Sul. A própria goiabeira é um produto da Índia.
Em relação ao cacau, foi implantado sem grande sucesso em Cabinda trazido da
bacia do Amazonas
Em África não há tradição de
doçaria, nem tampouco os ovos fazem parte da dieta; as galinhas produzem ovos,
mas servem apenas para a reprodução.
A doçaria assentou o seu
nascimento nos conventos, e cingiu-se à Europa, porque só já na segunda metade
do século XIX é que se instalaram em Angola congregações religiosas femininas,
limitando-se a fazerem um trabalho assistencial ao nível dos hospitais ou casas
de desvalidos. Os doces que enxameiam as pastelarias um pouco por todo o mundo
são a maioria delas receitas saídas dos conventos, que as freiras e as noviças fabricavam
e reinventavam para que fossem entregues á Igreja e esta pudesse vender de
forma a conseguir proventos supletivos.
Só mesmo na Europa é que a
doçaria se desenvolveu, e aqui incluem-se os licores, as compotas e as
conservas de produtos diversos em vinagre de forma a poderem ser consumidos nos
Invernos longos dessas paragens. No Brasil o desenvolvimento da doçaria tinha a
ver com o preço baixíssimo do açúcar, o que motivou o aparecimento de uma
panóplia de doces que se multiplicam por todo o lado.
A emblemática “caldeirada de
cabrito à angolana” é só uma adaptação dos pratos alusivos à faina das
colheitas no norte e centro de Portugal, que transportaram para Angola os
produtos e os odores misturando-lhe o gindungo acompanhando-o com o marufo (ou
malavo), quitota, quiçângua ou em tempos recuados com o hidromel.
No que à comida diz respeito sou
mais na ótica do utilizador e não muito ligado a questões académicas, mas a
verdade é que o sal e o gindungo ajudaram a manter o paladar, escondendo alguma
podridão na carne que ia sofrendo a inclemência do calor tropical.
Quanto aos peixes como havia
pouca tradição em Angola de pesca, os pratos de peixe já se circunscrevem à
efetiva ocupação colonial. As poucas colónias de pescadores que existiam eram
até de alguma forma relegadas para um plano secundário na hierarquia produtiva
dos reinantes antes da implantação dos portugueses. A estafada frase de “peixe
não puxa carroça” adapta-se na perfeição ao que acontecia no consumo do peixe
em Angola, porque não dava a força necessária para o trabalho braçal.
Como se pode ver, nesta pequena
amostra foram os marinheiros portugueses e espanhóis que promoveram esta
mistura de sabores e odores, e por isso a genuinidade das cozinhas é sempre
muito discutível porque o que houve foi adaptações fruto das circunstancias e
das exigências dos mercados locais ou alargados.
Assunto bem interessante este!!!
Fernando Pereira
23/07/2018
2 comentários:
Como sempre. não perdes a veia investigativa.Um abraço.
Seria interessante saber as fontes de tal informação!
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